ENTREVISTA INTERVIEW
Gracia Maria de Miranda GondimI
Ipesquisadora do Laboratório de Educação Profissional em Vigilância em Saúde (Lavsa) da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).
Luiz Odorico Monteiro de Andrade é professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC). Médico, mestre em saúde pública pela UFC, fez doutorado em saúde coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Com pós-doutorado no Canadá, na Universitè de Montreal, como bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Luiz Odorico preside atualmente o Instituto Centec, centro de ensino e pesquisa que visa formar pessoal em áreas estratégicas para o desenvolvimento sustentável do estado do Ceará.
Nesta entrevista1 1 Entrevista concedida a Gracia Maria de Miranda Gondim, pesquisadora do Laboratório de Educação Profissional em Vigilância em Saúde (Lavsa) da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz). , o fio condutor foi a integração da vigilância em saúde com a atenção básica, tendo na abordagem do território a estratégia central dessa aproximação. Com a autoridade de quem já atuou como secretário de saúde de algumas cidades cearenses - entre elas Icapuí e Fortaleza - e presidente do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), Luiz Odorico aborda questões como o desafio das equipes de saúde da família em adotar um padrão de integralidade no atendimento, a reorganização do sistema de informação da atenção básica - que deve dar ênfase em projetos que contemplem a inteligência de governança para tomada de decisão - e amplia nossa visão sobre outras questões da pauta do setor saúde.
Luiz Odorico Monteiro de Andrade is a Professor at the School of Medicine of the Federal University of Ceará (UFC). A physician, he holds a Master's degree in public health from UFC and also a doctorate in public health from the Campinas State University (Unicamp). With a postdoc earned in Canada, at Universitè de Montreal, as a scholarship recipient from the Coordination of Improvement of Higher Level Personnel (Capes), Luiz Odorico currently presides over the Centec Institute, a teaching and research center that aims to train personnel in strategic areas for the sustainable development of the state of Ceará.
In this interview, the common theme was the integration of public health surveillance with primary care, with the territory approach as the central strategy of this approximation. With the authority of someone who has served as the health secretary of a few cities in Ceará - among which Icapuí and Fortaleza - and as the president of the National Council of Municipal Health Secretaries (Conasems), Luiz Odorico addresses issues such as the challenge of family health teams adopting a standard of integrity in service, the reorganization of the primary care information system - which should emphasize projects that include governance intelligence for decision making - and broadens our view on other issues that are on the health agenda.
Revista
Quais as estratégias, arranjos e dispositivos que podem ser acionados para articular as ações de vigilância em saúde com aquelas definidas para a atenção básica?
Odorico Monteiro
Primeiro, eu gostaria de chamar a atenção sobre o modo como entendo a vigilância em saúde. Concordo plenamente com o marco teórico e com o conceito. Acho que faz parte daquelas construções brasileiras que estão no campo da saúde coletiva, permeiam o nosso processo discursivo e, por isso mesmo, temos que tensioná-la para que ela se coloque como prática em nosso cotidiano.
Eu diria que, na perspectiva de Saúde da Família, é muito comum considerarmos que essa estratégia pode ser depositária de todos aqueles anseios, desejos, sonhos e utopias que acumulamos ao longo dos últimos anos da reforma sanitária brasileira. Acreditamos nisso, vendo a Estratégia Saúde da Família (ESF) como nosso espelho, aquilo com que sonhamos. A possibilidade de se ter a saúde comunitária, uma equipe de médicos, enfermeiras, agentes de saúde para a comunidade, construindo a integralidade, o acesso universal e buscando a resolutividade. Ou seja, vendo e vivendo a dinâmica do território. Isso, para nós, sanitaristas, é a realização de uma utopia.
Essa expectativa termina, às vezes, gerando frustrações, porque no cotidiano das equipes isso não ocorre como se pensava. Não é incomum eu chegar a um local, conversar com a equipe da ESF e os integrantes se mostrarem ou muito empolgados, porque estão fazendo coisas fantásticas, ou muito frustrados, porque não conseguem fazer aquilo que gostariam, que entendem ser necessário fazer. Vejo que a vigilância em saúde é um pouco isso. Não pode ser dispositivo para uma equipe de Saúde da Família. Tem que ser concebida como política pública nas três esferas de gestão e estar presente como estratégia federal, estratégia estadual e estratégia municipal. Nesse sentido, a ESF é parte do processo que vai implementar as ações da vigilância em saúde. Por isso, não adianta a equipe da Saúde da Família estar com os melhores propósitos do mundo, tentando desenvolver a vigilância em saúde no seu território e a secretaria municipal de saúde não oferecer aporte teórico-conceitual e técnico para dar retaguarda às questões que surgem com e a partir do trabalho de vigilância em saúde.
Com essa afirmação, quero dizer que qualquer dispositivo tem que ser concebido e implementado como dispositivo sistêmico, uma articulação entre a vigilância em saúde e a política pública. Assim, a vigilância tem que ser âncora na política nacional, na política estadual e nas políticas municipais. E, sem dúvida nenhuma, nessa perspectiva, o arranjo estratégico é a abordagem do território. Creio que é esse o conceito de base, estrutural.
Revista
O senhor poderia comentar sobre o enfoque de atenção primária que o Brasil adotou.
Odorico Monteiro
No caso brasileiro, identifico certa confusão semântica que não foi resolvida. Em todos os países que incorporam a atenção primária, a discussão sobre o primeiro nível de atenção se deu pela atenção primária, e aí, evidentemente, cada modelo construiu a sua estratégia. A nossa referência sempre foi o modelo inglês, de territorialização, de porta de entrada, de equipes de saúde voltadas para atender as famílias. Evidentemente que, numa etapa anterior, havia a proposta do modelo soviético, conhecido como modelo Semashko, que foi muito pouco discutido no Brasil. Foi a primeira grande perspectiva de universalização que poderíamos ter tomado como referência, mas que, por razões diversas, não chegou a se generalizar em nosso país. Em minha opinião, um dos motivos foi que não se chegou a construir um arcabouço teórico contra-hegemônico aos modelos positivistas na época. Mais recentemente, sem dúvida alguma, a experiência cubana trouxe grandes contribuições para consolidar a proposta brasileira.
Internacionalmente, a discussão quanto ao primeiro nível de atenção está no campo da atenção primária à saúde, mas aqui, sob a influência do Banco Mundial, interpõe-se a discussão de cesta básica, de uma atenção básica, e é nesse contexto que a ESF se encontra situada.
Voltando à 'confusão semântica', na qual de um lado encontramos a atenção primária, e de outro, a atenção básica e a estratégia de Saúde da Família, eu diria que seja qual for a estratégia de universalização da atenção à saúde, ela tem que ter parâmetros importantes que devem ser seguidos. O modelo da vigilância em saúde é um desses parâmetros, independentemente de ser Saúde da Família. Para contextualizar esta problemática, vamos ver como se deu no Nordeste. O processo de universalização coincidiu com o de municipalização da saúde. Ao mesmo tempo em que os municípios foram estruturando seus sistemas municipais, também estruturavam os sistemas locais de saúde e implantavam as estratégias de Saúde da Família.
No Nordeste, praticamente 100% dos municípios não têm essa dualidade entre atenção básica e Saúde da Família, pois ambas se confundem quase o tempo todo. Nesse sentido, no Brasil a estratégia de universalização da atenção primária e da porta de entrada se confunde entre Saúde da Família e Atenção Básica. Então, essa confusão é uma falsa polêmica. Como tivemos ao longo de trinta anos um processo discursivo extremamente ideologizado, de base marxista, o que é extremamente importante, sempre precisamos demarcar conceitos para que não confundíssemos a atenção primária com a palavra 'primária' referida a pessoas que no modelo ca-pitalista são consideradas de menor importância. A tradução da locução primary care tem conotação por vezes negativa, daí a associação com a ideia de atenção primária como 'atenção primitiva'. Mas acho que isso hoje está superado.
Revista
Qual o entendimento da gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) sobre o papel do território para a organização da atenção básica e a integralidade das práticas?
Odorico Monteiro
Hoje, estou convencido de que temos de pensar em um novo pacto interfederativo e em criar sistemas únicos em outros setores. A experiência do SUS traz importantes acertos, como as comissões bipartite e tripartite, que deveriam haver na área da educação, da assistência social e da segurança pública. Na medida em que se inicie a articulação entre as políticas de educação, saúde, assistência social e segurança pública, o espaço de integração do território é, sem dúvida, o território do Saúde da Família. Daí vem a força do conceito da vigilância em saúde como ferramenta que vai subsidiar a construção de inteligência para a tomada de decisões, com a participação da comunidade. É o uso adequado do conceito de território de Milton Santos - território vivo, território-processo, o território como processo dinâmico trabalhando as redes sociais. O Leonardo Boff refere-se à terra afirmando que a terra pulsa, o coração pulsa, o território pulsa. É nesse território pulsante, vivo, com suas redes sociais, articulações, contradições e disputas que temos de construir o espaço de articulação da vigilância em saúde. Hoje, no Canadá, está se discutindo muito o modelo brasileiro. Quando há estudos comparados, principalmente com a província do Quebec e são demarcadas as diferenças, o uso do território se destaca positivamente.
Revista
Qual o tensionamento em relação ao território? Quais as motivações?
Odorico Monteiro
O tensionamento é do pensamento liberal. Porque a cultura liberal é a cultura da ausência de território para garantir a livre iniciativa. E isso é muito forte no caso brasileiro, porque temos dois modelos: o do SUS, que inclui a assistência, e o da saúde suplementar. Este modelo não tem território, é liberal privatista onde a pessoa vai ao médico que deseja, no consultório que julgar conveniente. Dessa forma, ela não constrói vínculo, não compartilha regras territorializadas, o que faz é estabelecer relação de consumo, ela consome serviços de saúde.
No modelo de território, não. Ele produz cidadania, porque se integra ao processo da vida cotidiana, e aqui as práticas de vigilância em saúde são exercitadas. Temos dois grandes pensadores que nos ajudam a conceber e operacionalizar tudo isso: Milton Santos, que já citei, e Paulo Freire, com a atenção comunitária e a educação popular. Freire coloca a questão de uma organização que aprende, o aprendizado como processo coletivo transformador, dentro da perspectiva problematizadora, dialógica e participativa. Eu diria, por fim, que essas são ferramentas importantes que vão ajudar na construção do processo do território no SUS, no Saúde da Família e na Vigilância em Saúde.
Revista
Os recortes territoriais que estão colocados para a atenção básica em saúde causam algum conflito quando se acionam os preceitos da integralidade e da complementaridade da atenção entre o município, o estado e a União? Esse conflito é inerente à demarcação desses territórios?
Odorico Monteiro
Essa questão pressupõe articulação, compreensão ampliada dos determinantes sociais. Essa arquitetura vai depender da articulação e integração de políticas públicas intersetoriais. O grande problema que se apresenta é como construir políticas públicas intersetoriais num país como o Brasil, de grande extensão territorial, com mo-delo federativo singular e enorme heterogeneidade econômica, cultural, demográfica e epidemiológica. Nesse sentido, só vejo uma solução: pensá-las sistematicamente. Infelizmente, isso não acontece. Portanto, vivemos um dilema, entre um consenso do discurso e um dissenso da prática. Todos concordamos com a articulação sistemática das políticas públicas, a intersetorialidade. Ninguém nega essa necessidade, quer seja dito no Ministério da Saúde, na esfera estadual ou nos municípios. Mas quando se busca viabilizar o discurso na prática, aí surge uma série de dificuldades. É esse o nosso dilema, que no meu entendimento tem que produzir tensionamento permanente. E aí, evidentemente, destaco como eixo articulador o território da Saúde da Família, como possibilidade de integração de redes e das políticas públicas setoriais nos territórios, em todo o território nacional. E aqui eu insisto, principalmente, nas políticas de saúde, educação, assistência social e segurança pública.
Esse deve ser o esforço do Brasil hoje para consolidar o SUS e efetivar a universalidade e a integralidade das práticas de saúde. Uma perspectiva interessante é a articulação do agente de controle de endemias com o agente comunitário de saúde no processo de trabalho do território. Quer dizer que há possibilidades de integrar. O modelo positivista mais clássico, de segmentação dos saberes e das práticas, aplicado a um campo de práticas sociais como a saúde produz uma esquizofrenia, que é discursiva e reproduzida no cotidiano que eu situaria como fator que inibe a prática da vigilância em saúde nos territórios. Por isso temos que aprofundar os desdobramentos do conceito de território e tensionar para que a articulação aconteça nas três esferas de gestão.
Revista
Que estratégias são necessárias para que o princípio da integralidade se concretize nas práticas da atenção básica tomando por base o território?
Odorico Monteiro
Primeiro, precisamos tirar um artigo morto ainda da lei orgânica da saúde. Tenho me concentrado muito nisso ultimamente, que se chama planejamento ascendente. Quando concebemos a lei n.º 8.080, em 1990, um artigo previa que era destinado ao SUS o planejamento ascendente. Ou seja, tinha que haver o planejamento local, o planejamento regional, o planejamento municipal, o planejamento estadual e o planejamento nacional. A cultura de financiamento do sistema deveria se integrar e respeitar esse processo ascendente. O que aconteceu? Manifestou-se o velho DNA do Inamps [Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social] no sistema como um todo. Com o SUS, saímos da ausência total de transferência do Ministério da Saúde para os estados e municípios, e passamos a fazer transferência com base em procedimento. Implementamos um processo de municipalização e nele temos três grandes problemas que impedem a realização da integralidade. Primeiro: ausência de planejamento ascendente. Segundo: uma descentralização centralizada. Terceiro: a descentralização do Ministério da Saúde é focada nos municípios, no entanto é totalmente regulamentada, fortemente normatizada pelo próprio ministério, gerando uma paralisação do município. É a descentralização centralizada na qual se descentraliza o recurso financeiro, mas com imposições sobre o que se deve fazer com ele, o que dificulta a possibilidade de respeitar as particularidades e as singularidades de cada território. Criamos o modelo da cenoura e da vara, ou seja, o Ministério da Saúde fica o tempo todo induzindo política com a cenoura e os municípios correndo atrás para seguir; se não cumprem, tem a vara.
Como já foi dito, o modelo de território é o inglês, mas o financiamento desse modelo não é por procedimento, mas por pessoas e por família. Temos a integralidade como um dos nossos princípios, mas a cultura do financiamento pautado em procedimentos desmorona qualquer movimento na direção da integralidade. Essa lógica fragmenta o sistema, então a equipe de Saúde da Família não é responsável pela família; é responsável por um conjunto de ações que estão restritas ao campo da atenção primária. No modelo inglês, que orientou o SUS, um médico generalista (general practitioner - GP) não é responsável por um procedimento, mas sim por um cidadão. E este cidadão, em qualquer trânsito que realize em qualquer das redes assistenciais - no ambulatório, na consulta especializada, no hospital, na saúde mental ou nos serviços de urgência/emergência -, terá o acompanhamento do médico generalista e a responsabilização solidária no processo da equipe de saúde (de medicina de família ou de Saúde da Família). Ainda não construímos essa factibilidade no modelo brasileiro. Temos de admitir que, embora exista uma dualidade dada, por um lado, pelo discurso de origem marxista, e por outro, pelo pensamento liberal, o modelo hegemônico é o de financiamento por procedimento cuja origem é, inegavelmente, de inspiração liberal. É o mesmo modelo da Unimed e dos planos de saúde. Essa modalidade de financiamento atua na lógica contrária ao modelo da vigilância em saúde. Então, temos aí uma contradição. Encontramos um financiamento voltado para a Saúde da Família, via Piso da Atenção Básica (PAB) ou direto com os municípios, mas, quando nos afastamos deste âmbito, o modelo deixa de ser integral e passa a ser fragmentado, atendendo à lógica do procedimento. E não há articulação entre o modelo do território e da vigilância à saúde com outras redes assistenciais. O que acontece é um sistema esquizofrênico, e o padrão de integralidade fica comprometido.
Revista
Como analisa a convivência entre um sistema que pretenderia se estruturar com base na atenção primária e a proposta de expandir nacionalmente as Unidades de Pronto Atendimento (Upas)?
Odorico Monteiro
Estou acompanhando a grande polêmica sobre as Upas. Por ora, estou quieto, pois tenho claro que existe estrangulamento na urgência e emergência e nas especialidades. Por isso, entendo a proposta e não podemos atribuir à UPA a culpa por acabar com aquilo que sonhamos ou que pensamos que poderia ser. Temos que pensar no modelo de atenção como um todo. Então, vejo que o estrangulamento não se localiza somente no espaço da urgência/emergência que envolve as Upas. Está também nos conceitos, nas relações interfederativas, no modelo de financiamento.
Revista
De que forma as informações produzidas na Atenção Básica e na Estratégia Saúde da Família podem auxiliar na compreensão do processo saúde-doença-cuidado, de modo a integrar e orientar as ações e o processo de trabalho e a tomada de decisão? Quais seriam então os limites e as potencialidades do Siab na lógica da territorialização da vigilância em saúde?
Odorico Monteiro
Estamos terminando a primeira década do século XXI e fico pensando como o Brasil, que consegue organizar e realizar eleições como as que acontecem no país, ainda não criou um sistema nacional de informação. É inconcebível, para uma nação com a capacidade da brasileira, não haver também um cartão de saúde, um dispositivo que articule, organize uma inteligência para a tomada de decisão. Seja na atenção primária, na rede ambulatorial especializada, na rede hospitalar. Devemos considerar que esta disponibilidade de informação também é necessária aos gestores do sistema, pesquisadores ou para o cidadão que utiliza os serviços do SUS. Tudo no nosso sistema de informação é meio obscuro. No momento, estamos fazendo uma pesquisa, como parte de um grupo multicêntrico liderado pela Universidade Federal da Bahia, no qual estamos desenvolvendo um estudo sobre o Hiperdia. Percebemos que é difícil viabilizar a pesquisa porque nenhuma cidade a ser investigada consegue ter alimentação do banco de dados do Hiperdia. É inconcebível não termos uma cartão do sistema de saúde que proporcione informação adequada onde quer que o cidadão esteja e necessite dele, seja na atenção primária ou no ambulatório. O que temos são sistemas de informação de saúde, concebidos e operados em um tempo diferente, que não se comunicam entre si. Esse tipo de problema inviabiliza a tomada de decisão em um modelo pautado no território e na Saúde da Família.
Eu afirmo que o Siab é vítima da falta de uma política mais agressiva do Ministério da Saúde nessa área, situação que para mim é incômoda hoje, porque todo e qualquer plano de saúde tem seu sistema informatizado, e nós não conseguimos ainda construir um sistema de informação para o SUS, para a tomada de decisão. Mais uma vez, veja o exemplo do Siab: o paciente pode sair do atendimento na Saúde da Família e ir para o hospital. Não se tem ferramentas hábeis para verificar a referência e a contrarreferência. Quem assume esse acompanhamento, a duras penas, são os agentes comunitários de saúde. Tem agentes que acompanham a mulher grávida para parir no hospital e fica lá como acompanhante; informa o médico sobre o trajeto, os procedimentos e os problemas que a paciente enfrentou.
Revista
Como situa o papel e a importância dos sistemas de informação geográfica na perspectiva da informação-decisão-ação em territórios?
Odorico Monteiro
Quando visito as equipes de saúde, acompanhando a dureza do seu dia-a-dia, vejo que essas equipes usam muita criatividade para vencer os problemas. Hoje, recorrem ao Google Maps. Muitas vezes, imprimem e complementam o mapa para construir uma imagem de seu território. Mas isso não é solução. O SUS teria que disponibilizar ferramentas de informação georreferenciada. Fazer vigilância pressupõe acompanhamento, seguimento, monitoramento, articulação territorial, articulação intersetorial e produção de inteligência para a tomada de decisão. Tenho trabalhado muito mais com a ideia de governança do que com a de governabilidade, porque a inteligência de governança é algo mais amplo, que envolve a sociedade. Às vezes, acreditamos que tomador de decisão é o gestor. Isso é um equívoco. O hipertenso, ao tomar diariamente seu medicamento, pela manhã e à noite, está tomando decisão. Uma pessoa com sobrepeso, como eu, todo dia tem que ao acordar e lembrar que vai ter que fazer uma dieta diferente daquela que gostaria de ter e isso é uma tomada de decisão!
Um conselheiro municipal de saúde tem que decidir se aprova ou não um relatório de gestão. O agente comunitário de saúde é um tomador de decisão. Aliás, quantas decisões o agente de saúde tem que tomar! Por isso, quando falo em inteligência de governança, de forma alguma me refiro apenas ao gestor.
Revista
Como avalia a proposta de formação e qualificação profissional da força de trabalho do SUS, sob a responsabilidade das três esferas de gestão, diante dos desafios que ainda temos pela frente para efetivar o SUS que queremos?
Odorico Monteiro
Temos que estar atentos a alguns fenômenos que estão acontecendo e para os quais precisamos de políticas claras e agressivas. A produção do conhecimento no campo da saúde, entre a revolução pasteuriana e a década de 1960, com o acúmulo de tecnologias advindas do pós-guerra, ocorreu sobretudo no espaço acadêmico. Na medida em que o conhecimento foi sendo produzido em escala universal, aconteceram revoluções no campo da saúde relacionadas à clínica e à terapêutica. Nesse momento, há um deslocamento dessa produção das universidades para o complexo produtivo da saúde, em torno de equipamentos, órteses e próteses, medicamentos... Mas continuamos com um gap, um fosso entre o conhecimento produzido e o conhecimento aplicado.
Ressalto então que esse ajuste, entre o que é produzido e as necessidades da população, é um grande desafio, não apenas prático, mas acima de tudo ético. No momento em que temos um conhecimento que pode salvar vidas e ele não é aplicado, configura-se uma postura ética dos governos e da sociedade fazer com que isso seja disponibilizado. Seja para preservar a vida ou para reduzir o sofrimento e melhorar a qualidade de vida. Nesse sentido, precisamos abandonar a postura de ter uma estrutura de saúde separada e específica para ser usada como hospital-escola, centro de saúde-escola, para pensar em um sistema de saúde-escola. Hoje, defendo que o SUS seja uma grande escola. Todos os trabalhadores do sistema têm que ser estudantes permanentemente no sistema. Não bastam cursos focalizados e atomizados de formação e qualificação para trabalhadores específicos do SUS, mas um sistema que aprenda com ele mesmo o tempo todo.
Por isso, pressupõe a organização de um sistema de educação permanente, forte e potente. É um conceito que tenho trabalhado e posto em prática em Fortaleza. É uma experiência muito interessante, a ideia de sistema municipal de saúde-escola. E não precisa ter prédio. Ela se articula sistemicamente, com todas as universidades, com todas as escolas. Tanto você abre o espaço do serviço para universidade quanto da universidade para os serviços. Por meio dessa articulação garante-se a todos os trabalhadores da saúde - o agente de saúde, o auxiliar de enfermagem, o agente de endemias, o vigia, o motorista da ambulância, o auxiliar administrativo, o médico, a enfermeira - a possibilidade de aprender e ensinar permanentemente, com base nas suas necessidades e nas necessidades dos serviços.
É preciso ter claro que, em vez de o trabalhador, individualmente, arcar com os custos de sua qualificação ou mesmo solicitar subsídio para esse fim, é o SUS como um todo que deve planejar, programar e disponibilizar processos formativos coerentes com o perfil da força de trabalho e as necessidades do serviço.
Revista
Quais os caminhos que indica para a gestão do trabalho no sentido de assegurar aos trabalhadores do SUS uma carreira, o que significa ascensão funcional e equivalência salarial inclusive decorrente de processos de qualificação profissional?
Odorico Monteiro
Na hora em que se constrói uma perspectiva desse tipo, temos condição tranquilamente de garantir a educação permanente do trabalhador que está em seu território sem que haja necessidade dele sair de lá. Costumo usar uma expressão que chamo de 'tenda invertida'. Em vez de o trabalhador, o profissional ir para a tenda do mestre, é o mestre que vai para a tenda do aprendiz. Rompe-se com o conceito de que todo mundo tem que ir à universidade para aprender. Porque os problemas do aprendizado estão no território. Não adianta pegar um médico de Saúde da Família e levar para o hospital das clínicas para ele aprender medicina da família. É o professor que está no hospital das clínicas que deve ir para o território dele. Porque quando vai para o hospital das clínicas e volta ao território dele, os problemas estão lá. Então é o professor/mestre que tem de ir para o território do aprendiz, aprender com ele e lá problematizar, discutir. Com isso, já se cria um salário indireto para o trabalhador. Essa é também uma política de educação a qual, por outro lado, tem que entender que o trabalhador deve crescer na sua vida profissional.
Na discussão do plano de cargos e salários em Fortaleza, os próprios sindicatos colocaram no plano que é responsabilidade do sistema municipal de saúde-escola garantir cursos para assegurar a ascensão vertical do ponto de vista do conhecimento. Então, isso é importante, não é preciso o servidor ir lá fora fazer um curso que, muitas vezes, não tem nada a ver com o serviço, só para ganhar promoção no plano de cargos e salários. Não, o ideal é que o próprio serviço, o próprio sistema articule seus cursos, de acordo com a necessidade, agregando valor ao trabalhador, ao serviço e ao usuário do sistema. Porque em tudo que fazemos no SUS é necessário se pensar no usuário, pois ele é o objeto da nossa existência, que vai garantir o aprimoramento. Desse modo, pensar na questão da educação permanente é pensar na gestão do trabalho. Para mim, está tudo interligado. É dessa forma que vamos, inclusive, qualificar o nosso trabalhador, do ponto de vista salarial, porque ele terá melhoria permanente no seu plano de cargos e salários. E terá também um salário indireto.
Tenho orientado algumas monografias e dissertações: por exemplo, orientei a dissertação de um aluno, um cirurgião, que, em 15 anos, já fez cinco especialidades. Faz com o custo privado. Ele começou como cirurgião geral, depois passou para cirurgião gástrico, em seguida para endoscopia e já estava fazendo cirurgia endoscópica. É uma forma de agregar conhecimento.
Revista
O senhor teria para relatar alguma experiência ligada ao profissional de nível médio?
Odorico Monteiro
Hoje, estamos com experiências interessantíssimas. Por exemplo, quantos auxiliares de enfermagem têm necessidade de fazer cursos de tecnologia da informação? Muitos deles precisam de curso de informática básica para acessar sistemas de informação para o trabalho diário. Agora mesmo estamos tendo uma experiência muito rica com o hospital Alberto Sabin, que beneficia 1.500 trabalhadores. A grande maioria do pessoal que trabalha na cozinha, lavanderia, limpeza, nunca teve noção alguma de informática. Se cada hospital ou serviço capacitar seus trabalhadores, por exemplo, em informática, na medida em que ingressam nessa área, entram em outro mundo, outras perspectivas se abrem. Portanto, é preciso ver as facilidades e as ferramentas que estão disponíveis para propor processos de qualificação.
A educação permanente deveria ser uma política pública nacional. E digo mais: precisamos entender esse fato como política republicana, não pode ser política periférica. Assim, ela tem uma responsabilidade com os trabalhadores e com os sindicatos, o que inclui o debate da gestão do trabalho.
Revista
Para finalizar, na perspectiva de políticas intersetoriais nas áreas de saúde, educação, desenvolvimento social e assistência social, seria possível uma composição em estruturas como tripartite, bipartite, que aglutinasse representantes dessas áreas?
Odorico Monteiro
Vou responder antecipando um texto que estou escrevendo, no qual trabalho um pouco essa perspectiva. Hoje, defendo que primeiro temos que envolver os governadores e os prefeitos. Creio que o nosso desenho tripartite ainda é muito periférico, porque fica muito 'nós gestores', mas nem os prefeitos nem os governadores participam atentamente desses espaços. Precisamos pensar que, em um modelo federativo como o brasileiro, ou fazemos a integração nas várias áreas ou não conseguiremos o impacto que desejamos nas políticas. Vamos pegar a questão do território, que tem sido uma tônica na nossa conversa. Por exemplo, é meio esquizofrênico ter, de um lado, um Cras [Centro de Referência de Assistência Social, ligado ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome] e, de outro, uma equipe de Saúde da Família que não se comunicam. Assim, tem-se o Cras, que é da assistência social, equipe de Saúde da Família, estrutura da educação - uma escola - e estrutura de polícia. Os quatro têm o mesmo objetivo, mas não conseguem dialogar para construir uma política pública integral e fazer planejamento do território e construir intervenções e parcerias. Na maioria das vezes, a população fica rodando de um lado para o outro, de um serviço para outro. Vai para a reunião de um, vai para a reunião de outro e não consegue fazer o elo entre o que esses serviços estão fazendo e propondo.
Desse jeito, a população termina fazendo as suas próprias ligações porque ela sobrevive no cotidiano. Acredito que as políticas públicas poderiam fazer essa integração de território, dado que o conceito de vigilância em saúde é forte e potente para integrar e articular. Por isso, temos que repensar o que estou chamando de 'pacto interfederativo', principalmente nas quatro áreas que para mim são cruciais no tocante a políticas públicas: a saúde, a educação, a assistência social e a segurança pública. Só temos tripartite na saúde. As outras áreas não têm esse tipo de mecanismo, mas precisávamos tê-lo em todas, a fim de que suas políticas específicas pudessem se integrar harmoniosa e integralmente.
Nota
Entrevista: Luiz Odorico Monteiro de Andrade
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
31 Maio 2011 -
Data do Fascículo
Nov 2010