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Integralidade como diretriz formativa na atenção primária sob a perspectiva dos residentes em Saúde da Família

Integrality as a formative guideline in primary care from the perspective of residents in Family Health

La integralidad como directriz de formación en atención primaria desde la perspectiva de los residentes de Salud Familiar

Resumo

O estudo, realizado de maio de 2022 a abril de 2023, teve o objetivo de discutir o ensino da integralidade no Programa de Residência Multiprofissional em Estratégia Saúde da Família, com base na experiência de residentes de Belém, no Pará. A pesquisa adotou recorte transversal com abordagem quantiqualitativa e coleta de dados realizada por um questionário semiestruturado com cinco eixos de interesse: dados sociodemográficos, conhecimentos e saberes prévios sobre o princípio da integralidade, inclusão da integralidade nas atividades teóricas do programa, articulação dos conhecimentos teóricos com a prática profissional e aplicabilidade da integralidade nas ações de saúde realizadas pelas equipes profissionais. Participaram 29 residentes de enfermagem, fisioterapia, odontologia e terapia ocupacional regularmente matriculados no programa. Os achados revelaram que os participantes reconhecem a importância da integralidade no atendimento das necessidades em saúde dos usuários, apontando que a abordagem integral deve ser validada e legitimada como parte indissociável do cuidado. Mas o aprendizado da integralidade ainda constitui um desafio conceitual e metodológico, realidade que precisa ser avaliada no planejamento e na escolha das estratégias para o ensino em saúde. Conclui-se que o ensino dos residentes deve priorizar a abordagem desse princípio com mais profundidade, para favorecer um aprendizado mais significativo e potente.

Palavras-chave:
atenção primária à saúde; estágio e residência; ensino; integralidade em saúde

Abstract

The study, carried out from May 2022 to April 2023, aimed to discuss the teaching of integrality in the Multiprofessional Residency Program in Family Health Strategy, based on the experience of residents of Belém, Pará, Brazil. The research adopted a cross-sectional approach with a quantitative and qualitative approach and data collection carried out by a semi-structured questionnaire with five axes of interest: sociodemographic data, previous knowledge, and knowledge about the principle of integrality, inclusion of integrality in the theoretical activities of the program, articulation of theoretical knowledge with professional practice and applicability of integrality in the health actions carried out by the professional teams. 29 residents of nursing, physiotherapy, dentistry and occupational therapy regularly enrolled in the program participated. The findings revealed that the participants recognize the importance of integrality in meeting users’ health needs, pointing out that the integral approach must be validated and legitimized as an inseparable part of care. But the learning of integrality still constitutes a conceptual and methodological challenge, a reality that needs to be evaluated in the planning and choice of strategies for health education. It is concluded that the teaching of residents should prioritize the approach of this principle in more depth, to favor a more meaningful and powerful learning.

Keywords:
primary health care; internship and residency; education; integrality in health

Resumen

El estudio, realizado de mayo de 2022 a abril de 2023, tuvo como objetivo discutir la enseñanza de la integralidad en el Programa de Residencia Multiprofesional en Estrategia de Salud de la Familia, a partir de la experiencia de residentes en Belém, Pará, Brasil. La investigación adoptó un abordaje transversal con enfoque cuantitativo y cualitativo y recolección de datos mediante cuestionario semiestructurado con cinco ejes de interés: datos sociodemográficos, conocimientos previos y sobre el principio de la integralidad, inclusión de la integralidad en las actividades teóricas del programa, articulación de los conocimientos teóricos con la práctica profesional y aplicabilidad de la integralidad en las acciones de salud realizadas por los equipos profesionales. Participaron 29 residentes de enfermería, fisioterapia, odontología y terapia ocupacional inscritos regularmente en el programa. Los resultados revelaron que los participantes reconocen la importancia de la integralidad para satisfacer las necesidades de salud de los usuarios, señalando que el enfoque integral debe ser validado y legitimado como parte inseparable de la atención. Sin embargo, el aprendizaje de la integralidad sigue siendo un reto conceptual y metodológico, una realidad que debe valorarse a la hora de planificar y elegir estrategias para la docencia en salud. Se concluye que los residentes de enseñanza deben priorizar el tratamiento de este principio en mayor profundidad, a fin de promover un aprendizaje más significativo y eficaz.

Palabras clave:
atención sanitaria primaria; prácticas y residencia; docencia; integralidad en salud

Introdução

Ao longo dos últimos vinte anos, desafios relacionados à formação e ao ensino em saúde ganharam destaque no campo educacional, haja vista a importância da qualidade pedagógica na construção coletiva do Sistema Único de Saúde (SUS). Assim, na tentativa de responder às demandas sociais emergentes e persistentes do cenário nacional, foram criados programas e iniciativas de autoria dos ministérios da Educação e da Saúde, visando ao fortalecimento e à consolidação dos serviços. Dentre os objetivos a serem alcançados, destaca-se o aprimoramento técnico-profissional e a reorientação das práticas profissionais, em alinhamento com o princípio da integralidade em saúde (Brehmer e Ramos, 2017BREHMER, Laura C. F.; RAMOS, Flávia R. S. Experiências do programa de reorientação da formação profissional na enfermagem: avanços e desafios. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 26, n. 2, p. 1-8, 2017. http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072017003100015. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/tce/a/t3JGXTyLzPZR3NhJFkzNscP/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 22 ago. 2023.
http://dx.doi.org/10.1590/0104-070720170...
; Mattos et al., 2019MATTOS, Rita C. O. C. et al. Formação profissional como ação estratégica para implementação da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 44, n. 24, p. 1-10, 2019. https://doi.org/10.1590/2317-63690000015218. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbso/a/XfMtCfyxCCfF6zZWNdjkpQf/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 22 ago. 2023.
https://doi.org/10.1590/2317-63690000015...
).

Como exemplo das iniciativas de cunho formativo e assistencial, merecem destaque o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde), instituído em 2007; o Programa de Educação para o Trabalho em Saúde (PET-Saúde), instituído em 2010; os Programas de Residência Multiprofissional em Saúde (PRMSs), instituídos pela lei n. 11.129/2005; e outras iniciativas na pós-graduação lato sensu e stricto sensu em âmbito nacional (Bezerra et al., 2016BEZERRA, Tereza C. A. et al. Avaliação de programas de formação profissional em saúde: construção e validação de indicadores. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 445-472, maio-ago. 2016. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sip00111. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/njVZk43Zn5P9CLrs9pDSKBM/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 22 ago. 2023.
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sip001...
). No que diz respeito ao PRMS, trata-se de uma pós-graduação lato sensu, instituída legalmente como modalidade de formação para o SUS. Os PRMSs apresentam importante contribuição para a qualificação profissional em diferentes serviços da rede de atenção à saúde. Eles têm desempenhado um papel fundamental na integração de saberes, promovendo uma abordagem interdisciplinar e intersetorial. Dentre as ações exitosas dos PRMSs, destaca-se o compartilhamento interprofissional de saberes, a implementação de propostas inovadoras nos serviços, a promoção de atividades pedagógicas e a elaboração de novas tecnologias educacionais em saúde (Silva e Dalbello-Araujo, 2020SILVA, Cinthia A.; DALBELLO-ARAUJO, Maristela. Programa de Residência Multiprofissional em Saúde: o que mostram as publicações. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 43, n. 123, p. 1.240-1.258, 2020. https://doi.org/10.1590/0103-1104201912320. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/9MkjpJphRF3RqWmb9bwRQxS/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://doi.org/10.1590/0103-11042019123...
).

Dessa maneira, o programa alcançou uma importante visibilidade em virtude da sua função formadora ante os desafios políticos e assistenciais vivenciados no trabalho em saúde (Flor et al., 2023FLOR, Taiana B. M. et al. Análise da formação em programas de residência multiprofissional em saúde no Brasil: perspectiva dos egressos. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 28, n. 1, p. 281-290, jan. 2023. https://doi.org/10.1590/1413-81232023281.11292022. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/ySNmCLg9L9NWRHm7g6tpkxx/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 22 ago. 2023.
https://doi.org/10.1590/1413-81232023281...
). É relevante ressaltar que a política de formação está intimamente alinhada com preceitos fundamentais, como a descentralização do modelo biomédico nos serviços de saúde, a abordagem holística das condições de vida e saúde da população, bem como a garantia de direitos, incluindo o acesso à saúde. Esses alinhamentos refletem o princípio da integralidade no âmbito do SUS, especialmente na Atenção Primária à Saúde (APS) (Rodrigues e Sousa, 2023RODRIGUES, Mariana R.; SOUSA, Maria F. Integralidade das práticas em saúde na atenção primária: análise comparada entre Brasil e Portugal por meio de revisão de escopo. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 47, n. 136, p. 242-252, jan.-mar. 2023. https://doi.org/10.1590/0103-11042022313616. Disponível em: Disponível em: https://www.saudeemdebate.org.br/sed/article/view/7270 . Acesso em: 17 set. 2023.
https://doi.org/10.1590/0103-11042022313...
).

A APS desempenha o papel de ordenadora da rede e coordenadora do cuidado em saúde, exercendo uma função essencial na organização dos serviços que compõem as redes de atenção à saúde (Mendes et al., 2019MENDES, Eugenio V. et al. A construção social da Atenção Primária à Saúde. 2. ed. Brasília: Conass, dez. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.conass.org.br/biblioteca/a-construcao-social-da-atencao-primaria-a-saude-2a-edicao/ . Acesso em: 22 ago. 2023.
https://www.conass.org.br/biblioteca/a-c...
). Em virtude do local estratégico ocupado pela APS, os Programas de Residência Multiprofissional em Saúde da Família (PRMSFs) oferecem uma importante contribuição para a gestão e a assistência in loco, ampliando o escopo de ações e práticas em saúde, bem como dos cenários de atuação profissional (Monteiro et al., 2019MONTEIRO, Michelle S. F. et al. Residência Multiprofissional em Saúde da Família e suas contribuições para os serviços de saúde: revisão integrativa. Revista Eletrônica Acervo Saúde, Ouro Fino, v. 24, n. 24, p. 1-9, jun. 2019. https://doi.org/10.25248/reas.e519.2019. Disponível em: Disponível em: https://acervomais.com.br/index.php/saude/article/view/519/472 . Acesso em: 22 ago. 2023.
https://doi.org/10.25248/reas.e519.2019...
). No estado do Pará, o PRMSF é ofertado pela Universidade do Estado do Pará (Uepa), nos municípios de Belém e Bragança, e pelo Centro Universitário do Pará (Cesupa), em Belém.

A integralidade em saúde constitui um eixo norteador das práticas em saúde e é caracterizada pela ampliação do fazer profissional e da gestão para além de uma ação curativista. Nesse aspecto, a integralidade impulsiona um olhar multidimensional e ampliado sobre os(as) usuários(as), de modo que as ações em saúde tenham um caráter abrangente e acolhedor para as necessidades em saúde. Também pressupõe o acesso aos serviços existentes nos diferentes níveis de atenção, que são contemplados nas redes de atenção à saúde (Fortuna, 2022FORTUNA, Magali C. O cuidado integral na Atenção Primária à Saúde: saberes e práticas. São Paulo: Edusp, 2022.).

A integralidade na APS é um princípio norteador, e sua concretização no dia a dia requer uma interdependência com uma APS que seja robusta e forte, a qual deve estar integrada a uma Rede de Atenção à Saúde (RAS) igualmente potente, a fim de coordenar e orientar os cuidados de maneira eficaz (Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde, 2022REDE DE PESQUISA EM ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE (APS). Bases para uma Atenção Primária à Saúde integral, resolutiva, territorial e comunitária no SUS: aspectos críticos e proposições. Rio de Janeiro: Abrasco, 2022. E-book. 111p. Disponível em: Disponível em: https://abrasco.org.br/wp-content/uploads/2021/02/e-book_rede_APS_29_07.pdf . Acesso em: 10 set. 2023.
https://abrasco.org.br/wp-content/upload...
). Nesse contexto, a integralidade pode ser observada em sua materialidade e operacionalização, por meio de instrumentos e tecnologias de encontro, também denominadas de tecnologias leves. Tais tecnologias são descritas por Sodré e Rocon (2023SODRÉ, Francis; ROCON, Pablo C. O trabalho em saúde pode ser considerado ‘tecnologia leve’? Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 32, n. 1, e210545pt, 2023. https://doi.org/10.1590/S0104-12902023210545pt. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/ZrzmyP3nDppxmzTRLsNFDKJ/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202321...
) como ações que favorecem o vínculo, o acolhimento e a gestão do cuidado nos serviços de saúde. Dentre os instrumentos que materializam a integralidade, cabe citar a realização de ações coletivas e práticas de educação em saúde, os grupos operativos, as ações intersetoriais, a comunicação efetiva, a escuta terapêutica por parte da equipe, os itinerários terapêuticos e a capacidade de identificação e resolutividade das demandas e necessidades de atenção integral à saúde (Carnut, 2017CARNUT, Leonardo. Cuidado, integralidade e atenção primária: articulação essencial para refletir sobre o setor saúde no Brasil. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 41, n. 115, p. 1.177-1.185, out.-dez. 2017. https://doi.org/10.1590/0103-1104201711515. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/DdWJGmS59ZWHTm59sXvsVCG/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 22 ago. 2023.
https://doi.org/10.1590/0103-11042017115...
).

Ao se considerar a relevância do tema no campo da formação em saúde, este estudo teve por objetivo discutir o ensino da integralidade no Programa de Residência Multiprofissional em Estratégia Saúde da Família (PRMESF/Uepa) e também promover uma discussão conceitual sobre integralidade com base na experiência dos residentes vinculados ao referido programa.

Métodos

Tratou-se de uma pesquisa de abordagem descritiva e quantiqualitativa, de caráter exploratório e do tipo transversal. Após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Pará, o estudo foi desenvolvido de maio de 2022 a abril de 2023 e contou com a participação de 29 residentes, de um total de 32 residentes vinculados ao PRMESF ofertado pela Uepa. Foram incluídos residentes com formação em enfermagem, fisioterapia, odontologia e terapia ocupacional, representando todas as categorias profissionais contempladas pelo programa. Como instrumento de pesquisa, utilizou-se um questionário semiestruturado construído com base em protocolos realizados em estudos semelhantes (Santos, 2010SANTOS, Fernanda A. Análise crítica dos projetos político-pedagógicos de dois programas de Residência Multiprofissional em Saúde da Família. 2010. 116 f. Dissertação (Mestrado em Ciências na área de Saúde Pública) - Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/handle/icict/23115/ve_Fernanda_Almeida_ENSP_2010?sequence=1&isAllowed=y . Acesso em: 17 set. 2023.
https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/ha...
), contendo perguntas abertas e fechadas.

O questionário continha dados acerca da caracterização sociodemográfica dos participantes, segundo gênero, idade, categoria profissional, tempo de formação, titulação acadêmica e tempo de experiência na APS. As seções foram organizadas por eixos de interesse: variáveis sociodemográficas; conhecimentos e saberes prévios sobre o princípio da integralidade em saúde; inclusão da integralidade nas atividades teóricas do programa; articulação dos conhecimentos teóricos com a prática profissional; e aplicabilidade da integralidade nas ações em saúde pelas equipes profissionais.

Os residentes foram convidados a participar da pesquisa por mensagem enviada pelo e-mail pessoal, disponibilizado pela coordenação da Comissão de Residência Multiprofissional em Saúde (Coremu/Uepa). A pesquisa foi realizada em ambiente virtual, em razão da possibilidade imediata de acesso aos participantes. De modo a se preservar a identidade dos participantes, a identificação destes foi realizada por meio de códigos alfanuméricos únicos. Para a análise quantitativa dos dados, aplicou-se a estatística descritiva para obtenção de resultados. Analisaram-se as variáveis numéricas por meio de medidas de tendência central (média) e dispersão (desvio padrão).

A avaliação qualitativa dos dados foi feita por meio da análise temático-categorial, a qual é dividida em três etapas: pré-análise; exploração de material; e tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Na pré-análise, as ideias iniciais foram sintetizadas, sendo então elaborados indicadores para interpretação das informações coletadas (Bardin, 1977BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.).

Na segunda fase, de exploração do material, organizaram-se os dados brutos. Na ocasião, foram realizados os recortes textuais em unidades de registro (palavras, frases, parágrafos), definindo-se as regras de contagem e a classificação dos dados em temas ou categorias. Por fim, procedeu-se ao tratamento dos resultados, à inferência e à interpretação dos dados, por meio da comparação das informações de acordo com as categorias definidas, verificando-se assim as semelhanças e as diferenças (Bardin, 1977BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.).

Resultados e discussão

Variáveis sociodemográficas

Do total de 29 residentes (Tabela 1), 23 (79,3%) se autodeclararam como gênero feminino, e seis (20,7%), gênero masculino. Em relação à distribuição das categorias profissionais, participaram oito (27,6%) fisioterapeutas, sete (24,1%) enfermeiros(as), sete (24,1%) terapeutas ocupacionais e sete (24,1%) odontólogos(as). Destes, 13 (44,8%) estavam no primeiro ano do programa de residência (R1), e 16 (55,2%), no segundo ano (R2).

Tabela 1
Caracterização dos participantes da pesquisa, 2023.

No que diz respeito ao nível da titulação acadêmica, 16 (55,2%) tinham a graduação como titulação máxima, nove (31%) eram egressos de outros programas de residência uni/multiprofissional, dois (6,9%) tinham obtido titulação em curso de especialização lato sensu e dois (6,9%) em mestrado. Sobre a experiência prévia de atuação no âmbito da APS, 24 (82,8%) responderam negativamente, e cinco (17,2%) afirmaram ter tido a experiência anterior.

Conhecimentos e saberes prévios sobre o princípio da integralidade em saúde

Quanto à análise do eixo 1, que trata dos conhecimentos e saberes sobre o princípio da integralidade em saúde, observou-se que os residentes já haviam tido contato com o tema durante suas atividades teórico-práticas do PRMESF. Quando solicitados a avaliar a capacidade para descrever o conceito, apenas seis (20,7%) participantes avaliaram como ‘regular’ (Tabela 2).

Tabela 2
Eixo 1: Conhecimentos e saberes prévios sobre o princípio da integralidade em saúde, 2023.

Todos os participantes (100%) afirmaram que a integralidade é um princípio muito importante no âmbito da APS; entretanto, as respostas acerca da frequência com que o assunto foi abordado durante a graduação mostraram-se variadas. Do total, 11 (37,9%) residentes declararam ter discutido o tema apenas ‘ocasionalmente’, e quatro (13,8%) responderam ‘raramente’.

As respostas apontadas na Tabela 2 indicaram a presença hegemônica do modelo biomédico nos processos de formação em saúde, o que pode ser constatado em projetos pedagógicos de diversos cursos da área da saúde. Outrossim, em muitos cenários, mesmo acadêmicos, a integralidade costuma ser compreendida como um conceito ‘abstrato’, o que limita as discussões sobre o tema. Como resultado, a compreensão dos princípios doutrinários do SUS nas atividades de ensino pode ser prejudicada, inclusive por carências na abordagem docente dessa temática (Silva et al., 2019SILVA, Luiz A. et al. Reflexões sobre noções de integralidade e necessidades sociais em cuidados de saúde. Revista Contexto & Saúde, Ijuí, v. 19, n. 37, p. 98-103, 2019. https://doi.org/10.21527/2176-7114.2019.37.98-103. Disponível em: Disponível em: https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/contextoesaude/article/view/6889 . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://doi.org/10.21527/2176-7114.2019....
).

O conceito de integralidade apresenta uma natureza polissêmica, mas sua importância é substancial na construção filosófica do SUS e na ampliação do próprio conceito de saúde (Hino et al., 2019HINO, Paula et al. Integralidade na perspectiva da saúde coletiva: caminhos para a formação do enfermeiro. Revista Brasileira de Enfermagem , Brasília, v. 72, n. 4, p. 1.178-1.182, 2019. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0443. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/reben/a/RcPJRWWyKP46J7TQkyp7KVw/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 22 ago. 2023.
http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2018...
). Não seria adequado estabelecer uma definição única para o princípio da integralidade, pois ele é considerado como uma ‘imagem-objetivo’, um horizonte a ser alcançado pelos profissionais dedicados à transformação da realidade no campo da saúde (Silva, Miranda e Andrade, 2017SILVA, Marcos V. S.; MIRANDA, Gilza B. N.; ANDRADE, Marcieni A. Sentidos atribuídos à integralidade: entre o que é preconizado e vivido na equipe multidisciplinar. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 21, n. 62, p. 589-599, 2017. https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0420. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/dzsrgkw9NhtmJ6MTC3TyL9q/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://doi.org/10.1590/1807-57622016.04...
). Os autores também afirmam que essa ‘imagem-objetivo’ apresenta contornos não detalhados, o que confere ao conceito seu caráter polissêmico, refletindo uma diversidade de objetivos. Estabelecer um sentido unívoco para a integralidade traria o risco de excluir outros discursos e significados relevantes para a sua configuração.

É o princípio que considera o processo saúde-doença do usuário dentro de várias vertentes e contextos, para além da doença. Além disso, considera suas diferentes necessidades para assim proporcionar um cuidado integral. (R22)

A integralidade é olhar para o indivíduo como um ser único e atentar para todas as suas necessidades. O usuário não é apenas a doença que está tratando; também devem ser incluídas ações de prevenção de agravos, promoção de saúde, autonomia (...). (R27)

A integralidade vai buscar garantir aos usuários do sistema de saúde uma assistência à saúde que transcenda a prática curativa, contemplando o indivíduo em todos os níveis de atenção e considerando o sujeito inserido em um contexto social, familiar e cultural. (R2)

O relato dos residentes reforça uma concepção presente em muitos estudos científicos que tratam da integralidade. Ou seja, o conceito implica considerar outras dimensões humanas envolvidas no processo saúde-doença, sem restringir o foco apenas ao componente patológico e biológico, que é uma característica marcante do modelo biomédico. Tal perspectiva também requer priorizar o relacionamento entre profissional e usuário(a) como uma das importantes dimensões das ações de cuidado (Anderson e Rodrigues, 2016ANDERSON, Maria I. P.; RODRIGUES, Ricardo D. O paradigma da complexidade e os conceitos da medicina integral: saúde, adoecimento e integralidade. Revista do Hupe, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 242-252, jul.-set. 2016. https://doi.org/10.12957/rhupe.2016.29450. Disponível em: Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/revistahupe/article/view/29450/23247 . Acesso em: 20 ago. 2023.
https://doi.org/10.12957/rhupe.2016.2945...
).

Além disso, a integralidade não é somente uma diretriz, mas um compromisso relacional, visto que o profissional deve ser capaz de estimular o protagonismo e a autonomia dos(as) usuários(as). Do mesmo modo, a integralidade também contribui para o reconhecimento dos direitos, pois ao considerar os usuários em sua totalidade, reafirma e valida os direitos de cidadania, considerando aspectos econômicos, culturais e religiosos, dentre outros (Silva et al., 2019SILVA, Luiz A. et al. Reflexões sobre noções de integralidade e necessidades sociais em cuidados de saúde. Revista Contexto & Saúde, Ijuí, v. 19, n. 37, p. 98-103, 2019. https://doi.org/10.21527/2176-7114.2019.37.98-103. Disponível em: Disponível em: https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/contextoesaude/article/view/6889 . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://doi.org/10.21527/2176-7114.2019....
).

A concepção da integralidade, quando considerada como uma ação política capaz de assegurar direitos fundamentais, incluindo o exercício da cidadania e da participação social na construção do SUS, foi pouco mencionada pelos residentes. A omissão dessa dimensão política da integralidade tende a reforçar a passividade dos usuários no processo de produção da saúde, culminando com a diminuição de sua autonomia e corresponsabilização (Rodrigues e Sousa, 2023RODRIGUES, Mariana R.; SOUSA, Maria F. Integralidade das práticas em saúde na atenção primária: análise comparada entre Brasil e Portugal por meio de revisão de escopo. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 47, n. 136, p. 242-252, jan.-mar. 2023. https://doi.org/10.1590/0103-11042022313616. Disponível em: Disponível em: https://www.saudeemdebate.org.br/sed/article/view/7270 . Acesso em: 17 set. 2023.
https://doi.org/10.1590/0103-11042022313...
).

Os residentes destacaram que a integralidade está intrinsecamente ligada à garantia da assistência em todos os níveis de cuidados de saúde, o que remete à natureza polissêmica desse princípio. Isso implica estabelecer uma conexão direta com a abrangência dos diversos serviços oferecidos ao longo da rede de atenção à saúde (RAS).

Integralidade em saúde é a garantia de assistência em todos os níveis de atenção no SUS, assim como a promoção da saúde, prevenção de doenças, diagnóstico, tratamento e reabilitação. (R11)

Assim, a integralidade busca garantir uma assistência à saúde de forma holística e que contemple todos os níveis de atenção do SUS. (R16)

Essa interligação pressupõe a importância de que profissionais e gestores reconheçam a APS como centro de comunicação da RAS, não apenas em seu funcionamento operacional, mas também como ponto estratégico na construção de uma rede robusta. É fundamental que essa rede promova fluxos e contrafluxos de maneira colaborativa para efetivar o acesso, empregando a ferramenta da longitudinalidade como meio de fortalecimento do sistema (Fortuna, 2022FORTUNA, Magali C. O cuidado integral na Atenção Primária à Saúde: saberes e práticas. São Paulo: Edusp, 2022.) - o que destaca a interdependência entre os diferentes componentes da rede e ressalta a importância de uma abordagem articulada na prestação de serviços de saúde.

Inclusão da integralidade nas atividades teóricas do programa

É importante destacar que a integralidade está contemplada nas diretrizes pedagógicas do PRMESF, visto que os profissionais devem ser preparados para uma atuação integral:

Assim, na construção deste Projeto Pedagógico optou-se por uma organização que permite a integração dos conhecimentos dos diferentes profissionais envolvidos, de forma a proporcionar ao residente uma visão da totalidade do Ser Humano e o atendimento integral de suas necessidades individuais. (Universidade do Estado do Pará, 2012UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ. Projeto político-pedagógico. Belém: Universidade do Estado do Pará, 2012. (Área de concentração Curso de Residência Multiprofissional em Saúde da Família)., p. 3)

No que diz respeito ao eixo 2, que trata da integralidade nas atividades teóricas do programa, observou-se que tanto nas atividades do eixo comum quanto nas do eixo transversal o tema foi abordado com frequência. Além disso, 16 (55,1%) participantes também afirmaram que as atividades teóricas foram importantes para que pudessem compreender a aplicabilidade da integralidade, reforçando a importância de que esse conteúdo seja contemplado nas atividades de ensino.

O Programa de Residência Multiprofissional da Uepa destina 20% da carga horária total mínima às atividades teóricas, tal como dispõe a resolução n. 5/2014, elaborada pela Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde (CNRMS). As atividades teóricas, por sua vez, são distribuídas em dois núcleos teóricos - o eixo comum e o eixo transversal. O eixo comum compreende disciplinas e atividades comuns a todos os programas de residência multiprofissional da Uepa, enquanto o eixo transversal compreende as atividades e disciplinas específicas do Programa de Residência Multiprofissional em Estratégia Saúde da Família.

Nesse eixo de análise, pretendia-se discutir a continuidade e o diálogo em relação à integralidade entre as diversas disciplinas ofertadas no programa. No entanto, essa tarefa revelou-se desafiadora, uma vez que os docentes costumam abordar o tema de maneiras diversas, o que leva a uma variação no aprendizado dos residentes. Apesar dessa complexidade, quando questionados sobre a presença contínua da integralidade entre as disciplinas do eixo transversal, 12 dos residentes (44,4%) afirmaram que essa comunicação entre as atividades é ‘frequente’. Tal resultado foi considerado positivo no contexto das atividades teóricas do programa.

Bernardo e colaboradores (2020BERNARDO, Mariana S. et al. Training and work process in Multiprofessional Residency in Health as innovative strategy. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 73, n. 6, p. 1-5 2020. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0635. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/reben/a/DgtKYSzzJxLvkwg5PWdcS6z/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 22 ago. 2023.
http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2019...
) ressaltam que os conteúdos ministrados pelos docentes precisam estar contextualizados na realidade, expressando os desafios reais do cotidiano nos serviços; caso contrário, tornam-se distantes da realidade, dificultando a compreensão e a aplicação pelos residentes. Logo, embora haja uma percepção favorável em relação à continuidade da integralidade entre as disciplinas, é necessária uma análise mais minuciosa acerca do conteúdo dessas disciplinas, o que nesse caso configura uma limitação do presente estudo.

De acordo com os residentes, as disciplinas que exploraram o conceito da integralidade de forma mais frequente foram ‘SUS e as políticas públicas em saúde’, ‘Educação, saúde e participação comunitária’, ‘Estratégia Saúde da Família’ e ‘Núcleo de Apoio à Saúde da Família’. Chama a atenção a discrepância nas respostas dos residentes em relação às disciplinas com ênfase na gestão em saúde, como ‘Gestão nos serviços de saúde’ e ‘Planejamento e administração em saúde’. Porém, é importante ressaltar que a pesquisa apresenta uma limitação, pois ela não avaliou o conteúdo específico abordado nessas disciplinas. Portanto, a variação nas percepções dos residentes pode estar relacionada à dificuldade que eles encontram ao identificar a presença da integralidade ou da abordagem em si, possivelmente em razão da maneira como o tema é apresentado pelo corpo docente.

Dentre os métodos de ensino considerados mais eficazes para se apreender o conceito de integralidade, também foram citados os métodos híbridos, de acordo com 17 (58,62%) participantes, e as metodologias ativas, conforme apontado por 11 participantes (52,4%), seguidos pelos métodos tradicionais, com taxa de resposta igual a um (3,4%).

Essa ênfase em metodologias participativas está alinhada com a urgência de se desenvolverem competências complexas, o que inclui a aquisição de um olhar ampliado sobre processos de saúde-doença, levando-se em consideração a realidade e a necessidade das pessoas e das coletividades (Rocha, Bevilacqua e Barletto, 2015ROCHA, Natalia H. N.; BEVILACQUA, Paula D.; BARLETTO, Marisa. Metodologias participativas e educação permanente na formação de agentes comunitários/as de saúde. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 597-615, set. 2015. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sip00056. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/PxRG96sZXJhckkXwv5ZscDf/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 set. 2023.
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sip000...
).

Além disso, é fundamental que a aprendizagem significativa e interprofissional estimule práticas que extrapolem os muros das instituições de ensino superior. Ao se considerar o enfoque do PRMS na atenção primária, os residentes precisam ter contato com abordagens que permitam uma sólida conexão entre teoria e prática, inclusive nos próprios cenários de pactuação, o que pode incluir metodologias como a metodologia da problematização e o arco de Marguerez, bem como práticas como rodas de discussão e diários reflexivos. Essas abordagens são essenciais para se promover uma prática crítica e reflexiva, capacitando os residentes a identificarem soluções ou estratégias para resolver questões críticas reais (Torres et al., 2019TORRES, Rafael B. S. et al. Estado da arte das residências integradas, multiprofissionais e em área profissional da saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 23, p. 1-16, 2019. https://doi.org/10.1590/Interface.170691. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/jF6rRNzt57ZtmNy5G3TtdNg/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://doi.org/10.1590/Interface.170691...
; Santos et al., 2021SANTOS, Amanda K. C. et al. O uso da metodologia da problematização na análise de uma unidade básica de saúde da família de Santarém-Pará no contexto da pandemia da covid-19. Brazilian Journal of Health Review, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 6.250-6.264, mar. 2021. https://doi.org/10.34119/bjhrv4n2-180. Disponível em: Disponível em: https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BJHR/article/view/26891 . Acesso em: 17 set. 2023.
https://doi.org/10.34119/bjhrv4n2-180...
).

Entretanto, embora reconheçam a importância do emprego de metodologias participativas no ensino em saúde, os residentes identificam uma lacuna significativa durante as atividades de preceptoria no que tange aos momentos de reflexão e discussão sobre as atividades no cenário. Para 14 (48,2%) participantes, a preocupação por parte dos preceptores em oportunizar momentos de discussão sobre a temática ocorre apenas ‘ocasionalmente’. Tal achado é preocupante, na medida em que o preceptor é um dos elementos-chave no desenvolvimento de competências durante a prática supervisionada. Além disso, é nos cenários de atuação que o residente é capaz de vivenciar e problematizar a realidade, bem como propor mudanças e inovações dentro dos espaços do SUS (Arnemann et al., 2018ARNEMANN, Cristiane T. et al. Práticas exitosas dos preceptores de uma residência multiprofissional: interface com a interprofissionalidade. Interface: Comunicação, Saúde, Educação,, Botucatu, v. 22, p. 1.635-1.646, 2018. Suplemento 2. https://doi.org/10.1590/1807-57622017.0841. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/Db4nq7VD8KbHxRQmzqT5Cbp/?lang=pt . Acesso em: 20 ago. 2023.
https://doi.org/10.1590/1807-57622017.08...
).

O papel do preceptor merece destaque fundamental durante as atividades da residência multiprofissional. No entanto, é frequente a falta de preparo para essa função, do ponto de vista pedagógico (Souza e Cordeiro, 2020SOUZA, Maria G. G.; CORDEIRO, Benedito C. Formação e trabalho do preceptor no ensino e na saúde: revisão integrativa. Debates em Educação, Sergipe, v. 12, n. 26, p. 83-96, jan.-abr. 2020. 10.28998/2175-6600.2020v12n26p83-96 Disponível em: Disponível em: https://www.seer.ufal.br/index.php/debates educacao/article/view/7548/pdf . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://www.seer.ufal.br/index.php/debat...
). Rodrigues e Witt (2022RODRIGUES, Carla D. S.; WITT, Regina R. Mobilização e estruturação de competências para a preceptoria na residência multiprofissional em saúde. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 20, e00295186, 2022. https://doi.org/10.1590/1981-7746-ojs295. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/MCZWyYg59jXw6sZ4HFbgjFw/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 17 set. 2023.
https://doi.org/10.1590/1981-7746-ojs295...
) destacam que a utilização de matrizes de competências para orientar a preceptoria é uma tarefa complexa e ainda carente de maior atenção e desenvolvimento pelos programas institucionais. Isso resulta em um desafio adicional para os próprios programas de residência multiprofissional, pois dificulta o alinhamento entre teoria e prática durante as atividades supervisionadas, bem como nas definições de papéis e atribuições do preceptor.

A prática de preceptoria nos programas de residência uni e multiprofissionais sofre as influências da sua formação pedagógica e das tensões associadas ao papel do preceptor, incluindo a falta de apoio logístico-financeiro e o distanciamento das coordenações dos programas, situações já mencionadas em estudos anteriores sobre o tema (Paula e Toassi, 2021PAULA, Gabriel B.; TOASSI, Ramona F. C. Papel e atribuições do preceptor na formação dos profissionais da saúde em cenários de aprendizagem do Sistema Único de Saúde. Saberes Plurais: Educação na Saúde, Porto Alegre, v. 5, n. 2, p. 125-142, ago.-dez. 2021. https://doi.org/10.54909/sp.v5i2.117940. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/saberesplurais/article/view/117940 . Acesso em: 10 set. 2023.
https://doi.org/10.54909/sp.v5i2.117940...
).

Logo, não é possível ignorar os efeitos desses tensionamentos sobre os residentes e preceptores, considerando-se que tais dificuldades podem impactar a qualidade do processo ensino-aprendizagem e, em consequência, o desenvolvimento de competências relacionadas à prática integral em saúde.

Articulação dos conhecimentos teóricos com a prática profissional

Quando solicitados(as) a citar quais fatores favorecem a integralidade na sua prática profissional, ou seja, em sua atuação nos cenários do PRMSF, os residentes mencionaram de maneira frequente a criação de vínculos com os(as) usuários(as) e a compreensão de seus contextos de vida, retomando a noção da integralidade no cuidado humanizado com as pessoas. Também mencionaram a importância da interação entre os integrantes da própria equipe multiprofissional, conforme descrito a seguir:

A criação de vínculo com o usuário e as visitas domiciliares são fatores que favorecem a integralidade, haja vista que nesse momento é possível perceber o contexto de que esse indivíduo faz parte, seja no âmbito pessoal, profissional, familiar ou comunitário, e assim entender junto com o indivíduo quais são as suas necessidades e quais ações podem ser realizadas. (R16)

(...) quando há uma equipe multiprofissional, onde a equipe tem a possibilidade de sempre lembrar sobre a necessidade de pensar integralidade e de compartilhar saberes e experiências sobre aquele usuário. (R15)

(...) discussão, planejamento e execução de ações em equipe; promoção de espaços de diálogos com os usuários (grupos); bom relacionamento com outras categorias profissionais. (R22)

(...) boa comunicação e entrosamento entre os membros da equipe para promoção da multidisciplinaridade e interdisciplinaridade. (R3)

Promover a criação de vínculos com os usuários implica reconhecer a importância da escuta ativa e qualificada, do acolhimento e da valorização das diversas dimensões que compõem a existência humana. Para os residentes, esses elementos são essenciais para a oferta de cuidado integral. Destaca-se, portanto, a relevância da construção de laços potentes entre equipes, gestores e usuários. Essa conexão se revela como um dos pilares fundamentais na produção de saúde. Além disso, o vínculo é uma diretriz estabelecida na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), pois desempenha um papel decisivo nas relações em saúde, o que viabiliza práticas humanizadas e comprometidas com o bem-estar dos usuários (Vanzela, Barbosa e Nogueira, 2022VANZELA, Cintia B.; BARBOSA, Guilherme C.; NOGUEIRA, Cintia A. O. Acolhimento, vínculo e suas potencialidades: uma experiência transformadora. Revista Eletrônica de Graduação do Univem (Regrad), Marília, v. 14, n. 1, p. 19-33, abr. 2022. Disponível em: Disponível em: https://revista.univem.edu.br/REGRAD/article/view/3290 . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://revista.univem.edu.br/REGRAD/art...
). Dessa forma, como atributo da APS, o vínculo é entendido pelos residentes como um fator que oportuniza a efetividade da integralidade na sua prática profissional.

O vínculo e o acolhimento são tecnologias de grande complexidade e demandam a formação de profissionais que tenham um olhar ampliado para as várias dimensões da saúde, o que inclui aspectos relacionados à diversidade cultural, religiosa, sexual e de gênero, entre outros. Por essa razão, precisam ser considerados temas prioritários nas ações de ensino em saúde, de modo a fomentar atitudes mais acolhedoras e inclusivas no campo da saúde (Barbosa e Bosi, 2017BARBOSA, Maria I. S.; BOSI, Maria L. M. Vínculo: um conceito problemático no campo da Saúde Coletiva. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 1.003-1.022, 2017. https://doi.org/10.1590/S0103-73312017000400008. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/48VFbgfLbRSh9tGJ7BzDSZq/?lang=pt . Acesso em: 20 ago. 2023.
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201700...
).

Outro aspecto mencionado pelos residentes foi a importância da presença de uma equipe multiprofissional que atue de maneira interdisciplinar como um fator que ajuda a colocar em prática a integralidade. No entanto, o cuidado integral é construído por meio do diálogo e da colaboração entre esses profissionais, o que caracteriza uma atuação interprofissional visando à troca de saberes e à elaboração conjunta de propostas e ações transformadoras (Costa, Azevedo e Vilar, 2019COSTA, Marcelo V.; AZEVEDO, George D.; VILAR, Maria J. P. Aspectos institucionais para a adoção da educação interprofissional na formação em enfermagem e medicina. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 43, p. 64-76, ago. 2019. Especial 1. https://doi.org/10.1590/0103-11042019S105. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/X5QvSpHGyd7c7TZzPpgpHYs/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 22 ago. 2023.
https://doi.org/10.1590/0103-11042019S10...
).

Embora os residentes tenham mencionado a importância do compartilhamento de responsabilidades na equipe, a educação interprofissional (EIP) ainda enfrenta desafios significativos em sua implementação efetiva. Uma parte substancial desses desafios decorre da influência persistente de modelos hegemônicos de ensino na formação em saúde, os quais continuam a repercutir no cotidiano dos serviços de saúde (Freire et al., 2019FREIRE, José R. et al. Educação interprofissional nas políticas de reorientação da formação profissional em saúde no Brasil. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 43, p. 86-96, ago. 2019. Especial 1. https://doi.org/10.1590/0103-11042019S107. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/8n8Vf9HXr4fZwJ8fHwrVDbg/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 22 ago. 2023.
https://doi.org/10.1590/0103-11042019S10...
) - o que é evidenciado pela presença de profissionais de diferentes categorias na equipe, porém muitas vezes sem um entendimento completo das funções das demais categorias e da integração durante o trabalho interprofissional (Silva e Miranda, 2022SILVA, Atila M.; MIRANDA, Lilian. Paradoxos e limites da colaboração interprofissional: análise de um Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 20, p. 1-17, 2022. https://doi.org/10.1590/1981-7746-ojs504. Disponível em: Disponível em: https://www.tes.epsjv.fiocruz.br/index.php/tes/article/view/504 . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://doi.org/10.1590/1981-7746-ojs504...
). Essa inter-relação destaca a importância não apenas da presença da equipe multiprofissional, mas também da sua atuação articulada e colaborativa em todos os aspectos da prestação de cuidados na APS.

No entanto, segundo Viana e Hostins (2022VIANA, Simone B. P.; HOSTINS, Regina C. L. Educação interprofissional e integralidade do cuidado: uma leitura filosófica contemporânea dos conceitos. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 38, p. 1-14, 2022. https://doi.org/10.1590/0102-469826460. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/edur/a/KYdPMSJ8B95xqphgF6CpgSK/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://doi.org/10.1590/0102-469826460...
), ao se conceituar a integralidade, deve-se evitar a armadilha de associá-la a uma abordagem totalitária, na qual o profissional de saúde seria capaz de construir uma visão minuciosa de todos os aspectos da vida da pessoa, sem deixar passar nada despercebido. Na opinião dos autores, seria impossível para um único profissional cumprir esse objetivo; portanto, é nesse sentido que a interprofissionalidade dá concretude à integralidade, como resultado de um trabalho e de ações construídas em um espaço coletivo.

Em outra perspectiva, os residentes mencionaram que dentre os fatores que dificultam a integralidade em sua prática profissional, há desafios relacionados à comunicação ou à interação entre a equipe multiprofissional, e entre os serviços de saúde.

Falta de interdisciplinaridade e interprofissionalidade, e comunicação entre os profissionais. (R21)

A dificuldade de comunicação com alguns profissionais de outras categorias; a falta de engajamento no trabalho em equipe. (R22)

Os fatores que dificultam a integralidade estão mais relacionados com a organização e integração dos serviços, fazendo com que muitas vezes o indivíduo não seja atendido em todas as suas necessidades de saúde e não seja acompanhado de forma contínua. (R16)

Apesar dos avanços propostos pela EIP nos contextos formativos, os serviços de saúde ainda enfrentam várias dificuldades, incluindo a hierarquização e o isolamento das diferentes categorias profissionais em suas respectivas áreas de atuação (Souza e Avila, 2021SOUZA, Luís R. C. V.; ÁVILA, Maria M. M. Potencialidades e desafios para a educação interprofissional no contexto da graduação em cursos da saúde. Research, Society and Development, São Paulo, v. 10, n. 9, p. 1-17, 2021. http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i9.17618. Disponível em: Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/download/17618/15878/223697 . Acesso em: 20 dez. 2023.
http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i9.176...
). Além disso, uma atuação interprofissional bem-sucedida constitui objetivo relevante tanto para os programas de graduação quanto para as residências multiprofissionais - e só pode ser alcançada por meio de uma vivência ativa nos cenários de saúde que contemple a troca de saberes (Viana e Hostins, 2022VIANA, Simone B. P.; HOSTINS, Regina C. L. Educação interprofissional e integralidade do cuidado: uma leitura filosófica contemporânea dos conceitos. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 38, p. 1-14, 2022. https://doi.org/10.1590/0102-469826460. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/edur/a/KYdPMSJ8B95xqphgF6CpgSK/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://doi.org/10.1590/0102-469826460...
).

Ademais, o déficit de integração do cuidado se estende para a RAS, tal como aponta o depoimento do participante R16, ao mencionar que a dificuldade para colocar em prática a integralidade reside na falta de integração entre os serviços. A falta de coordenação entre esses serviços configura-se como um desafio significativo, minando a concretização desse princípio, o que reforça a noção de que uma rede de saúde com barreiras no acesso a serviços de diferentes níveis de complexidade e densidade tecnológica representa um déficit substancial para a eficácia da integralidade. Essa deficiência não apenas fragmenta o cuidado oferecido aos usuários, mas também compromete diretamente a qualidade e a abrangência dos serviços prestados (Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde, 2022REDE DE PESQUISA EM ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE (APS). Bases para uma Atenção Primária à Saúde integral, resolutiva, territorial e comunitária no SUS: aspectos críticos e proposições. Rio de Janeiro: Abrasco, 2022. E-book. 111p. Disponível em: Disponível em: https://abrasco.org.br/wp-content/uploads/2021/02/e-book_rede_APS_29_07.pdf . Acesso em: 10 set. 2023.
https://abrasco.org.br/wp-content/upload...
). No entanto, não foi possível identificar quais fatores dificultam essa integração no cenário analisado, informação que poderia auxiliar no enfrentamento das dificuldades existentes.

É importante mencionar, por exemplo, as centrais de regulação e marcação de procedimentos, o fornecimento de guias manuais de referência e contrarreferência, bem como as ações intersetoriais que envolvem serviços de diferentes níveis de atenção, entre outros mecanismos (Oliveira, Silva e Souza, 2021OLIVEIRA, Cleise C. R. B.; SILVA, Elaine A. L.; SOUZA, Mariluce K. B. Referral and counter-referral for the integrality of care in the Health Care Network. Physis: Revista de Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, p. 1-23, 2021. https://doi.org/10.1590/S0103-73312021310105. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/3vhh4QL7xRM8tkRzZdcHZhK/ . Acesso em: 10 set. 2023.
https://doi.org/10.1590/S0103-7331202131...
). Mesmo com a falta de clareza em relação a esse tópico, sabe-se que o funcionamento adequado desses instrumentos contribui significativamente para a efetividade da integralidade; no entanto, embora se reconheça que tais recursos possuem valor, é importante destacar que eles não têm a capacidade de suplantar as deficiências de uma rede fragilizada.

Outro fator frequentemente mencionado que dificulta a integralidade na prática pelos residentes foi a ausência ou insuficiência de conhecimentos técnicos e operacionais por parte dos profissionais de saúde, como citado pelos participantes R15 e R24, respectivamente:

Carência de recursos ou de conhecimento. Noto que a parte social muitas vezes é deixada de lado, alguns protocolos básicos não são conhecidos pela equipe. (R15)

A falta de conhecimento dos profissionais sobre os serviços oferecidos e principalmente desconhecimento dos princípios e diretrizes do SUS. (R24)

As respostas dos residentes ressaltaram situações preocupantes, incluindo as deficiências na formação profissional, com foco na atuação da APS. Além disso, tais lacunas promovem entraves na assistência, haja vista que algumas ações não são desenvolvidas de acordo com os princípios e diretrizes do SUS. Assim, é necessário que as situações vivenciadas pelos residentes sejam acompanhadas de reflexão e problematização, de modo que a aprendizagem construída nos cenários de prática se torne significativa e, sobretudo, crítica da realidade.

Uma das estratégias para se enfrentarem as dificuldades relacionadas ao desenvolvimento de competências necessárias para atuação na APS é o investimento em estratégias de educação permanente em saúde (EPS), conforme previsto na Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? Brasília: Ministério da Saúde, 2018. Disponível em: Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_educacao_permanente_saude_fortalecimento.pdf . Acesso em: 22 ago. 2023.
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
). A EPS é uma abordagem que se baseia na construção contínua do conhecimento e no aprimoramento das habilidades dos profissionais de saúde, especialmente no que diz respeito aos princípios do SUS, com destaque para a integralidade.

A educação permanente em saúde se diferencia da educação continuada, uma vez que não se limita a ações pontuais, mas se torna um princípio orientador que permeia todo o processo de trabalho e direciona o ciclo reflexão-ação-reflexão durante as atividades profissionais e pedagógicas (Yamamoto, Machado e Silva-Júnior, 2015YAMAMOTO, Thaís S.; MACHADO, Mônica T. C.; SILVA-JUNIOR, Aluísio G. Educação permanente em saúde como prática avaliativa amistosa à integralidade em Teresópolis, Rio de Janeiro. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 617-637, 2015. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sip00058. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/FLHsqBHmZZqm4CRsMnJkZkf/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sip000...
). Ademais, a EPS valoriza a realidade do trabalho em saúde como local e foco da transformação, visando estabelecer reformas e também propor transformações estruturais e sistêmicas nos processos de trabalho.

É importante destacar que o município de Belém dispõe de recursos logístico-operacionais que facilitam a implementação de ações e tecnologias associadas à EPS nos cenários. No contexto locorregional, o Núcleo de Educação Permanente (NEP), o qual é vinculado ao Departamento de Gestão de Regulação do Trabalho em Saúde (DGRTS) da Secretaria Municipal de Saúde do município de Belém, tem como finalidades a qualificação do processo de trabalho na rede municipal de saúde, por meio da educação permanente e educação continuada dos trabalhadores do SUS municipal (Secretaria Municipal de Saúde de Belém, 2023SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE DE BELÉM (SESMA). Cartilha informativa DGRTS-Sesma. Sesma, Belém: 2023. Disponível em: Disponível em: https://sesma.belem.pa.gov.br/wp-content/uploads/2023/01/CARTILHA-DGRTS.pdf . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://sesma.belem.pa.gov.br/wp-content...
).

Cabe ressaltar que a EPS vai além da mera adoção e aplicação de protocolos ou ferramentas específicas; ela abrange a própria fundamentação das atividades laborais, alinhada com os objetivos das instituições e dos profissionais envolvidos (Barcellos et al., 2020BARCELLOS, Rosilene M. S. et al. Educação permanente em saúde: práticas desenvolvidas nos municípios do estado de Goiás. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 2, p. 1-14, 2020. http://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sol00260. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/hmhRyrgGSHFjybhjxjH3xjH/ . Acesso em: 20 ago. 2023.
http://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sol0...
). Tal abordagem está em consonância com a proposta da integralidade em saúde, uma vez que a prestação de cuidados abrangentes e ações eficazes em saúde requer constantes reflexões e aprimoramentos.

Assim, é impossível garantir a integralidade dos cuidados se não houver uma reflexão crítica e contínua da prática profissional, visando à melhora da resolutividade das ações terapêuticas e sociais (Yamamoto, Machado e Silva-Júnior, 2015YAMAMOTO, Thaís S.; MACHADO, Mônica T. C.; SILVA-JUNIOR, Aluísio G. Educação permanente em saúde como prática avaliativa amistosa à integralidade em Teresópolis, Rio de Janeiro. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 617-637, 2015. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sip00058. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/FLHsqBHmZZqm4CRsMnJkZkf/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sip000...
).

Aplicabilidade da integralidade nas ações em saúde pelas equipes profissionais

O último eixo de interesse procurou entender como os residentes avaliavam a aplicação desse princípio nas ações em saúde. As respostas deveriam considerar a atuação das equipes nos cenários de prática, uma vez que eles constituem espaços de aprendizagem dos residentes.

Quando perguntados sobre o alinhamento das equipes de saúde com o princípio da integralidade, 15 (51,7%) participantes consideraram como ‘razoável’. Sobre a integração entre os profissionais das equipes, vinte (69%) avaliaram como ‘razoável’, resultado que aponta desafios na interdisciplinaridade como prática que materializa a integralidade.

Considerar as pessoas em sua totalidade implica reconhecer a necessidade de se acionarem diferentes saberes, estratégias e manejos diante de condições complexas, tanto em casos individuais ou coletivos como também na própria organização do trabalho. É nesse cenário que a atuação interprofissional ganha potência, em contraposição ao trabalho solitário (Almeida, Teston e Medeiros, 2019ALMEIDA, Rodrigo G. S.; TESTON, Elen F.; MEDEIROS, Arthur A. A interface entre o PET-Saúde/Interprofissionalidade e a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, p. 97-105, ago. 2019. Especial 1. https://doi.org/10.1590/0103-11042019S108. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/pBVwdb8Dn8jRzY4YpMPxNFq/?lang=pt . Acesso em: 20 ago. 2023.
https://doi.org/10.1590/0103-11042019S10...
). Contudo, a implementação de uma cultura de colaboração interprofissional durante a organização do trabalho, especialmente na APS, é reconhecidamente desafiadora, como apontado por Silva e Miranda (2022SILVA, Atila M.; MIRANDA, Lilian. Paradoxos e limites da colaboração interprofissional: análise de um Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 20, p. 1-17, 2022. https://doi.org/10.1590/1981-7746-ojs504. Disponível em: Disponível em: https://www.tes.epsjv.fiocruz.br/index.php/tes/article/view/504 . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://doi.org/10.1590/1981-7746-ojs504...
). Este estudo destaca que o matriciamento ou apoio matricial enfrenta obstáculos, tais como a necessidade de se compreenderem as funções individuais e de se estabelecerem acordos claros de responsabilidades. Além disso, evidencia-se a importância do apoio da gestão, associado à dimensão da governança, para a implementação e o suporte de práticas e processos colaborativos.

A pesquisa revelou uma recorrência de falas por parte dos residentes em relação ao trabalho interdisciplinar das equipes, o que se configura como um importante apontamento crítico. Tal perspectiva dos residentes não pode ser negligenciada pelo PRMESF, uma vez que essas críticas podem desempenhar um papel fundamental na promoção de mudanças.

Os residentes não apenas têm a capacidade de incentivar as mudanças necessárias, mas também podem contribuir para a problematização dos cenários, tarefa a ser realizada em conjunto com preceptores, coordenadores e docentes (Carneiro, Teixeira e Pedrosa, 2021CARNEIRO, Ester M.; TEIXEIRA, Lívia, M. S.; PEDROSA, José I. S. A residência multiprofissional em saúde: expectativas de ingressantes e percepções de egressos. Physis: Revista de Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 31, n. 3, p. 1-19, 2021. https://doi.org/10.1590/S0103-73312021310314. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/PT96npfTcfqT7xWPZZkyGpt/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 22 ago. 2023.
https://doi.org/10.1590/S0103-7331202131...
). Esse diálogo interdisciplinar entre residentes e profissionais mais experientes pode ser enriquecedor para o aprimoramento das práticas de saúde, de modo a promover uma abordagem mais integrada e eficaz no cuidado à população. Portanto, as críticas dos residentes devem ser consideradas como uma oportunidade valiosa para se aprimorarem o trabalho interdisciplinar e a formação em saúde (Lira, Medrado e Costa, 2020LIRA, Edvaldo S.; MEDRADO, Betânia P.; COSTA, Walison P. A. Os diálogos entre preceptor e residente no contexto da Residência Pedagógica: reflexões em prol de uma construção de identidade docente. Revista Horizontes de Linguística Aplicada, Brasília, v. 19, n. 2, p. 231-254, 2020. https://doi.org/10.26512/rhla.v19i2.32851. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/horizontesla/article/view/32851 . Acesso em: 22 ago. 2023.
https://doi.org/10.26512/rhla.v19i2.3285...
).

No que diz respeito à capacidade de identificação e de resolutividade das necessidades dos(as) usuários(as) por parte das equipes, 17 (58,6%) residentes avaliaram como ‘razoável’. Compreender o resultado em questão exige uma reflexão e tomada de decisões urgentes, uma vez que a avaliação da capacidade de resposta das equipes de saúde às necessidades da população desempenha um papel crucial na implementação da integralidade nos serviços. Também é fundamental se considerar que essa questão revela uma lacuna significativa no ensino em saúde. Quando as ações voltadas para a integralidade são enfraquecidas, isso não apenas afeta a qualidade do atendimento, mas também impacta negativamente as oportunidades de aprendizado (Tofani et al., 2022TOFANI, Luis F. N. et al. Construção da integralidade na Rede de Atenção às Urgências e Emergências: o cuidado para além dos serviços. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 26, p. 1-16. 2022. https://doi.org/10.1590/interface.210690. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/7hnTKs3Nvn5rKrpYnv6n5tp/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://doi.org/10.1590/interface.210690...
).

Nesse sentido, a capacidade de identificação e resolutividade das necessidades dos usuários inclui ações como o acolhimento e a classificação de risco, a gestão de casos complexos e o conhecimento e integração com as redes de saúde, orientadas pelas respectivas linhas de cuidado. De acordo com Carnut (2017CARNUT, Leonardo. Cuidado, integralidade e atenção primária: articulação essencial para refletir sobre o setor saúde no Brasil. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 41, n. 115, p. 1.177-1.185, out.-dez. 2017. https://doi.org/10.1590/0103-1104201711515. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/DdWJGmS59ZWHTm59sXvsVCG/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 22 ago. 2023.
https://doi.org/10.1590/0103-11042017115...
), tais ações representam a operacionalização da integralidade, portanto devem ser prioridades nas intervenções das equipes de saúde.

Constitui uma preocupação o fato de que as equipes de saúde, na visão dos residentes, não alcancem um desempenho desejado em sua capacidade de identificação e resolutividade das demandas, uma vez que representam indicadores do impacto das ações e do trabalho em saúde. Cabe ressaltar que tal visão não possibilita um diagnóstico conclusivo sobre o contexto analisado, afinal, para se conhecer de maneira mais abrangente a prática da integralidade, reconhece-se a importância da análise também das experiências das equipes, bem como dos indicadores de saúde das regiões adscritas sob sua responsabilidade.

Mesmo ao se considerar a importância das ações de educação em saúde, em âmbito individual e coletivo, constatou-se que há poucas iniciativas nesse sentido, visto que os residentes destacaram sua realização ocasional, tal como apontado na Tabela 3. No cenário da EPS, tal ferramenta propicia um modus operandi de transformação e de contínua reflexão crítica sobre os processos de trabalho instaurados. Ademais, a integração ensino-trabalho-cidadania é um meio para se articularem a formação, as práticas de trabalho e a participação social, de modo a se evitar que o usuário ocupe um papel passivo em seu processo de cuidado (Rodrigues et al., 2020RODRIGUES, Lorrane F. P. et al. Integração ensino-trabalho-cidadania: vivência de alunos de graduação em fisioterapia. Revista Baiana de Saúde Pública, Salvador, v. 44, n. 1, p. 197-207, jan.-mar. 2020. 10.22278/2318-2660.2020.v44.n1.a3160. Disponível em: Disponível em: https://rbsp.sesab.ba.gov.br/index.php/rbsp/article/view/3160 . Acesso em: 17 set. 2023.
https://rbsp.sesab.ba.gov.br/index.php/r...
).

Tabela 3
Aplicabilidade da integralidade nas ações em saúde pelas equipes, 2023.

Os achados obtidos com o presente estudo permitiram dar visibilidade à experiência dos residentes, incluindo sua compreensão e operacionalização da integralidade como conteúdo de ensino do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde. Suas respostas trouxeram informações relevantes para o planejamento das ações de ensino, incluindo temas apontados como essenciais: ‘Humanização em saúde’, ‘Linhas de cuidado’, ‘Redes temáticas de atenção à saúde’, ‘Atenção integral às populações vulneráveis’ e ‘Acesso e acolhimento na APS’, que foram abordados ‘raramente’ nos cenários de aprendizagem. Na Tabela 3, apresenta-se o perfil das respostas.

Os temas que operacionalizam a integralidade representam as interseções entre a EPS e a EIP no cerne do trabalho vivo em saúde, destacando a capacidade dos profissionais de se transformarem mediante a reflexão conjunta sobre suas ações. Conforme apontado por Ogata e colaboradores (2021OGATA, Marcia N. Interfaces entre a educação permanente e a educação interprofissional em saúde. Revista da Escola de Enfermagem, São Paulo, n. 55, e03733, 2021. https://doi.org/10.1590/S1980-220X2020018903733. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/reeusp/a/K89qghvK3WgSN3pzcdKsZgR/?lang=pt&format=pdf . Acesso em: 22 ago. 2023.
https://doi.org/10.1590/S1980-220X202001...
), a interseção entre EPS e EIP é fundamental na construção do SUS, servindo como ferramentas essenciais para a formação profissional em consonância com os princípios democráticos. No entanto, a implementação dessas abordagens ainda enfrenta desafios significativos, especialmente devido à resistência de modelos hegemônicos estabelecidos que permeiam tanto o ensino quanto a prática diária dos profissionais de saúde.

A integralidade emerge como um eixo central ao redor do qual tanto a EIP quanto a EPS se articulam, em conjunto com o próprio trabalho em saúde, promovendo uma abordagem holística e integrada que reconhece a complexidade das necessidades e realidades dos usuários do sistema de saúde.

Considerações finais

Apesar das dificuldades enfrentadas nos cenários de prática da residência multiprofissional em saúde da família, os residentes demonstram conhecimento sobre o conceito de integralidade, o que inclui noções pertinentes a respeito de fragilidades e potencialidades existentes no cuidado e nas ações de saúde ofertadas à população, além de reflexão sobre as relações de trabalho nos serviços e na própria rede de atenção à saúde. Observou-se ainda que os eixos teóricos das atividades previstas no projeto pedagógico do PRMSF/Uepa desempenham importante papel no ensino do tema, uma vez que fornecem subsídios para que os residentes identifiquem lacunas e desafios existentes.

Embora os residentes tenham pontuado a dificuldade de se constatar a materialidade da integralidade nos cenários em que atuam, as residências multiprofissionais em saúde constituem valiosos espaços de aprendizagem e operacionalização desse importante princípio estruturante do SUS. Por essa razão, é necessário que os docentes e preceptores do programa possam priorizar o ensino dessa temática, não somente nas atividades teóricas mas também nos cenários de prática, o que inclui repensar seu processo de trabalho à luz desse princípio. Problematizar a integralidade requer colocar em análise a relação com o usuário e ainda a forma como se dá a integração entre as equipes e entre os profissionais que as compõem, bem como a possibilidade de se ofertarem recursos como o acesso aos diferentes níveis de atenção à saúde, colocando em prática a coordenação do cuidado.

Ademais, os resultados demonstraram que o princípio da integralidade se associa estreitamente ao eixo ensino-serviço-assistência no âmbito do SUS, devendo constituir uma prioridade nas ações de ensino. Trata-se de um tema a ser abordado de forma transversal em todos os componentes curriculares do programa, o que exige apropriação de conhecimentos teóricos e metodológicos por parte de docentes e preceptores.

Contudo, é importante ressaltar algumas limitações deste estudo. Não houve investigação detalhada sobre o conteúdo específico das disciplinas oferecidas no eixo teórico do PRMSF. Da mesma forma, não foram explorados conhecimentos e práticas na perspectiva dos preceptores envolvidos no programa. A inclusão da visão desses profissionais poderia proporcionar uma compreensão mais abrangente dos elementos investigados. A ausência de análise do conteúdo das disciplinas e da perspectiva dos preceptores limita a profundidade do estudo. Ainda assim, é relevante destacar que investigações futuras nessas áreas podem oferecer direções valiosas para se aprimorar a formação profissional na APS no estado do Pará.

Os resultados obtidos no estudo demonstraram a importância de se priorizar o desenvolvimento de tecnologias educacionais para o ensino da integralidade nos programas de residência multiprofissional. No entanto, é importante ressaltar que em razão da profundidade e da complexidade do tema, nenhuma metodologia ou tecnologia educacional, utilizada de forma isolada, será capaz de esgotar completamente o assunto. Nesse aspecto, acredita-se que os achados aqui apresentados possam se somar às inúmeras ‘mãos’ que constroem e tecem a rede do SUS, estabelecendo diálogos e trocas com outros saberes, de modo que a integralidade opere, de fato, como diretriz do ensino e do cuidado em saúde.

Referências

Informações do artigo

  • Financiamento

    Sem financiamento.
  • Aspectos éticos

    Todas as etapas do estudo foram realizadas em consonância com as diretrizes éticas para pesquisa com seres humanos, conforme preconizado pela resolução n. 466/12 e pela resolução n. 510/16, do Conselho Nacional de Saúde, após aprovação em 15 de junho de 2022 pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Pará (Uepa) (parecer n. 5.471.238 e CAAE: 56703322.0.0000.5174).
  • Apresentação prévia

    Artigo resultante da dissertação intitulada Produtos educacionais para o ensino da integralidade no contexto da Atenção Primária à Saúde, de autoria de João Paulo Menezes Lima, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ensino em Saúde na Amazônia (PPGESA) da Universidade do Estado do Pará, defendida em 2024.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2023
  • Aceito
    19 Abr 2024
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