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PROCESSO DE TRABALHO EM UNIDADE DE SAÚDE DA FAMÍLIA E A EDUCAÇÃO PERMANENTE

WORK PROCESS AT A FAMILY HEALTH UNIT AND CONTINUING EDUCATION

PROCESO DE TRABAJO EN UNIDAD DE SALUD DE LA FAMILIA Y LA EDUCACIÓN PERMANENTE

Resumo

A educação permanente em saúde propõe a criação de espaços coletivos com a finalidade de levar os trabalhadores da saúde à reflexão e avaliação de seus atos produzidos no cotidiano, a fim de buscar a transformação das práticas de saúde e de educação. Este artigo propôs a discussão da educação permanente com base nas ponderações feitas pelos trabalhadores da Estratégia Saúde da Família quanto aos processos de sua atividade profissional. Para isso, desenvolveu-se um estudo qualitativo, com a utilização da técnica de grupo focal. Como resultado, verificou-se que a reflexão dos profissionais de saúde sobre a realidade do próprio cotidiano de trabalho permitiu uma discussão acerca da educação permanente e, em consequência, o início de um processo de mudança de suas práticas.

Palavras-chave
Estratégia Saúde da Família; educação permanente; prática profissional

Abstract

Continuing education in health proposes the creation of collective spaces to lead health workers to reflect on and evaluate their actions in daily life in order to seek the transformation of health and education practices. This article proposes a discussion on continuing education based on the considerations made by the Family Health Strategy workers with regard to the processes of their professional activity. A qualitative study using the focal group technique was developed for the discussion. As a result, it was found that the health professionals' reflection about the reality of their own daily work allowed for a discussion on continuing education and, thus, the onset of a process of changing their practices.

Keywords
Family Health Strategy; continuing education; professional practice

Resumen

La educación permanente en salud propone la creación de espacios colectivos con la finalidad de llevar a los trabajadores de la salud a la reflexión y evaluación de sus actos producidos en quehacer cotidiano, a fin de buscar la transformación de las prácticas de salud y de educación. Este artículo propuso la discusión de la educación permanente con base en las ponderaciones realizadas por los trabajadores de la Estrategia Salud de la Familia, en cuanto a los procesos de su actividad profesional. Para ello, se desarrolló un estudio cualitativo, con utilización de la técnica de grupo focal. Como resultado, se observó que la reflexión de los profesionales de salud sobre la realidad del propio cotidiano de trabajo permitió una discusión acerca de la educación permanente y, en consecuencia, el inicio de un proceso de cambio de sus prácticas.

Palabras clave
Estrategia Salud de la Familia; educación permanente; práctica profesional

Introdução

A Estratégia Saúde da Família (ESF) teve início em meados de 1993 e foi regulamentada em 1994 pelo Ministério da Saúde (MS) com a finalidade de modificar a forma tradicional de prestação de assistência à saúde. Assim, o foco de atenção deixou de ser centrado exclusivamente no indivíduo e na doença e passou também para o coletivo, tornando-se a família o espaço privilegiado de atuação da ESF (Besen et al., 2007BESEN, Candice B. et al. A Estratégia Saúde da Família como objeto de educação em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 16, n. 1, p. 57-68, 2007.; Vanderlei e Almeida, 2007VANDERLEI, Maria I. G.; ALMEIDA, Maria C. P. A concepção e prática dos gestores e gerentes da Estratégia Saúde Família. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 443-453, 2007.).

Estudos, entretanto, revelaram que o perfil dos profissionais formados não era adequado para atuar na lógica da ESF. Trabalhadores educados no modelo biomédico, que valorizavam as especialidades sem a compreensão global do ser humano e do processo de adoecer, sentiam dificuldades para atuar na perspectiva de atenção integral à saúde, tendo em sua maioria uma prática de trabalho incompatível com os preceitos do MS (Ceccim e Feuerwerker, 2004CECCIM, Ricardo B; FEUERWERKER, Laura C. M. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 41-65, 2004.; Cotta et al., 2006COTTA, Rosangela M. M. et al. Organização do trabalho e perfil dos profissionais do Programa Saúde da Família: um desafio na reestruturação da atenção básica em saúde. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, v. 15, n. 3, p. 7-18, 2006.; Camelo e Angerami, 2008CAMELO, Silvia H. H.; ANGERAMI, Emilia L. S. Formação de recursos humanos para a Estratégia Saúde da Família. Ciência, Cuidado e Saúde, Maringá, v. 7, n. 1, p. 45-52, 2008.).

Na tentativa de contornar o descompasso entre a formação dos profissionais de saúde e os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), o MS buscou assumir o seu papel constitucional na ordenação da formação dos novos profissionais de saúde e na educação dos trabalhadores já inseridos no sistema (González, Almeida e Mendonça, 2009GONZÁLEZ, Alberto D.; ALMEIDA, Marcio J.; MENDONÇA, Fernanda F. Percepções de participantes quanto ao curso de ativação de processos de mudança na formação superior de profissionais de saúde. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 33, n. 2, p. 176-185, 2009.; González e Almeida, 2010GONZÁLEZ, Alberto D.; ALMEIDA, Marcio J. Ativação de mudanças na formação superior em saúde. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 34, n. 2, p. 238-246, 2010.). Diante desse panorama, muitos programas foram criados, e entre eles podem ser citados: o Programa de Capacitação e Formação em Saúde da Família, o de Profissionalização dos Trabalhadores da Área da Enfermagem (Profae), o de Interiorização do Trabalho em Saúde (PITS) e o de Incentivo às Mudanças Curriculares nos Cursos de Graduação em Medicina (Promed) (Ceccim e Feuerwerker, 2004CECCIM, Ricardo B; FEUERWERKER, Laura C. M. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 41-65, 2004.; Brasil, 2005BRASIL. Ministério da Saúde. A educação permanente entra na roda: polos de educação permanente em saúde - conceitos e caminhos a percorrer. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.).

Embora fossem isolados e desarticulados entre si, esses programas provocaram algumas alterações na formação e no cuidado em saúde e, acima de tudo, levaram pessoas e instituições a perceber que é preciso mudar, concomitantemente, as práticas educativas e as ações e serviços de saúde (Ceccim e Feuerwerker, 2004CECCIM, Ricardo B; FEUERWERKER, Laura C. M. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 41-65, 2004.; Brasil, 2005BRASIL. Ministério da Saúde. A educação permanente entra na roda: polos de educação permanente em saúde - conceitos e caminhos a percorrer. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.).

Pesquisas apontam que para uma pessoa ou uma organização decidir mudar a forma de atuação é preciso ir além da capacitação. Faz-se necessário, pois, a detecção e o contato com os desconfortos experimentados no cotidiano do trabalho para fazer perceber que a maneira vigente de realizar ou de pensar é insuficiente ou insatisfatória para lidar com os desafios do trabalho (González e Almeida, 2010GONZÁLEZ, Alberto D.; ALMEIDA, Marcio J. Ativação de mudanças na formação superior em saúde. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 34, n. 2, p. 238-246, 2010.; Ceccim, 2005aCECCIM, Ricardo B. Educação permanente em saúde: descentralização e disseminação de capacidade pedagógica na saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 4, p. 975-986, 2005a.; Mendonça, 2007MENDONÇA, Fernanda F. Formação de facilitadores de educação permanente em saúde: percepções de tutores e facilitadores. 138f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2007.). Dessa forma, para se pensar o novo modelo assistencial em saúde, é fundamental ressignificar o processo de trabalho. Mas essa ressignificação exige a mudança da finalidade desse processo, no sentido de colocá-lo centrado no usuário e nas suas necessidades (Franco, 2007FRANCO, Túlio B. Produção do cuidado e produção pedagógica: integração de cenários do sistema de saúde no Brasil. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 11, n. 23, p. 427-438, 2007.).

A educação permanente em saúde (EP) tem sido proposta pelo MS como estratégia de transformação das práticas de formação, gestão, formulação de políticas, participação popular e, especialmente, das práticas profissionais e da própria organização do trabalho (Brasil, 2005BRASIL. Ministério da Saúde. A educação permanente entra na roda: polos de educação permanente em saúde - conceitos e caminhos a percorrer. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.; Lopes et al., 2007LOPES, Sara R. S. et al. Potencialidades da educação permanente para a transformação das práticas de saúde. Comunicação em Ciências da Saúde, Distrito Federal, v. 18, n. 2, p. 147-155, 2007.; Tronchin et al., 2009TRONCHIN, Daisy M. R. et al. Educação permanente de profissionais de saúde em instituições públicas hospitalares. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 43, n. 2, p. 1.210-1.215, 2009.). Logo, deve ser uma política que tem como pressuposto a educação ‘no’ e ‘para o’ trabalho (Franco, 2007FRANCO, Túlio B. Produção do cuidado e produção pedagógica: integração de cenários do sistema de saúde no Brasil. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 11, n. 23, p. 427-438, 2007.).

Em 2004, instituiu-se a EP como política pública para formação e desenvolvimento dos trabalhadores da saúde (Brasil, 2004aBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 198/GM/MS, de 13 de fevereiro de 2004. Diário Oficial da União, Brasília, v. 141, n. 32, seção 1, p. 37-41, 2004a.). Em 2007, foram lançadas diretrizes para sua implementação (Brasil, 2007aBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 1.996/GM/MS, de 20 de agosto de 2007. Diário Oficial da União, Brasília, v. 144, n. 162, seção 1, p. 34-38, 2007a.). E, mais recentemente, em 27 de fevereiro de 2014, publicou-se uma portaria que instituiu diretrizes para sua implementação no âmbito do MS (sede e unidades descentralizadas) (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 278/GM/MS, de 27 de fevereiro de 2014. Diário Oficial da União, Brasília, n. 42, seção 1, p. 59-60, 2014.).

Em consonância com a proposta da EP, outros programas foram desenvolvidos e deram maior robustez a essa política. São exemplos: o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde) (Brasil, 2007bBRASIL. Ministério da Saúde. Ministério da Educação. Pró-Saúde: Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2007b.), o Programa Nacional de Telessaúde (Brasil, 2007cBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 35/GM/MS, de 4 de janeiro de 2007. Diário Oficial da União, Brasília, n. 4, seção 1, p. 85-86, 2007c.), o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 1.802/MS/MEC, de 26 de agosto de 2008. Diário Oficial da União, Brasília, n. 165, seção 1, p. 27, 2008.) e os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASFs). Estes últimos adquiriram papel matriciador junto às equipes de referência na ESF (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Diretrizes do NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília: Ministério da Saúde, 2009.).

Ceccim (2005a)CECCIM, Ricardo B. Educação permanente em saúde: descentralização e disseminação de capacidade pedagógica na saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 4, p. 975-986, 2005a. esclarece que, como vertente pedagógica, a EP ganhou estatuto de política pública na área da saúde pela difusão da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) nos anos 1980. Embora diferente em alguns aspectos da proposta de EP do MS, a EP difundida por aquela organização teve também no cerne de suas propostas a reflexão sobre o processo de trabalho.

Assim, a EP propõe a criação de espaços coletivos com a finalidade de levar os trabalhadores da saúde à reflexão e avaliação de seus atos produzidos no cotidiano, utilizando-se da aprendizagem significativa e da problematização na busca pela transformação das práticas de saúde e de educação (Peduzzi et al., 2009PEDUZZI, Marina et al. Atividades educativas de trabalhadores na atenção primária: concepções de educação permanente e de educação continuada em saúde presentes no cotidiano de unidades básicas de saúde em São Paulo. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 13, n. 30, p. 121-134, 2009.).

Segundo o MS, na aprendizagem significativa ocorre a produção de sentidos, uma vez que ela utiliza o dia a dia do trabalhador, ao considerar seus conhecimentos prévios e o contexto local, além de vincular o aprendizado a elementos que façam sentido para os sujeitos envolvidos (Brasil, 2005BRASIL. Ministério da Saúde. A educação permanente entra na roda: polos de educação permanente em saúde - conceitos e caminhos a percorrer. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.; González, Almeida e Mendonça, 2009GONZÁLEZ, Alberto D.; ALMEIDA, Marcio J.; MENDONÇA, Fernanda F. Percepções de participantes quanto ao curso de ativação de processos de mudança na formação superior de profissionais de saúde. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 33, n. 2, p. 176-185, 2009.; Mendonça, 2007MENDONÇA, Fernanda F. Formação de facilitadores de educação permanente em saúde: percepções de tutores e facilitadores. 138f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2007.; Peduzzi et al., 2009PEDUZZI, Marina et al. Atividades educativas de trabalhadores na atenção primária: concepções de educação permanente e de educação continuada em saúde presentes no cotidiano de unidades básicas de saúde em São Paulo. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 13, n. 30, p. 121-134, 2009.).

A educação permanente em Recife

O modelo de atenção à saúde ‘Recife em defesa da vida’, adotado pela Secretaria Municipal de Saúde da capital pernambucana no período de 2010 a 2013, tinha como diretrizes orientadoras a clínica ampliada e compartilhada, o acolhimento, a cogestão com produção de autonomia e a saúde coletiva reformulada e ampliada (Coêlho, 2012COÊLHO, Bernadete P. A reformulação da clínica a partir de diretrizes para atenção e gestão na saúde: subjetividade, política e invenção de práticas. 179f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) – Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2012.). Esse modelo firmou compromisso com a prática da EP e adotou-a como estratégia de qualificação para o trabalho, em contraposição às ações fragmentadas de treinamento e capacitação. A EP, na verdade, era considerada uma ferramenta de construção de conhecimento, que trabalhava a subjetividade e a implicação dos sujeitos, modificando suas práticas profissionais no que se referia ao cuidado da população (Recife, 2010aRECIFE. Prefeitura da Cidade do Recife. Contribuição da Gerência de Atenção Básica no Plano Municipal de Educação Permanente. Recife: Gerência de Atenção Básica (GAB), PCR-PE, 2010a.).

Nesse período, o processo de EP esteve voltado à qualificação dos profissionais de saúde com foco na consolidação e ampliação da resolubilidade da atenção básica, bem como para o fortalecimento da atuação em áreas prioritárias (Recife, 2010bRECIFE. Governo Municipal. Secretaria de Saúde do Recife. Plano Municipal de Saúde 2010-2013. Recife: Secretaria de Saúde do Recife, 2010b.). Tinha a intenção de promover também mudanças nas práticas de saúde do município, a fim de melhorar o atendimento nas unidades da atenção. Dessa forma, o caráter pedagógico da prática cotidiana era incentivado, e as dificuldades do trabalhador em lidar com os problemas na atenção aos usuários eram colocadas em debate pela gestão (Lima, Albuquerque e Wenceslau, 2014LIMA, Sayonara A. V.; ALBUQUERQUE, Paulette C; WENCESLAU, Leandro D Educação permanente em saúde segundo os profissionais da gestão de Recife, Pernambuco. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 425-441, 2014.).

Ao entender que a EP foi considerada uma importante ferramenta para mudança da prática profissional e melhoria da atenção à população, o objetivo deste artigo foi discutir a EP com base nas reflexões de trabalhadores da ESF acerca de seus processos de trabalho.

Trajetória metodológica

O estudo desenvolvido foi do tipo qualitativo,5 5 Este artigo é resultado da monografia de Residência Multiprofissional em Saúde do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), intitulada Necessidades de Educação Permanente numa Unidade de Saúde da Família: visão dos atores (2011), de autoria de Lílian Bezerra Silva do Nascimento Caldas e Rebecca Soares de Andrade. uma vez que essa abordagem “abre maiores possibilidades de compreensão da experiência do novo ator, o ativador, frente à ativação de processos de mudança em seu cenário regional” (González, Almeida e Mendonça, 2009GONZÁLEZ, Alberto D.; ALMEIDA, Marcio J.; MENDONÇA, Fernanda F. Percepções de participantes quanto ao curso de ativação de processos de mudança na formação superior de profissionais de saúde. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 33, n. 2, p. 176-185, 2009., p. 177).

O estudo foi realizado em uma unidade de saúde da família (USF) localizada na região metropolitana do município de Recife, em novembro de 2010. Nessa USF, atuavam duas equipes de saúde da família e uma de saúde bucal, que se reuniam semanalmente para discutir questões relacionadas ao trabalho.

A coleta de dados foi realizada por meio da técnica de grupo focal (GF), que tem como objetivo predominante identificar percepções, sentimentos e atitudes dos participantes a respeito de um determinado assunto, produto ou atividade. A formação do GF deve ser intencional, sendo desejável ao menos um ponto de semelhança entre os participantes (Trad, 2009TRAD, Leny A. B. Grupos focais: conceitos, procedimentos e reflexões baseadas em experiências com o uso da técnica em pesquisas de saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 777-796, 2009.).

Neste estudo, para composição do grupo utilizou-se o critério de compartilhamento do mesmo local de trabalho. O GF teve a participação de sete profissionais de saúde da referida USF, com três de nível superior, dois de nível técnico e dois de nível médio, visando manter a representatividade e a homogeneidade do grupo, e por esse número de sujeitos estar em conformidade com a técnica de GF (Ressel et al., 2008RESSEL, Lúcia B. et al. O uso do grupo focal em pesquisa qualitativa. Texto Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 17, n. 4, p. 779-786, 2008.; Flick, 2009FLICK, Uwe. Uma introdução à pesquisa qualitativa . 3. ed. Porto Alegre: Bookman, 2009.).

Para nortear a condução do GF pelo moderador, foi utilizado um guia de temas contendo três questões: as percepções dos trabalhadores quanto às dificuldades encontradas no desenvolvimento de suas atividades; seus desejos e/ou frustrações em seus processos de trabalho; e as percepções de necessidade de EP. Para a preservação das identidades dos participantes, usaram-se codinomes (Profissional 1, Profissional 2 etc.). O GF teve duração de uma hora.

Os dados foram coletados com base no registro escrito e de áudio do encontro do GF e das observações realizadas pelo moderador e seu auxiliar. Ademais, priorizou-se a identificação das percepções dos participantes sobre o tema proposto: sua postura, suas dificuldades, sugestões e propostas para resolução. A gravação foi transcrita na íntegra e posteriormente procedida a análise das falas e seus conteúdos.

O projeto desta pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira, com o protocolo de número 1.908, e autorizado pela Diretoria Geral de Gestão do Trabalho da Secretaria Municipal de Saúde do Recife. Todos os participantes estiveram de acordo em participar da pesquisa e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, após terem recebido os devidos esclarecimentos.

Apresentação e discussão dos resultados

Em relação às características dos profissionais de saúde participantes, constatou-se a predominância do gênero feminino (86%), com 42% dos participantes de nível superior, 29% de nível médio e 29% de nível técnico. O tempo médio de trabalho na ESF foi de 9,7 anos (DP ± 4,7).

Durante a realização de todo o GF, os participantes foram estimulados a refletir sobre seus processos de trabalho, e as diferentes concepções resultantes dessa atividade foram relacionadas às temáticas abordadas no guia de temas (Quadro 1).

Quadro 1
Relação entre as temáticas abordadas e as principais concepções dos trabalhadores

A primeira temática teve a intenção de colocar os trabalhadores em contato com os desconfortos vivenciados no cotidiano do trabalho; a segunda objetivou suscitar os desejos dos profissionais com suas ocupações; por fim, a terceira temática buscou captar as percepções dos trabalhadores acerca de suas necessidades de EP.

Percepções dos trabalhadores quanto às dificuldades encontradas no desenvolvimento de suas atividades

Foram relatadas ‘dificuldades de comunicação da equipe de saúde com a comunidade’, como se pode perceber no trecho transcrito a seguir, referente ao comentário de um profissional sobre a consulta com uma usuária que se queixava de um problema de saúde bucal:

Profissional 6: Ontem chegou uma gestante, chegou pra mim (…) com dor de dente, aí eu disse: “Senhora, quanto tempo a senhora tá com dor de dente?” / Usuária: “Cinco dias.” / Profissional 6: Eu disse: “Senhora, por que a senhora não procurou o dentista?” / Usuária: “E eu num tô procurando a senhora? A senhora não é médica?” / Profissional 6: E eu disse mesmo: “Eu sou médica!” / Profissional 6 (Eles querem que o dentista seja médico, querem que o médico seja dentista…) — observação do profissional. / Usuária: “A senhora quem foi que passou o remédio…” / Profissional 6: “Não, eu vou passar pra dor, mas o problema do seu dente quem tem que resolver é o dentista. E aqui tem dentista. Você não foi porque não quis.”

O trecho destacado, além de demonstrar a fragilidade de comunicação existente entre a equipe de saúde e a comunidade, reflete a dificuldade de acesso que teve essa usuária ao profissional dentista. A acessibilidade refere-se à quão acessível um serviço está em relação à capacidade de utilização por seus usuários — o que inclui as dimensões geográfica, sociocultural, econômica e organizacional, que facilitam ou dificultam o seu uso (Chaves et al., 2010CHAVES, Sonia C. L. et al. Política Nacional de Saúde Bucal: fatores associados à integralidade do cuidado. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 44, n. 6, p. 1.0051.013, 2010.; Giovanella et al., 2012GIOVANELLA, Ligia et al. (orgs.). Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012.).

Conforme relatado, a usuária, que teve analgésicos prescritos pelo profissional médico, não acessou o dentista em virtude da falta de informação ou de agendamento, ou ainda de encaminhamento pelo profissional que ofertou o primeiro atendimento. À luz de Giovanella e colaboradores (2012), que afirmam que o acolhimento, a humanização do cuidado e as informações sobre serviços de saúde são definidores do acesso, pôde-se concluir que essas barreiras impactaram negativamente o acesso dessa usuária ao profissional dentista.

Outros relatos evidenciaram essa fragilidade na comunicação da equipe de saúde com a comunidade:

O pessoal num entendeu ainda que PSF é um programa de prevenção, mas tem que dizer em palestra, mas o pessoal só quer consulta (Profissional 2).

Eu acho que a maior dificuldade, entendeu, pra o meu trabalho hoje em dia é [sic] os adolescentes, porque além da questão das drogas é muito difícil a gente ter acesso a eles (…). A gente não tem como abordar, que ninguém diz, se você perguntar se é usuário de droga, se ele usa droga, alguma coisa, ninguém diz (Profissional 2).

Esses relatos podem, ainda, sinalizar para uma fragilidade no vínculo estabelecido entre essa equipe de saúde e a população adstrita. O estabelecimento das relações entre profissionais de saúde e a população — assim como a criação de laços de compromisso e corresponsabilidade — é um ponto central da proposta do MS para a ESF (Oliveira e Spiri, 2006OLIVEIRA, Elaine M.; SPIRI, Wilza C. Programa Saúde da Família: a experiência de equipe multiprofissional. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40, n. 4, p. 727-733, 2006.; Brasil, 2004bBRASIL. Ministério da Saúde. HumanizaSUS: equipe de referência e apoio matricial. Brasília: Ministério da Saúde, 2004b.). Esses mecanismos fazem com que as ações de saúde sejam mais eficazes e os usuarios, mais participativos (Monteiro et al., 2009MONTEIRO, Michele M. et al. Formação do vínculo na implantação do Programa Saúde da Família numa unidade básica de saúde. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 43, n. 2, p. 358-364, 2009.; Schimit e Lima, 2004SCHIMITH, Maria; LIMA, Maria A. D. S. Acolhimento e vínculo em uma equipe do Programa Saúde da Família. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 6, p. 1.487-1.494, 2004.).

Segundo Camargo-Borges e Japur (2005)CAMARGO-BORGES, Celiane; JAPUR, Marisa. Promover e recuperar saúde: sentidos produzidos em grupos comunitários no contexto do Programa Saúde da Família. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 9, n. 18, p. 507-519, set.-dez. 2005., os grupos tendem a facilitar a participação, a comunicação de experiências e dúvidas dos usuários, e são um bom momento para aproximação. Na USF estudada, havia dois grupos de Hiperdia e um de idosos. No entanto, os profissionais pouco se envolviam com essas atividades.

Em relação ao atendimento de grupos, os de Hiperdia eram apoiados pelo Projeto Academia da Cidade, em que uma educadora física se deslocava até a unidade de saúde para ministrar uma hora de aula com exercícios físicos para os participantes. Enquanto isso, os agentes comunitários de saúde (ACSs) se alternavam no espaço apenas para registrar os nomes dos partícipes. Esses grupos deveriam contar com o acompanhamento pressórico e glicêmico de seus constituintes, além de outras atividades educativas (Brasil, 2006aBRASIL. Ministério da Saúde. Diabetes mellitus. Brasília: Ministério da Saúde, 2006a., 2006bBRASIL. Ministério da Saúde. Hipertensão arterial sistêmica para o Sistema Único de Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2006b.), porém as atividades se restringiam aos exercícios físicos justamente pelo não envolvimento dos demais profissionais da unidade.

Além disso, o grupo de idosos, que contava com poucos integrantes, era comandado por uma única ACS, pois não havia a participação dos demais membros da equipe. Assim, os profissionais não utilizavam os espaços criados pelos grupos para fortalecimento dos vínculos com os usuários, e estes já não se sentiam motivados a participar das atividades propostas pela equipe.

Outras discussões referentes a essa temática foram as ‘frágeis condições de trabalho’ e ‘ausência de profissionais’:

Profissional 6: Dificuldade aqui a gente tem muita. É que se a gente for dizer mesmo, ? / Profissional 3: Falta de medicação! / Profissional 2: Falta de material! / Profissional 3: Exames…

Profissional 4: Minha maior dificuldade é a gente trabalhar sem enfermeira. Pra mim, dificultando muito o meu trabalho. / Profissional 1: Influencia diretamente na demanda, que a pessoa, às vezes, inserida na família sem ser da família, e como é que vai saber se o ACS num lá, ? Aí você num teria como questionar [referindo-se à falta do profissional ACS, pois na época faltavam dois].

Profissional 2: A questão da farmácia também, que tira a gente das atividades da gente pra ficar na farmácia…

As inadequadas condições de trabalho citadas pelos profissionais, como ausência de materiais, exames e desfalque no quadro funcional, também foram encontradas em outras USFs do país, como se pode observar em pesquisas publicadas por Moutinho e colaboradores (2014)MOUTINHO, Cinara B. et al. Dificuldades, desafios e superações sobre educação em saúde na visão de enfermeiros de saúde da família. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 253-272, 2014. e Murofuse e colaboradores (2009)MUROFUSE, Neide T. et al. Diagnóstico da situação dos trabalhadores em saúde e o processo de formação no polo regional de educação permanente em saúde. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 17, n. 3, p. 314-320, 2009.. Assim, Sarreta (2009)SARRETA, Fernanda O. Educação permanente em saúde para os trabalhadores do SUS. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. acredita que a desvalorização pela qual os trabalhadores vêm passando ao longo dos anos, dadas as precárias condições de trabalho, pode influenciar o desencantamento com o próprio trabalho.

Segundo o MS, cada equipe de saúde da família deve conter no mínimo um médico, um enfermeiro, um auxiliar ou técnico de enfermagem e ACS (no máximo, 750 pessoas por ACS, e 12 ACSs por equipe de saúde da família) (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 2.027/GM/MS, de 25 de agosto de 2011. Diário Oficial da União, Brasília, n. 164, seção 1, p. 90, 2011.). No período da pesquisa, a referida USF apresentava suas equipes desfalcadas, observando-se a ausência de duas ACSs, duas enfermeiras e um técnico de enfermagem. Não dispunha, portanto, da equipe mínima recomendada.

Marques e Silva (2004)MARQUES, Dalvani; SILVA, Eliete M. A enfermagem e o Programa Saúde da Família: uma parceria de sucesso? Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 57, n. 5, p. 545-550, 2004. alertam para o fato de que o déficit de qualquer um desses profissionais pode levar à sobrecarga de trabalho e, assim, à insatisfação e à desmotivação da equipe.

Desejos/frustrações nos processos de trabalho

Essa temática suscitou apenas uma ideia central: ‘reviver experiências positivas anteriores’. Alguns profissionais relataram desejo de retomar atividades com crianças e adolescentes:

Aquele que a gente fez, a colônia de férias (…) aquela colônia de férias, a gente só fez uma vez, foi bom demais. As crianças vinham, brincavam (…) mas depois a gente não teve mais condições de fazer que num tinha material, num tinha ajuda, nem nada, mas a colônia de férias foi ótima! / (…) o grupo de adolescentes tava muito bom! Grande mesmo! Aí foi se dissipando (…) porque ele não oferecia nada, era só conversa, palestra (Profissional 2).

Os demais participantes do grupo, entretanto, expressaram conformismo com a situação de trabalho em que se encontravam, sem disposição para fazer além do que lhes era cobrado. Segundo Dejours (2007)DEJOURS, Christophe. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007., nas situações cotidianas do trabalho é impossível cumprir escrupulosamente todas as prescrições, instruções e procedimentos. Desse modo, a organização prescrita difere da organização real.

Nessa perspectiva, pode-se dizer que o não cumprimento das ‘normas’ pode levar à angústia, ao sofrimento, à sensação de impotência e incompletude com o trabalho. Os implicados nesse processo devem desenvolver, então, um reencantamento com suas atividades, o que obriga a adoção de ações no campo operacional, afetivo e emocional (Dejours, 2007DEJOURS, Christophe. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.).

Bernardo e Garbin (2011)BERNARDO, Marcia H.; GARBIN, Andreia C. A atenção à saúde mental relacionada ao trabalho no SUS: desafios e possibilidades. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 36, n. 123, p. 103-117, 2011. alertam para o fato de que essa ‘organização do trabalho’ tem sido responsável por uma elevação no número de doenças ocupacionais, especialmente o adoecimento e o sofrimento psíquico. A síndrome de burnout, caracterizada por exaustão emocional, desumanização e reduzida realização pessoal no trabalho, tem causa incerta, mas se sabe que estão mais propensas a ter a doença pessoas com exagerada dedicação à vida profissional e que mantêm um contato constante e direto com outras pessoas em seus ofícios, principalmente quando essa atividade é considerada de ajuda, como é o caso dos profissionais de saúde (Feliciano, Kovacs e Sarinho, 2005FELICIANO, Kátia V. O; KOVACS, Maria H.; SARINHO, Silvia W. Sentimentos de profissionais: reflexões sobre o burnout. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 5, n. 3, p. 319-328, 2005.).

Murofuse e colaboradores (2009)MUROFUSE, Neide T. et al. Diagnóstico da situação dos trabalhadores em saúde e o processo de formação no polo regional de educação permanente em saúde. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 17, n. 3, p. 314-320, 2009. buscaram trabalhar, por meio de atividades de EP, a capacidade relacional, a motivação e a humanização com profissionais de saúde. Eles puderam perceber que, após as intervenções, esses trabalhadores passaram a ter discursos mais humanizados, além de adotar uma postura mais cordial e bom humor no trabalho.

Medeiros (2011)MEDEIROS, Nara M. H. Educação permanente como dispositivo de cogestão: a concepção dos profissionais de saúde da família do Conselho de Acompanhamento da Atenção Básica (Conaco). 169f. Dissertação (Mestrado em Ensino em Ciências da Saúde) - Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2011. utilizou a EP como dispositivo para cogestão e demonstrou que essa pedagogia foi capaz de minorar sentimentos de sofrimento com o trabalho, como sensação de perda de pertencimento, angústia, desvalorização. A autora atribuiu como responsável pelo resultado a capacidade que a EP tem de possibilitar a participação dos diferentes atores envolvidos e a qualificação.

Percepções de necessidade de educação permanente

Essa temática foi desenvolvida com a perspectiva de verificar como a equipe encarava as capacitações realizadas pela gestão e se apontaria necessidade de EP. Os profissionais foram, então, questionados quanto aos conteúdos que cada um considerava insuficiente e que não permitiam a realização de suas atividades. Duas concepções foram percebidas: ‘a percepção acerca da efetividade da educação continuada’; e ‘a percepção de necessidade de matriciamentos’:

É, eu acho que já estão fazendo a parte de educação direitinho, todo mês a gente tem um fórum e assim pacientes especiais, , suprindo a necessidade. Pelo menos a minha eu acho que suprindo (Profissional 1).

A gente já é diferente. Os cursos da gente é sempre os mesmo [sic]… Eles nunca renovam. Nunca vê nada novo… Sempre é TB, hanseníase. É [sic] sempre aqueles mesmos que vêm pra gente, a mesma coisa… desde que eu entrei, há 16 anos, de dois em dois anos, ou de ano em ano (Profissional 1).

A primeira fala revelou que alguns profissionais acreditavam que a educação continuada (EC) tem suprido satisfatoriamente a necessidade de educação no que concerne à melhor prática profissional. De fato, é possível que a EC tenha suprido as necessidades desses indivíduos.

No entanto, seria ingênuo não refletir sobre a possibilidade de estar ocorrendo o que González, Almeida e Mendonça (2009GONZÁLEZ, Alberto D.; ALMEIDA, Marcio J.; MENDONÇA, Fernanda F. Percepções de participantes quanto ao curso de ativação de processos de mudança na formação superior de profissionais de saúde. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 33, n. 2, p. 176-185, 2009., p. 181) citam em seu estudo: “Quando uma prática social se estabiliza, se repete com certa frequência, ela é percebida como se fosse uma regra natural, e assim os sujeitos sentem dificuldades em mudar e até mesmo perceber falhas.”

Por sua vez, o segundo discurso demonstra um descontentamento com as capacitações realizadas pela EC. Também se reconhece que os cursos ministrados estão desconectados de seus interesses. Para Ceccim (2005b)CECCIM, Ricardo B. Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 9, n. 16, p. 161-177, set. 2004-fev. 2005b., a EC, por meio da transmissão de conhecimentos, não tem se mostrado eficaz na incorporação de novos conceitos e ainda reforça o entendimento de que o saber é gerado por uma expertise.

Segundo Franco (2007)FRANCO, Túlio B. Produção do cuidado e produção pedagógica: integração de cenários do sistema de saúde no Brasil. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 11, n. 23, p. 427-438, 2007., a EC traz ainda como consequência a desvalorização do conhecimento gerado com base nas vivências cotidianas na atividade de trabalho e a concepção de insuficiência dos trabalhadores, colocando-os como ‘sujeitos sujeitados’ junto com seus serviços e a sociedade, o que resulta na expropriação dos demais saberes e na anulação das realidades locais (Ceccim, 2005bCECCIM, Ricardo B. Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 9, n. 16, p. 161-177, set. 2004-fev. 2005b.).

Ainda no âmbito dessa temática, houve profissionais que julgaram necessário e importante o ‘apoio matricial’ de alguns especialistas para qualificar o atendimento aos usuários.

Eu tenho assim muita dificuldade de identificar na área, você fala assim conteúdo, ? Em relação a caso de psiquiatria e caso de psicologia, o que eu tenho dificuldade de identificar na área é isso [referindo-se ao desejo de ter um apoio matricial para auxiliar uma dificuldade do trabalho] (Profissional 4).

Apoio matricial pode ser definido como um suporte técnico especializado, ofertado a uma equipe de referência a fim de ampliar seu campo de atuação e qualificar suas ações (Figueiredo e Campos, 2009FIGUEIREDO, Mariana D.; CAMPOS, Rosana O. Saúde mental na atenção básica à saúde de Campinas, SP: uma rede ou um emaranhado? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 129-138, 2009.). O NASF é exemplo de arranjo de apoio matricial. Esse apoio, em geral, oferta suporte assistencial e técnico-pedagógico.

A equipe de referência é responsável pela condução do cuidado longitudinal de seus pacientes (Brasil, 2004bBRASIL. Ministério da Saúde. HumanizaSUS: equipe de referência e apoio matricial. Brasília: Ministério da Saúde, 2004b.). Nesse caso, é a equipe de saúde da família. O matriciamento deve agregar conhecimentos e aumentar a capacidade resolutiva da equipe que o recebe (Arona, 2009ARONA, Elizaete C. Implantação do matriciamento nos serviços de saúde de Capivari. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, p. 26-36, 2009. Suplemento 1.). Segundo o MS, o que se espera da proposta de EP é a democratização dos espaços de trabalho, o desenvolvimento do trabalho em equipes matriciais, a melhoria permanente do cuidado e a humanização em saúde (Brasil, 2005BRASIL. Ministério da Saúde. A educação permanente entra na roda: polos de educação permanente em saúde - conceitos e caminhos a percorrer. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.).

No período em que se realizava a pesquisa, Recife estava em fase de implantação do NASF. Apesar de a Gerência de Atenção Básica (GAB) do município estar em consonância com a metodologia de EP e com princípio da cogestão, o município ainda não dispunha de um instrumento voltado para a EP nas unidades de saúde. As discussões acerca de matriciamentos, projetos terapêuticos e educação permanente permeavam as reuniões da GAB, mas ainda eram raras no cotidiano das equipes de saúde da família.

Estudo realizado com profissionais da gestão acerca de seus entendimentos sobre EP em Recife, no mesmo período, revelou que alguns setores da Secretaria Municipal de Saúde confundiam o conceito da EP com o de EC. Além disso, os autores verificaram pouca priorização da política de EP pela gestão na capital pernambucana (Lima, Albuquerque e Wenceslau, 2014LIMA, Sayonara A. V.; ALBUQUERQUE, Paulette C; WENCESLAU, Leandro D Educação permanente em saúde segundo os profissionais da gestão de Recife, Pernambuco. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 425-441, 2014.). Macedo, Albuquerque e Medeiros (2014)MACEDO, Neuza B.; ALBUQUERQUE, Paulette C; MEDEIROS, Katia R. O desafio da implementação da educação permanente na gestão da educação na saúde. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 379-401, 2014. consideram desafiadora a alteração conceitual pela gestão da educação na saúde em virtude da complexidade prática do SUS.

Após discussão das temáticas, os participantes foram requisitados a buscar soluções para os problemas e desejos relativos aos seus processos de trabalho que haviam sido relatados durante o GF. Posteriormente, foi solicitado que priorizassem os problemas/desejos cuja resolução estivesse dentro de sua governabilidade e que pudesse ser efetuada a curto prazo. Os itens destacados, então, foram transformados em oficinas de EP com auxílio das pesquisadoras (Quadro 2).

Quadro 2
Problemas/desejos priorizados pelos profissionais participantes do estudo e as respectivas oficinas de EP ofertadas

Considerações finais

Neste artigo, objetivou-se discutir a EP com base nas reflexões de trabalhadores da ESF sobre seus processos de trabalho, por meio da técnica de grupo focal. Após as análises e discussões dos dados, verificou-se que as ponderações dos profissionais sobre seus cotidianos de trabalho (seus desconfortos e suas aspirações) forneceram elementos que subsidiaram a discussão acerca da EPS.

Essa reflexão, feita de maneira crítica e problematizadora, sobre as atividades do trabalho e das ações educativas ofertadas a esses trabalhadores, permitiu que a realidade vivenciada por esses profissionais emergisse com força potente. Logo, eles puderam dar início a um processo de mudança de suas atividades profissionais, segundo a prática de educação permanente em saúde.

Em conclusão, aponta-se que, apesar de cada serviço de saúde vivenciar sua própria realidade — do ponto de vista estrutural, de recursos humanos, de contexto social, cultural, político e ideológico —, a implementação de processos de ensino-aprendizagem participativos e crítico-reflexivos nos diferentes estabelecimentos de saúde é um desafio que vale ser superado diante das profundas transformações que se alcança ao modificar processos de trabalho ancorados nos preceitos do modelo biomédico medicalizador, centrado nas tecnologias e nas doenças.

  • 5
    Este artigo é resultado da monografia de Residência Multiprofissional em Saúde do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), intitulada Necessidades de Educação Permanente numa Unidade de Saúde da Família: visão dos atores (2011), de autoria de Lílian Bezerra Silva do Nascimento Caldas e Rebecca Soares de Andrade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2016
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    11 Dez 2012
  • Aceito
    22 Jun 2015
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