RESUMO
O presente trabalho problematiza a hipervalorização da branquidade e suas implicações na vida em sociedade, principalmente no que toca à condição de subalternização do povo negro. O corpus de discussão será um veículo da mídia televisiva, o quadro RJ-Móvel, transmitido pelo diário telejornalístico local RJTV, da Rede Globo de Televisão. O quadro aborda situações em que uma jornalista, juntamente com sua equipe, tenta mediar e solucionar problemas relativos à falta de infraestrutura em bairros periféricos da cidade do Rio de Janeiro, bem como na região do chamado Leste Metropolitano e na Baixada Fluminense. Analisaremos a construção do roteiro do quadro e sua inserção em meio à população negra e pobre, maioria das(os) residentes nestes locais e sobre as(os) quais o programa se debruça, destinando suas investidas de caráter assistencialista. Como complemento de análise deste objeto, onde se observam outros modos de operar práticas de racismo e estabelecer lógicas de condutas civilizatórias, faremos uma leitura crítica também a respeito da postura da apresentadora, seus movimentos e dinâmicas de interação com a população local. Para tanto, traçaremos um diálogo com a noção de amabilidade artificiosa, mobilizada por Fanon (2008) em Pele Negra, Máscaras Brancas, em aproximação com duas outras categorias: a primitivização da pessoa negra e a caricata espetacularização da negritude e da pobreza. Assim nos interessa refletir estratégias que repensem o enaltecimento da branquidade, rompendo com o discurso midiático hegemônico que performa assistencialismo, produz e reproduz - entre outros modos de estereotipação - práticas racistas.
Palavras-chave:
branquidade; mídia televisiva; amabilidade artificiosa
ABSTRACT
The present work discusses the overvaluation of whiteness and its implications for life in society, especially with regard to the condition of subordination of black people. The corpus of discussion will be a television media vehicle, the RJ-Móvel, broadcast by the daily local television newscast RJTV, of Rede Globo. RJ-Móvel addresses situations in which a journalist, together with her team, tries to mediate and solve problems related to the lack of infrastructure in peripheral neighborhoods of Rio de Janeiro, as well as in the so-called Leste Metropolitano and in the Baixada Fluminense. We will analyse the construction of the script and its insertion among the black and poor population, most of them residents in these places and on whom RJ-Móvel focuses, assuming an assistance character. As a complement to the analysis of this object, where other ways of operating racism practices and establishing logics of civilizing behavior are observed, we will also make a critical reading about the reporter’s posture, her movements and interaction dynamics with the local population. For that, we will establish a dialogue with the notion of artificial kindness, mobilized by Fanon (2008) in Black skin, white masks, in approximation with two other categories: the primitivization of the black person and the spectacularization of blackness and poverty. Thus, we are interested in reflecting on strategies that make us rethink the praise of whiteness, breaking with the hegemonic media discourse the performs assistance, produces and reproduces racist practices, among other modes of stereotyping.
Key words:
whiteness; television media; artificial kindness
INTRODUÇÃO
Os meios de comunicação midiáticos figuram, em geral, como instituições dominantes e hegemônicas que desempenham o papel de vitrines conceituais, de modelos fenotípicos e de padrões dos modos de ser o humano. Do mesmo modo, constroem caminhos tradicionais ideológicos que dão forma a orientações epistemológicas, modos de pensar e entender as informações e dinâmicas que se dão na vida política, econômica e social de uma população. No contexto brasileiro, a TV Globo - um dos braços de atuação do Grupo Globo, maior conglomerado de mídia e comunicação do Brasil e da América Latina - tem impactado os lares com seus elevados índices de audiência, forjando visões de mundo a partir do lugar estrutural da branquidade1 1 Ruth Frankenberg (1999) emprega o termo “branquitude”, em vez de “branquidade”. Para os propósitos deste artigo, utilizaremos “branquidade” e “branquitude” de forma intercambiável, sem nos debruçarmos detalhadamente sobre eventuais disputas teóricas sobre o conceito. , de onde o sujeito branco vê os outros e a si mesmo (FRANKENBERG, 1999FRANKENBERG, R. (1999) Introduction: Local whiteness, localizing whiteness. In: FRANKENBERG, R. (Org.) Displacing whiteness: essays in social and cultural criticism. Durham, NC: Duke University Press.).
Na grade de programação da TV Globo, os telejornais têm dividido a sala de estar dos brasileiros, funcionando como uma espécie de cesta básica de informação aos telespectadores com seus programas jornalísticos. Dentre esses programas, o jornalismo local, por sua característica, é o que majoritariamente apresenta realidades mais próximas da audiência ao trazer para a tela notícias do cotidiano das cidades, dos Estados ou de uma dada região sócio-geográfica. O enfoque do nosso estudo, para o presente artigo, é quadro RJ-Móvel, exibido diariamente no telejornal RJTV-1ª edição. O programa é transmitido de segunda a sábado no horário de meio dia e veicula notícias sobre a cidade do Rio de Janeiro e a Região Metropolitana (incluindo municípios vizinhos à capital, do Leste Metropolitano e da Baixada Fluminense).
No quadro RJ-Móvel, uma equipe de telejornalismo desloca-se para regiões periféricas do Rio e Grande Rio para tratar de problemas enfrentados pela população no que tange à infraestrutura (por exemplo, falta de saneamento, obras não concluídas pelo poder público, ausência de aparatos culturais etc.). O quadro é transmitido ao vivo e, em sua dinâmica, envolve a participação dos moradores das localidades visitadas por meio de entrevistas e depoimentos. Interessa-nos, aqui, estabelecer uma ponte entre esses participantes do RJ-Móvel - em sua grande maioria, uma população negra e pobre das periferias do Rio de Janeiro - e os procedimentos e operacionalidades do quadro nesses mesmos locais a que se destinam suas transmissões-ações. Quem comanda o quadro é a repórter Susana Naspolini, uma mulher branca e de classe média cuja conduta (na execução do roteiro e na interação com os moradores dos bairros) é orientada pelo chamado jornalismo comunitário e/ou colaborativo, movido por modos de interação tidos como mais próximos da população e tecidos por uma ambientação mais popular, lúdica e informal.
Da observação da interação entre repórter, participantes e audiência, emergiu uma inquietação acerca dos atravessamentos da branquidade na construção do quadro RJ-Móvel. Neste artigo, buscaremos traçar uma análise que identifique as tensões e desdobramentos, travestidos por uma pretensa harmonia entre as partes, que abrem caminho para a naturalização de mecanismos que legitimam o papel civilizatório de uma branquidade que serve como instrumento facilitador para a manutenção de modos de ser e de saber ancorados na valoração daquilo que pertence aos brancos. Nesse cenário, o jornalismo local - que se diz comunitário - assume a representação do colonizador branco que chega para executar seu manual de como ser plenamente humano diante daqueles que esperam a dignidade ofertada pela benevolência do seu senhor.
A partir da discussão a respeito da branquidade, sua rostidade, aspectos e ações, o trabalho pretende trazer à compreensão as bases que lhe dão sustentação - à branquidade - junto a esse telejornalismo que se apresenta a partir de uma perspectiva dita comunitária/colaborativa. Para tanto, buscaremos interlocução com os estudos de Frantz Fanon (2008)FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA. em Pele negra, máscaras brancas, com especial destaque para o papel do uso da linguagem na legitimação do modus operandi da branquidade e na inferiorização dos negros no sistema colonial. Para a análise dos aspectos da branquidade tecidos pela via da linguagem no quadro RJ-Móvel, mobilizaremos as seguintes categorias fanonianas: a) a amabilidade artificiosa, ou seja, a forma exagerada e inventada de tratar com gentilezas pessoas com as quais não se tem qualquer vínculo anterior; b) a primitivização da pessoa negra; c) a espetacularização da negritude e da pobreza.
A partir da transcrição de excertos selecionados do quadro RJ-Móvel, discutiremos o modo como a repórter busca uma aproximação direta com os participantes/moradores por meio de uma linguagem que considera “nativa” dessa população, resultando em uma infantilização desses sujeitos e na legitimação do modo de funcionamento da branquidade. Também lançaremos olhar sobre o efetivo direito à voz dos participantes do quadro nesse jornalismo comunitário/colaborativo, considerando elementos ligados aos movimentos corporais da repórter - especialmente no que tange ao modo deliberado e naturalizado como se dirige a esses corpos negros, tocando-os com a “intimidade” que a branquidade lhe confere.
1. BRANQUIDADE, RELAÇÕES RACIAIS E O PRIVILÉGIO DAS MÁSCARAS BRANCAS
Os primeiros estudos de branquitude/branquidade possivelmente são resultantes da publicação de Black Reconstruction in the United States por W.E.B. Du Bois, em 1935. Na obra, Du Bois cunha a noção de “salário público e psicológico” do trabalhador estadunidense branco em comparação com o trabalhador afro-americano. Para o autor, ainda que com um salário pequeno, o homem branco goza de livre trânsito e acesso a espaços e funções públicas, algo que não é conferido ao trabalhador negro em igualdade de condições de capital. Mais contemporaneamente, o termo branquidade tem sido empregado para tratar das incursões de privilégio que rodeia e protege pessoas brancas no decorrer da vida, se comparadas às pessoas negras. Segundo Schucman (2012)SCHUCMAN, L. V. (2012) Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. Tese de Doutorado em Psicologia Social. Universidade de São Paulo, São Paulo., trata-se de um privilégio simbólico que atribui à identidade branca uma imagem positivada na vida em sociedade, abrangendo capacidades cognitivas, intelectuais, estéticas, modos de se portar e condições de mobilidade social.
Em Pele negra, máscaras brancas, Frantz Fanon (2008)FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA. discute como o colonialismo lega ao branco e à branquitude o lugar de modelo de humanidade e civilização em contrapartida à figura do negro, desenhada na perspectiva de um olhar que o encerra como o “outro”. Nesse sentido, modos de manutenção de uma dita ordem, de subjugação e exploração e de sistemas de violência são naturalizados, visto que estão a serviço de um modelo de homem branco, de um padrão civilizatório alinhado a práticas eurocentrizadas e racistas da lógica colonial. Para compreender essa construção do negro como inferior em relação ao branco, Fanon nos convida a olhar para a linguagem, considerando que é por meio dela que os sentidos (do racismo, inclusive) são talhados e experienciados.
(...) racismo e colonialismo deveriam ser entendidos como modos socialmente gerados de ver o mundo e viver nele. Isto significa, por exemplo, que os negros são construídos como negros. (...) Para entender como tais construções ocorrem, o caminho lógico é examinar a linguagem, na medida em que é através dela que criamos e vivenciamos os significados. Na linguagem está a promessa do reconhecimento; dominar a linguagem, um certo idioma, é assumir a identidade da cultura. Esta promessa não se cumpre, todavia, quando vivenciada pelos negros. Mesmo quando o idioma é “dominado”, resulta a ilegitimidade. (FANON, 2008FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA., p. 15).
No contexto brasileiro, merecem destaque as pesquisas de Maria Aparecida Bento (2002)BENTO, M. A. (2002) Pactos narcísicos do racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese de Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Universidade de São Paulo, São Paulo., Liv Sovik (2009)SOVIK, L. (2009) Aqui ninguém é branco. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009. e Lia Schucman (2012)SCHUCMAN, L. V. (2012) Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. Tese de Doutorado em Psicologia Social. Universidade de São Paulo, São Paulo. no que tange às discussões sobre branquidade. Um dos pontos de discussão das autoras é o fato de os brancos sequer serem problematizados enquanto raça; daí se justifica, por exemplo, que os estudos de raça sejam comumente voltados para as questões concernentes aos negros e aos indígenas - os “outros” em relação ao modelo de humanidade figurado pelos brancos. Segundo Schucman (2012)SCHUCMAN, L. V. (2012) Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. Tese de Doutorado em Psicologia Social. Universidade de São Paulo, São Paulo., o branco, enquanto sujeito pertencente aos espaços de afirmação de sua branquitude, vê-se como “o normal”, aquele que representa o modelo da normalidade e que pode dispor na sociedade de todos os privilégios permitidos ao seu “passaporte da cor”, subjugando os não-brancos a condições de subalternidade. Os benefícios e privilégios herdados parecem tornar flagrante, intencionalmente ou não, o afastamento da pessoa branca do processo de racialização de si mesma. A estrutura sobre a qual está erguida a sociedade é hierarquizada e medida através da régua que dita o que e quem é melhor ou pior, a partir dos valores da própria branquidade.
Outros fatores relacionados a branquitude são os privilégios materiais que os brancos têm em relação aos não brancos. Isso significa que ser branco produz cotidianamente situações de vantagens aos não brancos. Diferentes pesquisas demonstram que há para os brancos mais facilidades no acesso à habilitação, à hipoteca, à educação, à oportunidade de emprego e à transferência de riqueza herdada entre gerações. (...) Apesar de tais pesquisas serem direcionadas às desvantagens dos negros em nossa sociedade, um olhar focado nos brancos demonstra as vantagens que eles adquirem no que diz respeito ao acesso à educação, à saúde, ao emprego, à moradia e as diferentes formas de bem-estar social. (SCHUCMAN, 2012SCHUCMAN, L. V. (2012) Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. Tese de Doutorado em Psicologia Social. Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 25).
Para além dos ganhos atrelados ao simples fato de se ser branco, existem e vibram as explosões que, como se fossem resquícios ou estilhaços dessas vantagens, provocam a ausência ou enxugamento dos direitos do povo negro desde as mais básicas necessidades relacionadas à moradia, saúde e educação, bem como a chegada dessa mesma população a lugares de destaque na sociedade. O reconhecimento das prerrogativas dessas vantagens, atribuídas então aos privilégios materiais ou simbólicos que pessoas brancas portam, a reflexão a respeito das facilidades que lhes são ofertadas em comparação e em detrimento da exclusão de não-brancos, são alguns dos caminhos possíveis que orientam a tomada de consciência na contramão dos sistemas de opressão e exclusão, tal qual o racismo e suas práticas tantas vezes encerrados como exagero - ou vitimismo - na fala daqueles que se mantêm na zona confortável à sombra proporcionada pela sua imunidade racial.
Sovik (2009)SOVIK, L. (2009) Aqui ninguém é branco. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009. aponta para o modo como as hierarquias raciais por vezes são embasadas em argumentos ancorados na biologia, ainda que sem qualquer fundamentação científica. Segundo a autora, mesmo que a existência de raças humanas não encontre abrigo ou respaldo no painel das teorias da biologia, elas permanecem muito vivas nas práticas da vida em sociedade, agindo como meio de categorizar e identificar as dinâmicas de ações das pessoas. Esse é também um aspecto importante à medida que nos faz pensar o quanto o poder de circulação de determinadas afirmações, que passam a ser quase crenças ou dogmas, pode refletir na constituição de estruturas ideológicas do pensamento, apoiadas na disseminação pelos meios de comunicação, que figuram como mediadores culturalmente entendidos como fontes confiáveis - e irrefutáveis - quando o assunto é o conteúdo de suas pautas e informação.
Ainda a respeito das teorizações de privilégios naturalmente ofertados às pessoas brancas, que diretamente acarreta perdas de direitos a negros destituídos de acessos e oportunidades, Bento (2002)BENTO, M. A. (2002) Pactos narcísicos do racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese de Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Universidade de São Paulo, São Paulo. alerta sobre a importância de não cairmos na afirmação excessivamente urgente em direcionar o debate para o argumento de classe social, que tem por objetivo encerrar as questões de raça, silenciando a hierarquia entre estes dois temas, raça e classe, como meio de silenciar o impossível: o racismo ensurdecedor a que a população diariamente está exposta.
Evitar focalizar o branco é evitar discutir as diferentes dimensões do privilégio. Mesmo em situação de pobreza o branco tem o privilégio simbólico da brancura, o que não é pouca coisa. Assim, tentar diluir o debate sobre raça analisando apenas a classe social é uma saída de emergência permanentemente utilizada, embora todos os mapas que comparem a situação de trabalhadores negros e brancos, nos últimos vinte anos, explicitem que entre os explorados, entre os pobres, os negros encontram um déficit muito maior em todas as dimensões da vida, na saúde, educação e no trabalho. A pobreza tem cor, qualquer brasileiro minimamente informado foi exposto a essa afirmação, mas não é conveniente considerá-la. Assim o jargão repetitivo é que o problema se limita à classe social. Com certeza esse dado é importante, mas não é só isso. (BENTO, 2002BENTO, M. A. (2002) Pactos narcísicos do racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese de Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 3).
Como afirma Bento (2002)BENTO, M. A. (2002) Pactos narcísicos do racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese de Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Universidade de São Paulo, São Paulo., certamente o debate de classe social tem sua importância e implicações no próprio racismo, mas as organizações políticas e outros setores, bem como movimentos da sociedade, precisam olhar para o fenômeno da identidade racial como fator de exclusão primeira, levando em conta que uma pessoa negra sempre será lembrada pela sua raça, enquanto o branco será referenciado tão somente como indivíduo. Nesse sentido, podemos recorrer novamente a Fanon (2008)FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA., em Pele Negra, Máscaras Brancas, quando usa o exemplo do povo judeu que tem fenotipia branca:
Ainda assim o judeu pode ser ignorado na sua judeitude. Ele não está integralmente naquilo que é. As pessoas avaliam, esperam. Em última instância, são os atos e os comportamentos que decidem. É um branco e, sem levar em consideração alguns traços discutíveis, chega a passar despercebido. (...) Mas tudo está bem feito, só precisamos não ser pretos. Claro, os judeus são maltratados, melhor dizendo, perseguidos, exterminados, metidos no forno, mas essas são apenas pequenas histórias em família. O judeu só não é amado a partir do momento em que é detectado. Mas comigo tudo toma um aspecto novo. Nenhuma chance me é oferecida. Sou sobredeterminado pelo exterior. Não sou escravo da “ideia” que os outros fazem de mim, mas da minha aparição. (FANON, 2008FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA., p. 108).
É preciso que se diga também que, hegemonicamente, o que figura como branquitude perante as vantagens e relações de privilégios diante das pessoas negras e de uma sociedade forjada nas práticas racistas não é impreterivelmente o passe de garantia, aos indivíduos brancos como um todo, de uma vida repleta de regalias. Um exemplo disso seria a situação econômica precária em que parte das pessoas brancas também se encontra no nosso país, somada à dificuldade de oportunidade e acesso que também experimenta, impossibilitando assim que cheguem a determinadas esferas da vida social. No entanto, não é possível não relacionar aquele que aplica opressão aos dramas vividos por aqueles que se encontram subjugados a uma ordem baseada no poder garantido aos que retêm em sua pele a legitimidade para dominar “o outro”.
2. MÍDIA TELEVISIVA E TELEJORNALISMO: (NÃO)REPRESENTAÇÕES DA NEGRITUDE
Para situarmos os aspectos raciais relacionados ao fazer jornalístico no RJ-Móvel, cujas aplicações se dão sobre as vidas da população negra, audiência participante, que integra a composição do quadro enquanto produto/programa midiático, situaremos algumas questões envolvendo os conceitos de representação, linguagem e cultura, segundo Hall (2016)HALL, S. (2016) Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Apicuri.. A partir da chamada virada linguística nos Estudos Culturais, o autor destaca a compreensão da linguagem e suas estruturas como intermédio para explicar o mundo e as coisas a sua volta.
Considerando a prática da representação, peça fundamental no âmbito cultural, Hall (2016)HALL, S. (2016) Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Apicuri. aponta que sentido e linguagem se conectam à cultura por meio da representação.
‘Representação significa utilizar a linguagem para, inteligivelmente, expressar algo sobre o mundo ou representá-lo a outras pessoas’. Pode-se perguntar com toda razão: ‘Mas isso é tudo?’ Bem, sim e não. Representação é uma parte essencial do processo pelo qual os significados são produzidos e compartilhados entre os membros de uma cultura. Representar envolve o uso da linguagem, de signos e imagens que significam ou representam objetos. (HALL, 2016HALL, S. (2016) Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Apicuri., p. 31).
Nesse sentido, o modo com que Hall (2016)HALL, S. (2016) Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Apicuri. pondera sobre a representação no que tange à constituição da cultura, analisando como esse processo se dá na produção de sentido por meio das estruturas que compõem a linguagem, será também material com o qual trabalharemos para buscar entender os processos que estão envolvidos na construção e manutenção da representação das estereotipias dispensadas à população negra, no âmbito do RJ-Móvel.
Se admitimos que a representação está relacionada à fabricação de sentido através dos recursos da linguagem, podemos dizer que o quadro televisivo em questão se utiliza desses moldes para, junto ao corpo, mente e identidades das pessoas negras, pobres e periféricas, estabelecer conexões de sentido que as associem a imagens de subalternidade, bem como as submetam a discursos hegemônicos que privilegiam grupos específicos, pessoas de classes sociais mais favorecidas, inclusive na questão racial - pessoas brancas. Assim, quando o RJ-Móvel entra no ar, diz (sem dizer) ao vivo ou nos tapes gravados quem são aquelas pessoas, como se comportam, como conseguem/podem estabelecer comunicação e interagir com a repórter, como se vestem, que tipo de fala é característico delas. Ou seja, sem falar que faz, a produção do roteiro do telejornal constrói discursos e imagens que enclausuram e encerram aquelas pessoas e suas identidades, pela via da essencialização e estereotipação.
Quanto ao conceito de mídia, adotamos aqui uma perspectiva que abrange tudo aquilo que integra a indústria midiática: seus instrumentos, estratégias, especialistas, técnicos e profissionais, sem deixar de observar a articulação das relações sociais em par com outros modos e experiências epistemológicas e/ou emocionais.
Mídia no mundo contemporâneo também passa a significar todo conjunto material e imaterial que compõe o universo da comunicação social e sua dinâmica como uma necessidade existencial das sociedades modernas, e do qual cada vez mais dependem para gerir processos individuais ou coletivos: na sua vida familiar, afetiva, social, no mundo do trabalho, etc. (ALAKIJA, 2012ALAKIJA, A. (2012) Mídia e identidade negra. In: BORGES, R.; BORGES, R. (Orgs.) Mídia e Racismo. Petrópolis, RJ: DP e Alii: Brasília, DF, ABPN., p. 108).
Pensar sobre mídia admitindo a soma material e imaterial de seu campo possibilita uma compreensão mais abrangente do processo comunicacional, considerando recursos de produção, transmissão e recepção da informação, bem como significados diversos que reflitam seus conteúdos. Nesse sentido, podemos dizer que os meios de comunicação e seus discursos operam enquanto (de)formadores da sociedade, assim como na construção de patrimônio simbólico - epistemologias, linguagens, pensamentos, concepções - e material.
Para Sodré (2006)SODRÉ, M. (2006) Estratégias sensíveis: Afeto, mídia e política. Petrópolis, RJ: Vozes., é necessário refletir acerca das forças hegemônicas que se movimentam na complexa trama da tecnologia onde a mídia gira, tratando de submeter interesses de dominação por parte das elites e grupos detentores dos materiais de produção, de forma que se atente para as implicações na constituição ideológica ou simbólica da vida em sociedade. Ainda assim, o autor reflete que, para além de questões lógicas e científicas, cuja crítica aponta para interesses dos setores dominantes, ao despertar sensibilidades em suas audiências, há que se considerar a subjetividade existente numa espécie de dimensão sensorial e orgânica destas relações estabelecidas entre mídia e sociedade.
Nesse sentido, Sodré (2006)SODRÉ, M. (2006) Estratégias sensíveis: Afeto, mídia e política. Petrópolis, RJ: Vozes. compreende que esta tática intervencionista acaba por abrir fissuras em sua própria estrutura, criando um ambiente propício para que a sociedade atue na constituição “dessa concepção que ele apresenta como um novo bios - uma nova forma de vida que se articula, depende e vive por meio dela”. (ALAKIJA, 2012ALAKIJA, A. (2012) Mídia e identidade negra. In: BORGES, R.; BORGES, R. (Orgs.) Mídia e Racismo. Petrópolis, RJ: DP e Alii: Brasília, DF, ABPN., p. 108). É preciso, portanto, que se considere a autonomia dos indivíduos, presentes e ativos nas relações de sociabilização, inclusive na interação com os aparelhos e discursos midiáticos.
Com base nessa discussão acerca da mídia, particularmente em relação à televisão, cabe a nós pensá-la para além de mero veículo transmissor de conteúdos. Da mesma forma que o nicho midiático se estabelece como forma de vida, a televisão caracteriza-se como lugar onde as coisas acontecem e se constituem, um espaço onde os acontecimentos estruturam e deslocam a sociedade. Podemos dizer que, através da linguagem e da produção de sentido, representações de comportamentos, valores, padrões daquilo que figura como ideal ou marginal se (re)afirmam enquanto ideologia no desenrolar de sua grade programática.
Em nosso trabalho, também nos interessa pontuar que a TV, que flerta com características do que é democrático por conta de sua popularização na sociedade, se destaca enquanto (re)produtora dos mais variados modos de operar o racismo no contexto brasileiro. Pensando os indivíduos brancos e negros (e os padrões correspondentes a suas representações no meio televisivo), mais especificamente seu protagonismo na esfera da arte ou em espaços como o telejornalismo, podemos dizer que o modelo correspondente à imagem positivada se conecta à imagem do corpo branco.
A produção de comunicação no Brasil, especialmente no telejornalismo, não é protagonizada por negros. Nesse contexto, é difícil sustentar um aspecto, de fato, democrático ligado à televisão, considerando que, em termos de representação da pessoa negra, quase não há destaque. As bancadas dos telejornais, lugares de destaque e prestígio, têm em sua imensa maioria programas encabeçados por apresentadores brancos. Estamos tocando nesse ponto porque nos interessa indicar de que modo as representações se dão no campo do simbólico e do material ao falarmos do quadro RJ-Móvel.
De modo mais particular, queremos falar das representações emblemáticas ensejadas diariamente no quadro em relação à constituição de um imaginário que, além costumeiramente enaltecer e positivar a pessoa branca como agente do conhecimento, em detrimento do apagamento e silenciamento das potencialidades de sujeitos negros, o RJ-Móvel reconfigura estereótipos negativos historicamente construídos e consolidados na forma de discriminações racistas. Nesse sentido é que as noções de amabilidade artificiosa, a primitivização da pessoa negra e a espetacularização da negritude e da pobreza - elaboradas por Fanon (2008)FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA. - serão categorias produtivas para pensarmos o papel desse jornalismo televisivo que se pretende colaborativo/comunitário. A televisão brasileira, portanto, antes de querer reivindicar para si esse lugar idílico, multiplicador das excentricidades populares, precisa avançar no sentido de construir um modelo antirracista dentro de seus limites audiovisuais.
3. O RJ-MÓVEL E OS ATRAVESSAMENTOS DA AMABILIDADE ARTIFICIOSA
Pele negra, máscaras brancas, publicado originalmente em 1952, continua sendo uma importante obra que opera reflexões cirúrgicas acerca do fenômeno do racismo e seus efeitos na psique dos sujeitos negros enclausurados na dinâmica do colonialismo. Frantz Fanon parte da experiência vivida como homem negro martinicano para discutir negrofobia e o complexo de inferioridade a que o colonizado é submetido na interação com os valores civilizatórios - e, portanto, de branquidade - importados da metrópole. Para os propósitos deste trabalho, a obra de Fanon será utilizada como um “abre caminhos” e principal instrumento para orientar as análises do quadro RJ-Móvel, exibido pelo telejornal local diário RJTV-1ª Edição. Interessa-nos em particular as reflexões de Fanon acerca do papel da linguagem no processo colonial, considerando que o domínio da língua do colonizador é tido como via de acesso aos signos da branquitude e a um modelo de civilização que lega à negridão o status de atraso e primitivismo.
Faremos uso de categorias analíticas fanonianas, advindas das reflexões do autor acerca da relação entre o negro e a linguagem, para fazermos uma incursão nos modos como a repórter Susana Naspolini - mulher branca de classe média, apresentadora do RJ-Móvel - se comporta no quadro na interação com os moradores das localidades visitadas pela equipe de jornalismo. Problematizaremos as práticas subjacentes ao fazer jornalístico em voga buscando comparar a atuação da repórter (e, por extensão, da própria emissora de TV) com a do colonizador frente ao colonizado. Nesse sentido, nossa análise dará destaque à noção de amabilidade artificiosa na interação da repórter com a população participante do quadro, em diálogo com duas outras categorias: a primitivização da população negra e a carnavalização/espetacularização da negritude e da pobreza.
‘Os negros, eu os conheço; é preciso dirigir-se a eles gentilmente, lhes falar de seu país; saber lhes falar com jeito, é assim que se deve fazer’... Não estamos exagerando: um branco, dirigindo-se a um negro, comporta-se exatamente como um adulto com um menino, usa a mímica, fala sussurrando, cheio de gentilezas e amabilidades artificiosas. Não observamos este comportamento em apenas um branco, mas em centenas; nossas observações não se concentraram em apenas uma categoria mas, valendo-nos de uma atitude essencialmente objetiva, quisemos estudar este fato junto a médicos, agentes de polícia, empreiteiros nos canteiros de obras. (FANON, 2008FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA., p. 44)
Para Fanon, os indivíduos colonizados são reduzidos, pelo olhar do branco colonizador, em suas capacidades cognitivas e de comunicação como objetos inanimados, incapazes de refletir as sentenças e de fazer análises críticas, culminando numa outra rota de opressão simbólica que extrapola a material e física. Pela via da linguagem, o negro colonizado é bestializado, infantilizado, debilizado, primitivizado, humilhado por não dominar os códigos linguísticos e de conduta advindos da “salvadora” civilização. Para o presente trabalho, lançaremos olhar sobre esses signos da branquidade - tecidos pela via da linguagem no RJ-Móvel - que aprisionam a população negra e pobre participante do quadro nesse lugar de um “outro” inábil, pueril e risível. Também nos interessa discutir o lugar de representação ocupado pela repórter nesses espaços periféricos, ao apresentar-se como defensora e porta-voz dos problemas da população, dialogando, assim, com um modelo de humanidade centrado na figura da pessoa branca.
Para analisarmos a dimensão da amabilidade artificiosa - em diálogo com as outras duas categorias fanonianas - no quadro RJ-Móvel, buscaremos observar: a) a forma como a repórter se dirige aos moradores, reclamantes do quadro, e a seus espaços; b) a relação paternalista (e, portanto, colonial e racista) construída no diálogo da repórter direcionado à população; c) a linguagem utilizada pela repórter visando à criação de uma pretensa “intimidade” com os moradores - por meio de emprego de entonação e gesticulação próprias, além do constante toque nos corpos.
Foram selecionados e transcritos dois excertos de programas realizados em 2017, a partir do acervo dos vídeos disponibilizados na plataforma digital Globoplay. Para amparar nossas análises dos diálogos entre a repórter e os participantes do RJ-Móvel, buscamos imagens oriundas dos vídeos e procedemos à técnica de print screen para a captura de fotos. As transcrições foram adaptadas das convenções de Jefferson, localizadas em Garcez, Bulla e Loder (2014)GARCEZ, P. M., BULLA, G. S. e LODER, L. L. (2014) Práticas de pesquisa microetnográfica: geração, segmentação e transcrição de dados audiovisuais como procedimentos analíticos plenos. D.E.L.T.A., 30.2..
O excerto transcrito no Quadro 1 remete ao programa exibido em 24 de maio de 2017, ocasião na qual moradores do bairro de Guaratiba reivindicam o calçamento de uma rua que recebera o serviço de pavimentação apenas em uma parte. A repórter anda de mãos dadas a uma moradora no meio da lama e aborda um homem que passa pelo local montado em uma bicicleta equipada com um aparelho de som. A repórter faz o homem parar e ressalta o volume de lama na rua e a dificuldade para se atravessar aquela área. A repórter pede para montar na bicicleta e tenta atravessar o trecho enlameado. É, nesse momento, conduzida por três moradores, que seguram a bicicleta enquanto tenta pedalar, porém, em seguida, desiste da empreitada por afirmar ser difícil fazer aquela passagem.
Ao descer da bicicleta, a repórter olha para o homem, abraça-o e afirma ser ele um herói, o “seu” herói. Notamos que, de maneiras diferentes, a repórter se aproxima intimamente daquela situação e pessoas: andando na lama de mãos dadas com as moradoras, subindo na bicicleta do vendedor, e, por último, tendo passado pela dificuldade de não conseguir fazer o trajeto, elegendo aquele homem um trabalhador guerreiro, um herói que enfrenta os obstáculos físicos (a lama) e simbólicos (morar em meio àquele lamaçal e viver honestamente de seus trabalhos).
A repórter figura, portanto, como aquela pessoa que, vindo da região central da cidade e exercendo sua função no telejornal local de grande popularidade, dirige-se à periferia para reconhecer as dificuldades enfrentadas por aquela população negra e pobre, experienciando suas vivências como se ela própria fosse parte daquele cenário.
É fato que a “situação colonial” (FANON, 2008FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA., p. 44) orientou e continua orientando as relações entre pessoas negras e brancas. Os complexos gerados negativamente sobre a constituição das identidades da população negra, ao passo que hipervaloriza a imagem do branco, se construíram e consolidaram em meio aos processos de colonização. A dinâmica das sociabilizações opera, a partir dessa polarização negativa e positiva das identidades, lugares de poder e de subalternização que, diariamente, (re)configuram a manutenção de vantagens para um grupo em detrimento da continuidade de subordinações para outro. Compreendendo criticamente a caricata ação empreendida aos corpos e mentes da população negra pela figura do branco, europeu, colonizador, e, por conseguinte, identificando esse empreendimento de caráter colonial e racista, é notório detectar a ação continuada e a perpetuação desta mazela nos outros nichos que compõem a experiência social dos povos.
A respeito disso, estamos falando do espaço midiático, especificamente, o quadro RJ-Móvel que, por sua vez, faz girar a roda da estereotipação racista aplicando comportamentos semelhantes à população que atende na gravação de seus quadros: as situações de inferiorização, disfarçadas de gentileza, comumente são relatadas no curso da história, no ambiente de dominação das metrópoles no que tange às chamadas colônias. As falas do Quadro 1 mostram, em par e de forma complementar com as imagens, a dimensão desse trato análogo a que nos referimos da colonização quanto às políticas de dominação que o RJ-Móvel executa na interação com os moradores das localidades que diz atender.
Dado os modos como a repórter lida com as circunstâncias de descaso governamental a que os habitantes dos bairros estão submetidos, e ainda, no caso da amabilidade artificiosa, na forma com que interage com essas pessoas, demonstra-se o quão informais, mesmo que diante de um telejornal menos “cerimonioso” que os exibidos em horário nobre, essas relações de contato parecem ter aval para acontecer. Nesse sentido, Sodré alerta:
O imaginário racista veiculado pelas elites tradicionais pode ser hoje reproduzido logotecnicamente, de modo mais sutil e eficaz, pelo discurso midiático-popularesco, sem distância crítica do tecido da civilização tecnoeconômica, onde se acha incrustrada a discriminação em todos os seus níveis. (SODRÉ, 2015SODRÉ, M. (2015) A ciência do comum: notas para o método comunicacional. Petrópolis: Editora Vozes. , p. 278).
Podemos pensar o quanto esse imaginário racista está inserido nas práticas cotidianas de apreensão e compreensão do discurso midiático, produzindo relações de poder e saber. Perpetuado através de uma linguagem adaptada às particularidades de sua audiência, o RJ-Móvel desenvolve, em seus discursos e ações aplicados nas gravações do quadro, a reelaboração e retransmissão de um imaginário coletivo atuante nas representações sociais (SODRÉ, 2015SODRÉ, M. (2015) A ciência do comum: notas para o método comunicacional. Petrópolis: Editora Vozes. ).
O jeito com que a repórter oficializa as matérias está emblematicamente estabelecido na forma superficial e familiar com que trata as pessoas daquelas localidades. Embora a equipe esteja sempre fazendo matérias para o quadro, trata-se de uma vivência a qual não experimentam enquanto moradores do local, e, portanto, desconhecem de forma aprofundada por não terem de lidar com essas situações - como a rua lamacenta - depois que a gravação termina.
Isso também demonstra uma informalidade descabida, posto que não há qualquer relação de convivência entre as partes que justifique a overdose do que entendem como gentilezas e solidariedades, uma vez que o fazer jornalístico atua, ainda que em modalidades menos tradicionais, de modo menos visceral. Nesse sentido, podemos ainda ponderar essa relação de um suposto cuidado, compaixão, um exagero sensacionalista dirigido a populações suburbanas e/ou periféricas, por parte da mídia do RJ-Móvel, que conecta o que Fanon (2008)FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA. aponta sobre amabilidade artificiosa ao aspecto racial na interação entre brancos para com população negra.
Há em nossa análise um cuidado e uma necessidade urgente em abordar a dimensão racista, trazendo imagens que o quadro alimenta no que se refere aos aspectos raciais empreendidos no roteiro, bem como na atuação da repórter. Como dissemos, tentamos, pois os trechos das falas, bem como as fotografias são uma amostra, bastante incômoda, daquilo que de fato consegue operar em nossas reflexões ao assistir as cenas por completo.
Fanon (2008)FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA. aponta situações que, de forma idêntica, se repetem na execução do RJ-Móvel. O autor nos diz sobre a maneira com que um branco, ao dirigir-se a um negro, comporta-se. É como se, diante de uma potencial linguagem, para esse contato, fossem necessários modos em que se dão aspectos quase primitivos, como uso de mímica. Não podendo estabelecer um diálogo horizontal entre as partes, há que usar de formas ou signos de outras ordens, linguagens consideradas uma maneira gentil de lidar com quem não sabe ou não entende a língua.
Este é, de fato, um distintivo imperialista e colonial que dialoga com a manutenção dos valores da branquidade de uma sociedade excludente que, estabelecendo como parâmetro legítimo aquilo que classifica como ideal, admite-se enquanto grupo civilizado face a outros grupos que destoam do modelo assimilado por suas lógicas insensatas de dominação política, econômica, social e racial.
Análogo a todo aspecto prepotente e colonialista, que incorpora máscaras da solidariedade e gentileza através do populismo assistencialista, o RJ-Móvel tanto reproduz como (re)cria subalternizações junto a cenários onde a questão racial está marcada. São, portanto, essas interações entre equipe e audiência (telespectadores e participantes) extensões reconfiguradas da chamada amabilidade artificiosa fanoniana. Como é possível ouvir e ler (na transcrição do Quadro 1), o trato da repórter em relação a este homem negro (o “seu” herói) mostra a falta de medida, limite ou mesmo qualquer traço de constrangimento em fabricar um ambiente de laços de intimidade, segurança para salvaguardar a continuidade da audiência.
Segundo Fanon (2008)FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA., isso implica a necessidade que a pessoa branca, neste caso a repórter branca, pressupõe ter de ativar, usando mecanismos para além dos convencionais da língua objetivamente falada, modos que usaria com outra pessoa branca, por exemplo, para obter sucesso na conversa, ou mesmo a resposta condizente com a situação vinda do raciocínio da pessoa, ali, menos favorecida. Dessa maneira, podemos avaliar que esses tratos são conciliadores dos traços de uma articulação engenhosa de aliciamento político que visa, por parte do veículo midiático, envolver as classes desfavorecidas econômica, social e racialmente de forma que essas pessoas reconheçam no telejornal, no programa, na equipe, mais ainda, na emissora, representada pela figura da “repórter amiga”, um lugar de apoio onde há quem lute por elas e por seus direitos, já que as autoridades governamentais não o fazem.
Por esse ângulo, podemos refletir mais uma vez nessa prática enquanto missão civilizatória, pois a repórter, o quadro, o programa, a emissora, simbolizam uma espécie de corporação que proporciona esses bens a essas pessoas e suas localidades tão carentes de necessidades básicas. Quando Fanon (2008)FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA. fala a respeito do modo de tratamento gentilartificial adotado por pessoas brancas para dirigirem-se às pessoas negras, ele está falando de uma relação psicológica e, por isso também, uma relação de poder que cumpre o mesmo papel que a mídia e seu sistema de difusão aplicam no campo das sociabilidades. Como podemos perceber, atuam no controle das mentes, do imaginário que se tem sobre as identidades e, por sua vez, reverberam na materialização das representações da vida social.
O ser negro é, ainda, o sujeito que nasceu escravizado, subalternizado, que precisa de gentilezas pueris em seu trato, porque ao negro só é dada a possibilidade da violência, ainda que disfarçada pela máscara das amabilidades artificiosas. A esse tratamento, aliam-se a primitivização do negro e a espetacularização da negritude e da pobreza, como veremos no excerto a seguir.
Em 24 de novembro de2017, a equipe do RJ-Móvel vai ao bairro Ampliação, em Itaboraí, para comemorar a finalização do asfaltamento nas ruas. Como em outros programas, a visita em questão traz imagens e falas que fazem conexão com um cenário acriançado, tanto pelos objetos que compõem o ambiente, quanto pelos modos de interação empreendidos pela repórter e assimilados pelos moradores. Nesse episódio, a repórter é recebida pelos moradores com um bolo confeitado que traz como decoração o logotipo do RJ-Móvel, em homenagem ao quadro pela realização e finalização do asfaltamento nas ruas. A gravação mostra ainda que, em meio ao cenário de festa, com balões inclusive, a repórter, pedindo permissão aos moradores por não resistir àquela vontade, senta-se na calçada e, depois, no meio da rua (Figura 2), em cima de um balão e o estoura. Ela age com um comportamento de criança, como possibilidade de comunicação com aquelas pessoas, já que só através de uma conversação adaptada seria possível haver diálogo.
Há, ainda, em outra cena desse mesmo quadro, um momento em que a repórter, relembrando uma gravação anterior no mesmo bairro, chama a imagem dela pulando amarelinha, uma brincadeira de criança, em meio aos buracos que eram grandes e inúmeros na rua. A cena, então, se repete na gravação de comemoração, porém agora o jogo da amarelinha está desenhado no asfalto. A repórter sai pulando e chama a população a fazer o mesmo, o que, de fato, acaba acontecendo.
Para Fanon (2008)FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA., o processo colonial e os mecanismos de dominação eurocentrada, para além de submeter materialmente os povos colonizados, sujeitavam essas mesmas populações pela via da linguagem, “uma vez que falar é existir absolutamente para o outro.” (FANON, 2008FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA., p. 33). Ao observarmos o quadro RJ-Móvel, é possível identificar o motivo pelo qual Fanon (2008)FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA. traz a perspectiva da linguagem enquanto fenômeno potente, cujo poderio hegemônico de quem o domina é capaz de atuar de maneira fundamental tanto como instrumento de subjugação eficaz junto ao grupo colonizado, como também na qualidade de ferramenta eficiente em suplantar psicologicamente os acontecimentos emocionais e gerar traumas e complexos aos povos que estão submetidos ao regime colonial.
As temáticas da primitivização da pessoa negra e da construção de um cenário espetacularizado/carnavalizado podem ser concebidas a partir de um olhar reflexivo, atentando para aspectos raciais demarcados naqueles espaços - mídia e periferias -, tendo em vista a observação dos papéis exercidos pela repórter que comanda o quadro e também o lugar que a audiência (moradores e telespectadores) acaba sendo compelida a se sujeitar de forma caricata e, por isso mesmo, não menos opressora.
É incontável o número de vezes em que a repórter do quadro se dirige à população dos locais em que visita de forma com que pareça que existe uma necessidade de cifrar outros códigos da língua portuguesa, para que haja êxito na interação entre as partes. A repórter age como se previamente conhecesse uma fórmula, um jeito específico de “lidar” com aquelas pessoas.
Seguindo uma lógica estigmatizante que encarcera a população negra, a repórter mantém um comportamento que se assemelha às marcas, a ferro e fogo, que os senhores de mulheres e homens negras/os escravizadas/os faziam nos corpos destas pessoas para que ficassem ali carimbados como objeto sobre o qual existe uma definição. É isso que o trato dispensado a esses moradores configura: assinalação de território, objetificação de corpos, levando em conta que essa forma de submeter pela adaptação da linguagem, pela infantilização e pelo risível das ações, demarca lugares de poder, manutenção de representações do que deve ser sepultado em sua origem cultural, já que a linguagem, os modos, os hábitos do civilizador, da cultura metropolitana, devem ser assimilados pelos dominados. (FANON, 2008FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA.).
Pensar a assimilação dos valores culturais da metrópole pelo colonizado, como forma de salvar a si mesmo de seu lugar tido como não civilizado - aqui fazendo uma analogia com o acolhimento que a população dispensa à equipe e, principalmente, à repórter do RJ-Móvel −, só comprova o quanto a atuação de práticas racistas, por mais diversas e particulares que possam ser, acabam por padronizar certas ocorrências. Segundo Fanon:
No momento queremos mostrar porque o negro antilhano, qualquer que seja ele, deve sempre tomar posição diante da linguagem. Mais ainda, ampliaremos o âmbito da nossa descrição e, para além do antilhano, levaremos em consideração qualquer homem colonizado. (FANON, 2008FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA., p. 34).
Como é possível observar, ao assistirmos as gravações do quadro RJ-Móvel, notamos que existe uma necessidade da população negra e periférica em assumir a função que lhe é designada pelo veículo midiático em questão, mas também um desejo quase insaciável da repórter em mostrar que, de alguma forma, está apta e possui qualidades para “lidar” com aquelas pessoas, aqueles “outros”, seres primitivos. Em relação a essa aspiração de integração da pessoa negra, dos moradores no caso, em fazer parte desse universo metropolitano, de acordo com Fanon (2008)FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA., suas origens são de ordem psicológica, geradas pela experiência da colonização e dos aspectos de negativização atrelados às identidades tidas como do “outro”, à desumanização que sofrem, em detrimento da valoração do modelo branco e eurocêntrico daquele que coloniza.
Há, de outra forma, uma justificativa de ordem social para este apego do colonizado, que não deixa também de se conectar com a matriz psicológica da questão e que opera no que podemos conferir acerca da possibilidade de ascender socialmente, levando-se em consideração os lugares de prestígio que essas pessoas brancas, representações do colonizador, ocupam na sociedade. Ocorre um desejo, portanto, de alcançar determinados espaços, mas porque, antes disso, existe a fabulação de uma ideia de supremacia das pessoas brancas e positivação de suas representações no meio público, em contrapartida ao desfavorecimento de tudo que é relativo às pessoas negras. Para Maria Aparecida Bento:
Considerando (ou quiçá inventando) seu grupo como padrão de referência de toda uma espécie, a elite fez uma apropriação simbólica crucial que vem fortalecendo a autoestima e o autoconceito do grupo branco em detrimento dos demais, e essa apropriação acaba legitimando sua supremacia econômica, política e social. (BENTO, 2002BENTO, M. A. (2002) Pactos narcísicos do racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese de Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 25).
A autora reflete os privilégios simbólicos e materiais que dialogam com a prática da padronização do modelo de humanidade como sendo correspondente ao grupo branco e seus valores identitários, bem como o orgulho de suas pertenças. Isto seria uma espécie de aparelho que assegura a manutenção de seus espaços de poder e privilégio, gerando uma crença e concepção positiva concernentes às vantagens que sempre tiveram, e se mantém, no campo econômico, político e social.
Se formos tratar aqui da necessidade da pessoa branca, aqui representada pelo veículo midiático e pela figura da repórter que comanda o quadro RJ-Móvel, podemos dizer que existe também uma espécie de desequilíbrio psicológico que, diferentemente do colonizado, não sofre qualquer perda ou desprivilégio. De outra forma, existe como que uma incontrolável ambição depravada em desmoralizar e fazer do “outro” objeto da volúpia colonialista, submetendo a cultura que destoa da que acredita ser a civilizada.
O branco que incorpora as características, os hábitos e os valores do colonizador eurocentrado procura saciar seu desejo de dominação, agindo como um senhor contemporâneo de escravizados cuja marca que fere a ferro e confirma que aquele homem-objeto lhe pertence é agora reatualizada, e usa como material bélico a linguagem como via de domínio e submissão. Essa é uma atuação notadamente perceptível durante a exibição do quadro RJ-Móvel, que repetidas vezes se processa, tão logo se começa a assistir aos vídeos com um olhar mais apurado para as questões raciais. Notemos, por exemplo, que a repórter tanto faz uso de uma linguagem cifrada, seja mudando o tom de voz ao dirigir-se aos moradores, de forma que pareça estar falando com uma criança, ou mesmo quando age, diante das situações do alheamento governamental, apelando para brincadeiras infantis.
Quando a repórter convoca os moradores a repetirem a brincadeira da amarelinha, por exemplo, existe uma certeza não só de que aquelas pessoas atenderão ao comando - por mais absurdo que lhes pareça -, como também uma falsa crença a respeito de saber, exatamente, como interagir com aquelas pessoas a partir de uma perspectiva lúdica, no sentido mais inconveniente que a palavra possa significar. Tudo isso recai sobre a ótica colonial que se empenha em destruir os valores culturais e o passado histórico dos outros povos, pois, de acordo com as práticas empreendidas nas políticas de dominação, somente o homem branco é portador de comportamentos civilizados.
A perspectiva da linguagem adaptada funciona como uma gentileza ofertada, uma chance dada ao colonizado, ao negro, ao morador das periferias, atendido pelo RJ-Móvel, de assumir uma parte no processo de comunicação, ainda que de forma limitada, respondendo como uma criança em fase de aprendizagem, onde se usam recursos gestuais mímicos, ruídos, jogos. O negro vai então se comunicar através da palavra, mas numa linguagem conferida à sua capacidade de estrangeiro, de “outro”. Nesse sentido, podemos nos ancorar no que Fanon pontua:
Dizem que o negro gosta de palabre, ou seja, de parlamentar; contudo quando pronuncio palabre, o termo faz pensar em um grupo de crianças divertindo-se, lançando para o mundo apelos irresponsáveis, quase rugidos; crianças em pleno jogo, na medida em que o jogo pode ser concebido como uma iniciação à vida. Assim, a ideia de que o negro gosta de resolver seus problemas pela palabre é rapidamente associada a esta outra proposição: o negro não passa de uma criança. (FANON, 2008FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA., p. 41).
Essa adaptação da modalidade infantil apoia-se numa certa lógica que, ao instituir os lugares que devem ser ocupados no processo da interação, diz “Você aí, fique no seu lugar!” (FANON, 2008FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA., p. 46). “Seu lugar” pode ser tranquilamente assimilado para a estereotipação sobre a qual pesa a opressão que compele a pessoa negra a permanecer inferiorizada e constrangida pelo que o branco colonizador - a repórter do RJ-Móvel - não se embaraça em fazer.
O caráter jocoso, recreativo e espetacularizado que a repórter imprime nas gravações torna essa investida em primitivizar aquelas pessoas apenas em uma descontração, uma maneira de chegar à solução do problema, ainda que pela via do entretenimento, impossibilitando a movimentação da pessoa negra. Diante dessa marcação de permanência que estabelece quem deve “ficar no seu lugar” na dinâmica do diálogo, pressupõe-se, novamente, que o colonizado, o negro, o morador negro periférico, não possui qualquer repertório que sirva para que esteja apto a inserir-se na estrutura da interlocução.
Nesse sentido, podemos imaginar que, diante desse campo das disputas de poder, pela dominação da opinião através da propaganda assistencialista midiática, que flerta e reproduz uma perspectiva colonial de controle das massas, o RJ-Móvel aplica comandos que se assemelham a práticas de caráter doutrinador. Esses comandos, por sua vez, funcionam como instrumentos ideologizantes, valendo-se de concepções típicas e concernentes à classe dominante, que, expandidas como crenças universais, silenciam as subjetividades dos indivíduos, de maneira que, em havendo qualquer movimento de reivindicação das autonomias desses sujeitos, estarão submetidos, por exemplo, aos aparelhos de correção do estado: policiais, militares, jurídicos, burocráticos (COUTINHO, 2014COUTINHO, E. G. (2014) Hegemonia e linguagem: clichês midiáticos e filosofia das massas. In: A Comunicação Do Oprimido E Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Mórula.).
Sobre o RJ-Móvel, na análise aqui empreendida, pode-se dizer que se trata de um projeto midiático articulador, hábil na tarefa de persuadir, que sustenta suas práticas escusas na crença de uma população vista como alienada e de fácil possibilidade de seduzir. Há nesse entremeio, portanto, a perspectiva das relações raciais operando de forma que a crença e a garantia de administração sobre as vidas de uma massa alheia de sua própria existência e particularidades se tornem ainda mais conquistáveis, chefiadas, moderadas e modeláveis, caso, ainda por cima, seja uma população negra. Tão logo o imaginário coletivo, bem como as representações sociais sejam domadas e delimitadas, as elites terão cumprido seu papel na manutenção de seus privilégios e consolidado de forma eficaz o “arsenal de complexos germinados no seio da situação colonial”. (FANON, 2008FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA., p. 44).
Poderíamos, aqui, ser interpeladas pela assertiva de que o RJ-Móvel, bem como a figura da repórter, a qual representa o “amadrinhamento” da TV Globo para com as populações desfavorecidas econômica e socialmente das periferias, consideram o serviço prestado ao povo dessas localidades uma preocupação e um cuidado para com as situações de descaso dos governos. Além disso, há quem acredite na disposição solidária e não intencional em reproduzir práticas racistas, através de aparatos ancorados numa produção de linguagem cifrada e adaptada, por parte do veículo midiático, em relação à maneira com que lida com as populações negras, audiência de seus programas. Mas, para isso, Fanon (2008)FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA., nos chega em boa hora, pontuando:
Falar petit-nègre a um preto é afligi-lo, pois ele fica estigmatizado como ‘aquele que fala petit-nègre’. Entretanto, pode-se argumentar que não há intenção ou desejo de afligi-lo. Concordamos, mas é justamente essa ausência, essa desenvoltura, esta descontração, esta facilidade em enquadrá-lo, em aprisioná-lo, em primitivizá-lo, que é humilhante. (FANON, 2008FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA., p. 45).
Portanto, agir sobre o morador, expandindo isso até o telespectador, audiências fiéis do quadro, de modo a afligi-los é também, para além do idioma gramatical usado para fins discriminatórios, se utilizar de uma linguagem ajustada, convertida pelo RJ-Móvel, nas práticas cotidianas aplicadas pela repórter responsável pelo comando do quadro, ao submeter os moradores à execução de cenas jocosas, risíveis e constrangedoras que os estereotipam: o petit-nègre da vez. Nas palavras de Fanon:
É que o preto deve sempre ser apresentado de certa maneira, e, desde o negro do filme Sans pitiè - ‘eu bom operário, nunca mentir, nunca roubar’, até a criada Duel au soleil, encontramos o mesmo estereótipo. (...) Sim, do negro exige-se que ele seja um bom preto; isso posto, o resto vem naturalmente. Levá-lo a falar petit-nègre é aprisioná-lo a uma imagem, embebê-lo, vítima eterna de uma essência, de um aparecer pelo qual ele não é responsável. (FANON, 2008FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA., p. 47).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho deixa a latente reflexão do quanto precisamos cada vez mais avançar nos debates e estudos de raça e racismo, além da desafiadora necessidade de se problematizar a supervalorização da identidade branca, seus privilégios, bem como as questões relacionadas à mídia, aos discursos produzidos sobre a população negra, à presença decisiva da linguagem na constituição das representações e seus interesses.
A branquidade, enquanto modelo de humanidade, diz quem são os “outros”, porém permanece tranquilamente livre de qualquer marca, de qualquer sinal de que ela exista. O racismo denunciado pela população negra figura como qualquer coisa de alucinação, resquício psicológico negativo de uma ancestralidade hereditária e geneticamente incapaz de progredir socialmente. O interesse desse trabalho relaciona-se com a esperança de que a população negra, ainda subalternizada, possa se fortalecer a partir de um pensamento mais atento diante do poder daqueles que detêm os meios de produção da comunicação e (ab)usam das históricas fragilidades étnico-raciais para obter lucro e privilégios na perpetuação de uma imagem ridicularizada, caricata, infantilizada, bestializada dos negros.
Ao usarmos Fanon (2008)FANON, F. (2008) Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA. para orientar nossa análise sobre o quadro RJ-Móvel e as ações empreendidas nele, direcionadas à população negra e periférica, estamos querendo não só dizer o quanto essas práticas racistas e paternalistas, sob o espectro do colonialismo, ainda se perpetuam, como também mostrar que as representações de civilidade, humanidade e valoração identitária permanecem conectadas à pessoa branca. Quando a mídia objetifica a população negra, tratando-a de modo infantil, cômico e exageradamente íntimo, encerrando-a na clausura coisificada da imagem atribuída aos ditos incivilizados - os quais, não sabendo falar, dançam, sorriem largamente e fazem festa para comemorar a rua asfaltada -, está criando uma imagem visando a manter o discurso de controle sobre os “outros” e o prestígio da branquidade.
As categorias fanonianas que empregamos para direcionar nossa análise do quadro televisivo denunciam o atravessamento de movimentos racistas, diluídos no sensacionalismo caridoso e “profissional” de um telejornalismo que se diz comunitário/colaborativo por entender que tem o poder de “dar voz ao povo”, quando na verdade aprisiona esse grupo. O paternalismo-racista que se reveste de gentileza e amizade forçada, a ridicularização e a infantilização da pessoa negra, e, ainda, a espetacularização dos espaços suburbanos e periféricos são os pontos que buscamos dimensionar com mais ênfase a partir do que mobiliza Franz Fanon, em Pele Negra, Máscaras Brancas, diante da experiência da psique do colonizado que atravessa a experiência da aventura colonizadora do homem branco.
Diante de nossas análises, percebemos que, ao fazer uso de sua branquidade, a pessoa branca vê-se como alguém que cumpre uma missão civilizatória. Assim, a repórter do quadro perpetua estigmas racistas, incorporando a sua personalidade e características uma amabilidade artificiosa, acompanhada daquele famoso “tapinha nas costas”, sem falar nos abraços e na codificação da linguagem. Assim, com este trabalho, reiteramos nosso comprometimento com a problematização da branquidade e com o repensar sobre a mídia, seus processos de linguagem e dominação estética, social e psíquica alicerçados no modelo de humanidade branco.
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Ruth Frankenberg (1999)FRANKENBERG, R. (1999) Introduction: Local whiteness, localizing whiteness. In: FRANKENBERG, R. (Org.) Displacing whiteness: essays in social and cultural criticism. Durham, NC: Duke University Press. emprega o termo “branquitude”, em vez de “branquidade”. Para os propósitos deste artigo, utilizaremos “branquidade” e “branquitude” de forma intercambiável, sem nos debruçarmos detalhadamente sobre eventuais disputas teóricas sobre o conceito.
REFERÊNCIAS
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- BENTO, M. A. (2002) Pactos narcísicos do racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese de Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Universidade de São Paulo, São Paulo.
- COUTINHO, E. G. (2014) Hegemonia e linguagem: clichês midiáticos e filosofia das massas. In: A Comunicação Do Oprimido E Outros Ensaios Rio de Janeiro: Mórula.
- DU BOIS, W.E.B. ([1935]2007) Black reconstruction in America 1860-1880 New York: Oxford University Press.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Maio 2021 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2021
Histórico
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Recebido
30 Out 2020 -
Aceito
05 Mar 2021 -
Publicado
22 Mar 2021