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É ARGUMENTANDO QUE SE APRENDE A ARGUMENTAR: SUBSíDIOS PARA A PESQUISA E O ENSINO DA COMPETêNCIA ARGUMENTATIVA EM (INTER)AçãO

ARGUING IS LEARNED BY ARGUING: SUBSIDIES FOR RESEARCH AND TEACHING OF ARGUMENTATIVE COMPETENCE IN (INTER)ACTION

RESUMO

Neste trabalho, definimos a competência argumentativa como os procedimentos que os interlocutores efetivamente adotam para definir conjunta e reflexivamente a situação em que estão inseridos como argumentativa. Em nossa reflexão sobre essa noção de competência argumentativa, convergimos os estudos sobre a noção de competência interacional e sobre uma noção dialogal de argumentação. Com base nesse arcabouço teórico, sustentamos que o desenvolvimento por estudantes de uma competência argumentativa ocorre por meio de sua análise de interações argumentativas efetivas e de sua participação em interações em que se sustentam e se defendem pontos de vista em oposição. Na parte empírica do trabalho, analisamos um debate promovido pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo em que seis estudantes debatem o tema do bullying nas escolas. Na análise, foi possível verificar que o que faz com que os recursos verbais e não-verbais que as/os estudantes utilizaram ganhem um valor argumentativo não é algum atributo semântico ou retórico inerente a esses recursos, mas antes seu uso pelos interlocutores, que os avaliaram como adequados para argumentar e, assim, constituir a situação como argumentativa.

Palavras-chave:
interação; argumentação; competência argumentativa

ABSTRACT

In this paper, we define argumentative competence as the set of procedures that interlocutors effectively adopt to jointly and reflexively define the situation in which they are inserted as argumentative. In the reflection on this notion of argumentative competence, we articulate studies on the notion of interactional competence and on a dialogic notion of argumentation. Based on this theoretical framework, we argue that the development of an argumentative competence by students occurs through the analysis of effective argumentative interactions and the participation of students in interactions in which opposing points of view are supported and defended. In the empirical part of the work, we analyze a debate promoted by the Secretary of Education of the State of São Paulo in which six students debate the topic of bullying in schools. In the analysis, we observed that the argumentative value of verbal and non-verbal resources is not some semantic or rhetorical attribute inherent to these resources. This value arises from the way the students used them, evaluating them as adequate to argue and, thus, constituting the situation as argumentative.

Keywords:
interaction; argumentation; argumentative competence

INTRODUÇÃO

Neste trabalho, entende-se que o ensino da argumentação não pode prescindir de uma reflexão sobre a noção de competência argumentativa (AZEVEDO, 2019AZEVEDO, I. C. M. (2019). Confluencias y distinciones entre las nociones de capacidad y competencia argumentativas. In: Vitale, M. A. et al. (orgs.), Estudios sobre discurso y argumentación. Coimbra: Grácio Editor, p. 167-193.; AZEVEDO; SANTOS, 2018AZEVEDO, I. C. M.; SANTOS, E. S. (2018). Desenvolver a competência argumentativa na escola: um desafio para o professor de língua portuguesa. In: Azevedo, I. C. M.; Piris, E. (orgs.), Discurso e Argumentação: fotografias interdisciplinares. Coimbra: Grácio Editor, v. II, p. 63-80.). Apesar de ela ser complexa, tendo em vista resultar da confluência dos debates que têm surgido em torno tanto do conceito de competência, quanto do de argumentação (MORATO, 2008MORATO, E. (2008). Da noção de competência no campo da Linguística. In: Signorini, I. (org.), Situar a língua[gem]. São Paulo: Parábola, p. 39-66.; PLANTIN, 2008; AZEVEDO; SANTOS, 2018AZEVEDO, I. C. M.; SANTOS, E. S. (2018). Desenvolver a competência argumentativa na escola: um desafio para o professor de língua portuguesa. In: Azevedo, I. C. M.; Piris, E. (orgs.), Discurso e Argumentação: fotografias interdisciplinares. Coimbra: Grácio Editor, v. II, p. 63-80.), essa noção tem estado presente, há décadas, nas reflexões sobre o ensino de língua. Uma evidência de sua relevância para o ensino no Brasil é o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), cuja Matriz de Referência se organiza em competências (BRASIL, 2009BRASIL. (2009). Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Matriz de Referência para o ENEM 2009. Brasília, Distrito Federal.; AZEVEDO; SANTOS, 2018AZEVEDO, I. C. M.; SANTOS, E. S. (2018). Desenvolver a competência argumentativa na escola: um desafio para o professor de língua portuguesa. In: Azevedo, I. C. M.; Piris, E. (orgs.), Discurso e Argumentação: fotografias interdisciplinares. Coimbra: Grácio Editor, v. II, p. 63-80.) e traz a construção da argumentação como um dos cinco eixos cognitivos, eixos que são, conforme o documento, “comuns a todas as áreas de conhecimento” e não apenas à matriz de “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias” (BRASIL, 2009BRASIL. (2009). Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Matriz de Referência para o ENEM 2009. Brasília, Distrito Federal.).

Nossas proposições sobre competência argumentativa, como será discutido adiante, afastam-se de uma concepção dessa competência enquanto um conjunto pré-definido e estabilizado de recursos e habilidades (linguísticos, pragmáticos, retóricos, etc.) que, uma vez aprendidos (memorizados) pela/pelo estudante, seriam por ela/ele transferíveis de um contexto a outro, independentemente das especificidades de cada interação e do processo de negociação que aí ocorre. A nosso ver, o ensino da argumentação ganha em conceber a competência como o conjunto de procedimentos efetivamente realizados pelos interlocutores em uma situação argumentativa, situação que, em Plantin (2008aPLANTIN, C. (2008a). A argumentação: história, teorias, perspectivas. São Paulo: Parábola., p. 64), “é definida pelo desenvolvimento e pelo confronto de pontos de vista em contradição, em resposta a uma mesma pergunta”.

A concepção de competência argumentativa que adotamos para o ensino da argumentação resulta da articulação de noções oriundas de abordagens teóricas distintas, ainda que identificadas pela vertente interacionista e dialógica dos estudos da linguagem. Essas noções são a de competência interacional e a de argumentação em uma perspectiva dialogal. Por isso, na parte teórica deste trabalho, faremos uma breve exposição da noção de competência interacional, tal como desenvolvida no campo da Linguística Aplicada e da Linguística da Formação Profissional (PEKAREK DOHELER, 2006; MONDADA, 2006MONDADA, L. (2006). La compétence comme dimension située et contingente, localement évaluée par les participants. Bulletin suisse de linguistique appliquée. n. 84, p. 83-119., 2019MONDADA, L. (2019). Contemporary issues in conversation analysis: Embodiment and materiality, multimodality and multisensoriality in social interaction. Journal of Pragmatics. v. 145, p. 47-62.; FILLIETTAZ, 2018FILLIETTAZ, L. (2018). Interactions verbales et recherche em éducation: príncipes, méthodes et outils d’analyse. Genève: Section des sciences de l’éducation., 2019aFILLIETTAZ L. (2019a). La compétence interactionnelle: un instrument de développement pour penser la formation des adultes. Education permanente. v. 220/221, p. 185-194.; FILLIETTAZ; LAMBERT, 2019FILLIETTAZ, L.; LAMBERT, P. (2019). La formation professionnelle, un point aveugle de la linguistique sociale? Langage et société. v. 168, p. 15-47.), e da noção de argumentação, segundo a abordagem dialogal de Plantin (1996PLANTIN, C. (1996). Le trilogue argumentatif. Présentation de modèle, analyse de cas. Langue française. v. 112, p. 9-30., 2003PLANTIN, C. (2003). Ad quientem, o el rechazo del debate. In: Mari, H.; Machado, I.; Mello, R. (orgs.), Análise do discurso em perspectivas. Belo Horizonte: FALE/UFMG, p. 351-388., 2008aPLANTIN, C. (2008a). A argumentação: história, teorias, perspectivas. São Paulo: Parábola., 2008b). Em seguida, ainda na parte teórica deste estudo e articulando as noções previamente definidas, retornaremos à noção de competência argumentativa, para tratarmos de seu interesse para o ensino da argumentação.

Definido o arcabouço teórico deste estudo, proporemos, em seguida, uma análise da competência argumentativa, tal como efetivamente desenvolvida por estudantes em uma situação concreta de uso da língua. Essa análise recai sobre um vídeo com um debate promovido pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, debate que faz parte de uma campanha iniciada em 2011 e intitulada “Chega de bullying, não fique calado”. Após a apresentação do contexto dessa campanha e dos procedimentos metodológico adotados na coleta do vídeo com o debate e de sua análise, descreveremos o modo como as/os estudantes mobilizam e negociam sua competência argumentativa ao longo desse debate e evidenciam, por meio das ações que realizam, que é argumentando que se aprende a argumentar.

1. COMPETÊNCIA INTERACIONAL

No campo da Linguística Aplicada em interface com a Análise da Conversa etnometodológica (PEKAREK DOHELER, 2006; MONDADA, 2006MONDADA, L. (2006). La compétence comme dimension située et contingente, localement évaluée par les participants. Bulletin suisse de linguistique appliquée. n. 84, p. 83-119., 2019MONDADA, L. (2019). Contemporary issues in conversation analysis: Embodiment and materiality, multimodality and multisensoriality in social interaction. Journal of Pragmatics. v. 145, p. 47-62.) e no campo da Linguística da Formação Profissional (FILLIETTAZ, 2018FILLIETTAZ, L. (2018). Interactions verbales et recherche em éducation: príncipes, méthodes et outils d’analyse. Genève: Section des sciences de l’éducation., 2019aFILLIETTAZ L. (2019a). La compétence interactionnelle: un instrument de développement pour penser la formation des adultes. Education permanente. v. 220/221, p. 185-194.; FILLIETTAZ; LAMBERT, 2019FILLIETTAZ, L.; LAMBERT, P. (2019). La formation professionnelle, un point aveugle de la linguistique sociale? Langage et société. v. 168, p. 15-47.; FILLIETTAZ et al., 2021FILLIETTAZ, L.; BIMONTE, A.; KOLEÏ, G.; NGUYEN, A.; ROUX-MERMOUD, A.; ROYER, S.; TREBERT, D.; TRESS, C.; ZOGMAL, M. (2021). Interactions verbales et formation des adultes. Savoirs. v. 56, n. 2, p. 11-51.), a noção de competência interacional tem dado origem, nas últimas décadas, a importantes reflexões que visam a uma concepção alternativa tanto à concepção de competência de Chomsky (1977)CHOMSKY, N. (1977). Reflexões sobre a linguagem. Lisboa: Edições 70., essencialmente cognitivista, individualista e associal, quanto à de Hymes (1972)HYMES, D. (1972). On communicative competence. In: Pride, J. B.; Holmes, J. (eds.), Sociolinguistics. London: Penguin, p. 269-293., que, embora forjada em oposição à anterior, preserva uma compreensão do sistema linguístico como algo autônomo e anterior à sua utilização1 1 Para um panorama e uma discussão dos embates teóricos em torno da noção de competência em diferentes áreas do conhecimento, cf. Morato (2008). . Nessas reflexões, adota-se uma concepção praxiológica e dialógica da competência segundo a qual a maneira como o sujeito age é profundamente articulada à situação em que está inserido e às atividades que realiza com o(s) outro(s) nessa situação. Em outros termos, a competência interacional é “compreendida como um recurso socialmente - ou seja, coletivamente - desenvolvido, contingente em relação às situações concretas de sua mobilização e indissociavelmente ligado a outras competências” (PEKAREK DOEHLER, 2006PEKAREK DOEHLER, S. (2006). Compétence et langage en action. Bulletin suisse de linguistique appliquée. v. 84, p. 09-45., p. 38).

Fornecendo uma definição mais específica e mais alinhada à Análise da Conversa, Mondada (2006)MONDADA, L. (2006). La compétence comme dimension située et contingente, localement évaluée par les participants. Bulletin suisse de linguistique appliquée. n. 84, p. 83-119. conceitua a competência interacional como o conjunto dos procedimentos - ou métodos (GARFINKEL, 1967GARFINKEL, H. (1967). Studies in Ethnomethodology. Oxford: Polity Press.) - que permite aos interlocutores participarem de forma adequada da interação. Esses procedimentos compreendem ações tais como a introdução e a retomada de tópicos, correções, repetições e reformulações, a produção conjunta de unidades sintáticas, a abertura e o fechamento de trocas, a reorientação de ações em curso, a negociação de saberes, a resolução de problemas interacionais, como o recobrimento de falas, a seleção de interlocutores ratificados, etc. (MONDADA, 2006MONDADA, L. (2006). La compétence comme dimension située et contingente, localement évaluée par les participants. Bulletin suisse de linguistique appliquée. n. 84, p. 83-119.; FILLIETTAZ, 2019aFILLIETTAZ L. (2019a). La compétence interactionnelle: un instrument de développement pour penser la formation des adultes. Education permanente. v. 220/221, p. 185-194.; FILLIETTAZ et al., 2021FILLIETTAZ, L.; BIMONTE, A.; KOLEÏ, G.; NGUYEN, A.; ROUX-MERMOUD, A.; ROYER, S.; TREBERT, D.; TRESS, C.; ZOGMAL, M. (2021). Interactions verbales et formation des adultes. Savoirs. v. 56, n. 2, p. 11-51.).

Como essa noção interacionista de competência abarca as habilidades linguageiras dos interlocutores, ela desemboca em uma discussão sobre a própria definição de língua e linguagem que se deve adotar na pesquisa e no ensino. Porque a competência deixa de ser entendida como um fenômeno individual e como um arsenal de saberes depositados na mente do sujeito e sempre disponível para seu uso, independentemente do contexto em que se situa, a noção de língua que subjaz a uma tal concepção também se afasta de definições tradicionais, de orientação gerativista e estruturalista, que a concebem como um conjunto estável de regras e construções linguísticas de que o sujeito se vale para comunicar (PEKAREK DOEHLER, 2006PEKAREK DOEHLER, S. (2006). Compétence et langage en action. Bulletin suisse de linguistique appliquée. v. 84, p. 09-45.). Evita-se, assim, conceber a língua como algo desvinculado do uso e anterior a ele, o que implica a rejeição das tradicionais dicotomias langue vs. parole, competência vs. desempenho. Apoiando-se nos resultados da Linguística Interacional, que articula contribuições funcionalistas e conversacionais (cf. OCHS; SCHEGLOFF; THOMPSON, 1996OCHS, E.; SCHEGLOFF, E.; THOMPSON, S. (eds.). (1996). Interaction and grammar. Cambridge: Cambridge University Press.), Pekarek Doehler (2006PEKAREK DOEHLER, S. (2006). Compétence et langage en action. Bulletin suisse de linguistique appliquée. v. 84, p. 09-45., p. 37) assim define língua/linguagem:

A linguagem não é um sistema isolado, self-contained ou fechado em si mesmo, autônomo, que seria independente da organização da ação e que seria, portanto, visto como um processo puramente interpsicológico antes que social; a linguagem é, ao contrário, um sistema adaptativo complexo, cujas sistematicidades são emergentes - e isso em parte em resposta à utilização contextual, situada da linguagem. Essa concepção dá toda sua importância teórica e metodológica à ancoragem da linguagem na ação, cuja forma fundamental é a interação social.

As implicações dessa concepção de competência interacional para o ensino de língua materna ou segunda e a formação profissional são várias. Adotar uma concepção praxiológica, situada e social de competência implica, em primeiro lugar, o abandono de dispositivos didáticos que sejam centrados nas capacidades individuais da/do aprendiz e o desenvolvimento de atividades voltadas para as ações que as/os aprendizes precisam realizar juntos, em contextos comunicativos definidos (PEKAREK DOHELER, 2006; MONDADA, 2006MONDADA, L. (2006). La compétence comme dimension située et contingente, localement évaluée par les participants. Bulletin suisse de linguistique appliquée. n. 84, p. 83-119.; FILLIETTAZ, 2018FILLIETTAZ, L. (2018). Interactions verbales et recherche em éducation: príncipes, méthodes et outils d’analyse. Genève: Section des sciences de l’éducation., 2019aFILLIETTAZ L. (2019a). La compétence interactionnelle: un instrument de développement pour penser la formation des adultes. Education permanente. v. 220/221, p. 185-194.). Nessa perspectiva, objetiva-se não a simples exteriorização (para a atestação do professor ou formador) de saberes que estariam sedimentados e disponíveis na memória da/do aprendiz, mas o desenvolvimento de suas capacidades interacionais, ao longo do processo mesmo de negociação de ações com seu(s) interlocutor(es) (FILLIETTAZ; SAINT-GEORGES; DUC, 2008FILLIETTAZ, L. ; de SAINT-GEORGES, I. ; DUC, B. (2008). Vos mains sont intelligentes ! Interactions en formation professionnelle initiale. Genebra : Université de Genève, Faculté de psychologie et des sciences de l’éducation.; FILLIETTAZ; ZOGMAL, 2020FILLIETTAZ, L.; ZOGMAL, M. (éds.). (2020). Mobiliser et développer des compétences interactionnelles en situation de travail éducatif. Toulouse : Octarès Éditions.; CUNHA, 2022CUNHA, G. X. (2022). A reformulação em uma perspectiva interacionista para o estudo das relações de discurso. Cadernos de Estudos Linguísticos. v. 64, p. 1-18.; CUNHA; ZOGMAL, 2023CUNHA, G. X.; ZOGMAL, M. (2023). Co-énonciation et mise en circulations des savoirs dans des contextes de travail. Tranel, v. 78, p. 57-77.).

A adoção dessa concepção implica, em segundo lugar e em decorrência do exposto, a participação das/dos aprendizes em situações que as/os levem, de forma variada e sistemática, a desenvolver sua competência interacional, reconhecendo os procedimentos (verbais e não-verbais) que, a cada contexto, devem realizar para agirem conjunta e adequadamente. Nesse sentido, a aprendizagem deixa de ser a mera interiorização de saberes e passa a constituir a apropriação da capacidade de participar de práticas sociais (PEKAREK DOEHLER, 2006PEKAREK DOEHLER, S. (2006). Compétence et langage en action. Bulletin suisse de linguistique appliquée. v. 84, p. 09-45.; SCHNEUWLY, 2004SCHNEUWLY, B. (2004). Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e ontogenéticas. In: Schneuwly, B. et al. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, p. 19-34.).

Em consonância com a perspectiva expressa neste item, entendemos que a competência argumentativa constitui uma especificação da competência interacional, na medida em que ela corresponderia ao conjunto dos procedimentos realizados pelos interlocutores para constituir uma interação como argumentativa, devendo, portanto, também ser concebida como um fenômeno social, situado e praxiológico (cf. AZEVEDO, 2019AZEVEDO, I. C. M. (2019). Confluencias y distinciones entre las nociones de capacidad y competencia argumentativas. In: Vitale, M. A. et al. (orgs.), Estudios sobre discurso y argumentación. Coimbra: Grácio Editor, p. 167-193.). Contudo, dadas as especificidades das interações argumentativas, a definição dessa competência precisa se valer de um modelo da argumentação que seja teórica e epistemologicamente compatível com a noção de competência interacional apresentada neste item e que, diferentemente de abordagens que concebem a argumentação de um ponto de vista essencialmente monologal, a exemplo da abordagem clássica de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005)PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. (2005). Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes., forneça conceitos adequados para o estudo dos fenômenos característicos de interações argumentativas. Em razão dessas exigências, antes de tratarmos da competência argumentativa, apresentaremos, ainda que brevemente, um modelo de argumentação que consideramos adequado para a compreensão dessa competência, na perspectiva interacionista que assumimos.

2. UMA ABORDAGEM DIALOGAL E INTERACIONISTA DA ARGUMENTAÇÃO

Aproximando-se de modelos de análise da interação, em especial dos desenvolvidos no contexto francófono por Kerbrat-Orecchioni (1990KERBRAT-ORECCHIONI, C. (1990). Les interactions verbales, v. 1. Paris : Armand Colin., 2017KERBRAT-ORECCHIONI, C. (2017). Les débats de l’entre-deux-tours des élections présidentielles françaises: constantes et évolutions d’un genre. Paris: L’Harmattan.), Bange (1992)BANGE, P. (1992). Analyse conversationnelle et théorie de l’action. Paris: Hatier., Vion (1992)VION, R. (1992). La communication verbale: analyse des interactions. Paris: Hachette. e Moeschler (1985)MOESCHLER, J. (1985). Argumentation et conversation: éléments pour une analyse pragmatique du discours. Paris: Hatier-Credif., Plantin (1996PLANTIN, C. (1996). Le trilogue argumentatif. Présentation de modèle, analyse de cas. Langue française. v. 112, p. 9-30., p. 11) propõe um modelo dialogal da argumentação em que a interação argumentativa é definida “como uma situação de confrontação discursiva ao longo da qual são construídas respostas antagônicas a uma questão”. Nessa abordagem, a questão tem papel central, porque é ela que motiva o surgimento de respostas ou posições antagônicas (PLANTIN, 1996PLANTIN, C. (1996). Le trilogue argumentatif. Présentation de modèle, analyse de cas. Langue française. v. 112, p. 9-30., 2003PLANTIN, C. (2003). Ad quientem, o el rechazo del debate. In: Mari, H.; Machado, I.; Mello, R. (orgs.), Análise do discurso em perspectivas. Belo Horizonte: FALE/UFMG, p. 351-388., 2008aPLANTIN, C. (2008a). A argumentação: história, teorias, perspectivas. São Paulo: Parábola., 2008b; DAMASCENO-MORAIS, 2020DAMASCENO-MORAIS, R. (2020). Dialogando com a perspectiva dialogal da argumentação. In: Piris, E.; Rodrigues, M. G. S. (orgs.), Estudos sobre argumentação no Brasil hoje: modelos teóricos e analíticos. Natal: EDUFRN, p. 143-169.).

Caracterizam esse tipo de interação três instâncias: o Proponente, o Oponente e o Terceiro. O Proponente é a instância que assume o ônus da prova, ou seja, aquele cujos argumentos sustentam uma resposta à questão que se opõe a uma crença aceita pelo grupo ou à doxa, entendida esta como “um conjunto de representações socialmente predominantes” (PLANTIN, 2016PLANTIN, C. (2016). Dictionnaire de l’argumentation. Une introduction aux études d’argumentation. Lyon : ENS Éditions., p. 221). Por exemplo, numa sociedade em que o consumo de drogas é proibido, o Proponente defende sua liberação em resposta à pergunta “O consumo de drogas deve ser liberado?” (PLANTIN, 2008aPLANTIN, C. (2008a). A argumentação: história, teorias, perspectivas. São Paulo: Parábola.). Por sua vez, o Oponente é a instância que assume uma posição antagônica em relação ao Proponente e “propõe contra-argumentos para sustentar sua própria Resposta à Questão” (PLANTIN, 1996PLANTIN, C. (1996). Le trilogue argumentatif. Présentation de modèle, analyse de cas. Langue française. v. 112, p. 9-30., p. 12, destaque do autor). Já o Terceiro é a instância que se responsabiliza pela questão e que “julga a pertinência das argumentações” (PLANTIN, 2008aPLANTIN, C. (2008a). A argumentação: história, teorias, perspectivas. São Paulo: Parábola., p. 77). Essencial na situação argumentativa, o papel do Terceiro, quando efetivamente assumido por um dos participantes da interação ou por parte deles (uma plateia, por exemplo), pode exercer diferentes ações e funções ao longo da interação, como expressar desconhecimento ou indecisão, recusando-se a aderir a uma das proposições em confronto, relembrar a pergunta que motiva a argumentação, ressaltar os princípios gerais que subjazem à disputa, zelar pelas convenções de convivialidade (polidez) esperadas para o contexto, etc. (PLANTIN, 1995PLANTIN, C. (1995). Fonctions du tiers dans l’interaction argumentative. In: Kerbrat-Orecchioni, C.; Plantin, C. (éds.), Le trilogue. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, p. 108-133.).

Nessa abordagem, as três instâncias que constituem a situação argumentativa (Proponente, Oponente, Terceiro) correspondem não a atores concretos, mas a papéis discursivos (actantes) (PLANTIN, 1991PLANTIN, C. (1991). Question - Argumentation - Réponses. In: Kerbrat-Orecchioni, C. (org.), La question. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, p. 63-86., 1996PLANTIN, C. (1996). Le trilogue argumentatif. Présentation de modèle, analyse de cas. Langue française. v. 112, p. 9-30., 2008aPLANTIN, C. (2008a). A argumentação: história, teorias, perspectivas. São Paulo: Parábola.). Ao distinguir atores de actantes, Plantin busca captar fenômenos que são essenciais para a análise de interações argumentativas:

  • - o mesmo papel discursivo pode ser assumido por mais de um ator, dando origem a coalizões e alianças mais ou menos duradouras ao longo de interação de que participam vários atores (trílogo, polílogo) (KERBRAT-ORECCHIONI; PLANTIN, 1995PLANTIN, C. (1995). Fonctions du tiers dans l’interaction argumentative. In: Kerbrat-Orecchioni, C.; Plantin, C. (éds.), Le trilogue. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, p. 108-133.; DAMASCENO-MORAIS, 2021DAMASCENO-MORAIS, R. (2021). Coalizão argumentativa em práticas discursivas jurídicas. Acta Scientiarum. v. 43, p. 1-12.);

  • - o mesmo ator pode assumir diferentes papéis discursivos ao longo da interação, passando da posição Proponente à de Oponente, deixando a de Oponente e assumindo a de Terceiro, ao relembrar a questão motivadora da argumentação, etc. (PLANTIN, 2008aPLANTIN, C. (2008a). A argumentação: história, teorias, perspectivas. São Paulo: Parábola.).

Apresentado, em linhas gerais, o modelo dialogal da argumentação desenvolvido por Plantin, retornaremos à noção de competência argumentativa, a fim de expormos de que forma a aproximação de uma abordagem da competência e de uma abordagem da argumentação, ambas fortemente interacionistas, permite pensar a competência necessária à participação em uma situação argumentativa, bem como o desenvolvimento dessa competência em situações de aprendizagem da argumentação2 2 Para o conhecimento de abordagens da competência argumentativa que também se valem de contribuições da proposta de Plantin, cf. Azevedo (2019) e Azevedo e Santos (2018). Em Azevedo (2019), encontra-se ainda uma relevante discussão sobre as noções de competência e capacidade argumentativas. .

3. POR UMA COMPETÊNCIA ARGUMENTATIVA E INTERACIONISTA

Neste trabalho, concebemos a competência argumentativa como o conjunto dos procedimentos que os interlocutores efetivamente realizam para definir conjunta e reflexivamente a situação em que estão inseridos como argumentativa, ou seja, como uma situação que se caracteriza “pelo desenvolvimento e pelo confronto de pontos de vista em contradição, em resposta a uma mesma pergunta” (PLANTIN, 2008aPLANTIN, C. (2008a). A argumentação: história, teorias, perspectivas. São Paulo: Parábola., p. 64). Como observa Plantin (2008aPLANTIN, C. (2008a). A argumentação: história, teorias, perspectivas. São Paulo: Parábola., p. 65), “em tal situação, têm valor argumentativo todos os elementos semióticos articulados em torno dessa pergunta”. Na argumentação entendida como uma prática social específica, isto é, como a prática de sustentar e defender pontos de vista em contradição, o que faz com que todos os “elementos semióticos” ganhem valor argumentativo não é alguma propriedade (semântica, pragmática ou retórica) de um elemento em si, tomado isoladamente, ou seu valor no sistema da língua3 3 Cf. a abordagem dos conectores e operadores argumentativos na Teoria da Argumentação na Língua (ou Pragmática integrada) (ANSCOMBRE; DUCROT, 1983). , mas sim seu uso por um interactante que, em dado momento da interação, avalia esse uso como um procedimento adequado para participar de uma situação argumentativa.

Nessa perspectiva, desde que empregados com o fim de estabelecer esse tipo de interação, ganham valor argumentativo tanto procedimentos tradicionalmente entendidos como argumentativos, a exemplo das técnicas listadas por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. (2005). Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes., 3a parte), quanto procedimentos que, em outra tradição teórica (a Análise da Conversa e a Linguística Interacional), não são estudados enquanto procedimentos argumentativos, como o uso de marcadores conversacionais, as diferentes formas linguísticas de pedir informação, a construção colaborativa de sentenças ou a abertura de sequências laterais (SCHEGLOFF, 2007SCHEGLOFF, E. (2007). Sequence organization in interaction: a primer in Conversation Analysis I. Cambridge: Cambridge University Press.; OCHS; SCHEGLOFF; THOMPSON, 1996OCHS, E.; SCHEGLOFF, E.; THOMPSON, S. (eds.). (1996). Interaction and grammar. Cambridge: Cambridge University Press.; HERITAGE, 2002HERITAGE, J. (2002). The limits of questioning: negative interrogatives and hostile question content. Journal of pragmatics. v. 34, p. 1427-1446.). Afinal, como exposto, todos os recursos usados pelos interlocutores na construção conjunta de uma prática social são situados e fortemente articulados ao modo como interpretam essa prática e as restrições que subjazem a ela (PEKAREK DOEHLER, 2006PEKAREK DOEHLER, S. (2006). Compétence et langage en action. Bulletin suisse de linguistique appliquée. v. 84, p. 09-45.). Nossa posição se aproxima da de Azevedo (2019AZEVEDO, I. C. M. (2019). Confluencias y distinciones entre las nociones de capacidad y competencia argumentativas. In: Vitale, M. A. et al. (orgs.), Estudios sobre discurso y argumentación. Coimbra: Grácio Editor, p. 167-193., p. 172), para quem a competência argumentativa se define como:

[...] uma ação discursiva que se desenvolve em ações específicas, circunscritas à oposição de posições, de modo que se determina pelo ato realizado e pelas condições de uma situação argumentativa. Esse tipo de ação mobiliza um conjunto integrado de capacidades e de recursos, de modo que sua conclusão depende das exigências apresentadas pela tarefa ou pelo momento de sua realização. O ato argumentativo, então, se circunscreve a um momento histórico e social e, por sua vez, denota certa especialização e requer a assunção de uma postura discursiva.

Essa forma de compreender a competência argumentativa fornece algumas pistas para uma reflexão sobre a aprendizagem da argumentação. Conforme Filliettaz (2019bFILLIETTAZ, L. (2019b). Reconfigurer les ingrédients de l’alternance dans et par les pratiques locales de l’interaction. In : Zaouani-Denoux, S.; Mazalon, E. (éds.), La formation en alternance: diversité des dispositifs, perspectives des usagers et complexité des approches. Paris: L’Harmattan, p. 117-134., p. 25), “é participando de interações, que podem ou não apresentar um caráter instrucional, que competências interacionais podem ser mobilizadas e adquiridas”. Nesse sentido, o desenvolvimento pelas/pelos estudantes de uma competência argumentativa se obtém não por meio da memorização de técnicas e recursos argumentativos ou da manipulação de frases e esquemas textuais descontextualizados e fabricados para fins didáticos, mas por meio da análise de interações argumentativas autênticas e da participação efetiva em interações desse tipo, como debates, reuniões, discussões, mesas-redondas, etc. Ainda que não se valha da noção de competência, Plantin (2008bPLANTIN, C. (2008b). A argumentação biface. In: Lara, G.; Machado, I.; Emediato, W. (orgs.), Análises do discurso hoje. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, v. II, p. 13-26., p. 22), ao tratar do ensino do debate, gênero considerado pelo autor como prototípico da interação argumentativa, expressa posicionamento semelhante ao nosso:

O debate é um dos lugares da argumentação para os quais devemos mobilizar os recursos da análise das interações. No caso da sala de aula, interessar-nos-emos, por exemplo, pelos modos de retomada do discurso, pelas formas de expressão do acordo e dos desacordos […], pelos modos de afirmação das conclusões, pela repartição dos papéis argumentativos e interacionais […], pelas alianças e adesões, pelas formas de concessões, etc. Existe aí um imenso campo para a exploração empírica.

Longe de propor um estudo de formas linguísticas e textuais descontextualizadas, cujo valor argumentativo seria inerente a elas e transferível de um contexto a outro, o que propõe o autor é a “exploração empírica” pelas/pelos estudantes de interações argumentativas. Isso porque aprender a argumentar é desenvolver habilidades para participar de uma interação argumentativa, “é aprender a criticar argumentos, tanto os seus quanto os dos outros” (PLANTIN, 2008bPLANTIN, C. (2008b). A argumentação biface. In: Lara, G.; Machado, I.; Emediato, W. (orgs.), Análises do discurso hoje. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, v. II, p. 13-26., p. 23), o que só pode ser obtido quando se vivencia a argumentação como uma prática social.

Posicionamento semelhante ao nosso é também expresso por Dolz, Schneuwly e de Pietro (2004)DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B.; DE PIETRO, J. F. (2004). Relato da elaboração de uma sequência: o debate público. In: Schneuwly, B. et al. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, p. 19-34. em relato de experiência sobre o ensino do gênero debate por meio de uma sequência didática. Embora focados mais nas ações que envolveram a construção de um modelo didático do debate regrado e menos nos resultados da aplicação da sequência, evidenciam os autores que o desenvolvimento pelas/pelos estudantes de habilidades necessárias à participação em um debate (ou, em seus termos, de “capacidades argumentativas dos alunos nos debates” (DOLZ; SCHNEUWLY; DE PIETRO, 2004DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B.; DE PIETRO, J. F. (2004). Relato da elaboração de uma sequência: o debate público. In: Schneuwly, B. et al. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, p. 19-34., p. 219)) é um fenômeno complexo e processual, dificilmente alcançável por meio de dispositivos didáticos cuja elaboração se guiassem por uma concepção monologal e instrumental de língua/linguagem. Esse desenvolvimento ocorre mediante a participação recorrente das/dos estudantes em atividades de análise e produção de debates orais. É essa participação, inclusive, que revela aos professores de que habilidades a/o estudante já dispõe e quais ainda precisa desenvolver e que permite a eles repensarem e ajustarem as próprias práticas de ensino da argumentação, durante a aplicação da sequência didática.

Com base nas proposições teóricas trazidas neste item e nos anteriores, analisaremos um vídeo com um debate entre estudantes, promovido pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Antes, porém, apresentaremos os procedimentos de ordem metodológica que adotamos no tratamento do corpus e em sua análise.

4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Neste trabalho, analisamos um vídeo com o registro de um debate promovido pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, debate que faz parte de uma campanha iniciada em 2011 e intitulada “Chega de bullying, não fique calado”. Conforme informações disponíveis no site da Secretaria de Educação4 4 https://www.youtube.com/watch?v=pazvo7LPiTc) Último acesso: 04/04/2024. , essa campanha foi realizada pela secretaria em parceria com o canal Cartoon Network e tem como objetivo “proporcionar aos professores, estudantes, pais e funcionários das instituições de ensino maneiras práticas para lidar com o problema [o bullying] que afeta milhões de jovens em todo o mundo”. Na parte inferior da página que trata da campanha e do debate, disponibiliza-se o link para acesso ao vídeo com o debate5 5 https://www.youtube.com/watch?v=pazvo7LPiTc) (canal oficial no YouTube da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo). Último acesso: 04/04/2024. . O vídeo está hospedado na página do YouTube da Secretaria de Educação e pode ser acessado livremente, sem que seja necessária a realização de cadastro ou de pedido de autorização específica para sua visualização. Nossa análise recaiu, portanto, sobre o vídeo institucional, ou seja, sobre o debate tal como veiculado no vídeo em questão.

A escolha desse debate se justifica por algumas razões. Em primeiro lugar, trata-se de uma interação que pertence ao gênero debate. Conforme Plantin (1996PLANTIN, C. (1996). Le trilogue argumentatif. Présentation de modèle, analyse de cas. Langue française. v. 112, p. 9-30., 2008aPLANTIN, C. (2008a). A argumentação: história, teorias, perspectivas. São Paulo: Parábola.), o debate é o gênero que ilustra de forma prototípica a situação argumentativa. No caso do debate escolhido, entendemos que ele pode ser caracterizado como um “debate de opinião de fundo controverso” (COSTA, 2012COSTA, S. R. (2012). Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica., p. 95). Esse tipo de debate busca a compreensão de um assunto controverso, permitindo a colocação em cena de diferentes posicionamentos sobre um tema.

Em segundo lugar, trata-se de uma interação autêntica, protagonizada por estudantes da Escola Estadual Alexandre Gusmão, localizada no bairro Ipiranga, na zona sul de São Paulo, conforme informações disponibilizadas no site da Secretaria de Educação (cf. nota 4)6 6 No site da Secretaria de Educação, não são informados o nível de escolaridade e a idade dos participantes da interação, mas é possível inferir que se trata de estudantes do Ensino Médio. . Assim, o vídeo institucional registra uma interação que não foi produzida nem para fins didáticos (avaliação de saberes e habilidades dos estudantes), nem para fins de pesquisa (análise do comportamento dos estudantes). Trata-se de uma situação que, em razão da campanha mais ampla de que faz parte, tem como finalidade central o debate de questões que afetam o cotidiano da escola. Nesse sentido, as/os estudantes sabem que estão ali para debaterem ideias e não para serem avaliados (como em interações com fins didáticos) ou para terem seu comportamento investigado (como em interações com fins científicos). Além disso, sabem que estão sendo filmados para a produção de um vídeo institucional e que sua “atuação” poderá ser vista por número indefinido de espectadores, o que contribui para que elas/eles se empenhem efetivamente na interação de que participam. Nesse sentido, o estudo dessa interação é bastante adequado em uma pesquisa que, como a nossa, busca avaliar como se manifesta e se desenvolve a competência argumentativa dos estudantes em situações reais de uso da língua, investigando de quais procedimentos se valem para construir uma interação argumentativa.

Em terceiro lugar, embora o vídeo tenha sido postado no YouTube em 2012, ainda está ativa a página da Secretaria de Educação de São Paulo que o descreve como parte do material da campanha “Chega de bullying, não fique calado” e que disponibiliza o link para acesso ao vídeo. Da mesma forma, o vídeo permanece disponível para visualização irrestrita na página dessa secretaria na referida plataforma, tendo obtido, até a data de conclusão deste trabalho, 14.883 visualizações. A disponibilidade do vídeo em plataformas digitais, bem como seu alcance em termos de audiência junto a um público constituído essencialmente de professores e estudantes evidenciam que a interação constitui um exemplar do gênero debate de opinião, sendo, portanto, adequado para um estudo do comportamento típico de estudantes em interações argumentativas.

Quanto às suas características formais (cênicas), o vídeo registra uma interação ocorrida em uma sala de aula. Nessa sala, os seis estudantes (quatro alunas e dois alunos) permanecem todo o tempo sentados no chão em semi-círculo diante das câmeras, como ilustra a figura 1. Pelas tomadas das câmeras ao longo do vídeo, é possível inferir que há uma câmera central, que capta a maior parte das imagens, e duas câmeras laterais, que ocasionalmente captam imagens mais fechadas dos rostos ou das mãos dos estudantes. Trata-se, portanto, de uma interação polilogal (KERBRAT-ORECCHIONI; PLANTIN, 1995PLANTIN, C. (1995). Fonctions du tiers dans l’interaction argumentative. In: Kerbrat-Orecchioni, C.; Plantin, C. (éds.), Le trilogue. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, p. 108-133.) bastante complexa, na medida em que cada estudante que fala sabe que dialoga não só com os demais colegas, mas também com os profissionais que estão atrás das câmeras, profissionais cujo papel social (produtores do vídeo, professores, cinegrafistas, etc.) não é revelado, e com os futuros espectadores desse vídeo. Ao longo do vídeo, apenas os estudantes falam. Mas a presença de profissionais atrás das câmeras é evidenciada pelo fato de que, durante a interação captada no vídeo, os estudantes olham não apenas para si, mas também para esses profissionais, que, por isso mesmo, também assumem o papel de Terceiro (PLANTIN, 1996PLANTIN, C. (1996). Le trilogue argumentatif. Présentation de modèle, analyse de cas. Langue française. v. 112, p. 9-30., 2008aPLANTIN, C. (2008a). A argumentação: história, teorias, perspectivas. São Paulo: Parábola.) e são participantes da interação.

Figura 1
visão global da sala

Por se tratar de um vídeo institucional, que, como informado, faz parte de uma campanha de combate ao bullying nas escolas, ele resulta de um processo de edição e não tem a finalidade de registrar toda a interação que efetivamente ocorreu entre os estudantes. Assim, o vídeo tem a duração de 4 minutos e 16 segundos e se compõe de quatro partes temáticas, que, pelo trabalho de edição, são o resultado de cortes feitos na interação efetiva. Ainda que o tópico central ou global seja o bullying, o que é expresso na questão que, aos 4 segundos do vídeo, aparece antecedendo o debate (figura 2), cada parte, de aproximadamente 1 minuto, é antecedida por uma imagem que evidencia ao espectador do vídeo o subtópico que será abordado. Os subtópicos abordados são, nesta ordem, bullying X brincadeira; certo X errado; meninos X meninas; diferenças.

Figura 2
tópico central

As referidas características contextuais e formais desse vídeo justificam ainda o porquê de, neste trabalho, analisarmos apenas um único exemplar do gênero debate, ainda que se trate de um vídeo de extensão reduzida. Tendo em vista a natureza essencialmente qualitativa desta pesquisa, em consonância com o referencial teórico e metodológico que adota (a Linguística da Formação Profissional e a Análise da Conversa etnometodológica), entendemos que o exemplar selecionado, em razão de constituir uma das principais peças de uma campanha institucional da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, constitui um evento de amplo alcance junto à população (vide seu número de visualizações) e de interesse para a pesquisa sobre competência argumentativa. Assim, a escolha desse vídeo não se fez de forma aleatória, mas se pautou em sua importância e repercussão enquanto evento social e institucional com características particulares: um debate protagonizado por estudantes de uma escola estadual como parte de uma campanha oficial de combate ao bullying para veiculação e uso nas escolas do Estado de São Paulo. A presente investigação caracteriza-se, assim, como uma pesquisa de “caso único” (PIRES, 2012PIRES, A. P. (2012). Amostragem e pesquisa qualitativa: ensaio teórico e metodológico. In: POUPART, J. et al. (orgs.). A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Trad. Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópolis: Vozes. p. 154-211.), o que significa que, embora nos interessemos pelas especificidades do “caso” selecionado, em razão de suas qualidades inerentes, nosso estudo tem o potencial de constituir o ponto de partida para pesquisas que investiguem realidades similares em contextos distintos.

Uma vez selecionado o vídeo que constitui o corpus desta pesquisa, realizamos a transcrição manual da interação. Essa transcrição foi feita com base nas convenções expressas no quadro 1.

Quadro 1
convenções de transcrição

No vídeo, os nomes dos seis estudantes não são revelados. Por isso, para nos referirmos a cada estudante na transcrição e na análise que será apresentada no próximo item, usamos a inicial E (de estudante) seguida de um número cardinal que corresponde à posição, da esquerda para a direita, da ou do estudante na imagem captada pela câmera central (cf. figura 1). Assim, enquanto a estudante da ponta esquerda é referida como E1, a da ponta direita é referida como E6.

Na análise qualitativa que realizamos do debate, o estudo da competência argumentativa das/dos estudantes se fez com base no aparato conceitual expresso na parte teórica deste trabalho. Assim, no intuito de captar os procedimentos que elas e eles realizam para construir a interação argumentativa de que participam, entendemos que seria preciso lançar mão não só dos conceitos propostos por Plantin, mas também de contribuições oriundas de teorias da interação verbal, como a Análise da Conversa etnometodológica7 7 As pesquisas de Jacquin (2014) e Damasceno-Morais (2021) também propõem essa aproximação/articulação da abordagem de Plantin e da Análise da Conversa etnometodológica. . Essa aproximação nos possibilitou uma análise, ao mesmo tempo, mais minuciosa e precisa do comportamento ou da competência argumentativa dos estudantes, bem como uma atenção aos aspectos multimodais da interação. Ainda que não tenhamos realizado uma análise multimodal aprofundada e sistemática, que levasse em conta todas as implicações de aspectos prosódicos e corporais (cf. GOODWIN, 2018GOODWIN, C. (2018). Co-operative action. Cambridge: Cambridge University Press.), entendemos que a consideração desses elementos foi essencial para uma melhor apreensão da competência argumentativa dos estudantes. No próximo item deste trabalho, apresentaremos os principais resultados das análises realizadas.

5. A COMPETÊNCIA ARGUMENTATIVA EM (INTER)AÇÃO

Sendo a competência argumentativa, na perspectiva que adotamos, um fenômeno social e situado, a compreensão de como interlocutores específicos mobilizam essa competência não se obtém com a análise exclusiva de aspectos linguísticos e informacionais do texto oral, mas implica a consideração das propriedades interacionais e institucionais que estruturam e modelam a interação, em articulação com as linguagens verbal e não-verbal usadas pelos interlocutores.

Do ponto de vista interacional, ou seja, do processo de negociação que ocorre ao longo da interação, trata-se de uma interação polilogal (KERBRAT-ORECCHIONI; PLANTIN, 1995PLANTIN, C. (1995). Fonctions du tiers dans l’interaction argumentative. In: Kerbrat-Orecchioni, C.; Plantin, C. (éds.), Le trilogue. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, p. 108-133.) em que os seis estudantes, como informado no item anterior, estão sentados no chão de uma sala de aula, em semi-círculo, diante de uma câmera central e de duas câmeras laterais. Assim, cada estudante pode visualizar, ao longo da interação, todas as pessoas presentes no local, o que inclui tanto as/os colegas, quanto os profissionais que estão atrás das câmeras. Além disso, não se percebem, no vídeo, restrições para a tomada do turno pelos estudantes, nem a interferência explícita de um moderador gerindo a distribuição dos turnos, como ocorre, por exemplo, em debates eleitorais (CUNHA, 2020CUNHA, G. X. (2020). Elementos para uma abordagem interacionista das relações de discurso. Linguística. v. 36, p. 107-129., 2021aCUNHA, G. X. (2021a). O processo de negociação e o alcance da completude monológica em debate eleitoral. Trabalhos em Linguística Aplicada. v. 60, p. 155-170.). Por isso, na situação em análise, a gestão da dinâmica interacional precisa ficar a cargo dos próprios participantes da interação, como ocorre em conversas (SACKS; SCHEGLOFF; JEFFERSON, 1974SACKS, H.; SCHEGLOFF, E.; JEFFERSON, G. (1974). A simplest systematics for the organization of turn-taking in conversation, Language. v. 50, p. 696-735.).

O modo como as/os estudantes estão dispostos no espaço da sala de aula, bem como a forma de regulação da dinâmica interacional têm forte impacto sobre os procedimentos que elas/eles podem realizar para gerir a interação argumentativa de que participam, tornando essa gestão muito mais dinâmica e imprevisível do que, por exemplo, a que ocorre em uma situação argumentativa em que só um locutor fala diante de uma plateia, como um político que discursa em uma assembleia. Nessa interação, as configurações interacionais (ou footings (GOFFMAN, 1981GOFFMAN, E. (1981). Footing. In: Goffman, E. Forms of talk. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, p. 124-159.)) são múltiplas e podem se transformar rapidamente de um momento para o outro, implicando a constante redistribuição e renegociação de papéis interacionais e argumentativos.

Nesse debate, é muito pouco frequente a configuração, exemplificada na figura 3, em que a ou o estudante que fala olha predominantemente para a câmera central (na figura 3, E2), fazendo do profissional que a opera e dos espectadores seus interlocutores endereçados (GOFFMAN, 1981GOFFMAN, E. (1981). Footing. In: Goffman, E. Forms of talk. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, p. 124-159.), e não sofre a interrupção de colegas. Nessa configuração, os colegas, na condição de participantes não-endereçados, acompanham, em silêncio, a exposição da estudante, olhando para ela, para baixo ou também para a câmera, sem produzirem coenunciações ou reguladores verbais (FILLIETTAZ, 2018FILLIETTAZ, L. (2018). Interactions verbales et recherche em éducation: príncipes, méthodes et outils d’analyse. Genève: Section des sciences de l’éducation.). Essa configuração é próxima daquela tradicionalmente tomada explícita ou implicitamente como referência pelos estudiosos da argumentação (cf. PLANTIN, 2008aPLANTIN, C. (2008a). A argumentação: história, teorias, perspectivas. São Paulo: Parábola.), em que um locutor se dirige a um auditório amplo e complexo, porque formado por membros que assumem identidades sociais diversas (AMOSSY, 2006AMOSSY, R. (2006). L’argumentation dans le discours. Paris: Armand Colin.).

Figura 3
configuração interacional menos frequente

Do ponto de vista argumentativo, essa configuração se caracteriza por uma estabilidade na distribuição dos papéis. A estudante que fala assume o papel de Proponente, enquanto todos os demais participantes (colegas, profissionais atrás das câmeras e espectadores do vídeo) assumem o de Terceiro. Como dissemos, essa configuração é rara e, na ocasião em que teve maior duração, possibilitou à E2 a produção de um turno de 22 segundos, que corresponde ao trecho do vídeo que vai de 1min15seg. a 1min47seg.. Conforme Sacks, Schegloff e Jefferson (1974)SACKS, H.; SCHEGLOFF, E.; JEFFERSON, G. (1974). A simplest systematics for the organization of turn-taking in conversation, Language. v. 50, p. 696-735., quanto maior o grau de pré-alocação na disposição dos turnos, maior será o tamanho dos turnos. Assim, no debate em análise, a ausência de regras para a distribuição dos turnos entre os interlocutores explica a raridade dessa configuração em que uma/um estudante fala por mais tempo e produz um turno mais longo e estruturalmente complexo.

Essa configuração se altera nos momentos em que outra/outro ou outros estudantes falam ou para colaborar com a primeira ou o primeiro, aliando-se a ela/ele na assunção do papel de Proponente, ou para expressar opinião divergente, assumindo o papel de Oponente. Nesses momentos, verifica-se uma instabilidade configuracional (FILLIETTAZ, 2000FILLIETTAZ L. (2000). Actions, activités et discours. Tese de Doutorado em Linguística. Faculdade de Letras, Université de Genève, Genebra.), na medida em que a imprevisibilidade na distribuição dos turnos pelas/pelos estudantes se acompanha de uma imprevisibilidade na assunção por elas/eles dos papéis argumentativos de Proponente, Oponente e Terceiro. A participação das/dos estudantes nesse tipo de configuração instável, que constitui a norma ao longo do vídeo e que exemplificamos com o excerto (1), requer a atenção e a análise permanentes do comportamento do outro (DREW, 2005DREW, P. (2005). Conversation analysis. In: Fitch, K. L.; Sanders, R. E. (eds.), Handbook of language and social interaction. London: Lawrence Erlbaum Associates, p. 71-102.; MONDADA, 2006MONDADA, L. (2006). La compétence comme dimension située et contingente, localement évaluée par les participants. Bulletin suisse de linguistique appliquée. n. 84, p. 83-119.) e a utilização de diferentes procedimentos para gerir a interação, que, nesse contexto, ganham um valor fortemente argumentativo (PLANTIN, 2008aPLANTIN, C. (2008a). A argumentação: história, teorias, perspectivas. São Paulo: Parábola.).

(1) (2min.25seg.-2min.39seg.)

01 E2 os homens em si eles acabam. no XX\ 02 E6 partindo pra: agressão\ 03 E2 isso isso e a menina é mais o psicológico 04 E3 por que/ por causa da: eu sou homem então eu posso\ 05 agora as mulheres elas num querem. acho que elas 06 fazem mais o: psicológico ((olha para E2)) por causa 07 E6 > E3 por vaidade 08 E3 > E6 por vaidade 09 E5 oéo ((concordância de cabeça))

Nesse trecho, cuja questão implícita pode ser formulada como “Qual a diferença do bullying praticado por homens e mulheres?”, E3, um estudante, inicia a apresentação de seu ponto de vista (l. 1), que E6, uma estudante, complementa (“partindo pra: agressão\”, l. 2), valendo-se do recurso da coenunciação (JEANNERET, 1995JEANNERET, T. (1995). Interaction, co-énonciation et tours de parole. Cahiers de l’ILSL. v. 6, p. 137-157., 1999JEANNERET, T. (1999). La coénonciation en français. Approches discursive, conversationnelle et syntaxique. Berne: Peter Lang.; CUNHA; ZOGMAL, 2023CUNHA, G. X.; ZOGMAL, M. (2023). Co-énonciation et mise en circulations des savoirs dans des contextes de travail. Tranel, v. 78, p. 57-77.). Aqui a coenunciação é o procedimento realizado por E6 para deixar o papel de Terceiro e assumir o de Proponente, o que permite a ela não só colaborar com E3 na construção do turno, mas ainda, enquanto mulher, reivindicar uma primazia epistêmica em relação ao tópico (HERITAGE, 2013HERITAGE, J. (2013). Epistemics in conversation. In: SIDNELL, J.; STIVERS, T. (eds.). The Handbook of Conversation Analysis. Chichester: Blackwell Publishing, p. 370-394.). Em seguida, E2, no papel de Terceiro, avalia positivamente o enunciado construído por E3 e E6 (“isso isso”, l. 3) e, com o trecho “e a menina é mais o psicológico”, abandona o papel de Terceiro e assume o de Proponente, aliando-se a E3 e E6, ao propor uma comparação com o que E3 havia dito sobre “os homens” na linha 1.

Para sustentar o ponto de vista construído até esse momento por E3, E2 e E6, E3, nas linhas 07-09, elabora uma justificativa complexa em que, primeiro, se apoia em uma ideia do senso comum segundo a qual “eu sou homem então eu posso\” (l. 4). Em seguida, E3 valida a comparação proposta por E2 por meio de dois procedimentos: o uso do advérbio “agora”, que, no trecho, atua como um conector argumentativo (CUNHA, 2017CUNHA, G. X. (2017). O papel dos conectores na co-construção de imagens identitárias: o uso do mas em debates eleitorais. ALFA. v. 61, p. 599-623.), e a ação de olhar para E2 no momento em que, após uma hesitação (MARCUSCHI, 2006MARCUSCHI, L. A. (2006). Hesitação. In: Jubran, C. C. A. S.; Koch, I. G. V. (orgs.), Gramática do português culto falado no Brasil: construção do texto falado, v. I, p. 48-70.), repete o termo “psicológico”, usado por E2, como um procedimento que lhe permite, enquanto homem, conceder primazia epistêmica à sua colega, E2, na abordagem de tópico que recai mais no território epistêmico dela no que no dele (HERITAGE, 2013HERITAGE, J. (2013). Epistemics in conversation. In: SIDNELL, J.; STIVERS, T. (eds.). The Handbook of Conversation Analysis. Chichester: Blackwell Publishing, p. 370-394.). Ao final de seu turno, E3 indica, por meio da expressão conectiva “por causa” (l. 6), que vai explicar por que “elas [as mulheres] fazem mais o: psicológico”. Nesse momento, E6 se vale novamente da coenunciação, ao dizer “por vaidade” (l. 8), para colaborar com E3 na construção conjunta da explicação. Ao olhar para E6 e repetir a expressão, E3 avalia como pertinente o argumento expresso por E6 (OLOFF, 2018OLOFF, F. (2018). L’hetero-repetition comme validation des completions collaboratives Analyse sequentielle et multimodale de sequences de co-construction. In: Richard, E. (ed.), Des organisations «dynamiques» de l’oral. Bern: Peter Lang, p. 267-285.) e novamente utiliza o recurso do olhar para conceder à sua colega primazia epistêmica na abordagem do tópico.

Ao longo de toda essa sequência, os demais estudantes, os profissionais localizados atrás das câmeras e os espectadores do vídeo assumem o papel de Terceiro. No excerto, E5 materializa esse papel ao expressar sua concordância verbal (“oéo”, l. 9) e corporalmente (movimento afirmativo de cabeça).

O conhecimento dessa instabilidade configuracional é importante porque permite avaliar os desafios que enfrentam as/os estudantes na tarefa de gerir a interação, mobilizando sua competência argumentativa. Assim, as especificidades desse contexto fazem com que os procedimentos necessários para o desenvolvimento de uma argumentação considerada satisfatória sejam parcialmente distintos daqueles inventariados em estudos clássicos no campo da argumentação (cf. PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. (2005). Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes.), cuja situação argumentativa tomada como referência é a do orador dirigindo-se a uma plateia que não intervém durante o pronunciamento do discurso ou mesmo a da argumentação escrita. Aqui, além de procedimentos argumentativos tradicionais, como a formulação do argumento mais adequado para o contexto, as/os estudantes, dada a ausência de restrições prévias para a tomada de turnos, também precisam “saber” ocupar o turno, expressar concordância, elaborar unidades sintáticas conjuntamente, ratificar ou não uma coenunciação, incorporar ao seu o ponto de vista anteriormente expresso pelo interlocutor, procedimentos de formulação do texto dialogal que, nesse contexto, ganham valor argumentativo.

E vale ainda ressaltar a dimensão identitária dos procedimentos empregados pelas e pelos estudantes. Como notado, o uso de procedimentos, como o olhar de E3 concedendo primazia epistêmica às colegas ou a coenunciação das estudantes E2 e E6 reivindicando essa mesma primazia, revela que elas e eles estão atentos ao modo como, ao longo da interação, categorizações de pertencimento (RAYMOND; HERITAGE, 2006RAYMOND, G.; HERITAGE, J. (2006). The epistemics of social relations: owning grandchildren. Language in Society, v, 35, p. 677-705.; WATSON; GASTALDO, 2015WATSON, R.; GASTALDO, E. (2015). Etnometodologia & Análise da Conversa. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio.) mobilizadas pelos próprios interactantes, homem e mulher, são interacionalmente construídas.

Do ponto de vista institucional, o debate entre as/os estudantes, como anteriormente informado, faz parte de uma campanha do governo do Estado de São Paulo para combater o bullying nas escolas, assumindo, por isso, uma função cidadã de primeira importância (BURGER, 1999BURGER, M. (1999). Identités de status, identités de role. Cahiers de linguistique française. v. 21, p. 35-59., 2004BURGER, M. (2004). La gestion des activités: pratiques sociales, roles interactionnels et actes de discours. Cahiers de linguistique française. v. 26, p. 177-196.). Além disso, por ter sido hospedado em plataformas digitais, como o YouTube, o vídeo pode ser visto por número expressivo e indefinido de espectadores, bem como utilizado por professoras e professores em atividades didáticas as mais diversas. Essas propriedades de ordem institucional fazem com que o debate a que assistimos, ainda que se caracterize por um sistema de tomada de turnos semelhante ao da conversa (SACKS; SCHEGLOFF; JEFFERSON, 1974SACKS, H.; SCHEGLOFF, E.; JEFFERSON, G. (1974). A simplest systematics for the organization of turn-taking in conversation, Language. v. 50, p. 696-735.), seja muito distinto de uma interação em que seis estudantes discutem o bullying na hora do recreio ou na sala de estar da casa de um deles, por exemplo, e podem impactar tanto a seleção quanto a frequência dos procedimentos realizados ao longo da interação.

A evidência mais direta desse impacto está no fato de que as/os estudantes, ao longo de todo o vídeo, olham constantemente para a câmera central e, portanto, para o profissional que a opera. Assim, tanto a câmera, gravando a interação, quanto o profissional que a opera constituem um “lembrete” permanente para os estudantes de que a atividade que estão realizando constitui uma “interação institucional” (DREW; HERITAGE, 1992DREW, P.; HERITAGE, J. (eds.). (1992). Talk at work: interaction in institutional settings. Cambridge: Cambridge University Press.). Ainda que o profissional posicionado atrás da câmera não intervenha, o fato de os estudantes o escolherem constantemente como interlocutor endereçado (GOFFMAN, 1981GOFFMAN, E. (1981). Footing. In: Goffman, E. Forms of talk. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, p. 124-159.) mostra que ele não constitui um interlocutor passivo, mas sim um Terceiro cuja avaliação tem proeminência em relação à aos demais.

Além desse impacto mais evidente, outros procedimentos realizados parecem se explicar pela natureza institucional da interação. Nela verificou-se uma predominância de sequências afiliativas (MONDADA, 1999MONDADA, L. (1999). L’organisation séquentielle des ressources linguistiques dans l’élaboration collective des descriptions. Langage et société. v. 89, p. 9-36.), ou seja, sequências cujos interlocutores se valem de recursos verbais e não-verbais para mostrar concordância e envolvimento com os pontos de vista expressos. Nessas sequências, de que um exemplar é o excerto 1, analisado anteriormente, um ou alguns estudantes em coalizão assumem o papel de Proponente, enquanto os demais assumem o papel de Terceiro e se valem de diferentes recursos para avaliarem a opinião do Proponente como adequada. No debate em análise, os recursos mais usados pelo Terceiro para expressar concordância, afiliação e envolvimento com o ponto de vista do Proponente foram a repetição ou a reformulação parafrástica (ROSSARI, 1993ROSSARI, C. (1993). Les opérations de reformulation: analyse du processus et des marques dans une perspective contrastive français-italien. Berne: Lang., 2000ROSSARI, C. (2000). Connecteurs et relations de discours: des liens entre cognition et signification. Nancy: Presses universitaires de Nancy.) da fala ou de partes da fala do Proponente e expressões de concordância (HILGERT, 2003HILGERT, J. G. (2003). A colaboração do ouvinte na construção do enunciado do falante: um caso de interação intraturno. In: Preti, D. (org.), Interação na fala e na escrita. São Paulo: Humanitas, p. 89-124.) como “é” e “exatamente”. No excerto (2), todos esses procedimentos foram empregados.

(2) (0min.47 seg.-1min.12seg.)

01 E6 sempre existiu e sempre vai existir brincadeiras e 02 coisas tipo de salas qualquer lugar onde tenha um 03 grupo de pessoas que: constantemente ficam juntas\ 04 E4 é 05 E6 sempre existiu isso desda minha mãe ela comentava 06 comigo história que passou 07 E1 > E6 é comum ((pausa de 3 segundos e olha para a 08 câmera central)) mas tem a questão né/ antes não 09 era tão: assim né/ porque não tinha 10 E4 não tinha termo naquela época 11 E5 é 12 E3 exatamente 13 E4 naquela época não tinha um nome hoje tem 14 E5 não tinha termo

Após E6, que assume inicialmente o papel de Proponente, defender que o bullying sempre existiu (l. 1-3), E4, no papel de Terceiro, expressa uma primeira concordância (“é”, l. 4). Em seguida, E6 reitera que sempre existiu bullying e, usando o exemplo como uma evidência para sustentar sua opinião, menciona a experiência vivida por sua mãe (l. 5-6). Na sequência, E1, olhando para E6, reformula a informação de que bullying sempre existiu por meio da expressão “é comum” (l. 7), para expressar que concorda com E6.

Depois de pausa de três segundos, como ninguém se seleciona como próximo locutor e como E1 desvia o olhar de E6 para a câmera central, não selecionando, portanto, E6 como próximo locutor, E1 mantém o turno (SACKS; SCHEGLOFF; JEFFERSON, 1974SACKS, H.; SCHEGLOFF, E.; JEFFERSON, G. (1974). A simplest systematics for the organization of turn-taking in conversation, Language. v. 50, p. 696-735.) não para reiterar sua concordância, mas para, assumindo o papel de Proponente, desenvolver o argumento iniciado por E6. Esse desenvolvimento ocorre de forma colaborativa entre E1 e E4. Nas linhas 8-9, E1, sem negar que o bullying sempre existiu e, portanto, sem assumir um papel de Oponente em relação a E6, lembra, porém, que o assunto “antes não era tão: assim né/ porque não tinha”. Embora esse segmento seja bastante lacunar dos pontos de vista sintático e semântico, a coenunciação de E4 na linha 10 (“não tinha termo naquela época”), bem como a ausência de pedidos de esclarecimento ou clarificação (ROULET; FILLIETTAZ; GROBET, 2001ROULET, E.; FILLIETTAZ, L.; GROBET, A. (2001). Un modèle et un instrument d’analyse de l’organisation du discours. Berne: Peter Lang.; CUNHA, 2021bCUNHA, G. X. (2021b). Para uma caracterização formal e funcional da troca subordinada de clarificação. DIACRITICA. v. 35, p. 207-228.) por parte dos demais estudantes evidenciam que o segmento, no contexto, foi compreendido.

Após a coenunciação, E5 e E3 utilizam as expressões “é” e “exatamente”, respectivamente, para expressar sua concordância com a opinião colaborativamente construída por E6, E1 e E4, assumindo uma postura afiliativa e revelando que, para E5 e E3, essa opinião possui completude pragmática (OCHS; SCHEGLOFF; THOMPSON, 1996OCHS, E.; SCHEGLOFF, E.; THOMPSON, S. (eds.). (1996). Interaction and grammar. Cambridge: Cambridge University Press.). Em seguida, enquanto E4 reformula e reforça o argumento que expressou na linha 20, E5, em sobreposição, ratifica esse argumento, repetindo a expressão usada por E4 (“não tinha termo”, l. 14).

Como bem evidencia esse excerto, no debate em análise, diferentemente do que ocorre em debates cujos participantes buscam a ampliação ou a resolução do diferendo ou desacordo (PLANTIN, 1996PLANTIN, C. (1996). Le trilogue argumentatif. Présentation de modèle, analyse de cas. Langue française. v. 112, p. 9-30.; KERBRAT-ORECCHIONI, 2016KERBRAT-ORECCHIONI, C. (2016). Le désaccord, réaction « non préférée » ? Le cas des débats présidentiels. Cahiers de praxématique. v. 67, p. 1-20.; CUNHA, 2019CUNHA, G. X. (2019). Estratégias de impolidez como propriedades definidoras de interações polêmicas. Delta. v. 35, n. 2, p. 1-28.), o que é objeto de negociação é o acordo. Em outros termos, as/os estudantes evitam assumir posicionamentos antagônicos e confrontacionais e se esforçam, por meio dos recursos focalizados, em construir coalizões em torno do mesmo ponto de vista e expressar afiliação, o que entendemos se dever à natureza institucional mais ampla do debate de que estão participando.

No debate, tal como apresentado no vídeo, houve dissenso uma única vez, ou seja, em apenas uma sequência (excerto 3), uma das estudantes assumiu de forma ostensiva o papel de Oponente. No excerto, em que só alunas tomam a palavra, os pontos de vista de Proponente e Oponente oferecem respostas antagônicas à pergunta implícita “Em relação ao bullying, é fácil definir o que é certo e o que é errado?”.

(3) (1min.15seg.-2min.22seg.)

01 E2 tinha uma matéria ontem na internet de um menino que bateu 02 no outro. e: o mundo inteiro viu ele como vilão\. e ele se 03 sentiu incomodado então acho que com isso ele sentiu na 04 pele o quanto +dói+ quando fazem com você então acho que a 05 melhor maneira não é você revidar na mesma moeda\ é você 06 mostrar que tá errado e repreender é que nem quando você é 07 pequena quando mexe em alguma coisa cê fala +não+ vai se 08 machucar\ agora você: por um motivo revidar cê vai piorar/ 09 cê vai fazer com que ele pense que ele pode continuar 10 fazendo porque fizeram com ele\ 11 E1 ele faz mais e mais 12 E4 ah eu num acho que tem um vilão e tem a vítima eu acho que 13 tem o que é certo e o que é errado\. num é vilão\ é 14 errado\ num é vítima\ é o certo\. entendeu/ tem essa 15 também\ é aquela coisa da acusa e defesa\ 16 E6 é bem sujsubjetivo julgar quem tá certo e quem tá 17 errado\ mas uma coisa éh éh:: nós podemos identificar que. 18 a partir do momento que tem uma pessoa que tá 19 desconfortável que. mostra pra todo mundo que. ela não tá 20 bem com a situação/ eu acho que tá mais no momento da 21 gente parar e repensar o que esse outro fez\

Assumindo o papel de Proponente, E2 produz um longo turno em que utiliza vários exemplos para sustentar a ideia de que “a melhor maneira não é você revidar na mesma moeda\ é você mostrar que tá errado e repreender” (l. 4-6). No papel de Terceiro, E1, ao dizer “ele faz mais e mais” (l. 11), reformula o segmento “ele pode continuar fazendo” (l. 9-10), dito por E2, expressando sua concordância. Em seguida, E4, que em coalizão com E2 assume o papel de Proponente, desenvolve a ideia defendida por E2 de que é preciso “mostrar que tá errado e repreender” (l. 6). Para isso, E4 expressa a seguinte opinião: “eu num acho que tem um vilão e tem a vítima eu acho que tem o que é certo e o que é errado\.” (l. 12-13). Para defender essa opinião, E4 alterna sentenças positivas e negativas (“num é vilão\ é errado\ num é vítima\ é o certo\. entendeu/”, l. 13-14) e usa uma marcação rítmica regular em sua elocução, procedimentos que motivam a interpretação de que essas sentenças se articulam por contra-argumento (MOESCHLER, 1985MOESCHLER, J. (1985). Argumentation et conversation: éléments pour une analyse pragmatique du discours. Paris: Hatier-Credif.; JACQUIN, 2015JACQUIN, J. (2015). S’opposer à autrui en situation de co-présence: la multimodalité de la désgnation contre-argumentative. Semen. v. 39, p. 2-13.).

Em seguida, E6 produz um turno em que assume o papel de Oponente. Em seu turno, E6, ao dizer “é bem sujsubjetivo julgar quem tá certo e quem tá errado\” (l. 16-17), revela e questiona o implícito na fala de E4 de que é possível avaliar com objetividade o que é certo e o que é errado. Depois, E6 utiliza o conector “mas” (l. 17) para sinalizar que a opinião que vai introduzir com o conector (é preciso identificar se uma ação causou desconforto em alguém) é divergente em relação à de E4.

Após E6 concluir o turno, realiza-se, pelo trabalho de edição, um corte na sequência e passa-se a um novo subtópico relacionado ao bullying. Assim, não é possível saber se o surgimento desse ponto de vista contrário motivou uma gestão do dissenso. Contudo, verifica-se que, diferentemente do que vimos nos excertos anteriores, a fala de E6 não motivou nem a concordância de colegas, por meio de expressões de assentimento durante a elaboração do turno, nem a formação de alianças, por meio de coenunciações, nem a interrupção de E6 por E4, para refutar o implícito, se justificar ou fazer valer seu ponto de vista, como ocorre em interações marcadas pelo dissenso (MONDADA, 1999MONDADA, L. (1999). L’organisation séquentielle des ressources linguistiques dans l’élaboration collective des descriptions. Langage et société. v. 89, p. 9-36.; CUNHA, 2019CUNHA, G. X. (2019). Estratégias de impolidez como propriedades definidoras de interações polêmicas. Delta. v. 35, n. 2, p. 1-28.). O comportamento das/dos estudantes durante a elaboração do turno de E6, bem como os procedimentos afiliativos realizados por elas e eles em outras passagens revelam, de forma bastante interessante, a percepção de que dispõem acerca do tipo de interação, ao mesmo tempo, argumentativa e institucional para a qual foram convidados e do tipo de comportamento que podem ou não adotar ao longo da interação. Revelam, assim, a competência argumentativa de que dispõem para participar desse debate.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, definimos a competência argumentativa como o conjunto dos procedimentos que os interlocutores efetivamente adotam para definir conjunta e reflexivamente a situação em que estão inseridos como argumentativa. Na perspectiva aqui adotada, essa competência não corresponde a um conjunto estabilizado de recursos e habilidades que, desde que decorados pela/pelo estudante, seriam por ela/ele utilizados em contextos diversos, independentemente das particularidades de cada interação. Adotando uma concepção interacionista de língua/linguagem, entendemos que todos os recursos usados pelos interlocutores na construção de uma prática social, como a de debater pontos de vista em contradição, são reflexivos, situados e articulados ao modo como eles interpretam essa prática (PEKAREK DOEHLER, 2006PEKAREK DOEHLER, S. (2006). Compétence et langage en action. Bulletin suisse de linguistique appliquée. v. 84, p. 09-45.). É por isso que, na reflexão que propusemos sobre a noção de competência argumentativa, articulamos os estudos sobre a noção de competência interacional e sobre uma noção dialogal de argumentação. Nessa reflexão, substitui-se uma concepção simplista de argumentação como um arsenal de recursos prontos para uso pela concepção de argumentação em (inter)ação.

Munidos desse arcabouço teórico, pudemos sustentar que o desenvolvimento pelos estudantes de uma competência argumentativa ocorre não por meio da memorização de técnicas argumentativas descontextualizadas, mas por meio da análise de interações argumentativas efetivas e da participação dos estudantes em interações em que se sustentam e se defendem pontos de vista em contradição. É essa participação que, conforme a perspectiva aqui assumida, lhes permitirá compreender que o que faz com que os recursos verbais e não-verbais que utilizam assumam valor argumentativo não é algum atributo semântico, pragmático ou retórico desses recursos tomados isoladamente, mas antes seu uso por um interactante que, em razão do modo como interpreta a interação, os avalia como adequados para argumentar e, assim, constituir essa interação como argumentativa. Em outros termos e como buscamos demonstrar com a análise do debate promovido pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e dos vários e complexos procedimentos usados pelos participantes, é a participação das/dos estudantes em interações efetivas que lhes permitirá compreender que é argumentando que se aprende a argumentar.

  • 1
    Para um panorama e uma discussão dos embates teóricos em torno da noção de competência em diferentes áreas do conhecimento, cf. Morato (2008)MORATO, E. (2008). Da noção de competência no campo da Linguística. In: Signorini, I. (org.), Situar a língua[gem]. São Paulo: Parábola, p. 39-66..
  • 2
    Para o conhecimento de abordagens da competência argumentativa que também se valem de contribuições da proposta de Plantin, cf. Azevedo (2019)AZEVEDO, I. C. M. (2019). Confluencias y distinciones entre las nociones de capacidad y competencia argumentativas. In: Vitale, M. A. et al. (orgs.), Estudios sobre discurso y argumentación. Coimbra: Grácio Editor, p. 167-193. e Azevedo e Santos (2018)AZEVEDO, I. C. M.; SANTOS, E. S. (2018). Desenvolver a competência argumentativa na escola: um desafio para o professor de língua portuguesa. In: Azevedo, I. C. M.; Piris, E. (orgs.), Discurso e Argumentação: fotografias interdisciplinares. Coimbra: Grácio Editor, v. II, p. 63-80.. Em Azevedo (2019)AZEVEDO, I. C. M. (2019). Confluencias y distinciones entre las nociones de capacidad y competencia argumentativas. In: Vitale, M. A. et al. (orgs.), Estudios sobre discurso y argumentación. Coimbra: Grácio Editor, p. 167-193., encontra-se ainda uma relevante discussão sobre as noções de competência e capacidade argumentativas.
  • 3
    Cf. a abordagem dos conectores e operadores argumentativos na Teoria da Argumentação na Língua (ou Pragmática integrada) (ANSCOMBRE; DUCROT, 1983ANSCOMBRE, J. C.; DUCROT, O. (1983). L’argumentation dans la langue. Liège: Pierre Mardaga.).
  • 4
    https://www.youtube.com/watch?v=pazvo7LPiTc) Último acesso: 04/04/2024.
  • 5
    https://www.youtube.com/watch?v=pazvo7LPiTc) (canal oficial no YouTube da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo). Último acesso: 04/04/2024.
  • 6
    No site da Secretaria de Educação, não são informados o nível de escolaridade e a idade dos participantes da interação, mas é possível inferir que se trata de estudantes do Ensino Médio.
  • 7
    As pesquisas de Jacquin (2014)JACQUIN, J. (2014). Débattre: l’argumentation et l’identité au coeur d’une pratique verbale. Bruxelles: De Boeck Duculot. e Damasceno-Morais (2021)DAMASCENO-MORAIS, R. (2021). Coalizão argumentativa em práticas discursivas jurídicas. Acta Scientiarum. v. 43, p. 1-12. também propõem essa aproximação/articulação da abordagem de Plantin e da Análise da Conversa etnometodológica.

Agradecimentos

Este trabalho se realizou no período em que o primeiro autor era professor-residente no IEAT (Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares), da UFMG. Ele agradece ao IEAT as condições favoráveis à sua realização e agradece ainda ao CNPq a concessão da bolsa de produtividade em pesquisa.

DECLARAçãO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA

Como expresso na metodologia do artigo, o vídeo que compõe o corpus da pesquisa está disponível para consulta em www.readingtolearn.au podendo ser acessado livremente, sem que seja necessária a realização de cadastro ou pedido de autorização específica para sua visualização. Além disso, as informações sobre a campanha institucional de que o vídeo faz parte estão disponíveis em https://online.unisc.br/seer/index.php/signo/issue/view/683.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2023
  • Aceito
    05 Abr 2024
  • Publicado
    10 Abr 2024
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