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A PRODUÇÃO DISCURSIVA DO REFÚGIO: NARRATIVAS, PERFORMATIVIDADE E IDEOLOGIAS LINGUÍSTICAS NO SISTEMA BRASILEIRO DE ELEGIBILIDADE

THE DISCURSIVE PRODUCTION OF REFUGE: NARRATIVES, PERFORMATIVITY AND LINGUISTIC IDEOLOGIES IN THE BRAZILIAN ELIGIBILITY SYSTEM

RESUMO

Neste artigo, refletimos, desde uma perspectiva discursiva, sobre o processo formal de elegibilidade de solicitantes de refúgio no Brasil. O objetivo central é sublinhar a dimensão performativa da produção do refugiado, aqui compreendido como um rótulo que depende de práticas discursivas - em especial narrativas -, de que participam os/as solicitantes, oficiais e demais atores sociais que compõem o sistema jurídico e burocrático do refúgio. Nessas práticas, o que parece estar em jogo são as competências narrativas do/a solicitante e entrevistadores/as em conformar a experiência de migração em uma matriz de inteligibilidades sobre o deslocamento humano e sobre o funcionamento da linguagem. A partir da análise de elementos de pelo menos duas importantes pontas do processo - textos de documentos normativos e entrevistas com voluntários que preparam solicitantes para suas entrevistas de elegibilidade -, mostramos como ideologias linguísticas, especialmente crenças sobre a natureza da construção narrativa, operam como protagonistas de tal processo institucional.

Palavras-chave
refúgio; elegibilidade; narrativa; ideologias linguísticas

ABSTRACT

In this article, we reflect on the formal process of asylum eligibility in Brazil from a discursive perspective. We aim to underline the performative dimension of the refugee’s production. This label is understood here as dependent on discursive practices - especially narratives -, in which the applicants, officials, and other social actors participate. In these practices, what seems to be at stake are the narrative competencies of the asylum seeker and interviewers in shaping the migration experience into a matrix of intelligibility about human displacement and language functioning. We analyze at least two important aspects of the process: the texts of normative documents and interviews with volunteers who prepare applicants for their eligibility interviews. We then show how linguistic ideologies, especially beliefs about the nature of narrative construction, operate as protagonists of such an institutional process.

Keywords:
refuge; eligibility; narrative; linguistic ideologies

INTRODUÇÃO

A Linguística Aplicada brasileira vem, nos últimos anos, ampliando sua presença nos estudos sobre migração e refúgio. Os trabalhos sobre direitos e políticas linguísticas e a reflexão sobre ensino de língua para imigrantes, especialmente desde a perspectiva do acolhimento (ARANTES et. al. 2016ARANTES, P. et. al. (2016). Língua e alteridade na acolhida a refugiados: por uma micropolítica da linguagem. Fórum linguístico. v.13, n.2, p.1196-1207.; BULLA et. al., 2017BULLA, G. et al. (2017). Imigração, refúgio e políticas linguísticas no Brasil: reflexões sobre escola plurilíngue e formação de professores a partir de uma prática educacional com estudantes haitianos. Organon. v. 32, n. 62, p. 1-14.; CRUZ, 2022CRUZ, L. D. (2022). Ideologias linguísticas e construções de subjetividades em materiais didáticos de língua inglesa: um caso sobre refugiados. Trabalhos em Linguística Aplicada. v. 61, n. 1, p. 236-250.; PINTO; KRUGER, 2023PINTO, J.; KRUGER, A. L. (2023). Barreiras ou pontos de inspeção? Ideologias linguísticas sobre migração e o modelo de comunicação moderno-colonial. Gragoatá. v. 28, n. 60, e-53275., entre outros), têm ocupado o centro dessas discussões, enquanto no campo dos estudos do discurso começam a despontar aqueles que se dedicam à imaginação de sujeitos em movimento em materiais de mídia e documentos institucionais (por exemplo, SILVA, 2021aSILVA, D. (2021). Circulação de discursos de ódio online contra refugiados: entextualização, indexicalidade e inteligibilidade. Fórum linguístico. v.18, n. 3, p. 6416-6429.; CAVALCANTI; BIZON, 2020CAVALCANTI, M.; BIZON, A. (2020). Threads of a hashtag: entextualization of resistance in the face of political and sanitary challenges in Brazil. Trabalhos em Linguística Aplicada, v.59, n.1, p.1966 - 1994.; SILVA, 2021bSILVA, I. (2021). “Bota fogo nesses vagabundos!”: entextualizações de xenofobia na trajetória textual de uma fake news. Trabalhos em Linguística Aplicada. v. 59, n. 3, p. 2123-2161.) e aqueles dedicados a análises de autoapresentação, ou representações alternativas, de sujeitos migrantes (por exemplo, BIZON; DANGIÓ, 2018BIZON, A. C.; DANGIÓ, G. V. (2018). Vozes do Programa Emergencial Pró-Haiti: narrativas de racialização do ser haitiano. Revista X, v.13, n. 1, p.168-191.; FARIA, 2021FARIA, B. (2021). (Auto)Representações sociodiscursivas de imigrantes e refugiados no contexto das “migrações Sul-Sul”. Revista da ABRALIN. v. 20, n. 3, p. 262-288.; RODRIGUES, 2021RODRIGUES, C. (2021). “Sou um corpo estranho no conjunto”: narrativas de um estudante negro migrante em uma universidade brasileira. Trabalhos em Linguística Aplicada. v. 60, n. 1, p. 114-125.; BIAR; SILVA, no preloBIAR, L.; SILVA, M. Narrativas da Fronteira: paisagens discursivas da imigração venezuelana no Brasil. Revista Monções, no prelo.)1 1 Esta revisão refere-se apenas a pesquisas brasileiras sobre imigração/refúgio no Brasil. No âmbito internacional, ou em pesquisas brasileiras sobre imigrantes em outras partes do mundo, os estudos se multiplicam. .

Neste artigo, no entanto, adentramos os estudos sobre migrações por outra via. Nosso objetivo geral é refletir sobre a centralidade da narrativa, da performance e das crenças acerca desses elementos no processo formal de elegibilidade de solicitantes de refúgio no Brasil. Embora existente em estudos do/sobre o norte global (BLOMMAERT; 2009BLOMMAERT, J. (2009). Language, Asylum, and the National Order. Current Anthropology. vol. 50, n. 4, p. 415-441.; JACQUEMET, 2005JACQUEMET, M. (2005). The registration interview: Restricting refugees’ narrative performances. In: Baynham, M.; De Fina, A. (eds.), Dislocations/Relocations: Narratives of displacement. Manchester, UK & Northampton: St. Jerome, p. 197-220.; MARYNS, 2006MARYNS, K. (2006). The Asylum Speaker: Language in the Belgian Asylum Procedure. Manchester: St Jerome Publishing.; SHUMAN; BOHMER, 2020SHUMAN, A.; BOHMER, C. (2020). Discourse and narrative in legal settings: The political asylum process. In: De Fina, A. ; Georgakopoulou, A. (eds.), The Handbook of Discourse Studies. Cambridge: Cambridge University Press, p. 547-570., entre outros), esta abordagem, centrada nos processos de solicitação de refúgio, ainda é pouco explorada pela Linguística Aplicada brasileira. Estamos falando de estudos que se debrucem sobre práticas discursivo-interacionais de que participam ativamente sujeitos refugiados ou solicitantes em diferentes momentos do processo de elegibilidade. Servem-nos de dados neste estudo as informações sobre o funcionamento do sistema de refúgio brasileiro, os documentos norteadores desse processo e, especialmente, entrevistas realizadas com técnicos, voluntários e demais atores desse sistema.

Em trabalho anterior, interessou a uma das autoras do artigo (CASTRO, 2020CASTRO, F.R. (2020). Refúgio e injustiça epistêmica: uma análise a partir do Brasil. Tese de Doutorado em Relações Internacionais. Instituto de Relações Internacionais, PUC-Rio, Rio de Janeiro.), desde o campo das Relações Internacionais, observar os modos como o sistema de refúgio operava e produzia assimetrias consistentes com o conceito de injustiça epistêmica de Fricker (2007)FRICKER, M. (2007). Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. New York: Oxford University Press.2 2 Segundo Miranda Fricker (2007), injustiça epistêmica refere-se à negação do direito aos sujeitos de produzirem significados sobre si mesmos. Destituídos de sua capacidade enquanto sujeitos de conhecimento, certos grupos e indivíduos participam de forma desigual na produção de discursos legitimados sobre suas experiências sociais. Na tese de Castro (2020), o contexto do refúgio é caracterizado como um campo em que se produzem injustiças epistêmicas em diferentes instâncias, nas quais o conhecimento produzido sobre o refugiado sempre escapa de seus próprios termos. . Desta vez, temos em vista outros objetivos específicos, quais sejam:

  • (i) refletir sobre a construção discursiva e os tensionamentos da categoria de refúgio no Brasil, sublinhando as formas como alguns conceitos caros à Linguística Aplicada contemporânea (MOITA LOPES, 2006MOITA LOPES, L.P. (2006). Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial.)3 3 Entendemos a área de Linguística Aplicada a partir da virada epistemológica descrita por Moita Lopes (2006): uma que propõe novos modos de teorizar reunindo contribuições de diferentes centros disciplinares, com propósito de compor inteligibilidades complexas para problemas do mundo real em que a linguagem tem papel constitutivo. Por isso, combinamos aqui, como se verá, contribuições da filosofia, sociolinguística, pragmática e dos estudos discursivos da narrativa. -, especialmente narrativa, performatividade e letramento social - podem contribuir para a análise dos processos de categorização e recepção de populações em deslocamento e

  • (ii) analisar as ideologias linguísticas - pré-teoricamente definidas como crenças das pessoas sobre a própria linguagem e construção narrativa - que operam no próprio processo de concessão do estatuto de refúgio, perguntando-nos sobre como crenças dos atores sobre a natureza da construção narrativa operam nesse processo institucional.

Os dois objetivos se irmanam na tentativa de oferecer um mapeamento inicial de agenda de pesquisa preocupada com o papel central da linguagem na construção de sentidos sobre refúgio em tipos de dados e contextos institucionais ainda não explorados pela área no Brasil.

Para cumprir tal propósito, iniciamos este texto com uma descrição das fases e atores sociais envolvidos no processo de elegibilidade. Em seguida, para dar conta do objetivo (i), discutimos a centralidade da prática narrativa e apresentamos o nosso argumento sobre a dimensão performativa do processo, mostrando de que forma podemos pensar em uma ordem discursiva do refúgio, da qual deriva a produção desta categoria. Enfim, enfocando agora o objetivo (ii), analisamos as ideologias linguísticas que rondam o campo do refúgio destacando dois contextos principais: os documentos institucionais da elegibilidade e o trabalho de organizações da sociedade civil.

1. O PROCESSO DE ELEGIBILIDADE NO BRASIL

Herdeiro do regime internacional de direitos humanos, no contexto pós-segunda guerra, o processo brasileiro que define a elegibilidade de pessoas refugiadas tem como marcos normativos a Convenção das Nações Unidas de 1951 e o protocolo de 1967 relativo ao estatuto dos refugiados. Esses documentos definem formalmente a categoria de refugiado com base em critérios que dizem respeito às motivações do deslocamento. No Brasil, por exemplo, uma definição bem conhecida é aquela que estabelece que refugiados

são pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados4 4 Fonte: Refugiados - UNHCR ACNUR Brasil. .

Os marcos normativos internacionais adicionalmente estabelecem direitos e deveres da relação entre refugiados e os países que os acolhem, embora não prescrevam especificamente os procedimentos formais a serem adotados. Tal tarefa ficará a cargo dos Estados Nacionais. No caso brasileiro, é a lei 9.474 de 1997 que define a proteção jurídica e estabelece os procedimentos de ingresso no país e pedido de refúgio. A lei brasileira também cria o CONARE (Comitê Nacional para os Refugiados), presidido pelo Ministério da Justiça e composto por representantes de outros ministérios5 5 Ministério da Justiça; Ministério das Relações Exteriores; Ministério do Trabalho e Emprego; Ministério da Saúde; Ministério da Educação. A Defensoria Pública da União tem status de membro consultivo e o Instituto de Migrações e Direitos Humanos (IMDH) participa como membro observador. , da Polícia Federal, de organizações da sociedade civil6 6 Desde o estabelecimento da Lei, esta representação é feita pela CÁRITAS Arquidiocesana do Rio de Janeiro (CÁRITAS-SP atua como suplente). e do ACNUR - Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. O Comitê é responsável pela análise dos pedidos e decisões a respeito do refúgio no país.

No Brasil e no mundo, tornar-se elegível para a categoria de refúgio envolve muita burocracia e passagens por várias etapas institucionais. Ainda assim, em linhas muito gerais, podemos dizer que todo processo de se tornar refugiado/a vai depender fundamentalmente da possibilidade de, ao se cruzar uma fronteira, contar (e recontar, talvez muitas vezes) uma história crível sobre deslocamento forçado. Para leitores/as não familiarizados com o processo, apresentamos a seguir o conjunto de procedimentos que constitui a jornada mínima daquele/a que ingressa o país pleiteando a condição de refugiado/a:

  1. Chegada à fronteira. Assim que cruzam a fronteira de um país, sujeitos de quaisquer nacionalidades têm o direito de solicitar a condição de refugiado. No Brasil, o/a solicitante terá de interagir, em primeiro lugar, com a Polícia Federal (PF), órgão responsável pela gestão de fronteiras, que formalizará a solicitação de refúgio. Por vezes, como se verá adiante, são certas organizações da sociedade civil que encaminham o/a solicitante à Polícia Federal para dar entrada no pedido. A PF, então, a partir do pedido do/a solicitante, lavrará um termo de declaração com os dados do/a refugiado/a e sua justificativa para o pedido de refúgio. Note-se que desde esse primeiro momento uma questão linguística se impõe, já que, não necessariamente solicitante e oficial falam a(s) mesma(s) língua(s)7 7 Para pensar nos direitos linguísticos dos migrantes de língua estrangeira no Brasil, ver, por exemplo, Balestro e Gorovitz (2021). Embora essa seja uma questão central do processo de elegibilidade, encontra-se fora do escopo deste artigo. .

  2. Preenchimento do formulário do CONARE. Após esse primeiro encontro com a Polícia Federal, o/a solicitante preenche um formulário que será enviado, pela própria Polícia Federal, ao CONARE. Tal formulário está disponível na internet em quatro línguas - português, inglês, francês e espanhol. O formulário deve ser preenchido em quaisquer dessas línguas com os dados pessoais e informações que digam respeito a sua alegada história de perseguição e/ou com os motivos de saída do país, eventuais temores, perspectivas de retorno, entre outras informações. Uma vez preenchido, o documento passa a ser peça central do processo de solicitação, pois será constantemente referido e revisitado por diferentes atores sociais em diferentes etapas da tramitação da solicitação. Após preenchimento do formulário, o/a solicitante poderá obter um protocolo de refúgio que servirá como documentação do processo até que a decisão final seja tomada.

  3. Atendimento em ONGs. Esta não é uma etapa obrigatória, mas, pela centralidade e complexidade da tarefa descrita acima, é comum que a Polícia Federal encaminhe o/a solicitante para uma instituição da sociedade civil (também pode acontecer de o solicitante ter acesso primeiramente a essas instituições e só a partir delas chegar à Polícia Federal). Tais instituições realizam atividades de assistência em relação ao preenchimento do formulário e demais trâmites com a Polícia Federal (para os que chegam no Rio de Janeiro ou São Paulo, é comum que a organização CÁRITAS8 8 Para uma apresentação da CÁRITAS, ver https://caritas.org.br/. cumpra esse papel). Na ocasião desses atendimentos, os/as membros/as da organização - em geral voluntários/as - repassam com os/as solicitantes as suas histórias, quando necessário com auxílio de intérpretes - também voluntários/as -, e conversam sobre aspectos importantes do preenchimento, como natureza, detalhamento e extensão das respostas. Na seção 4.2 deste artigo, apresentaremos algumas entrevistas realizadas com membros da CÁRITAS/RJ.

  4. Entrevista de elegibilidade. Após o encaminhamento do formulário, os/as solicitantes entram em compasso de espera até que seja agendada uma entrevista de elegibilidade com o CONARE. A entrevista é feita por um/a oficial da instituição, responsável por analisar a credibilidade do pedido. Nessa entrevista, faz-se uma apresentação inicial do processo, são solicitadas informações pessoais básicas do/a solicitante, que é instado a narrar, desta vez oralmente, a sua história, incluindo os motivos de saída do seu país de origem e razões para a solicitação de refúgio. Essa narrativa, naturalmente, deve ser coerente com o formulário preenchido na etapa anterior, e o/a oficial do CONARE estará especialmente atento/a às suas contradições e inconsistências. Como se verá a seguir, a noção de “credibilidade” é onipresente em todo processo, e está definida e qualificada em diferentes documentos orientadores produzidos por agências internacionais. Falaremos sobre esses documentos na seção 4.1.

  5. Debates no Grupo de Estudo Prévios do CONARE. Antes da elaboração de um parecer final sobre o pedido, um grupo técnico com expertise na área de refúgio, o Grupo de Estudos Prévios (GEP), se reúne para debater coletivamente os casos em análise. Estão representadas no GEP as seguintes instituições: Instituto Migrações e Direito Humanos, Ministérios Justiça, Ministério das Relações Exteriores, Polícia Federal, organizações da sociedade civil, ACNUR e Defensoria Pública9 9 Essas instituições são as mesmas que compõem o CONARE, e têm direito a participar do GEP. Na prática, nem todas estão presentes. Além disso, é importante mencionar que, embora as instituições do CONARE e do GEP sejam as mesmas, os/as representantes em um grupo e outro são pessoas diferentes. Não é raro que diferentes membros de uma mesma instituição discordem sobre os casos. . A discussão no âmbito do GEP não é uma etapa obrigatória, mas ocorre periodicamente em Brasília, com a função de auxiliar a decisão. Esse é um momento em que formulário, história oral e informações gerais sobre cada caso são confrontados com vistas a determinar a razoabilidade de cada pedido.

  6. Plenária de elegibilidade. Após a discussão, os/as membros do CONARE votam, de fato, a concessão ou não do estatuto de refúgio dos solicitantes. O voto é feito com base no parecer produzido na etapa anterior.

  7. Parecer de elegibilidade. Enfim, a presidência do CONARE elabora o parecer com a decisão final. Caso o pedido seja aceito, o/a então solicitante será registrado com o estatuto de refugiado e receberá uma cédula de identidade compatível com essa condição. Caso não seja aceito, mesmo após direito a recurso, o solicitante estará sujeito à legislação geral para estrangeiros.

Como se vê, não se espera do/a solicitante de refúgio que apresente documentos pessoais ou comprobatórios de seu “fundado temor de perseguição”. Em razão das circunstâncias forçadas de deslocamento, é pouco provável que ele/a mantenha consigo esse tipo de prova. O que se espera que seja “fundado” pode encontrar-se apenas nas histórias que são contadas durante o processo. Em trabalho pioneiro sobre a recepção de solicitantes de refúgio colombianos no Brasil, Angela Facundo (2017)FACUNDO, A. (2017). Êxodos, Refúgios e Exílios. Colombianos no Sul e Sudeste do Brasil. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2017. definiu que refugiados são produzidos em “regimes narrativos exaustivos”.

Em outras palavras, o processo inteiro de se tornar um refugiado depende da possibilidade de contar e da disponibilidade de ouvir uma história e de fazê-la circular sem obstáculos no sistema do refúgio. Além disso, essa não poderá ser qualquer história, mas uma com características que a conformem às expectativas do próprio sistema, com respaldo das instituições nele envolvidas. Essas são ideias centrais para o que se desenvolve a seguir.

Neste trabalho, a partir de uma perspectiva discursiva10 10 Ao longo deste texto, estamos adotando uma definição foucaultiana de discurso, isto é, entendendo discurso como prática social que funda e continua a dar forma aos objetos de que falam” (FOUCAULT, 1979). Sem confinar a reflexão que aqui se faz a uma escola específica dentre as várias abrigadas sob o rótulo “Análise do Discurso”, entendemos que o que fazemos é mirar o campo do refúgio com atenção especial às práticas simbólicas que o constituem, apostando que é dos processos de produção e circulação de sentido que ali se dão que emerge a própria categoria de refugiado. , que olha para os fenômenos a partir das ações sociais e simbólico-interpretativas que os constituem, interessa considerar a variedade de encontros, atores e trocas comunicativas que estão na base do sistema de refúgio, todas operações simbólicas organizadas em torno de práticas narrativas ou metanarrativas.

2. A ORDEM DISCURSIVA DO REFÚGIO

Nesta seção, focalizaremos o objetivo (i) descrito na introdução deste artigo, qual seja, explorar os modos como alguns conceitos caros à Linguística Aplicada contemporânea podem contribuir para a análise dos processos de elegibilidade no Brasil. Passamos então a desempacotar alguns aspectos teóricos que nos ajudarão a pensar o sistema do refúgio a partir de uma lente discursiva. São três as questões que nos interessam aqui: (i) como uma definição de narrativa de história de vida nos auxilia a observar o que acontece no contexto da elegibilidade; (ii) de que forma podemos pensar em uma produção performativa de sujeitos refugiados; (iii) os modos como performances refugiadas se dão em face a uma ordem discursiva normativa e (iv) como todo esse processo depende da inserção do/a solicitante em práticas de letramento de uma narrativa de deslocamento “ideal”.

2.1 Práticas narrativas

Na fundação do campo da Análise de Narrativas, histórias orais de experiência pessoal foram definidas como formas de recapitulação de uma experiência passada; modos de referenciar eventos numa ordem sequencial correspondente à ordem em que os eventos aconteceram de fato (LABOV; WALETZKY, 1967LABOV, W; WALETZKY, J. (1967). Narrative Analysis: oral versions of personal experience. In: Helm, J. (ed.). Essays on the verbal and visual arts. Seattle: University of Washington Press, p.12-44.). Comprometida com uma noção representacionista da narrativa, tributária da ideia de que a prática linguística seria meramente comunicativa e transmissiva, tal definição assume a autonomia de um passado concreto, identificável, que, posteriormente, via atividade simbólica, transforma-se em orações sequenciais que reproduzem a ordem dos eventos passados. Nessa visada, a/o solicitante de refúgio, nas ocasiões institucionais em que é instado/a a narrar, bastaria a tarefa relativamente simples de transpor em léxico e sintaxe a experiência vivida, base de seu fundado temor.

A perspectiva laboviana não foi uma posição teórica consensual no desenvolvimento do campo. Para Jerome Bruner (1990)BRUNER, J. (1990). Atos de significação. Tradução de Sandra Costa. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997., por exemplo, que explora a construção das narrativas cotidianas como uma prática cultural frequente e básica na vida humana, as narrativas não representam uma realidade que as antecede e a elas se sobrepõe. No lugar de se conformar a uma memória, a atividade de narrar é definida pelo autor como um ato de significação que transforma eventos, por vezes extraordinários e contraditórios, em histórias rentes às expectativas de aceitação culturais/históricas/institucionais e próprias do encontro interacional. Nesse sentido, passamos a ver a narrativa não por sua função informacional (o que aconteceu), mas por seu efeito pragmático (o que ela cria/faz) na vida social, sua capacidade de alimentar ou transformar cânones, crenças, memórias, identidades, etc. Também C. Linde (1993)LINDE, C. (1993). Life Stories, the creation of coherence. New York: Oxford University Press. põe em suspensão a ideia segundo a qual a temporalidade narrativa e as redes de causalidade entre fatos e incidentes narrados são transparentes em relação à ordem dos eventos que presumidamente ocorreram. Tal como Bruner, Linde defende, de forma quiçá excessivamente generalizante, que a coerência de uma história depende de crenças ou pressupostos assumidos e compartilhados por membros/as de uma cultura.

Mishler (2002)MISHLER, E. (2002). Narrativa e Identidade: a mão dupla do tempo. In: Moita Lopes, L. P.; Bastos, L. Identidades: recortes multi e interdisciplinares. Campinas: Mercado de Letras, p.97-119., por outro caminho, propõe uma distinção entre tempo cronológico e tempo experiencial própria das narrativas, argumentando que “a ordenação temporal é uma função tanto das preferências culturais por histórias bem formadas quanto da natureza situada que caracteriza a atividade de contar histórias” (MISHLER, 2002MISHLER, E. (2002). Narrativa e Identidade: a mão dupla do tempo. In: Moita Lopes, L. P.; Bastos, L. Identidades: recortes multi e interdisciplinares. Campinas: Mercado de Letras, p.97-119., p. 98). Baseando-se em Ricoeur, o pesquisador defende que uma narrativa pode forjar unidades temporais significativas a partir de eventos em si mesmos dispersos, assim dispostos a partir de um olhar retrovisor desde o presente, isto é, tendo em vista o modo como sabemos que a história termina na situação em que nos encontramos no momento de narrar.

A partir dessas reflexões, podemos então passar a conceber a narrativa de refugiados/as menos como um relato do que aconteceu do que como uma tentativa perspectivada, incompleta e interpretativa de atribuir ordem, coerência e sentido a sua experiência traumática de violação de direitos. Ademais, a produção narrativa em geral, e a do sujeito refugiado em particular, é sempre socialmente situada, de modo que não se pode, nas diversas situações em que o solicitante é convocado a contar sua história, negligenciar o papel de coprodutor dos entrevistadores e demais atores do sistema, com quem os solicitantes mantêm uma relação assimétrica, muitas vezes pautada em desconfiança, em gerenciamento de faces, estereótipos, afetos e demandas próprias das normas e práticas institucionais da elegibilidade.

Há que se refletir ainda sobre o papel das experiências traumáticas próprias desse cenário, que parecem muitas vezes interditar a própria possibilidade de narrar. Que tipo de narrativa é possível tecer no contexto do refúgio - um contexto ele mesmo constantemente disputado por diferentes forças -, senão uma que é sempre fragmentária e parcial, cheia de pontos cegos, incoerente nas suas diferentes versões?

Por todas essas questões, pesquisas contemporâneas em Análise de Narrativa preferem redefinir a narrativa como (i) performance engajada na produção de si e do outro (GEORGAKOPOULOU, 2006GEORGAKOPOULOU, A. (2006). Thinking big with small stories in narrative and identity analysis. Narrative Inquiry. v.16, n.1, p.122-130.); (ii) forma de se fazer política, isto é, de ensaiar, encenar e modificar ideologias e normas sociais (THREADGOLD, 2005THREADGOLD, T. (2005). Performing theories of narrative: theorizing narrative performance. In: Thornborrow, J.; Coates, J. (eds.). The sociolinguistics of narrative. Amsterdam: John Benjamins, p. 1-16., p. 265); (iii) prática indexical situada de posicionamento (BAMBERG, 2006), ou (iv) texto que se articula a partir de um contexto relacional estabelecido entre interlocutores, já que a narrativa não existe e não tem significado sem essa relação, a qual, por sua vez, também é definida na prática narrativa (WORTHAM, 2001WORTHAM, S. (2001). Narratives in action: A strategy for research and analysis. New York: Teachers College Press.). Seguindo essa última definição, as narrativas são mais bem compreendidas em termos de uma dialógica bakhtiniana, uma vez que, ao descrever os eventos narrados, narradores representam e organizam vozes circulantes do mundo social, posicionando-se também em relação a elas.

Assim, as narrativas, como outras práticas linguísticas, são performativas: “têm uma dimensão não-referencial que indica expectativas, ritualizações socioculturais e posições de sujeito racializadas, generificadas, sexualizadas, nacionalizadas etc”. São textos que “projetam, nos seus arranjos, vozes sociohistóricas [...] em um jogo que articula e hierarquiza diferentes tempos, espaços e subjetividades” (FABRÍCIO, 2016FABRÍCIO, B. F. (2016). Mobility and discourse circulation in the contemporary: the turn of the referential screw. Revista da ANPOLL. v. 40, n. 1, p. 129-140., p. 137).

2.2 Performatividade e refúgio

Se, como já dissemos, o estatuto de refugiado depende da possibilidade de se narrar a própria história, podemos pensar - via caminho análogo ao aberto por J. Butler ao abordar os “problemas de gênero” (BUTLER, 1990BUTLER, J. (1990). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003.) - a elegibilidade a partir de uma visão performativa da linguagem, ou seja, antes de ser identificado a partir de suas histórias, o refugiado é produto dessas histórias, constituído por elas.

Para Butler, em passagem muitas vezes citada, gênero não deriva de uma categoria natural, mas de “um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser” (BUTLER, 2003, p.56). Da mesma maneira, o rótulo de refugiado, assim como de qualquer outra categorização social, depende da participação do solicitante (que narra) em rotinas de interações simbólicas de produzir, reproduzir e subverter expectativas bem assentadas de classificação e atribuição de sentido aos deslocamentos humanos. Em uma perspectiva discursiva, sabemos que tais classificações são dinâmicas e estão abertas à mudança. No entanto, já estão postas e gozam de certa estabilidade quando o/a solicitante chega ao processo.

Nesse sentido, o rótulo de refugiado, ao ser conferido, não nomeia uma condição preexistente, mas a produz discursivamente, como efeito de verdade de uma prática institucional de rotulação, guiada por demandas que são também políticas e econômicas. É nesse sentido que, mais acima, dissemos que se tornar refugiado/a é então realizar uma performance bem-sucedida que se dá em um encontro social específico, mas dentro de uma moldura institucional e social em que tal rótulo, não sem muita disputa e negociação, pôde ser aplicado com sucesso. O que fazemos nesta reflexão é argumentar que se debruçar sobre o processo de se tornar refugiado é também analisar as condições e efeitos da narração de histórias em meio a um conjunto de práticas, com todos os embates de significado e relações de poder aí implicados (LANGELLIER, 2001LANGELLIER, K. (2001). “You’re marked”: breast cancer, tattoo, and the narrative performance of identity. In: Brockmeier, J.; Carbaugh, D. (eds.). Narrative and Identity. Studies in autobiography, self, and culture. Amsterdam: John Benjamins, p.145-184.).

2.3 Molduras regulatórias e ordem discursiva do refúgio

A esta altura, é importante explicar também o que significa para o sistema do refúgio ter uma moldura regulatória/institucional. Para isso, nos aproximamos da noção foucaultiana de ordem de discurso (FOUCAULT, 1970FOUCAULT, M (1970). A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida São Paulo: Ed. Loyola, 1996.).

A ordem do discurso compreende um conjunto de práticas institucionais modernas que controlam a produção, circulação e consumo do que M. Foucault chama de acontecimento aleatório do discurso - no caso específico do contexto aqui em tela, práticas que disciplinam uma emergência selvagem e desregrada de diferentes discursos sobre deslocamento de pessoas. O sistema de refúgio funciona, ele mesmo, como dispositivo de controle das narrativas de deslocamento que seleciona, delimita e formata, no interior de regras e práticas, suas possibilidades de existência.

Uma ordem discursiva do refúgio atuaria categorizando e classificando as diferentes formas de deslocamento, definindo o que é e o que não é legitimado. Os limites da categoria “refugiado”, dessa forma, são forjados a partir dos sistemas de conhecimento que formam um arcabouço jurídico, acadêmico e moral que se apresenta estabelecendo relações de poder nos âmbitos das estruturas geopolíticas, da governança e vigilância dos Estados nacionais, e nas próprias dinâmicas interacionais dos encontros entre solicitantes e o que Castro (2020)CASTRO, F.R. (2020). Refúgio e injustiça epistêmica: uma análise a partir do Brasil. Tese de Doutorado em Relações Internacionais. Instituto de Relações Internacionais, PUC-Rio, Rio de Janeiro. nomeia como “técnicos do refúgio”, isto é, os atores sociais que participam das diferentes instâncias institucionais acima descritas para o processo de elegibilidade. É nesse entrelaçamento que podemos falar em uma produção discursiva, e também em um reconhecimento público, do sujeito refugiado.

Em tal instância, mais microssituada, encontramos as narrativas de deslocamento. Para se constituir e ser reconhecido enquanto sujeito refugiado, o/a solicitante precisa contar uma história compatível com a categorização institucional que identifica seu deslocamento de uma forma bastante específica. Um certo comportamento simbólico - mais ainda, narrativo - é exigido daquele que será por fim sancionado «refugiado». Não basta contar qualquer história, mas uma que atenda com um mínimo de brechas as expectativas burocráticas da ordem do refúgio. É nesse sentido que podemos pensar, então, em uma narrativa canônica para um/a “refugiado/a legítimo/a”.

2.4 Letramento ou trajetórias de socialização no sistema do refúgio

As linhas acima foram fortemente influenciadas pela reflexão empreendida por R. Borba (2016)BORBA, R. (2016). O (Des)Aprendizado de Si: transexualidades, interação e cuidado em saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. em importante tese sobre a produção sociointeracional de sujeitos institucionalizados. Em um contexto diferente do refúgio, mas análogo em sua dinâmica, Borba se debruça sobre o processo transsexualizador de pacientes então candidatos/as à cirurgia de redesignação sexual de um hospital do Sistema Único de Saúde Brasileiro. A partir da observação e análise das práticas discursivas em regiões de front e bastidores (GOFFMAN, 1959GOFFMAN, E (1959). A representação do eu na vida cotidiana. Tradução de Maria Célia Santos Raposo. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.) desse contexto, o autor analisa como pacientes e equipe multidisciplinar desempenham papéis precisos no ajuste dos participantes às expectativas discursivas sobre um “verdadeiro transsexual”. Nesse processo, o autor nos mostra o que o/a transsexual candidato/a à intervenção médica deve aprender para participar do regime de verdade de um dispositivo da sexualidade: como se vestir; como e quando chorar; quais temas abordar e quais interditar; que palavras-chave, se enunciadas, conduzirão ao diagnóstico pretendido.

Na análise de Borba, o “aprendizado de si” constitui uma “trajetória de socialização”, termo cunhado por Wortham (2006)WORTHAM, S. (2006). Learning Identity: The joint emergence of social identification and academic learning. New York: Cambridge University Press. para se referir a um conjunto de eventos comunicativos relacionados que se desenrolam ao longo do tempo, e através dos quais um indivíduo se torna um tipo reconhecido de sujeito, adequado a um sistema de conhecimento institucional.

Já dissemos que a produção de sujeitos refugiados se dá dentro de uma ordem discursiva. Agora, tal como o descrito por Borba em seu contexto de pesquisa, argumentaremos que a produção de narrativas de deslocamento ajustadas ao sistema da elegibilidade exige também uma “trajetória de socialização”, ou um letramento na gramática internacional do refúgio.

Assim como Borba, Facundo (2017)FACUNDO, A. (2017). Êxodos, Refúgios e Exílios. Colombianos no Sul e Sudeste do Brasil. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2017. descreveu o “refugiado ideal” como alguém que deve

mostrar-se agradecido, saber obedecer e estar disposto a levar o processo seguindo os ritmos, as estéticas e as etiquetas estabelecidas pelas autoridades do refúgio e reformuladas junto com elas, vai performando o solicitante exitoso e, portanto, o futuro refugiado (FACUNDO, 2017FACUNDO, A. (2017). Êxodos, Refúgios e Exílios. Colombianos no Sul e Sudeste do Brasil. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2017., p. 125).

Nesse sentido, as narrativas que emergem dos cenários da elegibilidade precisam ser enunciadas de uma certa forma, em lugares determinados, em encontros específicos e cenas controladas; mas, sobretudo, precisam se apresentar como a “história de vida requerida para uma passagem bem-sucedida (HIRD, 2002, p. 583 apud BORBA, 2016BORBA, R. (2016). Receita para se tornar um “transexual verdadeiro”: discurso, interação e (des) identificação no Processo Transexualizador. Trabalhos em Linguística Aplicada. v. 55, n. 1, p. 33-75.), atendendo às expectativas da elegibilidade nas diferentes etapas do processo. Só assim tais narrativas serão legitimadas por sujeitos especialmente designados para isso. O sistema de refúgio funciona (paradoxalmente), ele mesmo, como um dispositivo de circulação e de interdição de narrativas.

3. IDEOLOGIAS LINGUÍSTICAS NO CAMPO DO REFÚGIO

Embora estejamos defendendo até aqui que a produção da pessoa refugiada é performativa, essa não é, naturalmente, a percepção de todos os sujeitos envolvidos no processo de elegibilidade. Os regimes discursivos que compõem o problema da elegibilidade dependem não só de práticas de linguagem, mas também de crenças sobre a linguagem, e por isso, o objetivo (ii) neste artigo é discutir o modo como as operações linguístico-discursivas de construção do rótulo de refúgio parecem ser compreendidas pelos próprios atores sociais do processo.

Especificamente, contrastamos aqui as ideologias linguísticas presentes em documentos que formam um arcabouço normativo para os “técnicos do refúgio” com aqueles presentes no discurso dos voluntários de uma Organização Não-Governamental de apoio a solicitantes - aqueles que atuam na etapa 3 no processo, conforme descrito na seção 1.

Ideologias linguísticas são modos como diferentes grupos sociais - sejam eles especialistas em linguagem ou não - concebem a natureza e ação da linguagem no mundo. Segundo M. Silverstein, são ideologias linguísticas “quaisquer conjuntos de crenças sobre a linguagem articuladas pelos usuários como racionalização ou justificação de estrutura e uso linguístico percebidos” (SILVERSTEIN, 1979SILVERSTEIN, M. (1979). Language Structure and Linguistic Ideology. In: Clyne, P.. et al (eds.). The Elements: A Parasession on Linguistic Units and Levels. Chicago: Chicago Linguistic Society, p. 193-247., p. 193). Para Gal e Irvine (2019)GAL, S.; IRVINE, J. (2019). Signs of difference: language and ideology in social life. Cambridge: Cambridge University Press., declarações sobre a linguagem - no caso específico do nosso estudo, declarações sobre as práticas narrativas do processo de elegibilidade - contêm sempre posicionamentos e interpretações politicamente carregadas sobre como essas práticas se dão.

Também nos servimos aqui da noção correlata de metapragmática (SILVERSTEIN, 1993SILVERSTEIN, M. (1993). Metapragmatic discourse and metapragmatic function. In: Lucy, J. (ed.). Reflexive language: reported speech and metapragmatics. Cambridge: Cambridge University Press, p. 33-57.), que diz respeito à linguagem usada para construir sentido sobre as próprias práticas linguísticas, negociando relações sociais e de poder em relação a elas (cf. PINTO, 2018PINTO, J. (2018). Ideologias linguísticas e a instituição de hierarquias raciais. Revista da ABPN. v. 10, Ed. Especial, p.704-720.). Como veremos adiante, os dados nos permitem pensar em como as práticas da língua-em-uso (a pragmática) estão sempre acompanhadas de expectativas e práticas reflexivas sobre a língua-em-uso, seus efeitos e rotas (a metapragmática).

3.1. Os documentos oficiais

Certos documentos produzidos por organizações internacionais compõem um arcabouço normativo que informa os procedimentos e decisões dos diferentes Estados em relação à concessão do status de refúgio. Bons exemplos desses documentos são o Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado (ACNUR, 2012ACNUR. (2012) Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2018/02/Manual_de_procedimentos_e_crit%C3%A9rios_para_a_determina%C3%A7%C3%A3o_da_condi%C3%A7%C3%A3o_de_refugiado.pdf. Acesso em 11 fev. 2024.
https://www.acnur.org/portugues/wp-conte...
); o Beyond Proof: Credibility Assessment in EU Asylum Systems (ACNUR, 2013ACNUR. (2013) Beyond Proof: Credibility Assessment in EU Asylum Systems. Disponível em: https://www.unhcr.org/fr-fr/en/media/full-report-beyond-proof-credibility-assessment-eu-asylum-systems. Acesso em 11 fev. 2024.
https://www.unhcr.org/fr-fr/en/media/ful...
); e o Handbook on procedures and criteria for determining refugee status (ACNUR, 2019ACNUR. (2019) Handbook on procedures and criteria for determining refugee status and guidelines in international protection under the 1951 convention and the 1967 protocol. Disponível em: https://www.refworld.org/policy/legalguidance/unhcr/2019/en/123881. Acesso em 11 fev. 2024.
https://www.refworld.org/policy/legalgui...
).

Esses documentos se apresentam como referências dedicadas, por exemplo, a fornecer bases científicas, jurídicas e aplicadas para a definição de refúgio e para a condução de entrevistas formais com os/as solicitantes - como vimos, uma etapa central do processo. Os manuais têm circulação relativamente restrita aos atores do processo burocrático e são efetivamente usados como guia na condução e observação das interações com solicitantes, servindo para “ajudar os profissionais de refúgio a reduzir a possibilidade de erros, a alcançar conclusões (...) bem como a aplicar uma abordagem mais estruturada à avaliação da credibilidade [das solicitações]” (ACNUR, 2013ACNUR. (2013) Beyond Proof: Credibility Assessment in EU Asylum Systems. Disponível em: https://www.unhcr.org/fr-fr/en/media/full-report-beyond-proof-credibility-assessment-eu-asylum-systems. Acesso em 11 fev. 2024.
https://www.unhcr.org/fr-fr/en/media/ful...
)11 11 Todas as traduções dos manuais são de responsabilidade das autoras. .

Para viabilizar as avaliações dos pedidos, os seguintes parâmetros são frequentemente citados nesses textos: (i) credibilidade interna (nível de detalhe das histórias contadas, presença de imprecisões ou vagueza e exame de contradições); (ii) coerência externa (evidência de correspondência entre a narrativa do solicitante e fontes de informação sobre o país de origem); (iii) consistência entre diferentes versões da mesma narrativa, conforme contadas em momentos distintos do processo - como por exemplo no formulário de solicitação e na entrevista de elegibilidade -, e entre a narrativa sob escrutínio e demais narrativas contadas por solicitantes de mesma origem.

Alguns estudos externos ao campo da Linguística Aplicada se dedicaram a produzir uma análise da noção de “credibilidade” nos processos de elegibilidade, ressaltando o compromisso desses manuais com as distinções entre solicitações “legítimas” e “ilegítimas” (ALEXANDER, 1999ALEXANDER, M. (1999). Refugee Status Determination Conducted by UNHCR. International Journal of Refugee Law. v.11, n.2, p.251-289.; SWEENEY, 2009SWEENEY, J. (2009). Credibility, Proof and Refugee Law. International Journal of Refugee Law. v.21, n.4, p.700-726.; MAGALHÃES, 2015, entre outros). Como se sabe, os processos decisórios sobre o refúgio dependem da possibilidade de, a partir das narrativas contadas no processo, investigar e estabelecer a razão do deslocamento e a existência de risco (o fundado temor) de perseguição ou danos graves em caso de regresso do solicitante ao seu país de origem.

Não é nosso objetivo re-tecer uma análise detalhada desses documentos12 12 Embora uma análise discursiva desses manuais seja uma contribuição bem-vinda dos estudos da linguagem ao tema do refúgio. ; nossa contribuição é observar em sobrevoo a maneira como estão ali indexicalizadas “construções ideológicas modernas” sobre a linguagem, as quais, segundo Fabrício (2016)FABRÍCIO, B. F. (2016). Mobility and discourse circulation in the contemporary: the turn of the referential screw. Revista da ANPOLL. v. 40, n. 1, p. 129-140., podem ser identificadas com “ideologias comunicativas da transparência, linearidade, precisão, objetividade e isomorfismo entre evento e representação” (FABRÍCIO, 2016FABRÍCIO, B. F. (2016). Mobility and discourse circulation in the contemporary: the turn of the referential screw. Revista da ANPOLL. v. 40, n. 1, p. 129-140., p. 5). Além dos princípios gerais já mencionados, algumas passagens são exemplares dessas construções ideológicas, como, por exemplo, quando se recomenda que o solicitante faça

um esforço genuíno para fundamentar a sua reclamação, fornecendo todas as informações relevantes sobre si mesmo e as suas experiências passadas e dando uma explicação coerente de todos os factos e circunstâncias do pedido de estatuto de refugiado (ACNUR, 2012ACNUR. (2012) Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2018/02/Manual_de_procedimentos_e_crit%C3%A9rios_para_a_determina%C3%A7%C3%A3o_da_condi%C3%A7%C3%A3o_de_refugiado.pdf. Acesso em 11 fev. 2024.
https://www.acnur.org/portugues/wp-conte...
, p. 16).

As menções à genuinidade e à fidelidade às experiências passadas, intimamente associadas à uma visão' essencialista e representacionista da linguagem, voltam a aparecer quando se sugere que a avaliação de cada caso seja feita, entre outras, a partir da seguinte reflexão: “O nível e a natureza dos detalhes fornecidos pelo solicitante são indicativos de uma experiência pessoal genuína de alguém com as suas circunstâncias individuais e contextuais?” (ACNUR, 2012ACNUR. (2012) Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2018/02/Manual_de_procedimentos_e_crit%C3%A9rios_para_a_determina%C3%A7%C3%A3o_da_condi%C3%A7%C3%A3o_de_refugiado.pdf. Acesso em 11 fev. 2024.
https://www.acnur.org/portugues/wp-conte...
, p. 42).

Na mesma direção, a confiança na transparência e precisão da linguagem se dá a ver quando credibilidade é associada à apresentação de afirmações “coerentes e plausíveis, não contradizendo factos geralmente conhecidos” (UNHCR, 2019, para. 42); quando se recomenda que avaliadores se debrucem sobre “as provas de forma individual, objetiva e imparcial”, ou quando se afirma que “o teste final [de credibilidade] é se existe uma base razoável e objetiva para acreditar na declaração do requerente” (ACNUR, 2012ACNUR. (2012) Manual de Procedimentos e Critérios para a Determinação da Condição de Refugiado. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2018/02/Manual_de_procedimentos_e_crit%C3%A9rios_para_a_determina%C3%A7%C3%A3o_da_condi%C3%A7%C3%A3o_de_refugiado.pdf. Acesso em 11 fev. 2024.
https://www.acnur.org/portugues/wp-conte...
p. 16, 35).

Mesmo nos manuais mais sensíveis a ditos fatores de mitigação da narrativa13 13 Em ACNUR (2013, p.14), por exemplo, reconhece-se que um elevado nível de incerteza é inerente ao processo e há recomendações para que a plausibilidade da narrativa seja julgada com cautela, por conta de fatores culturais ou subjetivos que possam distorcer a percepção da narrativa (p. 36; 76). Há menções também a fatores mitigadores da memória, como o estresse, trauma e limitações próprias da cognição (p. 31). , nota-se uma persistência na ideia de comunicação como transmissão e de uma visão referencial de linguagem, em que também não se questiona a existência de uma “verdade sobre o sujeito” (FACUNDO, 2017FACUNDO, A. (2017). Êxodos, Refúgios e Exílios. Colombianos no Sul e Sudeste do Brasil. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2017.). As duas imagens reproduzidas abaixo, publicadas em manuais do ACNUR, ilustram esse ponto:

Conforme se vê na figura 1, embora o esquema de representação da comunicação entre solicitante (“asylum-seeker”) e “técnico”-entrevistador (“decision-maker”) inclua referências às dificuldades de comunicação como “barreiras linguísticas” e “interculturais”, reproduz-se aqui um modelo bem conhecido de comunicação telementacional da Linguística moderna, com ênfase nas ideias de transmissão, representação e unidirecionalidade. Na figura 2, também acompanhada de reflexões importantes sobre as limitações da memória humana (cf. ACNUR, 2013ACNUR. (2013) Beyond Proof: Credibility Assessment in EU Asylum Systems. Disponível em: https://www.unhcr.org/fr-fr/en/media/full-report-beyond-proof-credibility-assessment-eu-asylum-systems. Acesso em 11 fev. 2024.
https://www.unhcr.org/fr-fr/en/media/ful...
, p. 64), persiste a crença de que um passado material pré-narrativo será transmitido via ação de narrar.

Figura 1
Modelo Comunicativo.

Figura 2
Modelo Narrativo.

Dessa tomada em que se vê o solicitante como um vaso de onde se recolhem informações, desaparece a possibilidade de conceptualizá-lo como um interlocutor em uma cena social da qual sujeitos assimetricamente posicionados participam em uma atividade colaborativa de negociação de sentidos. Consequentemente, a narrativa é tomada, também desde uma perspectiva realista e referencial, como mera forma de recapitulação de uma experiência passada.

Acrescenta-se a isso a crença de que as histórias do/a solicitante, reentexualizadas (BAUMAN; BRIGGS, 1990BAUMAN, R.; BRIGGS, C. (1990). Poetics and performance as critical perspectives on language and social life. Annual Review of Anthropology. n. 19, p. 59-88.)14 14 De acordo com Bauman e Briggs (1990), entextualização é um conceito que se refere à possibilidade de se extrair um texto, enquanto objeto relativamente autônomo, para fora do evento interacional de que ele emergiu e realocá-lo em eventos interacionais distintos. Esta é outra contribuição potencial da Linguística Aplicada para os estudos do refúgio: observar como as narrativas dos solicitantes viajam por diferentes eventos interacionais do sistema institucional de elegibilidade. que são em diferentes contextos, se manterão inalteradas, insensíveis às (re)elaborações ou ajustes aos diferentes gêneros e tempos-espaços em que ela é narrada. Se narrar, no contexto institucional do refúgio, já pode vir acompanhado de dificuldades que são da ordem de tornar coerente e linear uma experiência em si mesma confusa e traumática, e, portanto, difícil de comunicar, soma-se a isso o fato de que essa atividade deve ser repetida reiteradas vezes. A cada uma dessas vezes, sua audiência será diferente, mas estará atenta a inconsistências internas e incoerências entre as suas versões.

3.2. Os atores da elegibilidade

Um cenário em alguns aspectos semelhante ao que retratamos acima parece ser o descrito por Jacquemet (2006), que explora alguns dos aspectos interacionais da cena da entrevista de refúgio, debruçando-se sobre as entrevistas formais com solicitantes na Itália, após a guerra do Kosovo. O autor realiza, nesse contexto, um tipo de etnografia da comunicação, isto é, uma análise rente aos turnos de fala dos participantes das entrevistas, analisando o trabalho comunicativo que as diferentes partes envolvidas na cena fazem nessa interação.

A pesquisa mostra como, no contexto italiano, o pânico da imigração econômica age sobre a performance discursiva dos oficiais do refúgio, impactando o modo como a entrevista é conduzida. Em resumo, nota-se que os oficiais se esmeram no propósito de restringir o acontecimento narrativo; isto é, no lugar de permitir aos solicitantes que contem suas histórias, os entrevistadores os conduzem a um tipo de interação que consiste em aplicar perguntas fechadas de conhecimento sobre os conflitos locais, a topografia da região e características dos grupos envolvidos nas disputas do Kosovo. Esse tipo de dinâmica interacional altera o enquadre de entrevista para uma espécie de interrogatório, esvaziando a agência do/a entrevistado/a a partir de uma meta institucional baseada em desvelar a identidade do/a solicitante.

Embora Jacquemet nos apresente um enquadre interacional policialesco e, portanto, alinhado às mesmas ideologias linguísticas modernas descritas na seção anterior, o estudo também nos instiga a pensar em como a interdição das narrativas nesse contexto acusa os seus perigos, isto é, as possibilidades de o evento narrativo promover um tipo de engajamento dos interlocutores em uma relação: criando envolvimento; mediando conflitos; produzindo alinhamentos; forçando as pessoas a se posicionar avaliativamente, enfim, comprometendo o entrevistador no evento.

De modo semelhante ao que faremos a seguir nesta seção, o estudo de Jacquemet focaliza como indivíduos componentes do sistema do refúgio interagem nos cenários institucionais. Para a nossa pesquisa, entretanto, não tivemos acesso aos atendimentos e entrevistas de refúgio em primeira mão. No Brasil, os processos são sigilosos e não podem ser acompanhados ou registrados por pesquisadores. Por conta disso, apresentamos a seguir dados gerados em entrevistas qualitativas realizadas pela segunda autora deste artigo em ocasião de sua pesquisa de doutorado. Em trabalho de campo empreendido entre 2018 e 2019, foram realizadas 52 entrevistas semiestruturadas com solicitantes, oficiais de elegibilidade, funcionários das ONGs que realizam atendimento no contexto, membros da Polícia Federal e do CONARE. As entrevistas foram feitas no Rio de Janeiro, São Paulo e em Brasília. Os entrevistados foram, em um primeiro momento, escolhidos a partir de redes de contato da pesquisadora e, posteriormente, selecionados por meio das técnicas de bola de neve. Apenas quatro entrevistas foram realizadas por telefone em função de obstáculos logísticos - outras quarenta e oito foram conduzidas presencialmente. Apesar de ter sido oferecida a possibilidade de realização das entrevistas na língua dos solicitantes de refúgio e refugiados, todos optaram pelo português. Os participantes são identificados apenas por pseudônimos, conforme Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinado por todos para nortear a custódia dos dados e outras questões éticas. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da PUC-Rio e os contatos com entrevistados só foram realizados após sua permissão e conforme suas diretrizes. Todas as entrevistas foram transcritas na íntegra para facilitar a análise qualitativa do material, mas, porque não foram analiticamente relevantes, e para facilitar a legibilidade dos dados no contato interdisciplinar, optamos por não fazer uso de marcadores paralinguísticos da fala.

Neste artigo, olhamos para uma pequena amostra desses dados15 15 Os dados reproduzidos abaixo foram selecionados para o artigo tendo em vista a sua representatividade em relação às ideologias linguísticas que aparecem no corpus como um todo. , fazendo uma curva analítica em direção às possibilidades de se identificar as ideologias linguísticas que circulam especialmente nas fases de atendimento na ONG e da entrevista oficial, descritas na seção 1. Também nos interessa pensar em como tais ideologias, especialmente as crenças sobre a natureza da construção narrativa, operam no processo institucional de produção do sujeito refugiado.

O interesse de se olhar para essas entrevistas é que, através delas, podemos observar, mesmo que de segunda mão, o modo como os participantes dão sentido às práticas interacionais em que o estatuto de refúgio é concedido, bem como ao seu próprio papel nele.

Como se viu na seção anterior, no arcabouço normativo da elegibilidade, imperava uma visão de linguagem como um instrumento a serviço de representar eventos que preexistem de maneira independente dos discursos sobre eles. Entre os atores “técnicos” do sistema de refúgio, as mesmas ideologias parecem circular. É isso que se vê, por exemplo, em entrevista realizada com Carlos, do CONARE - órgão responsável pelas entrevistas de refúgio no Brasil:

Excerto 1: Carlos, coordenador do CONARE

As entrevistas, elas são estruturadas, assim, é como uma investigação da vida da pessoa, vamos dizer que é uma conversa com formalidades, primeiro a gente se apresenta, explica qual é a nossa função, a gente explica o que é o refúgio, para o que ele serve, e fazemos algumas perguntas-chave, né: por que você saiu do seu país de origem, e o que aconteceria se você retornasse ao seu país de origem. Essas são duas perguntas-chave feitas em qualquer entrevista. Além disso, quando a pessoa conta a história, a gente vai pedindo confirmação dos fatos. Uma das funcionalidades dessa técnica é de repetir a mesma pergunta várias vezes, mas em momentos distintos, é verificar se a pessoa cai em contradição ou não, se ela fica confusa ao responder, ou se ela tem certeza, fala com propriedade, enfim [...].

Nota-se, no relato acima, como o participante constrói, para a entrevista de refúgio, um enquadre de interrogatório compatível tanto com a lógica policialesca já descrita por Jacquemet (2006), quanto com a gramática referencial já destacada acerca dos documentos normativos. Quase não se faz menção à narrativa do solicitante, pois o foco aqui está em certas estratégias discursivas que visam à verificação de informações. Nas palavras do coordenador, a entrevista oficial do refúgio é uma “investigação da vida da pessoa”. A partir da descrição de sua performance nesse enquadre, o gênero de entrevista vai sendo definido. Carlos entextualiza os manuais e descreve a sua interação com solicitantes como algo que se apoia, em primeiro lugar, em “perguntas-chave”, as quais evocam, conforme definição das organizações internacionais, os critérios definidores da categoria (“por que você saiu do seu país” e “o que aconteceria se você retornasse”). As respostas a tais questões, como se viu, precisam fazer referência ao princípio do fundado temor de perseguição. Uma resposta compatível com essa expectativa não parece, no entanto, ser suficiente: além das perguntas abertas, o gênero é também marcado por suspeitas e ações de checagem - o que se vê, por exemplo, quando Carlos menciona a necessidade de se confirmar os fatos e repetir várias vezes a mesma pergunta.

Há uma racionalidade nesse script, caracterizado aqui como expertise “técnica”: esses seriam os melhores modos de se encontrar contradições, confusões, certezas, propriedade. O léxico mobilizado por Carlos dá a ver como o encontro interacional com o solicitante é projetado como a busca pela verdade e pela narrativa ideal, e como o sistema de refúgio pode funcionar como modo de interditar experiências de deslocamento fora dessa norma. A fala do técnico, assim como o arcabouço normativo visto anteriormente, constitui-se como um perfomativo laminado que realiza ao menos três trabalhos simultâneos: ao mesmo tempo em que projeta crenças que confiam na correlação entre práticas linguísticas e um passado pré-narrativo do/a solicitante, assevera as hierarquias epistêmicas do processo de elegibilidade (CASTRO, 2020CASTRO, F.R. (2020). Refúgio e injustiça epistêmica: uma análise a partir do Brasil. Tese de Doutorado em Relações Internacionais. Instituto de Relações Internacionais, PUC-Rio, Rio de Janeiro.) e blinda o status de refugiado de experiências e práticas simbólicas fora dessa matriz de inteligibilidade.

Quando Guelor, um refugiado congolês no Brasil, é entrevistado sobre os procedimentos pelos quais passou em seu próprio processo, a vitalidade de tais práticas e das ideologias que lhe subjazem se confirma:

Excerto 2: Guelor, refugiado congolês no Brasil

Pesquisadora: Você sente que a expressão corporal da pessoa é de duvidar do que você diz?

Guelor: De dúvida, sim, ou até chegar o momento que começam a dizer: para com isso, eu não estou acreditando. Me fala sua história verdadeira [...]: “você vai ver que a entrevistadora quer pegar o refugiado, pegar na mentira [...] volta na mesma pergunta de forma diferente, tenta desestabilizar o refugiado”.

No excerto 2, a entrevistadora formula para o entrevistado - alguém que já passou pela entrevista de elegibilidade -, uma pergunta que em sua formulação leva em conta o enquadre de interrogatório já descrito por Carlos. Após confirmar esse entendimento, a resposta do entrevistado vem acompanhada de uma narrativa breve em que novamente táticas de investigação estão na base da descrição da situação comunicativa. Ao refletir sobre a língua-em-uso no sistema de refúgio, Guelor coloca técnicos e solicitantes em posições antagônicas num tipo de encontro cuja meta institucional é mais restritiva que acolhedora. Os entrevistadores do processo nos são apresentados como agentes desconfiados que compreendem seu trabalho interacional como o de “pegar” mentiras na história do/a solicitante, especialmente a partir da técnica policial de solicitar repetições de uma história original, que precisa ser entregue sem alterações ou sem que produza “desestabilizações”.

Estabelecendo uma analogia diferente, Júlio, da CÁRITAS-Rio, ao ser questionado sobre a existência de um perfil ideal de entrevistador do processo, compara o oficial de elegibilidade não a um investigador/policial, mas à figura de um médico ou advogado:

Excerto 3: Júlio, funcionário da CÁRITAS-Rio

Esse perfil que eu estou falando, se você pensar, o médico, o advogado, boa parte da ação positiva do médico para chegar a um diagnóstico, um advogado entender como vai defender, é preciso que ele penetre um pouco na pessoa, que ele sinta, que ele seja partícipe, que ele se envolva, não o envolvimento do ponto de vista de tomar partido de situações e tal, mas no sentido de perceber exatamente qual é, o que está por dentro da pessoa, no caso do refugiado, o fundado temor.

Na fala de Júlio, teríamos mais explicitamente representado um entrevistador posicionado como quem tem vantagem epistêmica16 16 Cf. nota de rodapé 2. sobre os entrevistados. Desta vez, técnico e solicitantes não são oponentes, e a ação de um sobre o outro é inclusive avaliada como “positiva”. No entanto, da comparação com o médico ou advogado, emerge menos um profissional afeito à escuta da narrativa - por exemplo na posição de interlocutor colaborativo - do que alguém que está atento a pistas reveladoras do que o próprio narrador não sabe. O uso de palavras e expressões como penetração ou o que está por dentro da pessoa para descrever o que se consegue na comunicação com o solicitante é especialmente emblemático do modelo comunicativo imaginado por Júlio: o interlocutor é um contêiner do qual se recolhem objetivamente informações “exatas” sobre a sua experiência, que estão lá, prontas para ser extraídas.

O próximo excerto, no entanto, nos confronta com outras ideologias linguísticas. Nele, Beatriz, uma voluntária da CÁRITAS responsável por ajudar os solicitantes no preenchimento do formulário e na preparação para a entrevista no Rio de Janeiro, após ser perguntada sobre o tipo de trabalho que realiza na ONG, conta como seu trabalho em alguma medida consiste em dirigir os solicitantes de refúgio para que narrem suas histórias de forma a incrementar a chamada credibilidade interna.

Excerto 4: Beatriz, voluntária da CÁRITAS-Rio

Então nós trabalhamos detalhes - e detalhes dos mais básicos. Por exemplo, se houve um ataque, que roupas as pessoas estavam usando; que época mais ou menos do ano foi, se é uma época mais chuvosa entre maio, junho, enfim, trabalhar a questão de temporalidade. Por exemplo, questão de horas e que local aconteceu também é difícil de identificar. Então para tornar uma realidade mais próxima da gente, a gente pelo menos tenta falar assim: aconteceu durante a parte da manhã, da tarde, final da tarde, ainda estava sol, justamente porque elas tentam apagar esse trauma, a gente tenta pelo menos pensar, ainda estava sol, estava noite, porque o oficial, o que normalmente faz a entrevista do Rio, quanto mais detalhes eles fornecem, ele acha que a narrativa fica mais crível né, então aumenta o nível de credibilidade interna, isso aumenta as chances dessas pessoas serem deferidas.

Por meio de uma narrativa hipotética, a entrevistada constrói seu trabalho como voluntária, relatando o tipo de instrução que oferece aos solicitantes de refúgio. Dialogando diretamente com a “técnica” descrita acima, para Beatriz, é importante que as histórias de refúgio incluam “detalhes” de orientação para a narrativa, de modo a corrigir qualquer eventual vagueza de descrição imposta pelos traumas. Mencionando explicitamente referências à temporalidade, ao espaço, e outros aspectos como clima e vestuário, ela acredita que a inclusão desses elementos, ou seja, o enriquecimento da performance narrativa, torna a história mais “crível” face ao técnico do refúgio, isto é, faz aumentar a credibilidade interna preconizada nos manuais normativos. Nota-se que, no modo como Beatriz imagina a entrevista oficial, e diferentemente do que vimos nos manuais, credibilidade não é uma propriedade intrínseca, mas um efeito de narrativas bem treinadas, isto é, a credibilidade é construída na/pela linguagem, já que se admite que o passado pré-narrativo é difícil de se recuperar (“porque elas tentam apagar esse trauma”). O atendimento na ONG é descrito como um passo essencial no treinamento da performance do/a solicitante - note-se que, aqui, voluntária e solicitante são aliadas, e o sucesso do atendimento está atrelado à qualidade de suas instruções.

Em termos de ideologias linguísticas, podemos deduzir de sua fala que Beatriz não toma as narrativas compartilhadas pelos solicitantes como espelho do que lhes sucedeu. Ao contrário, ela parece sensível ao fato de que é necessária certa performance narrativa para que se garanta a disponibilidade de se ouvir a história e fazê-la circular sem obstáculos nas práticas institucionais do sistema de refúgio. Nesses termos, a voluntária parece saber que colabora na produção performativa do/a refugiado/a.

Essa também parece ser a crença sobre linguagem sustentada por Maria, outra voluntária da mesma ONG. No excerto abaixo, a entrevistada explica como ajuda os solicitantes a construir suas narrativas.

Excerto 5: Maria, voluntária da CÁRITAS

Porque muitas vezes a pessoa chega para preencher o formulário e ela fala: ah, é muito difícil eu conseguir emprego no meu país, que é uma situação muito séria, e às vezes ela não consegue emprego por motivo de opinião política. Então a gente explica que é muito importante, é muito sério, mas você vai ter que explicar porque isso aqui é relevante para o seu pedido de refúgio. Então tem uma orientação nesse sentido, de direcionar o relato para o que tem mais chance de uma resposta positiva do governo.

Nesse excerto, a participante Maria exemplifica o trabalho que realiza narrando uma atividade de reparo (hipotético). Para ela, é importante afastar do discurso do/a solicitante qualquer referência ao seu deslocamento como resultante de questões socioeconômicas. Ao sugerir ao solicitante imaginado uma explicação que se aproxime do campo do político, Maria entextualiza e reforça a distinção normativa entre refúgio, de um lado, e migração dita “econômica” ou “voluntária”, de outro. Com uma percepção sobre seu próprio trabalho semelhante à de Beatriz, Maria manifesta sensibilidade ao poder das escolhas lexicais na produção da causalidade narrativa do refúgio com vistas “receber uma resposta positiva”. Nota-se isso pelo uso de termos como “orientar” e “direcionar” para caracterizar o tipo de trabalho que realiza sobre a performance narrativa dos/as solicitantes. Adicionalmente, emerge de sua racionalização a complexidade da experiência de deslocamento, que apenas artificialmente pode separar o político do econômico.

Das falas de Maria e Beatriz, podemos inferir uma visão nada ingênua de como se constrói a narrativa de refúgio “ideal”. As voluntárias parecem cientes de que o rótulo de refúgio depende da participação dos/as solicitantes em práticas discursivas performativas que reproduzem expectativas bem estabelecidas. Do ponto de vista de uma metapragmática (SILVERSTEIN, 1993SILVERSTEIN, M. (1993). Metapragmatic discourse and metapragmatic function. In: Lucy, J. (ed.). Reflexive language: reported speech and metapragmatics. Cambridge: Cambridge University Press, p. 33-57.), podemos dizer que as voluntárias atribuem um sentido bem menos afeito às ideologias comunicativas dos manuais e dos técnicos. O que aparece aqui é a crença na instabilidade/maleabilidade da narrativa, ou seja, a ideia segundo a qual a memória não é estável e não está de prontidão para ser relatada; antes, ela e a narrativa se co-constituem na própria prática de narrar. Nesse movimento, essas participantes desafiam a reboque a confiabilidade do sistema, patente nas noções de credibilidade e legitimidade, e também a estabilidade da categoria de refúgio.

As voluntárias parecem interagir, assim, como mediadoras que facilitam o encontro entre uma ordem institucional - a qual opera com definições rígidas acerca do que é um refugiado, e de como a narrativa dele deve parecer - e os/as solicitantes - cujas demandas narrativas não necessariamente se organizam de acordo com a mesma matriz. Elas atuam, conforme estabelecido na seção 3.4, como agentes de letramento para uma narrativa do refúgio; parecem crer que os voluntários precisam se apropriar de habilidades discursivas para produzir performances de refúgio alinhadas às categorizações e expectativas do processo formal. Seu trabalho é o de tornar o solicitante um sujeito institucionalmente reconhecido como refugiado17 17 Remetemos a Castro (2020) para uma reflexão sobre a institucionalização das ações aqui narrativizadas e a existência de uma “cultura do CONARE”. . Parece claro às entrevistadas que as narrativas ocupam o centro do processo institucional, e que suas interferências movimentam as posições dos/as assistidos/as no processo de solicitação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O deslocamento humano contemporâneo, mais especificamente a figura do refúgio, é nomeado e regulado, da forma como a conhecemos, a partir da injunção e legitimação de um conjunto de práticas e dispositivos. Falamos aqui de instrumentos legais e normativos, mas também de discursos, práticas institucionais e cotidianas que, em rede, agem de maneira estrutural e estruturante constituindo o sujeito refugiado, conferindo sentido a suas experiências de (i)mobilidade.

Ao longo deste artigo, buscamos contribuir para o campo dos estudos do refúgio em um dos seus vetores mais fundamentais, qual seja, a produção e estabilização da própria categoria, lançando luz sobre a ordem discursiva que lhe dá sustentação. Tal ordem, como se viu, pode ser vista, desde nossa perspectiva teórico-metodológica, por “pessoas fazendo coisas juntas” (BECKER, 1963BECKER, H. (1963). Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução de Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2008.), isto é, atores sociais de múltiplas instâncias alocados, por exemplo, nas organizações internacionais, nas instituições burocráticas dos Estados nacionais, na sociedade civil, nos produtores e divulgadores de conteúdo midiático sobre refúgio, nos próprios migrantes, seus intérpretes, professores e demais interlocutores institucionais e cotidianos. Defendemos que, no campo da Linguística Aplicada, vale a pena atentar para os muitos jogos de linguagem em que esses atores se engajam. Aqui, nossa tarefa se ateve a jogos de natureza ordinária - mas nem por isso menos centrais ao processo - que dizem respeito às interações das quais o próprio migrante participa em processos de solicitação de refúgio.

Em tais processos, como se viu, a categoria de refúgio vai sendo definida e controlada, e formas de se ver e falar sobre e com os solicitantes vão tomando uma forma que se articula às formatações do discurso sobre deslocamento de pessoas típicas de uma ordem global estadocêntrica (DI CESARE, 2017DI CESARE, D. (2017). Imigrantes residentes. Tradução de Cezar Tridapalli. Belo Horizonte: Ed. Âyiné, 2020.).

Ao longo do presente estudo, sustentamos que, considerando essa ordem discursiva, o rótulo de refúgio é performativo e se desenvolve tanto conforme as matrizes regulatórias de um sistema de refúgio internacional quanto de acordo com instâncias particulares do contexto brasileiro. No contexto que apresentamos, tornar-se refugiado depende de se narrar uma história ideal em que compareçam elementos semânticos relacionados à dimensão política e involuntária das causas do deslocamento.

Além disso, identificamos a partir da análise de dados que duas ideologias linguísticas contrastantes circulam no sistema do refúgio. Do sistema internacional, na forma de documentos normativos, importamos ideologias hegemônicas que apostam na função representacionista da linguagem e da narrativa. Nesse arcabouço, destacam-se: (i) a confiança na retroalimentação fixa e estável entre memória e narrativa; (ii) a tomada da entrevista de refúgio enquanto ocasião para “extração da verdade” e (iii) a ideia de que os narradores das histórias são consistentemente capazes de produzir cópias de suas narrativas sem variações ou contradições (CARRANZA, 2010CARRANZA, I. (2010). Truth and authorship in textual trajectories. In: Schiffrin, D. et al. (ed.) Telling stories: Language, Narrative and Social Life. Washington: Georgetown University Press, p. 173-180.).

A pesquisa empírica no contexto brasileiro, por outro lado, nos mostra fissuras nesse conjunto de crenças sobre a linguagem, com pistas que nos permitem acreditar que, para certos atores, o processo de eleger-se para o refúgio implica apropriar-se de estratégias discursivas a partir de práticas de letramento ou trajetórias de socialização. Compartilham dessa segunda perspectiva atores que parecem reconhecer para si uma função de mediar a construção de sentido da experiência dos solicitantes, aparando arestas de modo e encaixá-la mais comodamente na ordem discursiva e burocrática do refúgio. Nessa visão, não parece que se apaga o papel do interlocutor na co-formulação da narrativa, e esse papel é não só reconhecido como ressaltado pelos sujeitos.

Por fim, acreditamos que estudos como o que empreendemos contribuem para avançar reflexões que põem em xeque a categoria de refúgio, suspeitando da sua estabilidade. Ao se investigar os processos de co-construção de seus significados, mostrando como a própria noção de refúgio é fruto de um processo discursivo interacional de rotulação e letramento, ajudamos a formar um arcabouço que aponta e problematiza aquilo que conta como “narrativa ideal” de um refugiado “real”. Nessas negociações, estão expostos, acreditamos, os limites da inteligibilidade da experiência do refúgio na interação e os muitos mecanismos a que essa experiência precisa se ajustar.

  • 1
    Esta revisão refere-se apenas a pesquisas brasileiras sobre imigração/refúgio no Brasil. No âmbito internacional, ou em pesquisas brasileiras sobre imigrantes em outras partes do mundo, os estudos se multiplicam.
  • 2
    Segundo Miranda Fricker (2007)FRICKER, M. (2007). Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. New York: Oxford University Press., injustiça epistêmica refere-se à negação do direito aos sujeitos de produzirem significados sobre si mesmos. Destituídos de sua capacidade enquanto sujeitos de conhecimento, certos grupos e indivíduos participam de forma desigual na produção de discursos legitimados sobre suas experiências sociais. Na tese de Castro (2020)CASTRO, F.R. (2020). Refúgio e injustiça epistêmica: uma análise a partir do Brasil. Tese de Doutorado em Relações Internacionais. Instituto de Relações Internacionais, PUC-Rio, Rio de Janeiro., o contexto do refúgio é caracterizado como um campo em que se produzem injustiças epistêmicas em diferentes instâncias, nas quais o conhecimento produzido sobre o refugiado sempre escapa de seus próprios termos.
  • 3
    Entendemos a área de Linguística Aplicada a partir da virada epistemológica descrita por Moita Lopes (2006)MOITA LOPES, L.P. (2006). Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial.: uma que propõe novos modos de teorizar reunindo contribuições de diferentes centros disciplinares, com propósito de compor inteligibilidades complexas para problemas do mundo real em que a linguagem tem papel constitutivo. Por isso, combinamos aqui, como se verá, contribuições da filosofia, sociolinguística, pragmática e dos estudos discursivos da narrativa.
  • 4
    Fonte: Refugiados - UNHCR ACNUR Brasil.
  • 5
    Ministério da Justiça; Ministério das Relações Exteriores; Ministério do Trabalho e Emprego; Ministério da Saúde; Ministério da Educação. A Defensoria Pública da União tem status de membro consultivo e o Instituto de Migrações e Direitos Humanos (IMDH) participa como membro observador.
  • 6
    Desde o estabelecimento da Lei, esta representação é feita pela CÁRITAS Arquidiocesana do Rio de Janeiro (CÁRITAS-SP atua como suplente).
  • 7
    Para pensar nos direitos linguísticos dos migrantes de língua estrangeira no Brasil, ver, por exemplo, Balestro e Gorovitz (2021)BALESTRO, A.; GOROVITZ, S. (2021). Direitos linguísticos de solicitantes de refúgio no Brasil: a presença do mediador linguístico na entrevista de solicitação de refúgio como garantia de direitos humanos. Gragoatá. v. 26, n. 54, p. 355-379.. Embora essa seja uma questão central do processo de elegibilidade, encontra-se fora do escopo deste artigo.
  • 8
    Para uma apresentação da CÁRITAS, ver https://caritas.org.br/.
  • 9
    Essas instituições são as mesmas que compõem o CONARE, e têm direito a participar do GEP. Na prática, nem todas estão presentes. Além disso, é importante mencionar que, embora as instituições do CONARE e do GEP sejam as mesmas, os/as representantes em um grupo e outro são pessoas diferentes. Não é raro que diferentes membros de uma mesma instituição discordem sobre os casos.
  • 10
    Ao longo deste texto, estamos adotando uma definição foucaultiana de discurso, isto é, entendendo discurso como prática social que funda e continua a dar forma aos objetos de que falam” (FOUCAULT, 1979FOUCAULT, M. (1979). Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal.). Sem confinar a reflexão que aqui se faz a uma escola específica dentre as várias abrigadas sob o rótulo “Análise do Discurso”, entendemos que o que fazemos é mirar o campo do refúgio com atenção especial às práticas simbólicas que o constituem, apostando que é dos processos de produção e circulação de sentido que ali se dão que emerge a própria categoria de refugiado.
  • 11
    Todas as traduções dos manuais são de responsabilidade das autoras.
  • 12
    Embora uma análise discursiva desses manuais seja uma contribuição bem-vinda dos estudos da linguagem ao tema do refúgio.
  • 13
    Em ACNUR (2013ACNUR. (2013) Beyond Proof: Credibility Assessment in EU Asylum Systems. Disponível em: https://www.unhcr.org/fr-fr/en/media/full-report-beyond-proof-credibility-assessment-eu-asylum-systems. Acesso em 11 fev. 2024.
    https://www.unhcr.org/fr-fr/en/media/ful...
    , p.14), por exemplo, reconhece-se que um elevado nível de incerteza é inerente ao processo e há recomendações para que a plausibilidade da narrativa seja julgada com cautela, por conta de fatores culturais ou subjetivos que possam distorcer a percepção da narrativa (p. 36; 76). Há menções também a fatores mitigadores da memória, como o estresse, trauma e limitações próprias da cognição (p. 31).
  • 14
    De acordo com Bauman e Briggs (1990)BAUMAN, R.; BRIGGS, C. (1990). Poetics and performance as critical perspectives on language and social life. Annual Review of Anthropology. n. 19, p. 59-88., entextualização é um conceito que se refere à possibilidade de se extrair um texto, enquanto objeto relativamente autônomo, para fora do evento interacional de que ele emergiu e realocá-lo em eventos interacionais distintos. Esta é outra contribuição potencial da Linguística Aplicada para os estudos do refúgio: observar como as narrativas dos solicitantes viajam por diferentes eventos interacionais do sistema institucional de elegibilidade.
  • 15
    Os dados reproduzidos abaixo foram selecionados para o artigo tendo em vista a sua representatividade em relação às ideologias linguísticas que aparecem no corpus como um todo.
  • 16
    Cf. nota de rodapé 2.
  • 17
    Remetemos a Castro (2020)CASTRO, F.R. (2020). Refúgio e injustiça epistêmica: uma análise a partir do Brasil. Tese de Doutorado em Relações Internacionais. Instituto de Relações Internacionais, PUC-Rio, Rio de Janeiro. para uma reflexão sobre a institucionalização das ações aqui narrativizadas e a existência de uma “cultura do CONARE”.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2024

Histórico

  • Recebido
    20 Fev 2024
  • Aceito
    15 Jul 2024
  • Publicado
    22 Jul 2024
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