Acessibilidade / Reportar erro

BREVES COMENTÁRIOS SOBRE “DESIGUAL E COMBINADO” NAS RELAÇÕES INTERCULTURAIS CONTEMPORÂNEAS1 1 Este texto é uma versão revista e sintética que resulta de duas comunicações diferentes feitas em 2023, na Unicamp: no III Colóquio Internacional dos grupos Exodus e GEDLit, no IEL, em agosto; e no 5º Encontro Anual do FLAUC (Fudan – Latin American University Consortium), no IE, em novembro. No primeiro caso, agradeço às colegas Daniela Birman e Cynthia Agra Neves, pela coordenação. No segundo, aos colegas Bruno de Conti e Célio Hiratuka, pela organização e acolhimento.

BRIEF COMMENTS ON “UNEQUAL AND COMBINED” IN CONTEMPORARY INTERCULTURAL RELATIONS

RESUMO

Em diálogo com algumas perspectivas críticas das ciências humanas – notadamente, teoria econômica, história social, ciência política e sociologia da cultura – esse trabalho se alinha com uma revisão de antigas dicotomias e dualismos, incapazes de acompanhar as relações interculturais contemporâneas. Tendo como referências principais países como Brasil e China, aponta para outras possibilidades de exame do que se convencionou denominar “desigual e combinado” nas paisagens culturais atuais, em meio a crises socioambientais planetárias.

Palavras-chave:
Paisagens culturais; Brasil – América Latina – China: Aproximações; Espaços-tempo: desigualdades; Espaços-tempo: simultaneidades; Espaços-tempo: combinações

ABSTRACT

In dialogue with some critical perspectives from the human sciences – notably, economic theory, social history, political science, and sociology of culture – this work aligns with a review of old dichotomies and dualisms, incapable of keeping up with contemporary intercultural relations. Taking countries such as Brazil and China as main references, it points to other possibilities for examining what is conventionally called “unequal and combined” in current cultural landscapes, amid planetary socio-environmental crises.

Keywords:
Cultural landscapes; Brazil – Latin America – China: Approaches; Spacetimes: inequalities; Spacetimes: simultaneities; Spacetimes: combinations

Temos trabalhado, em anos recentes, com os impasses das ilusões geográficas e cronológicas que parte considerável das ciências humanas teima em reiterar nos estudos culturais, artísticos e literários contemporâneos. Dessa tendência são exemplos muitas das abordagens sobre Itália e Brasil, dentro de uma tendência conformista que denominei “ilusões geográficas”, sendo a obra de Gramsci uma grande exceção nesse panorama (Hardman, 2016HARDMAN, Francisco Foot. (2016). Ilusões geográficas: sobre a volubilidade da noção de periferia no espaço-tempo global. Letterature D’America, Roma, v. 161, p. 5-18.).

Se lá é o Norte desenvolvido que vê com desprezo e tentações separatistas o Sul “atrasado”, no Brasil tem sido em direção inversa a mesma arrogância excludente e indisfarçavelmente racista: o Centro-Sul se “acha” e nega historicidade e pertencimento aos povos “atrasados” do Norte-Nordeste. Isso se pode verificar, didaticamente, nas repetições enfadonhas do que considero ser a ideologia paulista, calcada sobre pretenso novo marco fundador da nacionalidade, que para tanto constrói, articuladas, nos anos 1920-1930, três fake-news tanto vitoriosas quanto o foi a hegemonia imposta das oligarquias cafeeira-industrial de São Paulo: o grito de D. Pedro às margens do riacho Ipiranga, em 1822; a chamada Semana de Arte Moderna no novo antro sagrado do Teatro Municipal de SP, em 1922; e a autointitulada Revolução Constitucionalista de 1932, movimento claramente reacionário daquelas mesmas oligarquias, derrotado no plano militar e político, mas simbolicamente restituído no plano discursivo a partir do inegável poder econômico das nossas “elites do atraso” (Hardman, 2022a;HARDMAN, Francisco Foot. (2022a). A ideologia paulista e os eternos modernistas. São Paulo: Ed. Unesp. Hardman, 2022bHARDMAN, Francisco Foot. (2022b). Ilusões cronológicas: etéreos que se querem eternos. In: Saliba, Elias Thomé (org.), Modernismo: o lado oposto e os outros lados. São Paulo: Eds. SESC; BBM-USP, p. 533-546.).

Mas, felizmente, para além do jogo plácido entre setores consideráveis de nossa academia e da mídia sempre saudosista de golpes contra as esquerdas, em São Paulo, a contramanifestação do 9 de julho, organizada pelo movimento operário e por vários sindicatos a partir de 2017, rememorando o trágico assassinato do jovem operário sapateiro espanhol José Martinez, na greve geral de 1917, tem sido, entre outros, um importante antídoto ao imaginário até aqui dominante. Foi essa presença pujante, culturalmente criativa e politicamente revolucionária que me fez desconfiar de há muito das histórias de carochinha da ideologia paulista (Hardman, 2024HARDMAN, F. Foot. (2024). Nem pátria, nem patrão!: Memória operária, cultura e literatura no Brasil. 4ª. Ed. rev. e ampliada. São Paulo: Ed. Unesp.).

Também nesse esforço de revisão de parâmetros cristalizados, dou continuidade aqui ao que adiantei em ensaio publicado no livro China Contemporânea: seis interpretações, que denominei: “Simultaneísmo e fusão na paisagem, na cultura e na literatura chinesa” (Hardman, 2021aHARDMAN, F. Foot. (2021a). Meu diário da China: a China atual aos olhos de um brasileiro. Pequim: PKU Press.). E que se baseia, também, em larga medida, nas observações empíricas e reflexões pessoais após quatro viagens, desde 2013, e uma longa estadia na China, entre 2019 e 2020, da qual produzi 15 crônicas que depois foram reunidas em volume bilíngue pela editora da Universidade de Pequim (Hardman, 2021bHARDMAN, F. Foot. (2021b). Simultaneísmo e fusão na paisagem, na cultura e na literatura chinesa. In: Musse, Ricardo (org.), China contemporânea: seis interpretações. Belo Horizonte: Autêntica, p. 129-162.).

O fato bastante perceptível é que as ciências humanas continuam, em geral, a trabalhar com concepções evolucionistas e deterministas do tempo histórico e dos cenários geográficos. No Brasil, entre os críticos mais consistentes da economia política encontra-se assinalado, contra a numerologia dos mercados financeiros e dos bancos centrais, a presença dos fatores imponderáveis da luta social, da diversidade cultural e dos diferentes espaçostempo em choque (Belluzzo, Galípolo, 2021BELLUZZO, Luiz Gonzaga; GALÍPOLO, Gabriel. (2021). Dinheiro: o poder da abstração real. São Paulo: Contracorrente.). Vem daí, por exemplo, a noção de um processo de “globalização desigual e combinada” (Belluzzo, Galípolo, 2019, cap. 6BELLUZZO, Luiz Gonzaga; GALÍPOLO, Gabriel. (2019). A escassez na abundância capitalista. São Paulo: Contracorrente.). Essa reflexão tem longa tradição no materialismo histórico, desde Lênin e Trótski até pensadores contemporâneos, e sua amplitude crítica, evidentemente, é internacional, com implicações diretas sobre concepções de modernidade e modernismo (Davidson, 2017DAVIDSON, Neil. (2017). Desenvolvimento desigual e combinado: modernidade, modernismo e revolução permanente. São Paulo: Ed. Unifesp, 2020.).

Além disso, em se tratando de processo internacional, vale estarmos atentos para as operações de criação de um léxico próprio, com pretensões a uma “objetividade natural”, com que as tais forças intransponíveis do “mercado” teimam em se reproduzir como “únicas alternativas”. A tal propósito, a crítica do ítalo-suíço Christian Marazzi à lógica autoindulgente do capital ganha interesse, também, por suas repercussões no domínio da linguagem (Marazzi, 2014MARAZZI, Christian. (2014). Capital y lenguaje: hacia el gobierno de las finanzas. Buenos Aires: Tinta Limón.).

No que nos diz respeito, essa abordagem é bastante adequada tanto para uma necessária crítica da teleologia presente na maioria das histórias literárias e artísticas, mesmo que empenhadas sobretudo no âmbito da chamada modernidade e do que se possa convencionar como contemporaneidade, quanto para a crítica da abstração, ora ingênua, ora mercadológica, que se agarra a rótulos genéricos e homogeneizadores como, por exemplo, “literatura mundial”, “pós-modernismo”, “pós-colonial” ou “decolonial”.

O fato é que Brasil e China estão entre os raros países no mundo que podem ser classificados, por sua enorme extensão, como “continentais”. Além deles, tal característica poderia ser atribuída à Rússia, aos EUA, ao Canadá, à Índia e à Austrália, onde história e geografia articulam-se complexamente e fora de qualquer parâmetro trivial. Toda ideologia do progresso ensaiada nesses enormes territórios de temporalidades intercruzadas estará fadada, independentemente das boas intenções de seus porta-vozes, a recair nas ilusões das falsas continuidades lineares, tanto no eixo das representações espaciais quanto no eixo das cronologias.

Sob outra rotulação muito frequente, a que nomeia de “regionalismos” todas as variações linguísticas, estéticas e socioculturais presentes em espaços-tempos afastados do que se convencionou chamar como “grandes centros”, reintroduz-se a velha dicotomia rural X urbano, muito estanque e inadequada para a compreensão de processos dialéticos que se sugerem aqui. Gilberto Freyre, já há muito tempo, havia consagrado o neologismo rurbanização para se referir a essa zona nebulosa e atraente que se inscreve no desenvolvimento desigual e combinado de sociedades como a brasileira. E note-se: Freyre, o grande antropólogo brasileiro de Pernambuco, era claramente de perfil conservador. Apesar disso, foi ele quem, de modo pioneiro, sem nunca ter viajado à China, chamou a atenção, em 1959, para as afinidades socioculturais profundas entre aquele país e o Brasil, num ensaio original que intitulou “Por que China Tropical?” (Freyre, 2011, p. 183-210FREYRE, Gilberto. (2011). China tropical: e outros escritos sobre a influência do Oriente na cultura luso-brasileira. São Paulo: Global Editora.). E, ali também, lança o desafio: a busca necessária de uma política rurbana implica o objetivo de alcançar “a reintegração entre as atividades rural e urbana, industrial e agrária” (Freyre, 2011, p. 205FREYRE, Gilberto. (2011). China tropical: e outros escritos sobre a influência do Oriente na cultura luso-brasileira. São Paulo: Global Editora.). Hoje, passados cerca de 65 anos dessa proposição, qualquer política – inclusive políticas culturais – que busque essa desejável integração deve considerar, prioritariamente, a desigualdade social e a profunda crise ambiental que afetam, de modo articulado, todo o planeta Terra.

De outra parte, o grande geógrafo negro baiano Milton Santos, exilado do Brasil durante a ditadura militar, há um bom tempo, igualmente, havia ressaltado em seu ensaio-testamento, Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal2 2 Este livro saiu em 2000, e Milton Santos faleceu em 2001. , a primazia das noções de lugar e de local sobre a abstração fetichizada e perversa da chamada globalização. Poucos anos antes, em outro livro fundamental, A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção, o nosso geógrafo maior já havia desenvolvido essa crítica visionária, cuja atualidade nos parece inquestionável (Santos, 2000;SANTOS, Milton. (2000). Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record. Santos, 1996SANTOS, Milton. (1996). A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec.).

Temos a convicção de que, nessa trilha, haveria muitas pontes que aproximam as perspectivas de análise de Milton Santos e as do grande cientista social chinês Fei Xiaotong. Isso pode ser válido, primeiramente, em sua obra clássica, From the Soil: The Foundations of Chinese Society – cuja edição original data de 1947 –, que nos alerta para as determinações agrárias, rurais e camponesas da China “antiga” ou “moderna” (Fei, 1992FEI, Xiaotong. (1947). From the Soil: The Foundation of Chinese Society. Pequim: Foreign Language Teaching and Research Press; Oakland: University of California Press, 1992.). Mas, igualmente, suas lições e afinidades com o geógrafo e urbanista brasileiro podem ser vistas em seus ensaios mais recentes, publicados postumamente no livro Globalization and Cultural Self-Awareness (saíram pela editora Springer em 2015 e Fei faleceu em 2005). Há, ali, inscrita como que uma utopia de esperança, um testamento de crença na possibilidade de uma “outra globalização”, em que uma “autoconsciência cultural” fosse capaz de dar as cartas sobre os destinos da humanidade e do planeta Terra, com base nas aquisições das ciências, das humanidades e, também, dos princípios de bondade e harmonia das antigas filosofias orientais (Fei, 2015FEI, Xiaotong. (2015). Globalization and Cultural Self-Awareness. Berlin; Heidelberg: Springer; Pequim: Foreign Language Teaching and Research Press.).

Essa ponte de afinidades críticas poderia ser ainda ampliada, agora sob forma geocultural tripartite, até a velha Europa, para lembrarmos do sociólogo Zygmunt Bauman, exilado da Polônia e grande professor no Reino Unido, ao questionar também, com argúcia e estilo, os parâmetros da chamada globalização financeira e tecnológica e suas gravíssimas “consequências humanas” que, longe de nivelar ou unificar, aprofundaram desigualdades socioculturais, políticas e econômicas por todo o planeta. E isso, especialmente, num ensaio seminal, Globalization: The Human Consequences, publicado originalmente em 1998 (Bauman, 2021BAUMAN, Zygmunt. (1998). Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.).

O fato é que devemos, mais do que nunca, ficar atentos para a tendência eurocêntrica ainda dominante no Ocidente. Entre os historiadores que questionaram esse paradigma tão persistente, ainda no final do século XX, quero mencionar, entre outros, os trabalhos de Andre Gunder Frank, Barry Gills e Kenneth Pomeranz. Em The World System, de 1993, Gunder Frank e Gills, seus editores, lideraram um debate historiográfico muito importante, cujo subtítulo interrogativo sugeria a perspectiva de larga amplitude temporal adotada: five hundred years or five thousand (years)? (Frank, Gills, 1993FRANK, Andre Gunder; GILLS, Barry K. (eds.). (1993). The World System: Five Hundred Years or Five Thousand? London; New York: Routledge.). E novamente foi Andre Gunder Frank quem, em 1998, nos regalou um clássico, mediante pesquisa consistente que publicou sob o título: Re-ORIENT: Global Economy in the Asian Age. Nesse livro, o autor faz questão e enfatiza, num jogo original de palavras, a intersecção, segundo ele, inevitável entre “reorientação” e a presença obrigatória do “Oriente” nessa ampliação de horizontes: nem é preciso dizer que a China e sua história milenar ocupam lugar estratégico nessa abordagem (Frank, 1998FRANK, Andre Gunder. (1998). ReORIENT: Global Economy in the Asian Age. Berkeley; Los Angeles: University of California Press.).

Finalmente, dois trabalhos do historiador Kenneth Pomeranz merecem ser lembrados nessa revisão dos parâmetros eurocêntricos. Em The Making of a Hinterland, de 1993, ele faz um estudo exemplar de história local ou regional, a partir do enriquecimento e empobrecimento da região rural de Huang-Yun, no Norte da China, desde 1853 até 1937, entre as atuais províncias de Shandong e Henan (Pomeranz, 1993POMERANZ, Kenneth. (1993). The Making of a Hinterland: State, Society and Economy in Inland North China, 1853-1937. Oakland: University of California Press.). Já no seu conhecido livro A Grande Divergência: a China, a Europa e a construção da economia mundial moderna, publicado originalmente em 2000, Pomeranz se aprofunda na análise dos processos históricos, sociais, políticos e econômicos que levaram a esta separação aparente das histórias europeia e asiática, para muito além das falsas dicotomias: “Ásia atrasada” versus “Europa moderna” (Pomeranz, 2013POMERANZ, Kenneth. (2000). A Grande Divergência: a China, a Europa e a construção da economia mundial moderna. Lisboa: Edições 70, 2013.).

Mas, talvez, uma das melhores surpresas a propósito dessa revisão historiográfica tão decisiva seja a contribuição recentíssima da historiadora da antiguidade e arqueóloga Josephine Quinn, professora na Universidade de Oxford. Ela produziu uma viagem de longo curso, em duplo sentido, tanto nas resfolegantes quase 600 páginas do seu livro, quanto na longue durée de sua análise, How the World Make the West: A 4.000-Year History (2024QUINN, Josephine. (2024). How the World Made the West: A 4.000-Year History. London: Bloomsbury.), que desconstrói, com rara erudição, a imagem autocomplacente de um Ocidente europeu civilizado, revelando aspectos esquecidos ou não reconhecidos, muito para além das chamadas tradições greco-latinas, em movimento vertiginoso de trocas interculturais “desiguais e combinadas” com um Oriente tanto mais próximo quanto o criam extremo.

O que se deve reter aqui é que nem o recorte nacional estrito nem o internacionalismo abstrato darão conta, tomados em si, da diversidade e do movimento dialético inscrito nas formas literárias, artísticas e culturais presentes em dado momento, em dado lugar. Do Paiaiá, sertão baiano, à cidade de Tefé do Amazonas; das beradeiras do rio Xingu às terras indígenas guaranis remanescentes da cidade de São Paulo; dos cordelistas do sertão do Pajeú (Pernambuco/Paraíba) aos anarquistas dos bairros marginais ao caminho-de-ferro nas antigas Pauliceia ou Buenos Aires: todas as vozes a um só tempo em vários espaços, separadas ou fundidas, eis o desafio contemporâneo para economistas, sociólogos, politólogos, pesquisadores de estudos culturais, literatos, críticos de arte e professores de literatura.

Todos deveríamos cuidar para não cair em lugares comuns em nossas análises e seleções. Os párias, os sem pátria nem patrão, a escória do mundo e do que restou de um capitalismo da brutalidade e da expulsão continuam a nos inquirir sobre os limites do “literário” e do “não-literário”; sobre as fronteiras marítimas ou terrestres que os tornaram em refugiados, e tantas vezes refugiados “para sempre”. Sobre a serventia dos diplomas e dos diplomatas. Sobre a persistência da guerra e o desgaste de todas as palavras e de todas as imagens. Sobre o sentido atual de qualquer coisa que se assemelhe a uma comunidade de afetos solidários e de bem-viver. Sobre o que ainda se pode falar ou escrever ou fazer. Se é que ainda se pode. Se é que tal tempo-lugar nos é ainda aqui concedido.

Nesse passo, entre tantas vozes inspiradoras, retenho as advertências que nos deixou, quase como legado, Z. Bauman, em seu ensaio contundente sobre essas Vidas desperdiçadas, em que põe no centro da cena contemporânea os outcasts da ordem, do progresso e da globalização, refugiados, párias, proscritos, que se irmanam numa verdadeira “cultura do lixo” (Bauman, 2005BAUMAN, Zygmunt. (2005). Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar.). Que se completa com esse grave testamento, Estranhos à nossa porta, sobre a crise aparentemente insolúvel dos refugiados na Europa, escrito e publicado pouco antes de sua morte (Bauman, 2017BAUMAN, Zygmunt. (2017). Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: Zahar.).

Mas, talvez, de todas as ilusões que se nos ocupam, nesses tempos trágicos, uma das mais frequentes entre elas é a dos identitarismos que produzem estardalhaços inversamente proporcionais à sua irrelevância para a mudança social. Afinados com modas midiáticas e com a indústria cultural norte-americana, sempre turbinados pela tecnologia digital, identitários podem aparecer como um breve sol numa tarde de verão. Logo depois as luzes se apagam e somente alguma fogueira fugaz de uma família de moradores de rua é capaz, contra as falsas evidências da mídia e a arrogância de plantão de alguma academia, de repor os termos, isto é: repor as dúvidas e a dor. Alguém duvida?

Entre dois polos igualmente reducionistas, abstratos e ilusórios, quais sejam, o de uma “literatura global”, num extremo, e o das “literaturas identitárias”, no outro, há que se atentar para a permanência de literaturas nacionais e regionais relevantes, em que as contradições se somam, na constante luta, ora aguçada, por pertencimento, reconhecimento e diferenciação. Em meio a crises sucessivas, em que a desigualdade social mundial se vê sobredeterminada pelo avanço do colapso ambiental planetário, é hora de, com humildade e determinação, renunciarmos a certezas dogmáticas, palavras mágicas, academias mofadas e currículos estéreis. Combater todas as violências e buscar, sempre, pontes que aproximam. Eis aqui uma perspectiva crítica e seus enormes desafios. Educar publicamente por uma outra globalização, reside aí o nó górdio de uma possível didática. Esperamos continuar a viver e a trabalhar nessa utopia, para que novos resultados possam ser bem compartilhados, não só com nossos colegas, mas com as multidões que ficam sempre do lado de fora.

  • 1
    Este texto é uma versão revista e sintética que resulta de duas comunicações diferentes feitas em 2023, na Unicamp: no III Colóquio Internacional dos grupos Exodus e GEDLit, no IEL, em agosto; e no 5º Encontro Anual do FLAUC (Fudan – Latin American University Consortium), no IE, em novembro. No primeiro caso, agradeço às colegas Daniela Birman e Cynthia Agra Neves, pela coordenação. No segundo, aos colegas Bruno de Conti e Célio Hiratuka, pela organização e acolhimento.
  • 2
    Este livro saiu em 2000, e Milton Santos faleceu em 2001.

REFERÊNCIAS

  • BAUMAN, Zygmunt. (2017). Estranhos à nossa porta Rio de Janeiro: Zahar.
  • BAUMAN, Zygmunt. (1998). Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
  • BAUMAN, Zygmunt. (2005). Vidas desperdiçadas Rio de Janeiro: Zahar.
  • BELLUZZO, Luiz Gonzaga; GALÍPOLO, Gabriel. (2019). A escassez na abundância capitalista São Paulo: Contracorrente.
  • BELLUZZO, Luiz Gonzaga; GALÍPOLO, Gabriel. (2021). Dinheiro: o poder da abstração real. São Paulo: Contracorrente.
  • DAVIDSON, Neil. (2017). Desenvolvimento desigual e combinado: modernidade, modernismo e revolução permanente. São Paulo: Ed. Unifesp, 2020.
  • FEI, Xiaotong. (1947). From the Soil: The Foundation of Chinese Society. Pequim: Foreign Language Teaching and Research Press; Oakland: University of California Press, 1992.
  • FEI, Xiaotong. (2015). Globalization and Cultural Self-Awareness Berlin; Heidelberg: Springer; Pequim: Foreign Language Teaching and Research Press.
  • FRANK, Andre Gunder. (1998). ReORIENT: Global Economy in the Asian Age. Berkeley; Los Angeles: University of California Press.
  • FRANK, Andre Gunder; GILLS, Barry K. (eds.). (1993). The World System: Five Hundred Years or Five Thousand? London; New York: Routledge.
  • FREYRE, Gilberto. (2011). China tropical: e outros escritos sobre a influência do Oriente na cultura luso-brasileira. São Paulo: Global Editora.
  • HARDMAN, Francisco Foot. (2022a). A ideologia paulista e os eternos modernistas São Paulo: Ed. Unesp.
  • HARDMAN, Francisco Foot. (2022b). Ilusões cronológicas: etéreos que se querem eternos. In: Saliba, Elias Thomé (org.), Modernismo: o lado oposto e os outros lados. São Paulo: Eds. SESC; BBM-USP, p. 533-546.
  • HARDMAN, Francisco Foot. (2016). Ilusões geográficas: sobre a volubilidade da noção de periferia no espaço-tempo global. Letterature D’America, Roma, v. 161, p. 5-18.
  • HARDMAN, F. Foot. (2021a). Meu diário da China: a China atual aos olhos de um brasileiro. Pequim: PKU Press.
  • HARDMAN, F. Foot. (2024). Nem pátria, nem patrão!: Memória operária, cultura e literatura no Brasil. 4ª. Ed. rev. e ampliada. São Paulo: Ed. Unesp.
  • HARDMAN, F. Foot. (2021b). Simultaneísmo e fusão na paisagem, na cultura e na literatura chinesa. In: Musse, Ricardo (org.), China contemporânea: seis interpretações. Belo Horizonte: Autêntica, p. 129-162.
  • MARAZZI, Christian. (2014). Capital y lenguaje: hacia el gobierno de las finanzas. Buenos Aires: Tinta Limón.
  • POMERANZ, Kenneth. (2000). A Grande Divergência: a China, a Europa e a construção da economia mundial moderna. Lisboa: Edições 70, 2013.
  • POMERANZ, Kenneth. (1993). The Making of a Hinterland: State, Society and Economy in Inland North China, 1853-1937. Oakland: University of California Press.
  • QUINN, Josephine. (2024). How the World Made the West: A 4.000-Year History. London: Bloomsbury.
  • SANTOS, Milton. (1996). A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec.
  • SANTOS, Milton. (2000). Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2024
  • Aceito
    01 Abr 2024
  • Publicado
    15 Abr 2024
UNICAMP. Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) Unicamp/IEL/Setor de Publicações, Caixa Postal 6045, 13083-970 Campinas SP Brasil, Tel./Fax: (55 19) 3521-1527 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: spublic@iel.unicamp.br