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UNI, DUNI, TÊ: IDENTIDADE E DRAMATICIDADE NAS MÚSICAS DE SOBREVIVENDO NO INFERNO, DOS RACIONAIS MC'S

UNI, DUNI, TÊ: IDENTITY AND DRAMA IN THE SONGS OF SOBREVIVENDO NO INFERNO, BY THE RACIONAIS MC'S

RESUMO

A música dos Racionais MC's, um dos mais importantes grupos do rap brasileiro, retira sua força de um discurso contundente. O rap dos Racionais é uma poesia feita na periferia e que procura se dirigir à própria periferia, quebrada de origem de seus integrantes. Entretanto, seu alcance extrapola esse público de iguais para se voltar também a outros atores sociais. Isso ocorre por terem alcançado muito sucesso, mas também por razões formais características da estrutura das composições. Outro recurso ainda mais significativo é a caracterização de personagens atuando nas músicas, que incluem atores e interlocutores mais abrangentes. Nesse processo, o rap dos Racionais combina a construção de identidades a uma performance que encena e dramatiza posições narrativas e sociais. A partir do disco Sobrevivendo no Inferno (1997), a música do grupo convoca um público amplo e interpela o ouvinte, que precisa se posicionar em relação ao que escuta. O artigo se propõe a averiguar como as letras do grupo passaram a contribuir para esse alargamento do diálogo com os ouvintes. Duas composições, "Diário de um detento" e "Capítulo 4, versículo 3", são analisadas para entender como, ao dramatizar situações em que diferentes atores sociais se encontram, as músicas obrigam a assumir posições, a participar do drama, de um drama que é o drama das periferias, mas que é também o drama de todos, como essas músicas indicam, convocando não apenas a refletir, mas a participar do jogo de ação e fruição das composições.

Palavras-chave:
Rap; Narrativa; Performance; Identidade; Ética

SUMMARY

The music of the Racionais MC's, one of the most important Brazilian rap groups, draws its strength from a forceful discourse. Racionais' rap is poetry made in the periphery and aimed at the periphery itself, where its members come from. However, their reach extends beyond this audience of equals to other social actors. This is because they have achieved so much success, but also for formal reasons characteristic of the structure of the compositions. Another even more significant feature is the characterization of the characters acting in the songs, which include broader actors and interlocutors. In this process, Racionais' rap combines the construction of identities with a performance that stages and dramatizes narrative and social positions. From the album Sobrevivendo no Inferno (1997) onwards, the group's music appealed to a wide audience and challenged the listener, who had to position themselves in relation to what they were hearing. The article sets out to investigate how the group's lyrics have contributed to this broadening of the dialog with listeners. Two compositions, "Diário de um detento" ("Diary of a prisoner") and "Capítulo 4, versículo 3" ("Chapter 4, verse 3"), are analyzed in order to understand how, by dramatizing situations in which different social actors find themselves, the songs force people to take up positions, to take part in the drama, a drama that is the drama of the peripheries, but which is also the drama of everyone, as these songs indicate, inviting people not only to reflect, but to take part in the game of action and enjoyment of the compositions.

Keywords:
Rap; Narrative; Performance; Identity; Ethics

Nosso assunto é a música dos Racionais MC's, grupo que iniciou carreira no final dos anos 1980, mais especificamente no ano de 1988. O grupo é formado por quatro integrantes, provenientes de bairros da Zona Sul e da Zona Norte da cidade de São Paulo. São eles: Mano Brown, Ice Blue, Edy Rock e KL Jay. Este último é o DJ (disc-jóquei) do grupo e os demais são os MCs (mestres de cerimônia ou cantores). Eles formam o mais importante e conhecido conjunto de rap do país e têm, na discografia, seis álbuns de carreira, dentre os quais os mais conhecidos são Sobrevivendo no Inferno (1997) e Nada como um dia após o outro dia (2002). O mais recente é Cores e valores (2014).

O grupo se tornou mais conhecido do grande público com o lançamento do disco Sobrevivendo no Inferno. Este álbum traz, por exemplo, "Diário de um detento", faixa sobre o dia a dia de um homem detido no presídio do Carandiru em São Paulo, e outras faixas que se tornaram famosas como "Rapaz comum", "Periferia é periferia" e "Capítulo 4, versículo 3". Esse disco marca uma mudança de alcance na música do grupo. Eles deixam de ser um grupo conhecido no meio do movimento hip hop e nas periferias e passam a ser também conhecidos e consumidos pela classe média e por uma parcela mais instituída da cultura: escritores, intelectuais, acadêmicos, outros artistas. Esse alcance maior tem a ver com uma difusão maior, isto é, com sucesso e repercussão. Mas nossa intenção é averiguar como também as letras passaram a contribuir para esse alargamento do diálogo do grupo, em uma nova postura que transforma identidade e oposição em dramaticidade e disposição ética.

A mudança é também de ordem poética, de uma nova orientação estética, sobretudo nas letras do grupo. Nesse disco, elas pressupõem, desde a sua elaboração, um público mais amplo e dialogam com esse público de maneira complexa. O diálogo deixa de ser, essencialmente, com os irmãos, os manos, os iguais, e com aqueles com quem o grupo mantém diferenças (como com os racistas, os playboys). O diálogo das composições passa a evocar um "você" que, em sua indeterminação, alarga o alcance das mensagens e estimula um diálogo mais sensível das letras com um ouvinte menos tipificado (e até estereotipado, como ocorria nas músicas de início de carreira). Essa mudança já foi bem apontada por outros pesquisadores, como os professores Walter Garcia (2004)GARCIA, Walter. (2004). Ouvindo Racionais MC's. Teresa: Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 4-5, p. 166-180. e Acauam Silvério de Oliveira (2015)OLIVEIRA, Acauam Silvério de. (2017). O fim da canção? Racionais MC's como efeito colateral do sistema cancional brasileiro. Tese de Doutorado em Literatura Brasileira. Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015., que chamaram a atenção para a construção coletiva e para a multiplicidade de vozes que este disco comporta, em uma mudança de postura do grupo.

Nos interessa ver, e faremos isso em duas músicas específicas, "Diário de um detento" e "Capítulo 4, versículo 3", como as letras procuram convocar um ouvinte que não é o interlocutor inicial do grupo, isto é, não apenas os manos, não só os irmãos da quebrada, das periferias, mas um ouvinte que é um outro, diferente, um ouvinte marcado pela alteridade.

Nessa encenação de posições, nesse jogo entre quem fala e quem ouve, entre autor e receptor, os Racionais levam o ouvinte para dentro das composições, em uma estratégia de convocação do ouvinte/leitor (Iser, 1999ISER, Wolfgang. (1999). O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Vol. 2. Tradução de Johaness Kretschmer. S. Paulo: Ed. 34.). Os raps do grupo marcam posições e identidades dinâmicas, que propõem ao ouvinte uma ética: posicionar-se também ele, ouvinte, em relação ao que está sendo dito e se perguntar sobre sua própria identidade, reflexão e atuação social.

DIÁLOGOS, TEMAS E PERFORMANCE

O recurso do rap dialogado se dá desde o início da carreira dos Racionais, pois os cantores do grupo adotam o procedimento de se apresentar a quem ouve e de falar com atores externos (a polícia, as mulheres, os boys, os racistas, a playboyzada) e com atores que podem ser personagens (isto é, figuras que aparecem ou são aludidas nas histórias contadas pelas músicas).

A esse respeito, sobre essa interlocução típica da fase inicial do grupo, destacam-se músicas como "Hey Boy" (Holocausto urbano), "Racistas otários" (Holocausto urbano), "Negro limitado" (Escolha seu caminho), "Pânico na Zona Sul" (Holocausto urbano). Nessas faixas de início de carreira, há oposição violenta e ameaçadora entre quem fala e o interlocutor. Em "Hey Boy", o rapper alerta um playboy incauto: "Hey boy o que você está fazendo aqui?/Meu bairro não é seu lugar/E você vai se ferir/Você não sabe onde está/Caiu num ninho de cobra".

Em "Racistas otários", apesar de se dirigir a possíveis ouvintes racistas, a oposição entre o eu que fala e o outro é marcada por uma oposição inconciliável, garantida pelo "sistema": "Racistas otários nos deixem em paz/Pois as famílias pobres não aguentam mais/Pois todos sabem e elas temem/A indiferença por gente carente que se tem/E eles veem com toda autoridade o preconceito eterno/E de repente o nosso espaço se transforma/Num verdadeiro inferno e reclamar direitos/De que forma? Se somos meros cidadãos e eles o sistema/E a nossa desinformação é o maior problema/Mas mesmo assim enfim, queremos ser iguais/Racistas otários nos deixem em paz". Em "Pânico na Zona Sul", o diálogo inicial ocorre entre os integrantes do grupo e a seguir enfeixa-se uma oposição, semelhante à da música "Racistas otários", entre "nós" e "eles":

Aqui é Racionais MC's, Ice Blue, Mano Brown, KLJay e eu EdyRock.
- E ai Mano Brown, certo?
- Certo não está né mano, e os inocentes quem os trará de volta?
- É... a nossa vida continua, e ai quem se importa?
- A sociedade sempre fecha as portas mesmo...
- E ai, Ice Blue...
- PÂNICO...
Então quando o dia escurece
Só quem é de lá sabe o que acontece
Ao que me parece prevalece a ignorância
E nós estamos sós
Ninguém quer ouvir a nossa voz
Cheia de razões calibres em punho
Dificilmente um testemunho vai aparecer
E pode crer a verdade se omite
Pois quem garante o meu dia seguinte
Justiceiros são chamados por eles mesmos
Matam humilham e dão tiros a esmo
E a polícia não demonstra sequer vontade
De resolver ou apurar a verdade
Pois simplesmente é conveniente
E por que ajudariam se eles os julgam delinquentes
E as ocorrências prosseguem sem problema nenhum
Continua-se o pânico na Zona Sul.

Além desse diálogo tenso e marcado por uma alteridade áspera, que identifica a postura do grupo desde o início, também a narratividade das letras é algo bastante característico do rap dos Racionais - suas músicas contam histórias. E a figura central nessas histórias é o MC em ato. O mestre de cerimônias, vocalista do grupo, é o rapper que fala nas músicas (no caso Mano Brown ou Edi Rock, que são os dois principais cantores do grupo e, eventualmente, também o terceiro cantor do grupo, Ice Blue). Em geral, o rapper que fala, além de enunciador ou cantor, também é personagem das músicas. Os MCs dizem seus próprios nomes e em algumas composições se colocam em situação, como personagens. E como personagens de suas próprias músicas, eles falam com outros personagens, falam de outros personagens e, em casos mais raros, falam com um outro: o ouvinte. Nos casos que mais nos interessam, o ouvinte é convocado a participar da música, como se estivesse implicado no que o rapper diz.

O disco Sobrevivendo no Inferno condensa essas características, em especial esse diálogo encenado com o ouvinte. Quando o álbum saiu, em 1997, os Racionais já tinham lançado três discos: Holocausto urbano, Escolha seu caminho e Raio X do Brasil. Eles já eram muito conhecidos por esses álbuns e por alguns sucessos. Músicas que continuam muito famosas, e que eles seguem apresentando nos shows: "Pânico na Zona Sul", "Fim de semana no parque", "Homem na porta do bar", "Um homem na estrada". Mas o álbum Sobrevivendo no Inferno levou o reconhecimento e o sucesso do grupo a um novo patamar. Um indicativo da importância que o disco assumiu é que se tornou referência não apenas musical, mas também literária. Além do disco, em CD, hoje disponível em plataformas como Spotify, por exemplo, temos também, desde 2018, a versão em livro, com todas as letras das músicas. O livro Sobrevivendo no Inferno (Racionais, 2018RACIONAIS MC's. (2018). Sobrevivendo no inferno. São Paulo: Companhia das Letras.) foi leitura obrigatória no Vestibular da Unicamp durante dois anos seguidos: 2022 e 2023. Esse desdobramento do disco em livro é, ao mesmo tempo, uma riqueza e uma dificuldade para quem se dispõe a compreender essa poesia.

Além da parte sonora e verbal, ao voltar os olhos para o livro e o CD, é possível pensar sobre novas estratégias performáticas, como a do projeto gráfico, a roupagem estética desse produto, que tem a ver com a música, mas também com uma postura, uma atitude, uma disposição ética particular. A estética do livro é muito parecida com a do CD (apesar do formato evidentemente diferente, disco e livro têm a mesma programação visual de capa, e o livro tem as letras e, também, fotos dos artistas). O livro torna mais prático consultar as letras do grupo, assim como é possível ouvir os discos acessando plataformas digitais (como o YouTube e o Spotify). No entanto, o livro com as letras não é capaz de dar a compreensão mais geral da arte dos Racionais, pois a natureza do movimento hip hop e da música rap é da ordem das artes performáticas (Zumthor, 2007ZUMTHOR, Paul. (2007). Performance, Recepção, Leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify.), que combina múltiplas linguagens, uma arte que se faz de música, letra, sonoridades e, em vários momentos - especialmente, é claro, nos shows -, do corpo desses artistas, da presença, do movimento, da dança, do gestual dos próprios cantores e compositores.

Assim, antes de examinarmos como o discurso dos Racionais se tornou mais largo, convocando o ouvinte mais distante dessa realidade descrita nas letras, convém repassar duas considerações mais gerais sobre o rap. A primeira delas é sobre a natureza das composições e a outra observação é temática, isto é, sobre a relação de grande identificação com a violência que a música do grupo estabelece. No primeiro caso, precisamos não perder de vista (e de ouvido) que a estrutura formal do rap comporta a letra e som, o verbal e o rítmico (rap significa ritmo e poesia; rythm and poetry, na sigla em inglês), mas ela é também performática (Zeni, 2004ZENI, Bruno. (2004). O negro drama do rap: entre a lei do cão e a lei da selva. Estudos Avançados, v. 18, n. 50, p. 225-241.). Quando ao segundo ponto, em relação ao conteúdo, as letras em geral são crônicas da vida na periferia ("Fim de semana no parque", "Negro drama", "Vida loka"), ou histórias de personagens ("Eu tô ouvindo alguém me chamar", "O homem na estrada", "Diário de um detento"). E às vezes as músicas derivam para um discurso mais propriamente lírico ("Jesus Chorou"), em que o eu se coloca para enunciar sentimentos e estados de espírito. Assim, além da poesia, o rap mistura elementos não verbais, erigindo-se como uma poesia sonora e performática que inclui o corpo e também interferências e colagens, o uso de samples (amostras de outras músicas), barulhos, cacos sonoros e batidas rítmicas apropriadas de outros grupo e compositores.

É interessante comentar um trecho de uma das músicas do grupo que traz as principais características da música rap. Uma faixa do início da carreira do grupo, "Pânico na Zona Sul", a primeira música do primeiro disco, já apresenta os traços mais marcantes do estilo rap. A composição, do ponto de vista sonoro e musical, traz aquela combinação que conhecemos bem, desde sempre: é uma colagem de bases rítmicas feita pelo DJ, o integrante do grupo que toma emprestada essa base de alguma música prévia (ou, o que também ocorre com frequência, cria batidas próprias). Além disso, ele pode usar sons "reais", como no caso dos tiros que aparecem nessa música. Outros cacos sonoros podem ser usados: carros ou motos acelerando e buzinando, colisões, gritos, discussões, toda a algaravia típica da vida na cidade ou, mais especificamente, da vida na periferia. Sobre esse fundo musical (ou melhor, sonoro) entram as vozes dos MCs, os mestres de cerimônia ou simplesmente rappers. Eles não raro citam seus próprios nomes. E se põem a cantar, um canto rimado e ritmado, com pouco espaço para melodia, mas que muitas vezes incorpora elementos mais propriamente melódicos e refrões. Aqui, a frase "Pânico na Zona Sul", que é título da faixa e, também, refrão, tem essa função de reafirmar o mote principal da música, de forma a mobilizar o ouvinte. É uma música que fala de medo, de pânico, mas com certo suingue, que incita a vontade de dançar, de acompanhar com o corpo.

Desde os primeiros raps, os Racionais usam da violência verbal e de cacos sonoros da violência para falar da violência real, mas com espaço para certa fruição. Esse é um desdobramento da segunda questão geral sobre o rap: a violência verbal está a serviço da reflexão e da diversão (Garcia, 2004GARCIA, Walter. (2004). Ouvindo Racionais MC's. Teresa: Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 4-5, p. 166-180.). A combatividade e a violência com que eles encenam essas situações - e com que fazem a crônica da vida na periferia - são ambivalentes, pois congregam, entretêm e orientam. A música proporciona momentos de lazer, nos shows e na audiência privada dos discos, e por outro lado a contundência e a virulência das letras fazem com que se possa associar a postura dos Racionais a um certo estilo de rap, chamado gangsta rap, que tem como orientação a ideia de incentivo à violência.

Por ao menos duas vezes, shows de grande porte dos Racionais na cidade de São Paulo terminaram em confusão e interferência da polícia. Em 1994, a apresentação do grupo no Vale do Anhangabaú foi interrompida pela PM e os integrantes foram levados a uma delegacia de polícia, onde prestaram depoimento, acusados de incitação à violência (Polícia prende grupos..., 1994POLÍCIA PRENDE GRUPOS de rap durante show. (1994). Folha de S. Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/11/28/brasil/23.html. Acesso em: 14 abr. 2024.
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/1...
). Mais de dez anos depois, em 2007, na primeira edição da Virada Cultural, houve novamente um conflito com a PM (G1, 2007G1. Show de Racionais MC's na Sé termina em quebra-quebra; 11 são detidos. (2007). Globo.com. Disponível em: https://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL32048-5605,00-SHOW+DE+RACIONAIS+MCS+NA+SE+TERMINA+EM+QUEBRAQUEBRA+SAO+DETIDOS.html. Acesso em: 14 abr. 2024.
https://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0...
).

Durante um certo tempo (ver Teperman, 2015TEPERMAN, Ricardo. (2015). Se liga no som: As transformações do rap no Brasil. São Paulo: Claro Enigma.), os Racionais pensaram em retirar dos shows músicas em que há identificação entre o rap e o mundo do crime. É o caso de "Eu sou 157", música do disco de 2002, Nada como um dia após o outro dia.

Mas a violência com que os Racionais cantam a violência que a população da periferia sofre e a violência que atravessa as relações sociais no país não é simplesmente crua e panfletária, combativa e denuncista. Em outras palavras, não é um grupo que, por meio da violência verbal, incentiva a violência real. O que o grupo faz, principalmente a partir de Sobrevivendo no Inferno, é colocar em cena (ou: no palco, nas suas performances, na própria estrutura das músicas) vozes e posições antagônicas, em um diálogo que dramatiza os conflitos. Nessa elaboração, os rappers falam de si e por si, mas também falam com outros e como outros. As identidades que assumem não coincidem totalmente com eles próprios. São identidades dramatizadas. Os rappers se tornam personagens, assumem máscaras que servem para colocar também o ouvinte em posições que não são as identidades mais óbvias ou estabelecidas, mas que exigem posicionamento e mobilização, em uma elaboração literária e artística que convoca o ouvinte não apenas a fruir e pensar, mas também a se colocar em situação.

QUEM FALA NOS RAPS?

O refrão da música "Eu sou 157" é: "Hoje eu sou ladrão, artigo um cinco sete". O artigo 157 do Código Penal tipifica o crime de roubo. "Hoje eu sou ladrão, artigo um cinco sete", diz o refrão, e segue: "As cachorras me amam, os playboys se derretem. A polícia bola um plano, eu sou herói de pivete". A questão que se coloca é: quem é esse eu que fala nessa música? O uso do refrão não é muito comum no rap dos Racionais, mas também não é inédito, obviamente, como vemos ocorrer desde o começo da carreira do grupo. Em "Eu sou 157" é justo se perguntar: é o rapper ou é o personagem que está falando nessa música? Trata-se de um narrador que não se confunde com o cantor, isto é, com aquele que fala. O ouvinte precisa entender qual é a postura, qual é a modulação desta fala, qual é a atitude, para usar um termo caro ao universo do rap. No caso de "Eu sou 157", tratase de uma elocução irônica (que marca distância entre cantor e personagem), inclusive porque o refrão é gravado com uma voz alterada por um sintetizador. Então quem diz "hoje eu sou ladrão, artigo 157" é o rapper, mas na situação narrada do enredo encenado pela música o rapper não é o ladrão, o rapper assume uma persona de ladrão.

O exemplo de "Eu sou 157" já é posterior a Sobrevivendo no Inferno (1997), é do disco duplo de 2002, Nada como um dia após o outro dia. A construção complexa de identidades (a disjunção entre rapper, narrador e personagem), porém, vinha de antes. A dramatização de posições sociais e de trama narrativa já tinha no disco de 1997 um marco eloquente. No disco de 2002, a contundência das letras do grupo se mantém e eles permanecem fiéis ao seu público primordial, àquela intenção de um diálogo entre "iguais", entre aqueles que são moradores da periferia como eles, que vieram da periferia e que sofrem tudo aquilo que as letras do grupo contam. Essa distinção entre o cantor e o personagem está sublinhada por esse recurso sonoro, que modula a voz do cantor. É como se o rapper apontasse para outro, que é interpretado por ele mesmo, mas cuja identidade está em outra parte: "Olha, olha esse cara aqui, olha esse ladrão cantando rap". Isso imprime um caráter irônico à elocução, pois eles vão encenar a ação ou, pelo menos, a caracterização de uma figura de herói que os rappers recusam: a ideia de ser herói e, ainda por cima, "herói de pivete".

Eles recusam o heroísmo, e um heroísmo ligado à contravenção (pivete é o menor de idade contraventor), em favor de uma ideia de irmandade, uma ideia de horizontalidade, a noção de que eles não são maiores ou mais importantes do que os seus manos. "Eu sou apenas um rapaz latino-americano apoiado por mais de 50 mil manos", vai dizer Mano Brown na música "Capítulo 4, versículo 3".

A constituição dessa comunidade periférica é o que Maria Rita Kehl (2000)KEHL, Maria Rita (org.). (2000). Função fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará. chamou de esforço civilizatório do rap, a noção de uma irmandade que eles constroem a partir de um compartilhamento de experiências, de uma maior representatividade dos atores e dos lugares periféricos, o reconhecimento do sofrimento de muitos, dos iguais, dos irmãos. O modo de tratar os iguais por "manos" sem dúvida traduz essa identificação horizontal entre os moradores das periferias, compartilhando dramas comuns. É o que Maria Rita Kehl chamou de função fraterna (Kehl, 2000KEHL, Maria Rita (org.). (2000). Função fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará.), isto é, a criação, por meio da cultura hip hop, de uma fratria, uma comunidade de iguais, de "irmãos", de manos.

A ideia subjacente é a de que, nessa comunidade imaginária de irmãos da periferia, ninguém é melhor do que ninguém. No rap "Cap 4, versículo 3", Mano Brown diz isso textualmente: "veja bem, veja bem, ninguém é melhor que ninguém, e eles são nossos irmãos também". Tudo isso vem associado a uma postura nova na música e na cultura brasileira, que é a postura de enfrentamento, uma "Dialética da marginalidade", como a nomeia João Cezar de Castro Rocha (2004)ROCHA, João Cezar de Castro. (2004). A guerra de relatos no Brasil contemporâneo. Ou: "A dialética da marginalidade". Revista Letras (UFSM), n. 28-29, p. 153-184, jan./dez. 2004., que viria a propor um novo conceito de dinâmica cultural a partir do conceito de "Dialética da malandragem" de Antonio Candido (1988)CANDIDO, Antonio. (1998). Dialética da malandragem. In: CANDIDO. Antonio, O discurso e a cidade, 2a Ed. São Paulo: Duas Cidades, p. 19-54.. Nessa nova fase da dinâmica social brasileira, esta é uma postura artística que não se pauta pela acomodação, que não aceita as desigualdades e a violência, que não compactua com a cordialidade e com mitos arraigados na sociedade brasileira, entre eles, a ideia de democracia racial, harmonia e conformismo nas relações entre as classes sociais.

APELO AOS IGUAIS, DESAFIO AOS DIFERENTES

Uma novidade bastante interessante no disco Sobrevivendo no Inferno é uma renovada interlocução com o ouvinte, diálogo que, como já observamos, é marca do rap do grupo desde o início; mas, se no começo de carreira essas falas encenavam oposições claras, agora as identidades estão mais embaralhadas. No início era: de um lado os manos, os pretos, os periféricos; de outro, os racistas, os playboys, a sociedade. Em "Pânico na Zona Sul", o rap diz: "Nós estamos sós, ninguém quer ouvir a nossa voz." Ninguém quer ouvir a nossa voz: há irmandade e uma cumplicidade nessa irmandade; e, no entanto, eles estão o tempo todo falando com outros personagens, que são outros distantes e indiferentes aos seus dramas. São bem sintomáticas desse tipo de diálogo os raps dos primeiros discos: é o caso das duas músicas do disco "Escolha seu caminho": "Negro limitado" e "Voz ativa". Na primeira, "Negro Limitado", o diálogo do rapper que canta é com esse negro limitado, que só quer saber de dinheiro e onda, que despreza a ideia de consciência e de reflexão: "Consciência não tá com nada, o negócio é tirar um barato, morô, mano?", diz o personagem, chamado por sua vez de "príncipe dos burros" pelo MC que narra.

Em duas músicas do mesmo disco Holocausto urbano, "Hey, boy" e "Racistas otários", os MCs encenam diálogos com um ouvinte. É algo que vem, portanto, de antes do lançamento de Sobrevivendo no Inferno, mas que se dá, nos primeiros discos, de maneira mais engessada. Na primeira dessas músicas, "Hey, boy", a situação da música é a de um playboy desavisado que passa pela quebrada e é interpelado por alguém do local. A voz do rapper encena a situação e o avisa que ele é persona non grata ali: "Hey boy o que você está fazendo aqui?, Meu bairro não é seu lugar, e você vai se ferir. Você não sabe onde está, caiu num ninho de cobra, e eu acho que vai ter que se explicar. Pra sair não vai ser fácil, a vida aqui é dura. Dura é a lei do mais forte, Onde a miséria não tem cura, e o remédio mais provável é a morte".

Em "Racistas otários", o refrão se volta, como indica o título da música, aos racistas: "Racistas otários, nos deixem em paz". Mas afora essa frase que volta em vários momentos da música, como um refrão, o resto da letra é um aconselhamento dirigido a um dos irmãos: "Se somos meros cidadãos e eles o sistema, e a nossa desinformação é o maior problema mas mesmo assim enfim, queremos ser iguais, racistas otários nos deixem em paz [...]. Justiça, em nome disso eles são pagos, mas a noção que se tem é limitada, e eu sei que a lei é implacável com os oprimidos. Tornam bandidos os que eram pessoas de bem, pois já é tão claro que é mais fácil dizer, que eles são os certos e o culpado é você".

Esses exemplos são dos primeiros discos, e dessa primeira fase do grupo. Vamos ver como isso muda a partir de Sobrevivendo no Inferno, o quarto disco do grupo. Nele, essa convocação que claramente era nomeada - "Hey, boy", "Racistas otários", "Negro limitado" - deixa de ser explícita e acusatória, para ser, ao mesmo tempo, mais indeterminada e integrada à estrutura narrativa, como um procedimento de interlocução direto com o ouvinte. Nos raps do disco de 1997, o ouvinte está "dentro" da narrativa, implicado na história que é contada. O rapper também passa a assumir diferentes personae, como se ele pudesse ser ele próprio e um outro, ostentando diferentes máscaras. Vimos como, desde o início, os cantores se identificavam nas músicas e falavam em nome próprio. A partir de Sobrevivendo no Inferno, eles passam a desempenhar com maior liberdade outros papéis. O caso mais notório é "Diário de um detento", mas "Capítulo 4, versículo 3" talvez seja o caso mais vertiginoso, interessante e desafiador para o ouvinte.

DIÁRIO DE UM DETENTO: UMA VOZ DETIDA QUE FALA

Em "Diário de um detento", Mano Brown conta uma história como se fosse um detento. O clipe teve cenas gravadas no presídio do Carandiru, antes da demolição. É o Brown cantando uma música que ele escreveu em parceria com um detento, chamado Jocenir (que aliás, depois viria a publicar um livro de sua própria autoria, intitulado, significativamente Diário de um detento, o livro). Mas apesar de Mano Brown cantar como se fosse ele próprio o personagem da música, como se ele fosse o eu que canta e conta, não é a história dele, obviamente. É a história do Brown narrador, rapper, falando sobre outro personagem (como se fosse esse personagem), um detento que estava no Carandiru, em 1992, quando houve o Massacre que resultou em 111 mortos. "Diário de um detento" narra a história do Massacre de um ponto de vista interno, da perspectiva de alguém que estava lá e que fala com alguém que não estava. É um detento que está lá no dia 1° de outubro e está falando alguém que não está na cadeia, que não é dessa comunidade carcerária. A pessoa que fala é um "eu" que está lá dentro e que narra. Então, ele conta o que se deu no dia 1°, depois no dia 2, que é o dia do Massacre. Ele vai falar sobre o Massacre ao longo do rap, e então ele termina no dia seguinte, dia 3 de outubro, com a frase enfática e desencantada: "Quem vai acreditar no meu depoimento?". Uma voz detida, colocada em movimento pelo rapper Mano Brown.

A narrativa dessa música-diário começa um dia antes: "São Paulo, dia 1° de outubro de 1992, 8 horas da manhã", e logo o rapper (ou esse personagem que narra) se coloca e vai falar de uma maneira alusiva, quer dizer, sugerida, com um interlocutor, com alguém que não é de lá. "Aqui estou mais um dia". "Aqui" é onde? O presídio, como se infere pelo verso seguinte: "Sob o olhar sanguinário do vigia". O clipe da música deixa evidente a disposição espacial dos personagens em cena: o PM fazendo a vigia nos muros da cadeia. Mas, mesmo sem o apoio das imagens, a letra é eloquente: "Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de uma HK". Você, quem? Quem é esse você? Somos nós que estamos ouvindo, evidentemente, mas é, antes de mais nada, um sujeito que não está na mesma situação daquele que canta, daquele que protagoniza a ação narrada na letra da música e daquele a quem a música se dirige, este você que a voz detida usa como índice de interlocução indeterminada.

Aparece aqui uma conjunção de disposições que tornam essa composição emblemática de uma disposição ética feita de identidades dramatizadas. Essas posições vêm acrescidas de uma dúvida sobre a possibilidade de convencer quem não passou pelo trauma. Esse apelo a quem não viu o horror para acreditar no que ele passou é algo que filia a produção literária dos Racionais à tradição da literatura de testemunho (Nestrovski, SeligmannSilva, 2000NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.). (2000). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta.), não apenas pelo caráter traumático do tema como também pela disposição ética: um apelo ao compartilhamento da experiência traumática.

O narrador está falando com alguém. Não se sabe quem é. Ou seja, trata-se já de um procedimento de construção literária, de um discurso que indica claramente uma vontade desse rapper ou desse rap, dessa música, de falar com um público mais amplo, falar com a sociedade de um modo geral. É como se o grupo se dirigisse a um ouvinte pressuposto: vocês aí de fora não sabem o que é caminhar sob a mira de uma metralhadora (alemã ou de Israel) que estraçalha ladrão que nem papel. E depois ele vai continuar narrando esse cotidiano - esse diário, como diz o título da música - falando justamente desses outros personagens.

Sua localização espacial é precisa, como se denota ao mencionar o vigia. "Na muralha em pé, mais um cidadão José, servindo o Estado, um PM bom. Passa fome, mas é metido a Charles Bronson." O PM é um igual também, muitas vezes vem da mesma periferia, vem da mesma classe social, mas ele serve ao Estado. Ele passa fome, mas é metido a Charles Bronson. Por quê? Porque ele é um policial. Ele pode até vir da mesma periferia, ele pode até vir da mesma classe, mas ele está a trabalho, com sua farda e suas armas, chancelado pelo sistema, a serviço de um Estado, e de um Estado genocida, de um Estado assassino. Aparece aí um outro personagem a quem se dirigir, além do ouvinte, que já foi incluído na narrativa e voltará a ser convocado. O rapper descreve o que vê: uma muralha e um PM "bom", "metido a Charles Bronson". Também o policial aspira a uma outra identidade: a de um justiceiro de cinema americano. A ironia da música é evidente e marca posições: ela se refere a personagens que estão ali e a personagens que não estão. É o que acontece também naquele trecho bastante conhecido da narrativa deste diário em que o detento aponta a passagem do trem do metrô: "Ratatatá, mais um metrô vai passar, com gente educada, católica, a caminho do centro. Curioso, é lógico. Não, aqui não é o zoológico". Nesse ponto, o detento-rapper fala das pessoas que não estão na cadeia. E se volta a um interlocutor que ele supõe estar curioso, a quem ele responde: não, aqui não é um zoológico. O narrador da música (rapper, detento) se volta para aquele cidadão comum que vai para o trabalho todo dia, de metrô, e olha para a cadeia ali, tão próxima, com outros seres engaiolados, que o narrador acusa de algo mais grave que a indiferença.

Nessa música, portanto, um detento toma a voz, vai falar da sua realidade, vai registar o seu diário e vai narrar um massacre que é feito por policiais, com a conivência do cidadão comum, a quem ele se dirige. É a esse cidadão que ele parece voltar suas palavras: a uma sociedade de "gente educada, católica, a caminho do centro". Esse outro, o trabalhador, o católico, o homem de bem, que ele sabe que não está em cena, mas é a ele que o rapper-detento precisa se dirigir. A música trai o desejo de falar com um público mais amplo. E isso não só é interessante, como é necessário. Essa necessidade se manifesta de maneira enfática no apelo final, em forma de pergunta: "Quem vai acreditar no meu depoimento?".

Ocorre aí o desenho de uma ética. Uma ética de falar com os seus iguais, falar da periferia (aqui a cadeia é um microcosmo, um recorte da periferia), apontar quais são os problemas, quais são os crimes que o Estado comete em nome, digamos, da segurança e do progresso, mas crimes que o Estado comete especialmente na periferia. Uma ética de que é preciso contar e achar uma forma de contar certas coisas para que não se repitam. O questionamento final, "quem vai acreditar no meu depoimento?", é um apelo muito próximo também daqueles que sobreviveram aos campos de concentração. É preciso testemunhar (ou é incontornável testemunhar) e, depois de testemunhar, é preciso contar. Essa é uma voz que poderia ter morrido, mas que sobreviveu. Então, é a voz autorizada, imbuída de compromisso e de verdade, capaz de contar essa tragédia. Os que morreram não podem mais contar. Então, quem pode contar essa tragédia? Quem sobreviveu. Nesse caso, é uma voz sobrevivente, mas que fala na voz de um outro, na voz do rapper, na forma do rap. Então, esse é, digamos, o compromisso que os Racionais têm, principalmente, claro, com a periferia. O compromisso é ser leal aos seus iguais - com a fratria, como diz Maria Rita Kehl (2000)KEHL, Maria Rita (org.). (2000). Função fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará. -, uma missão ética, a um só tempo histórica e artística, de registrar essas arbitrariedades e violências de maneira que a sociedade, de um modo geral, escute e se reconheça e se responsabilize por isso.

"CAPÍTULO 4, VERSÍCULO 3": POETA, BANDIDO OU TERRORISTA? UMA ÉTICA EM AÇÃO

A música mais ousada do disco, por sua vez, e que nos faz pensar em uma ética ainda mais complexa é "Capítulo 4, versículo 3". Esse rap começa com uma voz que enuncia estatísticas que expõem a extrema vulnerabilidade da população negra. A voz é de um homem que se apresenta: Primo Preto, um dos produtores da banda. E depois dessa espécie de vinheta de introdução, entra a voz do Mano Brown num discurso muito violento, imitando um assalto a um bar ou algum estabelecimento comercial. De início, é como se ele encarnasse um bandido assaltando algum lugar. Mas, rapidamente, o discurso desse narrador vai assumindo outras identidades.

Diz a música: "Minha intenção é ruim, esvazia o lugar. Eu estou em cima, eu estou a fim, um, dois, para atirar. Eu sou bem pior do que você está vendo. O preto aqui não tem dó, é 100% veneno. A primeira faz 'bum', a segunda faz 'tá'. Eu tenho uma missão e não vou parar. Meu estilo é pesado e faz tremer o chão." Até aqui, temos um prenúncio de ação que faz o ouvinte acreditar que se trata de um assaltante invadindo algum lugar com "intenção ruim". Mas, em seguida, vem uma primeira alteração metafórica relevante, que muda a compreensão do que o rapper diz. "Minha palavra vale um tiro e eu tenho muita munição."

O rap começa como uma espécie de assalto, alguém armado entrando num lugar, num bar, numa padaria, num supermercado, onde quer que seja (poderia ser, por exemplo, um conto do primeiro Rubem Fonseca, como "Feliz Ano Novo", em que um grupo de criminosos armados invade uma mansão, durante uma festa de Réveillon de gente rica). Rapidamente o cantor, que parecia desempenhar papel de bandido, assume seu lugar como rapper. A arma que ele empunha é a palavra: "Minha palavra vale um tiro e eu tenho muita munição". Mas ele segue falando de sua atitude, de seu comportamento ambíguo: "Na queda ou na ascensão, minha atitude vai além e tem disposição pro mal e pro bem." Nesse assalto verbal, a disposição, a atitude, pode se voltar para o mal ou para o bem. Trata-se de uma declaração de comportamento imprevisível, que coloca o ouvinte em alerta. O que resultará dessa disposição ambígua? Talvez só a continuação da letra possa nos indicar.

Prossegue o jogo de identidades que ele próprio enuncia. "Talvez eu seja um sádico, um anjo, um mágico, um juiz ou um réu, um bandido do céu". A articulação metamórfica dessa voz é complexa e contraditória, porque ela se pergunta (e talvez nem mesmo saiba ou tenha se decidido): talvez um sádico, talvez um anjo, um mágico, um juiz, réu, um bandido do céu. E ainda: malandro ou otário, padre sanguinário, franco-atirador se for necessário. Mas se nos mantivermos fiéis ao pacto metafórico de que a munição é feita de palavras, ele é um "franco atirador" de que tipo? Um franco-atirador do verso, um franco-atirador de palavras.

Talvez a frase-chave dessa música seja a que retoma a interlocução direta com o ouvinte: "Uni-duni-tê, o que eu tenho pra você? Um rap venenoso ou uma rajada de PT?" (a sigla PT designa a Pistola Taurus, uma marca de arma específica). Essa convocação do ouvinte, que vem desde o começo do "assalto", quando ele diz "esvazia o lugar, eu sou bem pior do que você está vendo", culmina nessa roleta-russa do "uni, duni, tê" ao final da cena inicial, quando o rapper parece brincar com essa situação de perigo a que submete o ouvinte: um rap venenoso (este que a gente ouve?) ou tiros em série, uma rajada de arma de fogo?

É um discurso muito elaborado e violento, e, também, desestabilizador de identidades: "imprevisível, como um ataque cardíaco do verso, violentamente pacífico, verídico". É uma voz que está procurando uma identidade capaz de traduzir a experiência complexa de ser rapper. O que é ser rapper? O que é fazer um rap violento, revolucionário, marginal? Será que é ser malandro ou ser otário? É uma interrogação sobre si próprio também. "Antigo, moderno, imortal, fronteira do céu com o inferno".

Nessa relação de interlocução e de dramatização de identidades contraditórias, há ainda espaço para uma declaração de intenções, não menos contraditória. "Vim para sabotar seu raciocínio, vim para abalar seu sistema nervoso e sanguíneo. Para mim ainda é pouco, Brown cachorro louco, número 1, guia, terrorista da periferia." Aí ele volta a assumir a sua própria identidade: Brown. Mas a identidade não coincide consigo próprio, digamos assim. É um Brown que tem a ferocidade de um cachorro louco, um Brown "terrorista da periferia".

A cena e o discurso do MC se encerram com a ocorrência de outra voz: "E a profecia se fez como previsto: um, nove, nove, sete depois de Cristo. A fúria negra ressuscita outra vez, Racionais, capítulo 4, versículo 3". O número soletrado um a um (um, nove, nove, sete) sublinha o ano em que o disco foi lançado: 1997 depois de Cristo, quando "a fúria negra ressuscita outra vez". E o que é a alusão bíblica "capítulo 4, versículo 3"? Capítulo 4 porque é o quarto álbum da banda, e versículo 3 pois esta é terceira música do disco.

Esses recursos de metalinguagem fazem o discurso se voltar para a missão do grupo, uma missão que já tinha sido profetizada. Essa fúria negra é saudada por um canto de "Aleluia, aleluia!", que encena, coloca no palco a volta da "fúria negra", ressuscitada. Então é também com a figura de Jesus Cristo que esses rappers vão se identificar, como aliás eles dizem ao final do disco, em uma faixa intitulada "Salve": "Eu acredito na palavra de um homem de pele escura, de cabelo crespo, que andava entre mendigos e leprosos pregando a igualdade. Um homem chamado Jesus. Só ele sabe a minha hora". E eles fecham esse salve, dirigindo-se a um outro: "Aí, ladrão, tô saindo fora. Paz!".

O que será essa fúria negra? É a fúria do rap, é a fúria da população negra, se insurgindo contra uma sociedade hipócrita, contra os massacres, contra uma política de extermínio, de genocídio. Como? Por meio do quê? Por meio do rap, por meio de um assalto verbal, com munição pesada, mas uma munição... feita de palavras. Um rap, o rap dos Racionais, que segue convocando os iguais, os manos, mas que também usa dessa dramaticidade, dessas posições complexas para fazer a interpelação de um "você" que é um personagem da música, e que também é um outro qualificado, um ator social - um ladrão, por exemplo -, e que também é um ouvinte genérico, isto é, um ouvinte que não é necessariamente um irmão, um igual, é um sujeito indeterminado, a quem a música se dirige.

O rap dos Racionais propõe então o desafio de falar do ponto de vista dos injustiçados e estigmatizados para os periféricos e para os moradores dos bairros bons, para uma audiência que é tanto a dos iguais quanto a dos diferentes. Como diz o jogo de identidades de "Capítulo 4, versículo 3": "Juiz ou réu? Um bandido do céu, ladrão ou otário, padre sanguinário", "franco atirador", "terrorista da periferia". As diferentes identidades, as perguntas que se dirigem a eles mesmos, a invocação de um você indeterminado que se volta ao ouvinte, tudo isso conforma uma dramatização de posições dinâmicas e desafiadoras, que se estruturam como performance, atitude e conduta ética. Para tanto, eles próprios, rappers, se colocam em questão. E enredam o ouvinte nesse "uni, duni, tê" lúdico e desafiador. Também quem ouve é parte do jogo.

Ao dramatizar situações em que essas identidades se encontram e se questionam, elaborando verbalmente a violência que atravessa relações sociais e pessoais, as músicas dos Racionais obrigam a assumir posição, a participar do drama, um drama que é o drama das periferias, mas que é também o drama de todos, como essas músicas indicam, convocando não apenas a refletir e curtir, mas a se posicionar, participar e agir.

  • DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA
    O artigo intitulado "Uni, duni, tê: identidade e dramaticidade nas músicas de Sobrevivendo no Infermo, dos Racionais MC's", faz análise das letras e performances desse grupo de rap decorrentes de minhas pesquisas de doutorado e pós-doutorado nas áreas de Teoria Literária e Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo, bem como de pesquisas posteriores no âmbito do grupo de pesquisa Êxodus, ligado ao Instituto de Estudos Literários (IEL) da Unicamp.

REFERÊNCIAS

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  • G1. Show de Racionais MC's na Sé termina em quebra-quebra; 11 são detidos. (2007). Globo.com. Disponível em: https://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL32048-5605,00-SHOW+DE+RACIONAIS+MCS+NA+SE+TERMINA+EM+QUEBRAQUEBRA+SAO+DETIDOS.html. Acesso em: 14 abr. 2024.
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  • GARCIA, Walter. (2004). Ouvindo Racionais MC's. Teresa: Revista de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 4-5, p. 166-180.
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  • POLÍCIA PRENDE GRUPOS de rap durante show. (1994). Folha de S. Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/11/28/brasil/23.html. Acesso em: 14 abr. 2024.
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  • RACIONAIS MC's. (1990). Holocausto urbano. São Paulo: Zimbabwe Records. CD.
  • RACIONAIS MC's. (2002). Nada como um dia após o outro dia. São Paulo: Cosa Nostra. CD.
  • RACIONAIS MC's. (1993). Raio X do Brasil. São Paulo: Zimbabwe Records. CD.
  • RACIONAIS MC's. (1997). Sobrevivendo no inferno. São Paulo: Cosa Nostra. CD.
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  • ZENI, Bruno. (2004). O negro drama do rap: entre a lei do cão e a lei da selva. Estudos Avançados, v. 18, n. 50, p. 225-241.
  • ZUMTHOR, Paul. (2007). Performance, Recepção, Leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify.

Disponibilidade de dados

DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA

O artigo intitulado "Uni, duni, tê: identidade e dramaticidade nas músicas de Sobrevivendo no Infermo, dos Racionais MC's", faz análise das letras e performances desse grupo de rap decorrentes de minhas pesquisas de doutorado e pós-doutorado nas áreas de Teoria Literária e Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo, bem como de pesquisas posteriores no âmbito do grupo de pesquisa Êxodus, ligado ao Instituto de Estudos Literários (IEL) da Unicamp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2024
  • Aceito
    09 Abr 2024
  • Publicado
    18 Abr 2024
UNICAMP. Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) Unicamp/IEL/Setor de Publicações, Caixa Postal 6045, 13083-970 Campinas SP Brasil, Tel./Fax: (55 19) 3521-1527 - Campinas - SP - Brazil
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