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O ROSTO, O NOME E A FALA: POÉTICAS E POLÍTICAS DA ESPECTRALIDADE NO ESCADÃO MARIELLE FRANCO

THE FACE, THE NAME AND THE QUOTE: POETICS AND POLITICS OF SPECTRALITY ON MARIELLE FRANCO STAIRCASE

RESUMO

O artigo propõe refletir sobre a espectralidade como efeito de sentido político produzido por meio da arte urbana na montagem de um monumento popular em homenagem a Marielle Franco, na cidade de São Paulo. Para isso, o estudo buscou observar como algumas forças periféricas acionadas no movimento de luto e memória por Marielle foram moldadas semioticamente na intervenção artístico-ativista. As análises focam em três elementos que compõem o monumento: o rosto de Marielle no retrato fotográfico, o nome próprio e uma fala citada. Em termos teóricos, o texto articula discussões sobre luto, agência, espectralidade, memória, alteridade e perspectivas periféricas sobre referências e legado. O trabalho interpretativo mostra como esses elementos projetam a ideia de legado, indicializam a indignação, estimulam a mobilização por justiça e igualdade e promovem o confronto ético com a alteridade.

Palavras-chave:
Espectralidade; Luto; Arte urbana; Monumento popular; Ativismo

ABSTRACT

The paper aims to reflect on spectrality as the political meaning effect produced using street art in a popular monument in honor of Marielle Franco, in São Paulo, Brazil. To accomplish this goal, the study sought to examine how some of the peripheral forces triggered by the movement of mourning and memory for Marielle were semiotically shaped in the artistic-activist intervention. The analysis focuses on three elements in the making of the monument: Marielle’s face in the portrait, her name, and a quote. The text articulates theoretical discussions on mourning, agency, spectrality, memory, alterity, and peripheral perspectives on references and legacy. The interpreting work points to the projection of the idea of legacy, the indexing of anger, the mobilization for justice and equality, and the ethical confrontation of otherness.

Keywords:
Spectrality; Mourning; Street art; Grassroots monument; Activism

No fim de 2023, em uma cerimônia oficial, o então ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino. afirmou que “o caso Marielle será em breve integralmente elucidado”1 1 Fragmento de pronunciamento proferido em cerimônia pública oficial no dia 21 de dezembro de 2023, no Palácio da Justiça, em Brasília (PODER360, 2023). . A resolução desse crime foi um dos compromissos assumidos por Dino ao tomar posse no ministério, o que dá alguma ideia da enorme dimensão política, nos planos institucionais e sociais, do assassinato da ativista e vereadora carioca. Marielle Franco foi morta a tiros em uma emboscada no centro do Rio de Janeiro em 14 de março de 2018, juntamente com Anderson Gomes, o motorista que dirigia o carro em que estavam. Desde então, as investigações do crime passaram a ser acompanhadas como pauta pública no Brasil2 2 Em março de 2024, a Polícia Federal anunciou a prisão, como suspeitos de serem mandantes do crime, de um deputado federal e de seu irmão, além de um ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro. .

A morte de Marielle foi um potente catalisador de movimentos sociais que reivindicam a resolução do crime - por meio da repetição de frases como “Quem matou Marielle?” ou “Quem mandou matar?” - e políticas de justiça e igualdade. As práticas de luto e ativismo se fundiram nesse processo que se configurou como um marco disruptivo no Brasil contemporâneo, em termos de mobilização e ressignificação política, a partir da base. Essa ideia é sintetizada pela jornalista Eliane Brum, em um texto publicado poucos dias após o assassinato:

Em nenhum momento se deve esquecer da força dessa ruptura simbólica. Com Marielle Franco há uma quebra de paradigma dos choráveis do Brasil. Como mulher negra e nascida na favela, Marielle Franco pertencia aos “matáveis” do Brasil, aqueles cujas mortes não causam espanto, normalizadas que são. O que seus assassinos não calcularam era que, com sua vida, ela já não era mais “matável”. O que ninguém poderia calcular é que Marielle havia se tornado também parte dos choráveis, aqueles por quem a maioria dos brasileiros faz luto e luta. Não é pouca coisa para um país como o Brasil” (Brum, 2018BRUM, E. (2018). Como enfrentar o sangue dos dias. El País. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/26/politica/1522080125_945009.html. Acesso em: 20 dez. 2023.
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03...
).

Essa política dos “choráveis”, o que Judith Butler (2009) discutiu a partir das ideias de vidas precárias (Precarious Life) e passíveis de luto (Grievable Life), parte do reconhecimento básico de que uma vida “matável”. antes de ser morte, é vida, por isso “chorável”. Por esse caminho, poderíamos compreender que o movimento de luto por Marielle atuou na transformação do sentido de vida, uma mudança de paradigma social e político, e a principal estratégia em suas ações é a de dar aparição a pessoas socialmente apagadas, silenciadas, esquecidas, vilipendiadas, ou seja, mostrar a face “viva” de tantas vidas precárias.

Marielle é tomada como um símbolo para esse processo de aparição: as representações de seu rosto, de seu nome e de suas falas se transformaram na matéria semiótica desse processo político de aparecimento político dos “matáveis” com estatuto de “choráveis”, como vidas precárias passíveis de luto, na esfera pública contemporânea brasileira.

O interesse deste texto é justamente refletir sobre esses elementos - o rosto, o nome e a fala - apropriados na produção de um monumento popular em memória a Marielle na cidade de São Paulo, o Escadão Marielle Franco. Traço um caminho que se inicia com um breve relato de pesquisas que parcialmente deságuam neste texto. Na sequência, situo a história da escada já amarrada com reflexões teóricas sobre luto, agência e espectralidade, recorrendo a autoras e autores enquadrados em campos epistemológicos da filosofia, das ciências sociais, de estudos de linguagem e de teorias pós-coloniais, juntamente a pensamentos de feições não teóricas, nas consistências literária, memorialística e artística (a escritora Carolina Maria de Jesus e o artista plástico Mulambö) que ajudam a construir as referências de uma teoria (não teórica) espectral periférica. Na terceira e na quarta seções do texto, desfio um trabalho interpretativo que começa com o foco na ideia da aparição do rosto de Marielle Franco na escadaria em São Paulo por meio do retrato fotográfico reproduzido em um lambe-lambe (cartaz de rua) e, depois, inicio uma discussão sobre o nome próprio que assombra alguns imaginários políticos contemporâneos e sobre a perpetuação de uma fala de Marielle em encadeamentos de citações.

PERCURSO DE PESQUISA

Este texto está vinculado ao projeto de pesquisa “Trajetórias de vidas periféricas: a violência entre o ordinário e o extraordinário em narrativas e poéticas (auto)biográficas”3 3 Projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) - Processo 21/02618-8. , que propôs estudar as diversas formações e práticas (auto)biográficas de sujeitos e grupos periféricos no Brasil - o que chamamos de “trajetórias de vida”. Em uma das frentes desse projeto, o interesse foi observar a construção biográfica coletiva, por múltiplas vozes, de uma “biografada singular” - Marielle Franco - que ganha dimensões de símbolo de coletividade, ou seja, a trajetória individual se mescla a vivências e narrativas de grupos.

No âmbito desse projeto, compreendemos que essa formação de memória se fez e se faz a partir do que reconhecemos como práticas ativistas e de luto. Um dos contextos dessas práticas com o qual trabalhamos é o das intervenções por meio de arte urbana em uma escada pública na cidade de São Paulo. Nas ações de apropriação simbólica da escadaria, interpretamos um processo de produção de uma paisagem semiótica, mais especificamente a montagem (e remontagens constantes) do que chamamos de um monumento popular (grassroots monument) (Palma, Silva, 2023PALMA, D.; SILVA, D. (2023). A Public Staircase for Marielle Franco. In: AILA Word Congress, 20th Anniversary, Lyon.).

Trabalhando com a ideia de construção de memória de sujeitos em posições socialmente subalternizadas, a questão da espectralidade - como caminhos para lidar com o manuseio do ausente - foi se colocando como tópico de interesse na pesquisa. A capacidade de enunciar uma história por meio da ação política de coletivos instaura uma força memorialística muda, colocando em cena o agenciamento e, é claro, a própria poética. Esse ponto foi se configurando como central nesse estudo, principalmente, com olhar para biografias de/a partir do luto.

O interesse em temas e abordagens ligadas à espectralidade já me acompanha há algum tempo, ajudando a refletir sobre fotografia, literatura, práticas de leitura e, principalmente, sobre a memória (na próxima seção, discuto um pouco da complexidade teórica dessa noção). Pela aproximação com a fenomenologia, o trabalho com as práticas de memória me conduz a compreender que toda ação de lembrar e narrar produz também o esquecimento, e o que é esquecido (ou que fica de fora) permanece latente, por exemplo, na forma de trauma. Mais diretamente em meus estudos sobre a periferia, tenho particular interesse em olhar para as poéticas cotidianas -formas de uma espectralidade - nas ações de (res)significar (tempos, espaços e o próprio “eu” ou “nós” que criam os sujeitos) que possibilitam aos sujeitos performar o próprio agenciamento (Palma, 2017PALMA, D. (2017). As casas de Carolina: espaços femininos de resistência, escrita e memória. Cadernos Pagu, n. 51., 2020PALMA, D. (2020). O cotidiano, a quebrada e o sonho: a resistência pelo olhar na ação de um fotocoletivo. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 59, n. 3, p. 1862-1883. e 2023PALMA, D. (2023). Vidas periféricas em trajetórias faladas: performances orais e enquadramentos tecnológicos e sociais em um museu virtual. Calidoscópio, v. 21, n. 3, p. 557-578.). Nesse recorte, o interesse marcado foi (e continuar a ser) o de observar que as formas pelas quais sujeitos oprimidos resistem e lutam envolvem criatividades específicas de autofabulação e de projeção de tempo e espaço para além do que é naturalizado em termos representacionais por forças sociais hegemônicas.

Por esses caminhos, chego na presente reflexão sobre a espectralidade como efeito de sentido político produzido por meio de ferramentas de arte de rua na montagem do monumento popular. A poética dessa construção de memória cria o efeito de presentificação do ausente, com a aparição comunicativa de Marielle no espaço público urbano. Os elementos, visualmente discerníveis, que são considerados aqui como os principais indexadores dessa ausência (semioticamente presentificada) são: o rosto retratado no grande lambe-lambe, o nome de Marielle Franco e a citação de uma fala inscrita sobre o muro da escada.

O trabalho mais empírico da pesquisa foi realizado por meio de visitas ao Escadão Marielle Franco - de forma esparsa, entre junho de 2022 e janeiro de 2024 - que geraram documentação fotográfica e textual (anotações de campo, relatos e reportagens) própria, e também pela montagem de um corpus com materiais publicados em redes sociais e na imprensa.

A PRODUÇÃO DA ESCADA, A AGÊNCIA DO LUTO E ESPECTRALIDADES PERIFÉRICAS

Começo pela narrativa. Uma escadaria pública na cidade de São Paulo amanheceu, alguns dias após o assassinato da vereadora carioca, com um grande lambe-lambe colado em sua parede principal, estampando o rosto sorridente de Marielle Franco. A escada fica na rua Cardeal Arcoverde (na altura do cruzamento com a rua Cristiano Viana - as duas ruas ficam em níveis diferentes), no bairro de Pinheiros, uma região não periférica da cidade, com perfil demográfico de classe média predominantemente branca.

Desde essa primeira aparição do lambe-lambe, a escada vem passando por inúmeras transformações, as intervenções artístico-ativistas estão em constante atualização, num processo de montagem e remontagem de diversos elementos produzidos com emprego de diferentes técnicas de arte de rua (cartaz, grafite, estêncil etc.), em acréscimos e exclusões constantes. Essa história de transformações não é apenas marcada pelas ações de artistas-ativistas, mas também por intervenções do poder público4 4 Em janeiro de 2019, por exemplo, a escadaria teve suas paredes pintadas de branco pela prefeitura sob a alegação de reparos de acessibilidade. Na ocasião, apenas o lambe-lambe com o retrato teria sido mantido (Correa, 2019). e por tentativas de depredações com motivação política (faço referência a um desses episódios na próxima seção deste texto): a montagem do monumento popular é um processo de disputas e sua história se funde com a trajetória de luto coletivo e luta política.

Figura 1
Escadão Marielle Franco, São Paulo, 09 jan. 2024. Foto da autora.

Voltando à narrativa da primeira intervenção na escada - a colocação do lambe-lambe com o retrato -, uma fórmula que se disseminou para contar o episódio é a de não explicitação do sujeito da ação política, como em “a escada amanheceu com o cartaz”. Esse anonimato da intervenção urbana é uma marca que podemos considerar característica do ativismo por meio de arte urbana. O sujeito não explícito também ajuda a reforçar o caráter espectral em práticas políticas fundadas no trabalho de luto, como a própria ideia de agência coletiva.

Podemos partir de uma compreensão elementar de agência como ação - ou o potencial de ação - que funciona como motor para transformação. Para refletir sobre o trabalho do luto e a criação de presenças a partir dessa esfera da mobilização social e política, recorro à socióloga Avery Gordon (2008)GORDON, A. F. (2008). Ghostly Matters: Haunting and the Sociological Imagination. Minneapolis: University of Minnesota Press., que propôs a ideia de “assombração” (haunting) não para tratar de eventos considerados sobrenaturais, mas como ferramenta para lidar com resíduos de episódios e processos traumáticos e injustiças sociais que persistem na memória social. As ausências - questões não resolvidas e injustiças que perduram - atuam como fantasmas que “assombram” ou influenciam vivências e relações sociais contemporâneas.

A autora abre a possibilidade de pensar que as assombrações agem sobre o aparecimento de novas formas de subjetividade e sociabilidade potencialmente capazes de produzir mudanças políticas. Para construir interpretações sobre a vida social, Gordon entende que as próprias ferramentas analíticas precisam dar conta de “conjurar”, o que seria “um modo de apreender e transformar”, ou seja, a conjuração é uma maneira de interpretar, mas também de agir sobre o mundo social - poderíamos, talvez, entender como o agenciamento da própria interpretação -, mesclando “o analítico, o processual, o imaginativo e o efervescente”5 5 No original: “As a mode of apprehension and reformation, conjuring merges the analytical, the procedural, the imaginative, and the effervescent.” (Gordon, 2008, p. 22GORDON, A. F. (2008). Ghostly Matters: Haunting and the Sociological Imagination. Minneapolis: University of Minnesota Press., traduzimos).

A dimensão espectral da política também foi assinalada por Jacques Derrida (1993)DERRIDA, J. (1972). Marges de la philosophie. Paris: Les Éditions de Minuit., refletindo sobre o trabalho do luto e a presença de espectros na filosofia (e na política). Ele situa o luto no campo das ideias (o legado marxista) como um processo interminável para lidar com a memória política persistente e as suas implicações éticas. A ação sobre o legado não resolvido (o luto) pede uma responsabilidade ativa sobre o passado e o futuro, podendo se converter em forma de justiça, como identifica em Hamlet, de William Shakespeare, em que o fantasma do rei, mais do que uma aparição sobrenatural, é próprio peso da responsabilidade em resolver o que não foi resolvido (vingar e fazer justiça). O fantasma do rei é a “coisa”, na passagem de Shakespeare que Derrida cita - “The body is with the King, but the King is not with the body. The King, is a thing” [O corpo está com o Rei, mas o Rei não está com o corpo. O Rei é uma coisa.] (Shakespeare, 1604/5, p. 246SHAKESPEARE, W. (1604/5). The Tragedy of Hamlet, Prince of Denmark. London: Penguin, 2006.). Se o luto é a forma de lidar com a “coisa”, três aspectos comporiam a sua análise (“as três coisas da coisa”): o luto como saber, como língua e como trabalho. O primeiro seria a própria definição básica de luto para Derrida, a tentativa de “ontologizar os restos, torná-los presentes, em primeiro lugar identificar os despojos e em localizar os mortos [...]. É preciso sabê-lo. Ora, saber é saber quem e onde, saber de quem é propriamente o corpo e onde ele repousa” (Derrida, 1993, p. 24-25DERRIDA, J. (1993). Espectros de Marx: o Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994., grifos do autor). O luto se faz também sob a “responsabilidade da língua - e da voz” (Derrida, 1993, p. 25DERRIDA, J. (1993). Espectros de Marx: o Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.) na ação de fixar um nome ou uma substituição a um nome. E o terceiro aspecto é que o trabalho da “coisa” seria a capacidade de transformar ou se transformar, compor ou decompor, ou seja, envolve a “potência de transformação” (Derrida, 1993, p. 25DERRIDA, J. (1993). Espectros de Marx: o Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.).

No pensamento pós-colonial, a dimensão da espectralidade cumpre importante papel, conforme assinala Ana Deumert, “criando apagamentos e exclusões, silêncios e proibições, mas também vozes que rompem com as opressões e que articulam os ‘efeitos colaterais da violência e das repressões’”6 6 No original: “[...] creating erasures and exclusions, silences and prohibitions, but also voices that break through the oppressions, and that articulate the “aftereffects of violence and repressions.” (Deumert, 2022, p. 5DEUMERT, A. (2022). The Sound of Absent-Presence: Towards Formulating a Sociolinguistics of the Spectre. Australian Review of Applied Linguistics, v. 45, n. 2, p. 135-153., traduzimos). O passado colonial persiste de forma fantasmagórica nas sociedades contemporâneas, que se tornam mais complexas e multifacetadas (Mbembe, 2001MBEMBE. A. (2001). On the Postcolony. Translation by A. M. Berrett et al. Berkeley; Los Angeles: University of California Press.). Gayatri C. Spivak (1999)SPIVAK, G. C. (1999). A Critique of Postcolonial Reason: Toward a History of the Vanishing Present. Cambridge (MA): Harvard University Press. reflete sobre a pós-colonialidade e o pensamento pós-colonial pela ideia de um presente que desaparece (vanishing present) ou de vivências e realidades que são apagadas da consciência histórica dominante e da memória cultural. As narrativas e posições excluídas do discurso colonial são espectros, em constante latência em termos culturais e sociais, que assombram a contemporaneidade e constroem uma complexa interação entre as noções de espaço, passado, presente e futuro.

Pode-se, assim, relacionar a noção de agência pós-colonial com a aparição desses fantasmas (como, por exemplo, em processos de reinscrição histórica) e as formas de lidar com experiências multifacetadas de espaço e tempo. O cotidiano é a relação tempo-espaço da agência e da aparição de fantasmas, confronto e coexistência de presenças e ausências, como chama atenção Achille Mbembe (2001)MBEMBE. A. (2001). On the Postcolony. Translation by A. M. Berrett et al. Berkeley; Los Angeles: University of California Press.: a ‘“vida cotidiana’ não é apenas o campo onde a existência dos indivíduos se desdobra na prática; é onde eles exercem a existência, ou seja, vivem suas vidas e confrontam as próprias formas de sua morte”7 7 No original: “This ‘life world’ is not only the field where individuals’ existence unfolds in practice; it is where they exercise existence - that is, live their lives out and confront the very forms of their death.” (Mbembe, 2001, p. 15MBEMBE. A. (2001). On the Postcolony. Translation by A. M. Berrett et al. Berkeley; Los Angeles: University of California Press., traduzimos).

Além do confronto com a morte, a condição de contingência do sujeito como agente no cotidiano aponta também para uma ética do contato: o “contingente é contiguidade, metonímia, tocar as fronteiras espaciais pela tangente, ao mesmo tempo, o contingente é a temporalidade do indeterminado e do indecidível” (Bhabha, 1994, p. 259BHABHA, H. K. (1994). O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliane Livia Reis e Glauce Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2003.). A relação de contiguidade entre quem e o que se dá no espaço intersubjetivo entre agentes, “esta esfera pública da linguagem e da ação que deve se tornar ao mesmo tempo o teatro e a tela para as capacidades da agência humana” (Bhabha, 1994, p. 263BHABHA, H. K. (1994). O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliane Livia Reis e Glauce Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2003.).

Podemos pensar a própria cidade como o espaço da contiguidade (contato) - o teatro e a tela - nas práticas em torno da escada em homenagem a Marielle Franco em São Paulo. Uma força memorialística é investida no substrato urbano, como acontece na criação de monumentos históricos e lugares de memória que, por jogo imaginativo, passam a congregar presenças e ausências. As narrativas de vivências, individuais e coletivas, também se constituem em fusão com a espacialidade - em sentido físico, semiótico e imaginário. Leonor Arfuch (2013)ARFUCH, L. (2013). La ciudad como autobiografia. Bifurcaciones, n. 12, p. 1-14. propõe compreender a cidade como elemento das formações (auto)biográficas:

Toda biografia - como toda inscrição na memória - também é inseparável da dimensão espacial, do ambiente, do lugar, do cenário onde esses eventos ocorrem [...], como moradores da cidade, nossa história é tecida no espaço urbano de maneiras visíveis e invisíveis, mas nunca inconsequentes8 8 No original: “[T]oda biografia - como toda inscripción en la memoria - es también inseparable de la dimensión espacial, del entorno, el sitio, el escenario donde esos acontecimientos tienen lugar. Así, como habitantes de las ciudades, nuestra historia se entreteje en el espacio urbano de modos visibles e invisibles pero nunca intrascendentes.” (Arfuch, 2013, p. 1ARFUCH, L. (2013). La ciudad como autobiografia. Bifurcaciones, n. 12, p. 1-14., traduzimos).

Em outro trabalho oriundo do projeto de pesquisa (Palma, Silva, 2023PALMA, D.; SILVA, D. (2023). A Public Staircase for Marielle Franco. In: AILA Word Congress, 20th Anniversary, Lyon.), lemos que a montagem da escada-memorial produz um efeito de cruzamento de fronteiras entre centro e periferia. Na aparição do monumento popular em meio ao bairro de centralidade em São Paulo, uma força periférica (distante, ausente) é investida naquele espaço e passa a permear o equipamento urbano físico (a escada). Essa força periférica é indexada na figura de Marielle e projeta uma biografia de trajetória de vida distante - a mulher da periferia do Rio de Janeiro -, que, deslocada de “seu lugar”, passa a simbolizar um amálgama da exclusão, em termos mais amplos, em um imaginário político de dimensão nacional, fazendo com que múltiplos fantasmas ganhem aparição e produzam ruídos ou rupturas numa paisagem de poder. O Escadão Marielle Franco funciona, assim, em dinâmica heterotópica (Foucault, 1966FOUCAULT, M. (1966). Le corps utopique, Les hétérotopies. Paris: Nouvelles Éditions Ligne, 2009.), ou seja, potencializa um espaço “real” para conter em si espaços e tempos outros, se constituindo na mescla com sua própria alteridade. Essa força de heterotopia é acionada por um sistema semiótico complexo com significados em camadas e em constante transformação.

O pensamento por meio de espectros é situado por Deumert (2022, p. 6)DEUMERT, A. (2022). The Sound of Absent-Presence: Towards Formulating a Sociolinguistics of the Spectre. Australian Review of Applied Linguistics, v. 45, n. 2, p. 135-153. como uma forma de teoria vernacular, incorporada ao cotidiano, inclusive semanticamente, na profusão de palavras dessa ordem de significados -metaforizados ou não do campo da magia - como espectro, aparição, espírito, fantasma, zumbi, assombração etc. (Deumert, 2022DEUMERT, A. (2022). The Sound of Absent-Presence: Towards Formulating a Sociolinguistics of the Spectre. Australian Review of Applied Linguistics, v. 45, n. 2, p. 135-153.). Gordon (2008, p. 25)GORDON, A. F. (2008). Ghostly Matters: Haunting and the Sociological Imagination. Minneapolis: University of Minnesota Press. discute a literatura como um campo particularmente produtivo para refletir sobre as espectralidades, e amplia para “o conjunto de imaginações culturais, experiências afetivas, objetos animados, vozes marginais, densidades narrativas e traços excêntricos da presença do poder”9 9 No original: “[T]he ensemble of cultural imaginings, affective experiences, animated objects, marginal voices, narrative densities, and eccentric traces of power’s presence.” (Gordon, 2008, p. 25GORDON, A. F. (2008). Ghostly Matters: Haunting and the Sociological Imagination. Minneapolis: University of Minnesota Press., traduzimos). Deumert completa que, “devido à sua força afetivo-política e às complexidades de sua semiose, talvez seja melhor abordar os fantasmas prestando atenção à arte, ou seja, aos gêneros comunicativos que se baseiam na multivocalidade”10 10 No original: “Because of their affective-political force and the complexities of their semiosis, ghosts are perhaps best approached by paying attention to art; that is, to communicative genres that are grounded in the inherent multi-vocality [...].” (Deumert, 2022, p. 10DEUMERT, A. (2022). The Sound of Absent-Presence: Towards Formulating a Sociolinguistics of the Spectre. Australian Review of Applied Linguistics, v. 45, n. 2, p. 135-153., traduzimos).

Proponho aqui, então, direcionar essa ideia de um pensamento vernacular espectral a uma referência de periferia no Brasil e, para isso, recorro à escritora e poeta Carolina Maria de Jesus e ao artista plástico Mulambö11 11 Mulambö é artista plástico de Saquarema (RJ), nascido em 1985, que constrói seu trabalho com base em uma poética da memória de suas vivências familiares e comunitárias - e diversas referências a universos culturais populares -, amplificando reflexões sobre as subjetividades individuais e coletivas simultaneamente, por uma perspectiva periférica. para pensar esse “lugar teórico” periférico. O nome de Carolina de Jesus (1914-1977) condensa em torno de si a ideia de legado - de uma força simbólica que ultrapassa o próprio indivíduo, opera transformações (no sistema de representações sociais e literárias) e produz espelhamentos (por exemplo, para a literatura produzidas por mulheres negras, por sujeitos periféricos etc.). O agenciamento de sua figura projetada publicamente pode ser identificado a posteriori (no processo mais recente de valorização e maior reconhecimento de sua literatura), mas também por marcas em sua própria escrita. Há, em vários momentos de seus textos autobiográficos, uma ideia de projeção futura de si ao longo de sua trajetória. A menina Bitita em diálogo com sua mãe, na autobiografia de infância: “Ah! comigo, o mundo vai modificar-se. Não gosto do mundo como ele é.” (Jesus, 1982, p. 106JESUS, C. M. de. (1982). Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.), ouvindo de seu tio Cirineu “Esta negrinha vai longe” (p. 107). No diário Quarto de despejo (Jesus, 1960JESUS, C. M. de. (1960). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014.), a atividade de escrever, que acontece “nas quebras da rotina caseira e da vida comunitária”, é representada como sua própria agência, capaz de projetá-la como história, como legado, “em seu ato de escrever (e de arquivar), a autora/narradora confere a si estatuto histórico” (Palma, 2017, p. 29PALMA, D. (2017). As casas de Carolina: espaços femininos de resistência, escrita e memória. Cadernos Pagu, n. 51.).

Mulambó, em seu livro (2020) que mescla sua trajetória de vida e artística com reflexões sobre uma condição periférica, discute suas referências, ou a falta delas.

Através da ideia de referências e tudo mais, penso na minha figura como força. Um corpo periférico sorrindo e criando é inspiração porque crescemos sem saber que é possível. Pouca coisa mostra pra gente que nossos corpos são feitos pra produzir pensamento. sensibilidade e presença, mesmo que a gente produza isso desde sempre (Mulambö, 2020, p. 29MULAMBÖ. (2020). Mulambö. Saquarema (RJ): Edição do Autor.).

Pela escassez de referências (um passado não reconhecível), ele precisa se projetar como espectro - força e inspiração -, tal qual Carolina de Jesus; ambos se fabulam a partir do presente como potência de legado futuro. A ideia de legado (como ausência e presença) permeia o que podemos começar a entender, talvez, como um pensamento espectral periférico. Toda ação e criação produzida por um corpo periférico é potencialmente legado (força e inspiração), que normalmente não se constitui por presenças fantasmagóricas persistentes (como o legado de Marx para Derrida), mas justamente no vácuo de referências (ou fantasmas) reconhecíveis.

As fontes para a ação e a criação poucas vezes estão no passado persistente, elas se fazem principalmente na escassez do presente cotidiano: uma imaginação poética que age sobre a matéria da precariedade da vida. Carolina de Jesus retirou matéria poética das casas pobres onde viveu boa parte de sua trajetória, da experiência da fome, do vagar pela cidade como catadora, como também das contradições que experimentou ao ser projetada como figura pública, e entrelaçou tudo isso a um amor fundamental de uma mãe por seus filhos. Um dos trabalhos impartantes de Mulambö é uma vassoura pintada, “Queria um pincel, me deram uma vassoura” (2018); o artista, no entanto, rechaça a ideia de “valorizar o precário” e “romantizar o processo”, só que, para o seu trabalho acontecer, ele teve que “catar madeira na rua”. A escassez de referência e material é tão gritante que não teria como ser camuflada, assim, o artista se movimenta no sentido de reconhecer a “precariedade como uma condição compartilhada”12 12 No original: “[..] recognition of precariousness as a shared condition of human life [...].” (Butler, 2009, p. 13, traduzimos) - não da vida humana como uma universalidade, mas como vivências periféricas.

O material encontrado na rua vai desde relações cotidianas até trajetos de ônibus cheio que não necessariamente se torna um trabalho de arte, mas se torna parte do meu existir como artista. Porque é isso né, antes de ser artista eu sou muita coisa (Mulambö. 2020, p. 30MULAMBÖ. (2020). Mulambö. Saquarema (RJ): Edição do Autor.).

Há, na verdade, algumas forças de persistência de um legado que frequentemente atravessa práticas e pensamentos espectrais periféricos, como aparece no trabalho de Mulambö, que é a ancestralidade, uma herança cuja principal materialidade é o corpo. A ancestralidade é uma força espectral do plano cultural que articula eu (vivências particulares) e nós (experiências compartilhadas) e, ao mesmo tempo que evoca ecos de uma história de sofrimentos, agencia positividades em corpos racializados e vidas socialmente precarizadas. A ideia de legado (e ancestralidade) é central também nos movimentos de enlutados por Marielle Franco, e essas reflexões pontuadas aqui sobre agência, luto e pensamento espectral com força periférica ajudam a dar mais consistência para o trabalho de olhar para o processo de aparição semiótica de Marielle em uma paisagem urbana como a construção de referências.

A CONJURAÇÃO DO ROSTO

O Escadão Marielle Franco é uma paisagem da cidade de São Paulo que está sempre em transformação; muitas intervenções, inclusões, apagamentos, exclusões, vandalizações, restaurações são observadas ao longo do tempo. Porém, desde 2018, uma presença aparece quase que estabilizada ali: um cartaz com o retrato fotográfico de Marielle na parede central da escadaria pública.

O foco deste texto não é o processo de formação da escada, mas a análise e a reflexão sobre alguns de seus elementos, semioticamente discerníveis, que tomo como centrais para pensar a ideia de espectralidade como recurso artístico-ativista na montagem desse monumento. Assim, não serão recuperadas aqui as diversas feições que a escadajateve. Recorro apenas à sua versão atual como referência13 13 Dentro do período do trabalho empírico, de junho de 2022 a janeiro de 2024, a escada manteve o arranjo em seu desenho geral, sem mudança nos elementos principais que a compõem. Mas é claro que isso não quer dizer que houve uma estabilização nesses quase dois anos. Pichações aparecem com frequência, fragmentos de cartazes colados, garatujas etc., como também algumas marcas da ação do tempo, a exemplo do esmaecimento de cores e do esfacelamento de suportes (como o papel dos cartazes). , fazendo pontualmente algumas menções e considerações sobre episódios anteriores na história da escada.

Vamos, então, agora olhar para o retrato, partindo da ideia de que o retrato no cartaz de rua é uma aparição no cenário urbano e, como tal, a representação da face que nos é colocada a ser olhada também nos olha. Temos implicados três elementos fundamentais: olhar, imagem e rosto.

Figura 2
O rosto. Escadão Marielle Franco, São Paulo, 21 jun. 2022. Foto da autora.

Olhar é provavelmente uma das concepções mais difíceis, em termos fenomenológicos, de serem estabilizadas em conceitos. Pela ideia de que o olhar implica reciprocidade, como em um diálogo, John Berger (1972)BERGER, J. (1972). Ways of Seeing. London: British Broadcasting Corporation; Penguin Books. compreende que “nunca olhamos para uma coisa apenas; sempre estamos olhando para uma relação entre as coisas e nós mesmos”14 14 No original: “We never look at just one thing, we are always looking at the relation between things and ourselves.” (Berger, 1972, p. 9BERGER, J. (1972). Ways of Seeing. London: British Broadcasting Corporation; Penguin Books., traduzimos). Então, podemos pensar que, ao olharmos para um fantasma que nos aparece, mais do que olharmos para o fantasma, olhamos para (e estabelecemos) uma relação entre o fantasma e nós -, constatamos que o fantasma nos olha.

Nós, como transeuntes na cidade, somos confrontados com a aparição do rosto de Marielle em uma escada pública e adquirimos a consciência de que ela nos olha - o olhar que lançamos à sua face nos volta. Essa aparição instaura a presença, essa presença indexa uma ausência, ou seja, nos obriga a encarar a perda (e uma ética da perda). Georges Didi-Huberman (1992)DIDI-HUBERMAN, G. (1992). O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998. aponta que ver a matéria (“o que vemos”) é também ver o vazio (“o que nos olha”), o visível é o “traço de uma semelhança perdida, arruinada”, passa a ser vestígio, constatando-se que “ver é perder” (Didi-Huberman, 1992, p. 34-35DIDI-HUBERMAN, G. (1992). O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998.). Instaurada a consciência da perda, a assombração passa a nos obsidiar, adquire o que Derrida (1993, p. 22)DERRIDA, J. (1993). Espectros de Marx: o Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. chamou de “efeito de viseira”: a “coisa” nos vê, mesmo sem ser vista.

As imagens, mais do que qualquer outro sistema semiótico, se ligam, filosófica e antropologicamente, ao “tempo da magia”, de circularidades e relações reversíveis (Flusser, 1983, p. 8FLUSSER, V. (1983). Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Tradução do autor. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.). Seriam, assim, altamente capazes de presentificar o perdido. Ao se tentar tematizar imageticamente o luto, a ausência e a destruição, se produziria “um objeto visual que mostr[a] a perda, a destruição, o desaparecimento dos objetos ou dos corpos”, dando-lhes presença (Didi-Huberman, 1992, p. 35DIDI-HUBERMAN, G. (1992). O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998.). As imagens carregam, assim, uma potencialidade semiótica de origem,de modo a “conjurar a aparência de algo que estava ausente” e “perdurar para além daquilo que representa”15 15 No original: “Images were first made to conjure up the appearances of something that was absent. Gradually it became evident that an image could outlast what it represented [...].” (Berger, 1972, p. 10BERGER, J. (1972). Ways of Seeing. London: British Broadcasting Corporation; Penguin Books., traduzimos).

A fotografia se fez ao longo do tempo, talvez, como a modalidade de imagem mais associada à capacidade de criar fantasmas, estabelecendo relações miméticas e indiciais com o que representa, capazes de produzir forte efeito de evidência - o que André Bazin (1958)BAZIN, A. (1958). Ontologie da l’image photographique. In: Bazin, A., Qu’est ce que le cinéma? Paris: Les Éditions du Cerf, 1990, p. 19-26. chamou de “objetividade essencial” (objectivité essentielle). Esse efeito de objetividade, ao invés de afastá-la da ideia de “imagem mágica”, produziu espanto, como Pedro Miguel Frade (1992)FRADE, P. M. (1992). Figuras do espanto: a fotografia antes de sua cultura. Porto: Edições Asa. identificou nas produções e nos discursos sobre a fotografia no século XIX, nos inícios de sua recepção.

Tratava-se, antes, do poder de desafiar o tempo de sua corrida inexorável, de desafiar pela amortalidade da imagem o trabalho inexorável do envelhecimento que devasta os corpos até a morte... tratava-se, em suma, de desafiar esta última pela persistência da imagem após a decomposição do corpo desaparecido (Frade, 1992, p. 74FRADE, P. M. (1992). Figuras do espanto: a fotografia antes de sua cultura. Porto: Edições Asa.).

A relação da fotografia com a morte a transformou em objeto comum em inúmeras práticas de luto oitocentistas, principalmente pelo gênero do retrato, que não apenas preservava a aparência da pessoa falecida, mas funcionava como relíquia, “retendo sombras e luzes” do retratado para além de sua morte. Essas qualidades de culto do retrato fotográfico (e sua capacidade de “encarnar”) parecem ter, pelo menos em alguma medida, permanecido como matéria semiótica que ainda nos ajuda a lidar com a morte.

Roland Barthes (1980)BARTHES, R. (1980). La Chambre claire: Note sur la photographie, Paris: Éditions de l’Étoile; Gallimard; Seuil., durante o luto pela morte de sua mãe, começou a buscar, nas fotos de família, retratos nos quais pudesse reencontrar sua figura materna perdida. Esse encontro só aconteceu por completo ao se deparar com uma foto de quando ela tinha cinco anos de idade. Barthes distingue, no relato dessa experiência - de encontrar a mãe perdida no rosto de uma criança -, por um lado o sentido de uma leitura estritamente analógica da fotografia (identificar as feições da mãe que ele conheceu), e por outro, a possibilidade de realizar uma “ciência impossível do ser único”16 16 No original: “[...] la science impossible de l’être unique.” , o despertar de um sentimento que evoca a presença materna singular (Barthes, 1980, p. 110BARTHES, R. (1980). La Chambre claire: Note sur la photographie, Paris: Éditions de l’Étoile; Gallimard; Seuil., traduzimos).

Pensando ainda nessa dupla potência da imagem fotográfica, Jens Ruchatz (2008)RUCHATZ, J. (2008). The Photograph as Externalization and Trace. In: Erll, A.; Nünning, A. (Ed.), Cultural Memory Studies. Berlin; New York: De Gruyter, 2008, p. 367-378. a situa como uma tecnologia de memória e propõe uma distinção similar entre externalização (externalization) e rastro (trace). Enquanto a externalização enfatiza as características de mídia analógica, que estoca memória fora do corpo; o rastro trabalha com o efeito de presença, funcionando mais “como um lembrete que aciona ou orienta a lembrança do que como uma lembrança em si”, equivale à “representação de um evento que incorpora a sua ausência”17 17 No original: “[...] it functions more as a reminder that triggers or guides remembering than as a memory in itself [... ] the photographic trace may be the only representation of an event that incorporates its absence.” (Ruchatz, 2008, p. 370RUCHATZ, J. (2008). The Photograph as Externalization and Trace. In: Erll, A.; Nünning, A. (Ed.), Cultural Memory Studies. Berlin; New York: De Gruyter, 2008, p. 367-378.). Essas noções permitiriam pensar as dimensões memorialísticas da fotografia não apenas em âmbitos privados, mas também em plano coletivo e social.

A ação ativista de colocação (e manutenção) do grande retrato na escada leva para o processo público de enlutamento essa dualidade de externalidade e rastro da imagem fotográfica de um rosto. No entanto, a sua capacidade de atuar como gatilho de presença parece muito mais potencializada, e a fotografia funciona como índice da indignação - o luto público trabalha fundamentalmente com uma indignação diante de uma injustiça, como lembra Butler (2009) - e de projeção de memória sobre a cidade. Ruchatz fala que as fotografias públicas atuam como ícones, não no sentido semiótico-peirciano, mas como “fotos que atraem forte atenção coletiva e reação emocional”18 18 No original: “[...] pictures that attract strong collective attention and emotional reaction.” (Ruchatz, 2008, p. 374RUCHATZ, J. (2008). The Photograph as Externalization and Trace. In: Erll, A.; Nünning, A. (Ed.), Cultural Memory Studies. Berlin; New York: De Gruyter, 2008, p. 367-378., traduzimos). Os ícones fotográficos tendem a se tornar “canonizados como verdadeiros lugares de memória”19 19 No original: “Photographs can become canonized as veritable lieux de mémoire [...].” (Ruchatz, 2008, p. 371RUCHATZ, J. (2008). The Photograph as Externalization and Trace. In: Erll, A.; Nünning, A. (Ed.), Cultural Memory Studies. Berlin; New York: De Gruyter, 2008, p. 367-378., traduzimos), e o autor situa essas relações de culto no plano de uma memória cultural (mais solidificada institucionalmente). Observando a força de culto do retrato de Marielle, consigo compreendê-lo como um ícone fotográfico que se forma no plano de uma memória política mais social ou comunicacional, com sentidos em franca disputa, num campo de lutas populares.

O núcleo da força de culto em torno da escada (a escada como um lugar de evocações memorialísticas e de luto) é, sem dúvida, o retrato, tanto por sua centralidade na organização espacial dos elementos que compõem o monumento popular, quanto por sua permanência diacrônica ao longo de todo o processo de ocupação daquele espaço. Como centro visual da escada, o retrato é organizador dos demais elementos que são incorporados e excluídos nas transformações do monumento. No desenho da montagem atual da escada, o rosto de Marielle aparece cercado de representações (em pinturas e grafites) de faces de outras mulheres negras e indígenas. Essa composição dá arranjo plástico e potencializa duas dimensões espectrais fundamentais da luta popular por justiça no Brasil: legado e ancestralidade. São rostos racializados, rostos que carregam uma condição periférica, rostos impactados por relações desiguais de gêneros. A ancestralidade é uma evocação de passado e permanência (e resistência) que se produz a partir desses rostos - o rosto é o principal índice (e também símbolo) dessa herança. A multiplicação de rostos a partir do retrato central de Marielle é também a forma gráfica de legado, o seu legado. “Um corpo periférico sorrindo e criando é inspiração” (Mulambö, 2020, p. 29MULAMBÖ. (2020). Mulambö. Saquarema (RJ): Edição do Autor.), o retrato de Marielle irradia, na composição, a aparição de outras faces de mulheres, seu rosto sorridente produz “referência” para que tantas vidas se reconheçam como tal.

A montagem de rostos confronta o sentido da alteridade no cenário da cidade. A aparição do(s) rosto(s) instaura uma ética da relação com o outro, para Emmanuel Levinas (1961)LEVINAS, E. (1961). Totalidade e infinito. Tradução de José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 2008., pois é no encontro visual com o rosto alheio que seríamos confrontados com a singularidade e a humanidade incondicional de outra pessoa. O rosto como essa instância capaz de quebrar as tentativas de objetificação e domínio e de despertar sentimentos de responsabilidade compartilhada pelo bem-estar do outro é, conforme Levinas, presença viva, discurso e capacidade de enunciar.

O rosto é uma presença viva, é expressão. A vida da expressão consiste em desfazer a forma em que o ente, expondo-se como tema, se dissimula por isso mesmo. O rosto fala. A manifestação do rosto é já discurso (Levinas, 1961, p. 53LEVINAS, E. (1961). Totalidade e infinito. Tradução de José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 2008.).

O rosto que aparece também pode ser o alvo de impulsos de destruição. Butler (2009, p. 172), em diálogo com Levinas, observa que, para o autor, “a violência é uma ‘tentação’ que o sujeito pode sentir ao encontrar com a vida precária do outro que é comunicada pelo rosto”20 20 No original: “For Levinas, violence is one ‘temptation’ that a subject may feel in the encounter with the precarious life of the other that is communicated through the face.” (Butler, 2009, p. 172, traduzimos), criando a ambivalência entre o desejo de matar e a ética de não matar. O retrato de Marielle na escada é também alvo de pulsões violentas. Ao longo de sua história, o monumento sofreu depredações direcionadas principalmente ao rosto central reproduzido no lambe-lambe. Um desses ataques que acabou ganhando mais repercussão na imprensa e em redes sociais aconteceu em 2021 : sobre o retrato, tinta vermelha foi atirada e foram feitas pichações com as inscrições “Viva Borba Gato”, “666” e o desenho de um falo21 21 O ataque seria uma resposta ao episódio em que um grupo denominado Revolução Periférica reivindicou a autoria de uma ação de atear fogo à estátua do bandeirante Borba Gato - figura histórica ligada à violência escravagista - também em São Paulo, em 24 jul. 2021. O número 666 faz provável alusão a grupos neonazistas. . O rosto de Marielle representado fotograficamente ganha tanta força de presença viva no monumento que (quase) encarna o próprio corpo real (já assassinado), e passa a ser objeto de desejos destrutivos que precisam violá-lo quantas vezes ele voltar à vida.

O trabalho ativista continuamente recompõe o rosto vandalizado; inúmeras vezes, desde 2018, o lambe-lambe foi substituído ou restaurado depois de ataques. Há assim um sentido de resistência e permanência do próprio corpo materializado no rosto retratado. A ética do cuidado instaurada pelo rosto leva a cuidar do próprio retrato (e de seu suporte, o cartaz) como presença do corpo ausente.

A imagem fotográfica do rosto de Marielle Franco, no cartaz sobre a escada-monumento, aciona o sentido de presentificação do corpo ausente em muitos níveis, compondo, juntamente com os mantras de militância “Marielle presente!” e “Marielle vive”, uma instância discursiva de indignação (pela morte, pela violência, pelo silenciamento...) e de projeção de uma transformação (o legado).

O NOME E A ITERABILIDADE DA FALA

Não apenas o rosto fotografado de Marielle evoca sua presença, mas o seu nome também tem essa capacidade. “Escadão Marielle Franco” não é nome oficial, mas vernacular - foi cunhado nas próprias práticas ativistas de uso popular daquele espaço. Nas paredes da escadaria, há duas pinturas que emulam uma placa de rua com a denominação.

Figuras 3 e 4
O nome. Placas de rua emuladas no Escadão Marielle Franco, São Paulo, 09 jan. 2024. Fotos da autora.

Esse nome se disseminou e é a forma mais recorrente que aparece em mapas urbanos e sistemas de geolocalização, na imprensa e em roteiros turísticos, embora em documentos oficiais possam aparecer designações genéricas como “escadaria localizada na Rua Cristiano Viana” (Correa, 2019CORREA, P. (2019). Por que a Prefeitura está pintando de branco o Escadão da Marielle? Carta Capital. Disponível: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/por-que-a-prefeitura-esta-pintando-de-branco-o-escadao-da-marielle/. Acesso em: 28 dez. 2023.
https://www.cartacapital.com.br/opiniao/...
). O ato de nomear é parte da prática ativista de apropriação do espaço público para modificar as paisagens de poder e inscrever memória de base popular na cidade. Atualmente, é possível encontrar rua, praça, biblioteca, centro cultural, assentamento e tantos outros sítios nomeados como Marielle Franco (por ação popular ou oficial), ou ainda placas memoriais em espaços públicos em diversas localidades pelo Brasil, e mesmo no exterior.

O nome Marielle Franco tem hoje grande projeção pública e capacidade de comoção, podendo provocar, ao ser pronunciado ou aparecer inscrito, diversos tipos de reações emocionais. A replicação do nome em placas de rua não oficiais (como as que foram pintadas no escadão) alude a um dos episódios que ficou mais conhecido de ataques a simbologias relacionadas às práticas de memória e ao luto por Marielle. Em outubro de 2018, dois candidatos a deputado do Rio de Janeiro filmaram e divulgaram uma performance na qual arrancavam uma placa que havia sido colocada em frente da Câmara do Vereadores, em memória a Marielle, e a partiram ao meio. Os depredadores chegaram mais tarde a expor emoldurada, na parede do gabinete de um deles, a placa destruída, como uma espécie de troféu e relíquia (Sartori, 2022SARTORI, C. (2022). Quatro anos depois, dupla posa de novo com placa quebrada de Marielle. Veja. Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/quatro-anos-depois-dupla-posa-de-novo-com-placa-quebrada-de-marielle. Acesso em: 20 dez. 2022.
https://veja.abril.com.br/politica/quatr...
). O nome (materializado na placa), da mesma forma que o rosto no retrato, adquiriu a capacidade de significar presença viva, se tornando alvo de impulsos destrutivos.

O nome próprio, segundo Jacques Lacan (1964-1965)LACAN, J. (1964-1965). Problemas cruciais para a Psicanálise: Seminário 1964-1965. Tradução de Cláudia Lemos et al. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2006., desempenha importante função na entrada do sujeito no registro simbólico, representando um significante que separa e identifica o sujeito em relação aos outros. Não é assim vazio, mas cheio de significações, comporta “toda uma espécie de soma de advertências” (p. 65). Essas advertências são as muitas referências acionadas pelo nome próprio que conduzem à ideia de uma existência singular. Toda singularidade é plena de significações e precisa ser nomeada, por isso, no trabalho do luto é preciso saber/reconhecer e nomear os fantasmas (Derrida, 1993DERRIDA, J. (1993). Espectros de Marx: o Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.).

Por mais que se canonize um nome, ele não estabiliza inteiramente uma identidade (Derrida, 1972DERRIDA, J. (1972). Marges de la philosophie. Paris: Les Éditions de Minuit.), apenas convoca singularidades e pode projetar esperança. Em uma figura pública tão múltipla de sentidos como Marielle, talvez fosse mais interessante pensar que o nome próprio não funciona exatamente como símbolo ou emblema de fixação de uma identidade coletiva, mas que ele cumpre o papel de ser um chamamento para a mobilização, como uma palavra mágica capaz de produzir energia política para a reivindicação por justiça e igualdade.

O nome próprio também se relaciona diretamente à ideia do legado. O nome de Marielle produz referências e projeta legado. Mulambö reflete sobre o seu próprio nome: “Nasci João e [...] [a]ssumi o nome Mulambö [...] e com ele uma série de decisões artísticas foram tomadas em busca de uma reconexão e um reencontro com as referências do existir suburbano no Estado do Rio de Janeiro” (Mulambö, 2020, p. 11MULAMBÖ. (2020). Mulambö. Saquarema (RJ): Edição do Autor.). Em Carolina de Jesus, o nome próprio aparece como marca de sua aparição pública, principalmente em menções sobre a importância de ver seu nome impresso na capa de um livro (Palma, 2017, p. 22PALMA, D. (2017). As casas de Carolina: espaços femininos de resistência, escrita e memória. Cadernos Pagu, n. 51.). O nome próprio é elemento de agenciamento na contingência das vivências periféricas. Ter um nome é ser reconhecível como vida chorável, passível de luto, é ainda ter uma capacidade de ser múltiplo - “sou Mulambö e sou João” (Mulambö, 2020, p. 30MULAMBÖ. (2020). Mulambö. Saquarema (RJ): Edição do Autor.). O nome reconhecível de Marielle condensa sua projeção como vida que merece ser chorada e a potencialidade de espelhamentos a partir de sua figura (em uma metáfora recorrentemente usada para se referir a seu legado: o nome Marielle é semente que germina novas sementes).

Além da replicação do nome, fragmentos de falas proferidas por Marielle são constantemente citados e recitados nas práticas dos movimentos de enlutados, aparecendo repetidos em discursos falados de ativistas, reproduzidos em cartazes, camisetas e textos. Uma das citações que se tornou mais conhecida ao longo do processo de luto e luta está reproduzida em um cartaz colado na parte mais alta do monumento-escada: “não serei interrompida”.

Figura 5
A fala. Cartaz “Não serei interrompida” no Escadão Marielle Franco, São Paulo, 09 jan. 2024. Foto da autora.

Essa citação faz referência a uma fala de Marielle reagindo ao ser interrompida, por um grito de apoio a um torturador da ditadura, durante o discurso dela sobre o dia da mulher, em 08 de março de 2018, na Câmara dos Vereadores do Rio Janeiro. Essa fala e suas recitações convocam ao legado de Marielle a imagem da resistência às imposições de silenciamento, condensando fortes emoções de indignação e a afirmação de que sua figura se perpetua como espectro (não foi interrompida, nem com a morte). Dialoga ainda com várias outras forças contemporâneas, em panorama mais amplo, que denunciam as políticas de morte, como o movimento de impacto internacional “Vidas negras importam” (#BlackLivesMatter, na forma inicial de hashtag), vidas que não podem mais ser interrompidas.

A citação funciona como outro recurso de persistência fantasmática de Marielle e projeta uma ligação com a voz, emissão em relação de contiguidade com o corpo. A fala de Marielle reproduzida no cartaz da escada é uma forma gráfica que promove diversos níveis de recontextualizações: do discurso de Marielle na Câmara para o contexto ativista e para o monumento popular em São Paulo, da oralidade para escrita, da verbalidade para imagem gráfica, da esfera política institucional para a arte de rua, da enunciação individual para a coletiva.

As práticas de des- e recontextualização, as intertextualidades, têm forte relação com a quebra dos paradigmas de presença objetivável. Derrida (1972)DERRIDA, J. (1972). Marges de la philosophie. Paris: Les Éditions de Minuit. aponta para iterabilidade como a compreensão de que o enunciado pode funcionar na “ausência radical de qualquer destinatário empiricamente determinado”22 22 No original: “Toute écriture doit donc, pour être ce qu’elle est, pouvoir fonctionner en l’absence radicale de tout destinataire empiriquement déterminé en général.” (Derrida, 1972, p. 375DERRIDA, J. (1972). Marges de la philosophie. Paris: Les Éditions de Minuit., traduzimos) - toda estrutura legível subsiste à morte do destinatário. Iterabilidade é a condição fundamental de citabilidade, que equivale não à produção da mesmidade, mas da diferença pela movimentação de enunciados. Assim, de acordo com Derrida, a citação é “propriedade que faz funcionar o signo, rompendo a presença (da fala, da intenção, da consciência, do sentido, da verdade etc.) e mostrando-a como efeito histórico” (Pinto, 2009, p. 125PINTO, J. P. (2009). O corpo de uma teoria: marcos contemporâneos sobre os atos de fala. Cadernos Pagu, n. 33, p. 117-138.).

A fala de Marielle ganha justamente relevo histórico ao subsistir no encadeamento de citações pelo qual vem passando ao longo do processo político de luto. As citações multiplicam os destinatários (criam uma infinita possibilidade futura de incorporação de destinatários) e promovem oscilações de enunciador individual (eu, Marielle como figura de projeção histórica) e coletivizado (a fala a partir do legado: “nós não seremos interrompidas”).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se a periferia é condenada a uma não existência, ou a uma existência negativada, práticas biográficas que a convoquem a aparecer publicamente têm a força de espectro (a presentificação do ausente). Assim, as dimensões da espectralidade formam o caminho possível que escolhi para tentar compreender a capacidade de resistir: a periferia espectral se faz como uma imagem que persistentemente aparece na cena pública (a visibilidade negada socialmente) - por meio das poéticas em práticas de luto e performances de memória.

No trabalho de refletir sobre alguns elementos que ajudam a construir o efeito de espectralidade no monumento popular a Marielle Franco em São Paulo, busquei reconhecer como algumas dessas forças acionadas no movimento de luto foram moldadas semioticamente nessa intervenção de arte urbana. O rosto exposto ostensivamente no grande cartaz de rua tem um efeito de “imposição existencial do outro”, que no espaço público urbano instaura uma relação ética com a alteridade capaz de estimular reflexões sobre as políticas de morte e de cuidado direcionado ao corpo alheio. O nome e a fala citada (e o rosto também) operam para potencializar, na composição do monumento memorialístico, a capacidade de construir mobilização para a reivindicação por justiça e contra a morte e o silenciamento.

O monumento vernacular produzido por ação ativista na cidade de São Paulo condensa, assim, pelo manuseio artístico e semiótico, sentidos de força e complexidade em torno da figura de Marielle Franco, que como assombração consegue trazer à cena pública - a paisagem urbana - ecos de histórias de sofrimento e espoliação e a imagem da esperança por transformação.

  • 1
    Fragmento de pronunciamento proferido em cerimônia pública oficial no dia 21 de dezembro de 2023, no Palácio da Justiça, em Brasília (PODER360, 2023PODER360. (2023). Caso Marielle será elucidado “em breve”, diz Dino... Poder 360. Disponível em: https://www.poder360.com.br/governo/caso-marielle-sera-elucidado-em-breve-diz-dino/. Acesso em: 28 dez. 2023.
    https://www.poder360.com.br/governo/caso...
    ).
  • 2
    Em março de 2024, a Polícia Federal anunciou a prisão, como suspeitos de serem mandantes do crime, de um deputado federal e de seu irmão, além de um ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro.
  • 3
    Projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) - Processo 21/02618-8.
  • 4
    Em janeiro de 2019, por exemplo, a escadaria teve suas paredes pintadas de branco pela prefeitura sob a alegação de reparos de acessibilidade. Na ocasião, apenas o lambe-lambe com o retrato teria sido mantido (Correa, 2019CORREA, P. (2019). Por que a Prefeitura está pintando de branco o Escadão da Marielle? Carta Capital. Disponível: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/por-que-a-prefeitura-esta-pintando-de-branco-o-escadao-da-marielle/. Acesso em: 28 dez. 2023.
    https://www.cartacapital.com.br/opiniao/...
    ).
  • 5
    No original: “As a mode of apprehension and reformation, conjuring merges the analytical, the procedural, the imaginative, and the effervescent.”
  • 6
    No original: “[...] creating erasures and exclusions, silences and prohibitions, but also voices that break through the oppressions, and that articulate the “aftereffects of violence and repressions.”
  • 7
    No original: “This ‘life world’ is not only the field where individuals’ existence unfolds in practice; it is where they exercise existence - that is, live their lives out and confront the very forms of their death.”
  • 8
    No original: “[T]oda biografia - como toda inscripción en la memoria - es también inseparable de la dimensión espacial, del entorno, el sitio, el escenario donde esos acontecimientos tienen lugar. Así, como habitantes de las ciudades, nuestra historia se entreteje en el espacio urbano de modos visibles e invisibles pero nunca intrascendentes.”
  • 9
    No original: “[T]he ensemble of cultural imaginings, affective experiences, animated objects, marginal voices, narrative densities, and eccentric traces of power’s presence.”
  • 10
    No original: “Because of their affective-political force and the complexities of their semiosis, ghosts are perhaps best approached by paying attention to art; that is, to communicative genres that are grounded in the inherent multi-vocality [...].”
  • 11
    Mulambö é artista plástico de Saquarema (RJ), nascido em 1985, que constrói seu trabalho com base em uma poética da memória de suas vivências familiares e comunitárias - e diversas referências a universos culturais populares -, amplificando reflexões sobre as subjetividades individuais e coletivas simultaneamente, por uma perspectiva periférica.
  • 12
    No original: “[..] recognition of precariousness as a shared condition of human life [...].”
  • 13
    Dentro do período do trabalho empírico, de junho de 2022 a janeiro de 2024, a escada manteve o arranjo em seu desenho geral, sem mudança nos elementos principais que a compõem. Mas é claro que isso não quer dizer que houve uma estabilização nesses quase dois anos. Pichações aparecem com frequência, fragmentos de cartazes colados, garatujas etc., como também algumas marcas da ação do tempo, a exemplo do esmaecimento de cores e do esfacelamento de suportes (como o papel dos cartazes).
  • 14
    No original: “We never look at just one thing, we are always looking at the relation between things and ourselves.”
  • 15
    No original: “Images were first made to conjure up the appearances of something that was absent. Gradually it became evident that an image could outlast what it represented [...].”
  • 16
    No original: “[...] la science impossible de l’être unique.”
  • 17
    No original: “[...] it functions more as a reminder that triggers or guides remembering than as a memory in itself [... ] the photographic trace may be the only representation of an event that incorporates its absence.”
  • 18
    No original: “[...] pictures that attract strong collective attention and emotional reaction.”
  • 19
    No original: “Photographs can become canonized as veritable lieux de mémoire [...].”
  • 20
    No original: “For Levinas, violence is one ‘temptation’ that a subject may feel in the encounter with the precarious life of the other that is communicated through the face.”
  • 21
    O ataque seria uma resposta ao episódio em que um grupo denominado Revolução Periférica reivindicou a autoria de uma ação de atear fogo à estátua do bandeirante Borba Gato - figura histórica ligada à violência escravagista - também em São Paulo, em 24 jul. 2021. O número 666 faz provável alusão a grupos neonazistas.
  • 22
    No original: “Toute écriture doit donc, pour être ce qu’elle est, pouvoir fonctionner en l’absence radicale de tout destinataire empiriquement déterminé en général.”
  • DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA
    Declaro que os dados de pesquisa estão disponíveis em https://www2.iel.unicamp.br/nosoutros/dados-abertos/.

REFERÊNCIAS

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Disponibilidade de dados

DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA

Declaro que os dados de pesquisa estão disponíveis em https://www2.iel.unicamp.br/nosoutros/dados-abertos/.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2024
  • Aceito
    26 Fev 2024
  • Publicado
    08 Abr 2024
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