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LITERATURA E ENSINO DE LÍNGUAS ADICIONAIS: DISCURSOS E PRÁTICAS EM TENSÃO

LITERATURE AND ADDITIONAL LANGUAGE TEACHING: DISCOURSES AND PRACTICES IN TENSION

Resumo

O objetivo central deste artigo é discutir as diferentes formas de tensionamento, nas esferas do discurso acadêmico e do discurso didático, do padrão canônico de leitura e recepção das literaturas estrangeiras, historicamente assentado na ideologia do nacionalismo e no paradigma monolíngue. Tal tensionamento atravessa não só os modos de leitura e abordagens teórico-analíticas nos estudos de literatura, mas também as formas de mediação didática dos textos literários em línguas adicionais. O corpus analisado aqui é composto por teses e dissertações defendidas em programas de pós-graduação do estado do Rio de Janeiro nos últimos anos e por livros didáticos aprovados no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Os resultados da pesquisa apontam uma relação tensiva entre distintos gestos de interpretação e práticas de mediação em torno do literário, ora mais voltados a uma política de fechamento dos sentidos - pautada em protocolos de leitura previamente instaurados nos campos linguístico-literários estrangeiros -, ora mais abertos à pluralidade de vozes, sentidos e modos de apropriação crítica e pedagógica.

Palavras-chave
literatura; línguas adicionais; discurso acadêmico; ensino

Abstract

The central objective of this article is to discuss the different forms of tension, in the spheres of academic discourse and didactic discourse, of the canonical pattern of reading and reception of foreign literatures, historically based on the ideology of nationalism and the monolingual paradigm. Such tension crosses not only the modes of reading and theoretical-analytical approaches in literature studies, but also the forms of didactic mediation of literary texts in additional languages. The corpus analyzed here is composed of theses and dissertations defended in graduate programs in the state of Rio de Janeiro in recent years and textbooks approved in PNLD. The results of the research indicate a tense relationship between different gestures of interpretation and mediation practices around the literary, sometimes more focused on a policy of closure of the senses - based on reading protocols previously established in the foreign linguistic-literary fields -, sometimes more open to the plurality of voices, meanings and modes of critical and pedagogical appropriation.

Keywords
literature; additional languages; academic discourse; teaching

INTRODUÇÃO

A partir de resultados obtidos em projeto de pesquisa financiado pelo CNPq (PQ-2) sobre leitura literária no ensino de línguas adicionais, finalizado recentemente, o objetivo central deste artigo é discutir, sob uma perspectiva discursiva, o crescente tensionamento, no contexto brasileiro, do padrão canônico de leitura e recepção das literaturas estrangeiras, historicamente assentado na ideologia do nacionalismo e no paradigma monolíngue (YILDIZ, 2012YILDIZ, Y. (2012). Beyond the Mother Tongue: The Postmonolingual Condition. New York: Fordham UP.). Tal tensionamento atravessa não só a área de estudos de literatura, mas também os modos de leitura, abordagem crítica e mediação pedagógica dos textos literários em línguas adicionais.

Ao longo do texto, busco examinar o impacto das perspectivas comparadas, interculturais e decoloniais em teses e dissertações da área Literaturas Estrangeiras Modernas1 1 Utilizo aqui o nome da área tal como consta na tabela de áreas do conhecimento do CNPq. - com foco nas literaturas de língua espanhola, francesa e inglesa2 2 A opção por esse foco se deve ao fato de que essas literaturas são as tradicionalmente mais estudadas no âmbito da área de Literaturas Estrangeiras Modernas. - realizadas em programas de pós-graduação do estado do Rio de Janeiro nos últimos anos. Esse corpus - coletado principalmente a partir dos sites dos programas de pós-graduação - se, por um lado, sinaliza a prevalência de reflexões mais atentas aos contatos e conflitos linguístico-culturais enquanto condições de produção e recepção do literário, por outro, indicia a reprodução de dispositivos analíticos vinculados a tradições crítico-historiográficas estrangeiras, como se o movimento de inscrição em outro campo literário (BOURDIEU, 2008BOURDIEU, P. (2008). A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. Trad. Sergio Miceli et. al. São Paulo: Edusp.) implicasse a adesão a certos protocolos de leitura instaurados.

Tal dialética de movimentos de permanência e mudança de perspectivas na esfera acadêmica vem criando ecos e inflexões no âmbito do discurso didático-pedagógico. E para comprovar essa hipótese, trato de analisar, como corpus da esfera pedagógica, livros didáticos de Espanhol e Inglês3 3 Cabe ressaltar que estas são as únicas línguas adicionais presentes na componente curricular Línguas Estrangeiras Modernas, do Programa Nacional do Livro Didático, desde sua criação até o edital do PNLD 2018. aprovados nas últimas edições do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), utilizados com grande frequência nas salas de aula de línguas adicionais no Brasil. Nesses livros, percebe-se, por um lado, uma tendência majoritária à conservação de discursividades ligadas aos campos linguístico-literários enfocados, o que os faz, por exemplo, evitar o uso de textos literários que mobilizem de maneira desestabilizadora a condição extraterritorial (STEINER, 1990STEINER, G. (1990). Extraterritorial: a literatura e a revolução da linguagem. Trad. Julio Castañon Guimarães. São Paulo: Companhia das Letras.) de vozes autorais que escrevem a partir de um lugar entre-línguas-culturas (CELADA et al., 2021CELADA, M. T.; ANDRADE, A.; GASPARINI, P. (2021). Ser-estar entre-línguas-culturas: entrevista com Maria José Coracini. Alea: Estudos Neolatinos, 23/2.). Por outro lado, percebe-se também em alguns deles uma relação tensiva entre práticas de mediação leitora. Ora mais voltadas a uma política de fechamento dos sentidos (MENDONÇA, 2012MENDONÇA, M. C. (2012). Língua e ensino: políticas de fechamento. In: Mussalim, F.; Bentes, A. C. (Orgs.). Introdução à Linguística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, p. 273-303.), pautada na leitura como pretexto para o trabalho com temas transversais, léxico ou elementos gramaticais, por exemplo, ratificando normatividades relacionadas à estandardização linguística dos idiomas enfocados. Ora mais abertas à polissemia, mobilizando nos aprendizes de línguas adicionais estratégias de leitura de caráter translíngue/transcultural na abordagem do texto literário.

O dispositivo teórico elaborado para esta pesquisa ancora-se em discussões trazidas à baila pela teoria literária, sobretudo as que problematizam a relação sujeito/linguagem a partir do debate contemporâneo em torno da ideia de comunidade (AGAMBEN, 1996AGAMBEN, G. (1996). La comunidad que viene. Valencia: Pre-Textos.; ESPOSITO, 2007ESPOSITO, R. (2007). Communitas: origen y destino de la comunidad. Trad. Carlo Morinari. Buenos Aires: Amorrortu.), tendo em vista, como afirma Bombini (1996)BOMBINI, G. (1996). Didáctica de la literatura y teoría: apuntes sobre la historia de una deuda. Orbis Tertius. Revista de teoría y crítica literaria, I, n. 2-3, La Plata., que a teoria colabora na desconstrução de ideologias arraigadas, desvelando a dinâmica de funcionamento da tradição estético-filosófica, desordenando/reordenando os cânones e borrando as fronteiras entre o literário e o não-literário. Em paralelo a isso, busco também articular, de maneira transdisciplinar, tais discussões às problematizações a respeito da leitura suscitadas pelos estudos discursivos (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, M. (2008). A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária.; PÊCHEUX, 2014PÊCHEUX, M. (2014). Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni Orlandi et al. Campinas: Ed. Unicamp.; BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. (2003). Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes.; SERRANI, 1997SERRANI, S. (1997). Formações discursivas e processos identificatórios na aquisição de línguas. Revista D.E.L.T.A., São Paulo, v. 13, n. 1, p. 63-81.; AUTHIER-REVUZ, 1998AUTHIER-REVUZ, J. (1998). Palavras incertas. Trad. Claudia Pfeiffer et al. Campinas: Ed. Unicamp.; ORLANDI, 2001ORLANDI, E. (2001). Discurso e leitura. São Paulo: Contexto.), os quais aportam ao campo de pesquisa sobre literatura e ensino importantes procedimentos para a análise dos mecanismos enunciativos implicados no processo de interação com textos literários em línguas adicionais, tratando de focalizar a ambivalência entre formas de identificação e deslocamento, adesão e resistência. Tal articulação entre linhas teóricas diferentes, porém compatíveis, dialoga, por sua vez, com os princípios de transdisciplinaridade e desterritorialização de epistemologias engessadas difundidos pela linguística aplicada indisciplinar (MOITA LOPES, 2006MOITA LOPES, L. P. (2006). Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola.).

Os objetivos desta pesquisa, que correspondem também às etapas de desenvolvimento do presente artigo que serão desenvolvidas adiante, são os seguintes:

  • - elaborar e aperfeiçoar dispositivo teórico-analítico adequado à abordagem discursiva de textos que configurem gestos de leitura ou gestos de mediação de leituras de obras literárias estrangeiras presentes em gêneros que circulam na esfera acadêmica e na esfera escolar;

  • - discutir a conformação contemporânea dos campos disciplinares (BOURDIEU, 2011BOURDIEU, P. (2011). Homo academicus. Florianópolis: Ed. UFSC.) que integram a área de Literaturas Estrangeiras Modernas, por meio do mapeamento de teses e dissertações sobre literaturas de língua espanhola, francesa e inglesa, desenvolvidas em programas de pós-graduação stricto sensu do estado do Rio de Janeiro entre os anos de 2013 e 20184 4 Este recorte temporal foi estabelecido no momento da elaboração do projeto de pesquisa, submetido às agências de fomento, e o recorte espacial se deve ao fato de que o estado do Rio de Janeiro é o meu locus de formação e atuação. ;

  • - mapear e discutir as estratégias de mediação pedagógica da leitura literária estrangeira na escola, por meio da análise de livros didáticos de ensino médio do componente curricular Língua Estrangeira Moderna (Espanhol e Inglês), aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático - Edital PNLD/20185 5 A escolha deste edital do PNLD se deve ao fato de ter sido o último, até o momento, que contempla não só a área de Inglês, mas também a área de Espanhol, antes da revogação da Lei 11.161/2005 (que regulamentava a obrigatoriedade da oferta de língua espanhola), no âmbito da Reforma do Ensino Médio. ;

  • - avaliar comparativamente de que maneira a pesquisa acadêmica, no âmbito da pós-graduação, pode estar impactando, ou não, as estratégias de mediação e as formas de interação com o texto literário estrangeiro na educação básica.

A partir do cotejo dos resultados de pesquisa pretendo contribuir para o aprofundamento da reflexão em torno da relação entre literatura, ensino e formação de professores de línguas adicionais, campo fortemente atravessado por discursos e práticas em disputa.

1. ABORDAGEM DISCURSIVA DA LEITURA LITERÁRIA EM LÍNGUAS ADICIONAIS

Nesta seção, dedico-me a rediscutir, aperfeiçoar e atualizar o dispositivo teórico-analítico da investigação. Desse modo, considero que os desenvolvimentos desta pesquisa aportam, ao campo dos estudos sobre literatura e ensino, procedimentos analíticos balizados e adequados à exploração da complexidade enunciativa da produção escrita que mobiliza a ou é mobilizada pela leitura literária em línguas adicionais.

Para problematizar a concepção burguesa individualizante de educação literária e pensar a formação de leitores literários a partir de um olhar atento à noção de comunidade (ESPOSITO, 2007ESPOSITO, R. (2007). Communitas: origen y destino de la comunidad. Trad. Carlo Morinari. Buenos Aires: Amorrortu.), entendo a importância de sempre se ter em mente a tensão entre um impulso imunitário de isolamento em grupos identitários e um impulso comunitário de abertura à exterioridade.

Tal observação aponta a necessidade de se focalizar distintas exotopias (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. (2003). Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes.) envolvidas na interação com o texto literário estrangeiro no contexto socioeducacional brasileiro, admitindo o dialogismo de vozes não-coincidentes na interação propiciada por esse tipo de leitura. Por isso, é importante que se busque analisar, nas textualidades enfocadas aqui, que materializam gestos de interpretação - produzidos tanto por pesquisadores de mestrado/doutorado quanto por autores de livros didáticos -, as formas de posicionamento do sujeito que não apenas recebe, mas produz, de forma ativa, atitudes responsivas em face da alteridade.

Nesse sentido, entendo aqui as escritas sobre textualidades em línguas adicionais como um emaranhado deslizante e heterogêneo de línguas e discursos (CELADA, 2004CELADA, M. T. (2004). Lengua extranjera y subjetividad - apuntes sobre un proceso. GEL - Grupo de Estudos Linguísticos dos Estados de São Paulo, Campinas.), refletindo sobre como o contato com a literatura estrangeira solicita o próprio processo de subjetivação desses aprendizes, levando-os a circular por diferentes posições, exigindo-lhes um dúplice movimento de desterritorialização/reterritorialização em relação às memórias do dizer e das ressonâncias discursivas das línguas/culturas (maternas e não-maternas).

Ao debater problemáticas relacionadas ao trabalho pedagógico com a compreensão leitora (MENDONÇA, 2012MENDONÇA, M. C. (2012). Língua e ensino: políticas de fechamento. In: Mussalim, F.; Bentes, A. C. (Orgs.). Introdução à Linguística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, p. 273-303.), observo uma relação conflitante entre a noção de leitura enquanto produção de sentidos e as políticas de fechamento, entendidas como formas de controle da interpretação. Tais noções que remetem às ideias de abertura e fechamento foram também rediscutidas ao longo da pesquisa, de tal modo que não as compreendo como polos de uma dicotomia, e sim como um ‘continuum [+] abertura/fechamento’ aos gestos de interpretação do leitor. Note-se, assim, que se trata de um processo tensivo. A política de fechamento, instaurada por paradigmas de leitura e mediação de leitura, atua de forma a silenciar diversas possibilidades de leitura/produção, privilegiando sentidos já legitimados. Por outro lado, é possível identificar, nas análises, a incidência simultânea de variadas estratégias de cabular essa política, provocando desvios nos protocolos de leitura naturalizados.

Buscando pensar o espaço de (res)subjetivação do leitor nas estratégias de leitura e mediação pedagógica da leitura literária em línguas adicionais, observo uma tendência à prática de leitura analítica, atravessada, contudo, por gestos de leitura cursiva (ROUXEL, 2012ROUXEL, A. (2012). Práticas de leitura: quais rumos para favorecer a expressão do sujeito leitor? Cadernos de Pesquisa, 42(145), jan./abr., p. 272-283.). A leitura analítica, hegemônica nos contextos de letramento escolar e acadêmico, constitui uma prática de análise textual que busca formar um leitor apto a responder a injunções da estrutura do texto e do gênero, sem estimular a expressão da voz do leitor/escrevente enquanto sujeito da linguagem, de modo que muitas vezes “o gesto de ler desaparece sob o ato de aprender” (ROUXEL, 2012ROUXEL, A. (2012). Práticas de leitura: quais rumos para favorecer a expressão do sujeito leitor? Cadernos de Pesquisa, 42(145), jan./abr., p. 272-283., p. 275). Por sua vez, a leitura cursiva constitui uma abordagem da literatura que “autoriza o fenômeno da identificação e convida a uma apropriação singular das obras” (ROUXEL, 2012ROUXEL, A. (2012). Práticas de leitura: quais rumos para favorecer a expressão do sujeito leitor? Cadernos de Pesquisa, 42(145), jan./abr., p. 272-283., p. 276), sinalizando um maior investimento e envolvimento do sujeito com a leitura.

Embora reconheça também, nos corpora de pesquisa investigados, o domínio hegemônico da prática de leitura analítica em produções acadêmicas e pedagógicas sobre o literário, o que indica um processo ainda forte de objetificação da literatura nos currículos de formação, analiso aqui os gêneros que abordam o discurso literário mais comuns nesses contextos, pensando-os sob a ótica da tensão e dentro do continuum [+] abertura/fechamento, [+] cursividade/analiticidade na escrita.

Tal entendimento do texto enquanto objeto dialógico relaciona-se à noção de heterogeneidade enunciativa, que atravessa, de forma marcada ou não-marcada, os processos de textualização (AUTHIER-REVUZ, 1990AUTHIER-REVUZ, J. (1990). Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos de Estudos Linguísticos, 19, Campinas, jul./dez., p. 25-42.). Nesse sentido, minhas análises desses escritos sobre o literário indiciam a presença de diferentes relações intergenéricas, que constituem uma espécie de ruína de gêneros do discurso (CORRÊA, 2006CORRÊA, M. L. G. (2006). Relações intergenéricas na análise indiciária de textos escritos. Trabalhos em Linguística Aplicada, 45-2, Campinas, jul./dez., p. 205-224.), formada em meio às interfaces entre leitura e escrita, cultura oral e cultura letrada, língua materna e línguas adicionais. É possível afirmar, assim, que as marcas de heterogeneidade, presentes na escrita realizada a partir de atividades de leitura crítica e de mediação leitora do texto literário, constituem gestos ruiniformes de leitura/escrita que não só ratificam, ressignificam ou colocam em dúvida valores simbólicos mobilizados pelo texto lido, mas também, junto ao movimento de inscrição em uma segunda língua, colocam suas perspectivas de mundo em contato e confronto com a alteridade linguístico-cultural do discurso do outro.

2. CARTOGRAFIA DE TESES E DISSERTAÇÕES

Nesta seção, apresento um levantamento das teses de doutorado e dissertações de mestrado sobre literaturas de língua espanhola, francesa e inglesa, defendidas entre 2013 e 2018, nos programas de pós-graduação da área de Letras do estado do Rio de Janeiro. Para esse levantamento, foram utilizados, sobretudo, os dados e arquivos disponibilizados pelos sites dos seguintes programas, em conformidade com o recorte estabelecido: PPG Letras Neolatinas (UFRJ), PPG Ciência da Literatura (UFRJ), PPG Interdisciplinar em Linguística Aplicada (UFRJ), PPG Letras (UERJ), PPG Estudos de Literatura (UFF) e PPG Literatura, Cultura e Contemporaneidade (PUC-Rio).6 6 Além dos sites oficiais dos programas de pós-graduação enfocados, recorreu-se também, em diversos momentos, à consulta de dados na Plataforma Sucupira e no Catálogo de Teses & Dissertações da CAPES. Apresentamos a seguir, no Quadro 1, o número de trabalhos que integram o banco de teses e dissertações da pesquisa:

Quadro 1
Quantitativo de teses e dissertações
Quadro 2
Livros didáticos aprovados no Edital PNLD 2018.

Como se pode perceber, os dados dessa cartografia de teses e dissertações demostram que, no estado do Rio de Janeiro, há um certo equilíbrio numérico na produção de pesquisas de pós-graduação que focalizam objetos de estudo relacionados a cada uma das subáreas investigadas, com uma ligeira vantagem para a subárea de literaturas hispânicas, na qual se verificou também uma distribuição mais equilibrada no número de trabalhos finais de mestrado e de doutorado, enquanto nas demais se nota uma proporção maior de dissertações.

No que concerne às literaturas de língua espanhola, o programa que concentrou maior número de trabalhos, durante o período examinado, foi o PPG Letras Neolatinas (UFRJ), seguido do PPG Estudos de Literatura (UFF). Cabe mencionar também que, no campo dos estudos literários hispânicos, há uma grande incidência de pesquisas que focam a produção literária em prosa (contos, romances, cartas etc.): 30 dissertações de mestrado e 33 teses de doutorado. Além disso, vale ressaltar que uma parte expressiva dos trabalhos dessa subárea abordam questões relacionadas aos estudos culturais, focalizando textos e temáticas ligados à interseccionalidade entre gênero, raça e classe na própria configuração dos objetos de pesquisa e reflexão. Outro fator que cabe ressaltar aqui é que muitos trabalhos da referida subárea não são exclusivamente focados em textos e autores hispânicos, visto que 29,3% deles se inscrevem no campo da literatura comparada.

No âmbito das literaturas de língua francesa, os programas da UFRJ também concentraram o maior número de trabalhos, seguidos dos programas da UFF e da UERJ. Nos dados dessa subárea, chama a atenção o grande número de autores franceses enfocados nas pesquisas. Dos 55 autores utilizados, 37 são franceses, 4 franco-canadenses e os demais pertencentes a outras nacionalidades (haitianos, belgas, marfinenses, suíços, marroquinos, guadalupenses etc.). Os trabalhos que se destinam a analisar as obras de autores não europeus costumam tematizar a construção das identidades nacionais e a reconstrução de uma história apagada pela colonialidade eurocêntrica. Já entre os autores franceses trabalhados, nomes como Albert Camus, Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, autores existencialistas da segunda metade do século XX, estão presentes em mais de um trabalho. E entre os autores franceses mais antigos, Marquês de Sade, Gustave Flaubert e Jules Verne são nomes também estudados em mais de uma tese ou dissertação. Os estudos que se debruçam sobre clássicos da literatura francesa podem ser divididos em dois subgrupos principais: (a) os que procuram criar uma relação com o cenário brasileiro, seja por meio de discussões relacionadas à construção do imaginário nacional, seja por meio da aproximação comparativa com autores brasileiros; (b) os que focalizam questões de caráter teórico relacionadas aos debates sobre a modernidade ou sobre o contemporâneo.

Já no que diz respeito às literaturas de língua inglesa, o programa carioca que apresentou uma nítida expressividade de produção foi o PPG Letras (UERJ), com 34 trabalhos no período examinado. Em relação aos interesses temáticos, identificamos que vários objetos de estudo recorrentes nos trabalhos sobre literaturas anglófonas se coadunam às discussões sobre literatura e subalternidade. Desse modo, vários trabalhos debatem a questão da resistência e do empoderamento, com foco na literatura produzida por grupos minoritários. Grande parte das pesquisas aborda a noção de alteridade e discute a identidade étnico-cultural de grupos marginalizados, focalizando autores originariamente não europeus ou não norte-americanos, bem como a literatura negra e as poéticas nativas. Além disso, percebe-se também uma grande presença de objetos de estudo que relacionam o campo literário aos debates sobre gênero, com foco na autoria feminina, e aos debates sobre a heteronormatividade, sob a ótica da teoria queer, com foco em dicções LGBTQIA+. Os gêneros literários mais focalizados nos trabalhos dessa subárea no período são o gênero dramático, o romance e a autobiografia.

3. LEITURA LITERÁRIA EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUAS ADICIONAIS

A partir desta seção, efetuo um outro movimento analítico, para o qual primeiro realizei um levantamento dos livros didáticos do componente curricular Língua Estrangeira Moderna7 7 Replico aqui, neste caso, a nomenclatura do componente curricular utilizada nos editais do Programa Nacional do Livro Didático, até a edição do PNLD 2018. , do ensino médio, disponibilizados às escolas públicas de todo o país pelo edital do Programa Nacional do Livro Didático - PNLD 2018. Foram examinados, preliminarmente, todos os livros de Espanhol e Inglês aprovados nesse edital. Os dados relativos a esse trabalho de levantamento de livros didáticos para constituição do corpus encontram-se discriminados a seguir:

Tendo em vista o levantamento acima, procedi ao mapeamento das atividades que focalizassem o trabalho pedagógico com textos literários em línguas adicionais, contidas nos livros didáticos selecionados a partir do recorte, com vistas a identificar as estratégias de mediação da leitura literária mais acionadas por essas obras. A fim de demonstrar os principais resultados detectados nesta etapa da investigação, apresento a seguir alguns exemplos do modo como venho abordando analiticamente este corpus.

Na coleção didática de língua inglesa Alive High (2ª ed.), volume 3, dentro da seção intitulada “Time for literature”, na unidade 7, por exemplo, propõe-se a leitura do poema “Telephone conversation”, do escritor nigeriano Wole Soyinka. Esse texto descreve um telefonema entre um locutor negro e a proprietária de um apartamento. Ela comete uma atitude preconceituosa contra esse locutor, que, em resposta a isso, zomba da ignorância da mulher. Na fase de pré-leitura que antecede o poema, o livro didático traz as seguintes questões, a fim de mobilizar conhecimentos prévios dos estudantes sobre o tema:

Figura 1
Alive High - 2ª ed., vol. 3, p. 136.8 8 Optei pelo uso de imagens escaneadas, em forma de figuras, para citar alguns fragmentos das obras analisadas nesta seção, com a finalidade de conservar aspectos gráfico-visuais característicos do gênero livro didático.

Nessas questões, as atividades visam a aproximar os alunos do universo discursivo-cultural a ser trabalhado, no intuito de criar engajamento discursivo em relação ao texto literário proposto.

Se em tais questões de pré-leitura exige-se certa atitude inferencial do leitor, em outras contidas nesse mesmo livro didático detecta-se o acionamento apenas da estratégia de localização de informações explícitas na superfície textual. Tal fato se vê, por exemplo, após o fragmento de caráter biográfico sobre o escritor britânico Richard Llewellyn, a partir do qual se pede aos alunos que escolham as sentenças que contêm informações “corretas” sobre o autor, tais como o lugar onde ele nasceu, a origem de sua família, a época em que ele escrevia etc. Para responder a tais perguntas, os alunos precisam meramente localizar as informações solicitadas no texto. Veja-se o excerto abaixo:

Figura 2
Alive High - 2ª ed., vol. 3, p. 72.

Esse tipo de estratégia de mediação, que exige um nível de inferencialidade muito baixo do sujeito coenunciador, repete-se nas atividades propostas após a leitura de um fragmento de How green was the valley, de Llewellyn.

Figura 3
Alive High - 2ª ed., vol. 3, p. 72.

Nessas atividades, o livro didático apresenta perguntas cujas respostas podem ser detectadas em partes específicas do texto, sem demandar um trabalho de inferência, atribuição de sentidos, compreensão global, articulação entre diferentes partes do enunciado, produção de hipóteses ou estabelecimento de relações intertextuais e interdiscursivas.

Outra tendência pedagógica importante, observada nos livros didáticos contemporâneos, é a presença de uma abordagem cultural e/ou decolonial a respeito da produção poético-literária estrangeira, sobretudo a realizada por grupos subalternizados. A título de exemplificação, veja-se como livros didáticos de língua espanhola utilizados no Brasil abordam temáticas relacionadas à literatura e cultura afro-hispânica. No volume 2, da coleção Cercanía Joven (2ª ed.), por exemplo, solicita-se aos estudantes a leitura do poema “Rotundamente Negra”, da escritora e antropóloga costa-riquenha Shirley Campbell Barr.

Figura 4
Cercanía Joven - 2ª ed., vol. 2, p. 99.

Após a leitura do poema, o livro didático apresenta as seguintes questões, a priori dedicadas ao trabalho de compreensão leitora:

  1. a)¿Qué recurso textual se usa con frecuencia en el poema “Rotundamente negra”? ¿Con qué intención?

  2. b) Así como rotundamente, otros tres adverbios de modo aparecen en el poema. ¿Qué palabras son estas?

  3. c) Intenta descubrir la palabra que completa esta frase: “Esta repetición de palabras con el sufijo -mente es importante en la construcción de la ________ del poema”.

  4. d) ¿Mediante qué adjetivos se forman los adverbios valientemente, categóricamente y absolutamente?

  5. e) Ahora, todos en la clase van a leer el poema en voz alta. Pero habrá una regla. Una persona lee el poema y los demás, cuando aparezcan los adverbios rotundamente, valientemente, categóricamente y absolutamente, juntos, todos los pronuncian enfáticamente.

(Cercanía Joven - 2ª ed., vol. 2, p. 99)

Pode-se observar que a escolha pedagógica desse texto é extremamente pertinente, pois o poema mobiliza e faz dialogar diferentes formações discursivas, como a que se vincula à memória da escravidão, a que adere às políticas afirmativas do movimento negro e do feminismo negro, a que se orienta em direção à desconstrução da noção de beleza ligada à branquitude ou a que possibilita o questionamento crítico da correlação metonímica que se estabelece entre o preconceito racial e o preconceito linguístico. No entanto, a maioria das atividades aí não contempla um processo efetivo de interação texto-leitor, visto que, em favor de um uso utilitário do texto literário para exploração de elementos gramaticais, muitos enunciados deixam de interpelar os gestos de interpretação dos estudantes. Mesmo nas questões (c) e (e), em que há uma tentativa de se estabelecer uma relação entre o uso reiterado dos advérbios (terminados em -mente) e a construção da sonoridade do poema, percebe-se que o gesto interpretativo já é dado pelas autoras do livro didático.

Em relação à pergunta (a), a única que parece exigir um trabalho mais inferencial por parte dos alunos, é notória a permanência na formulação enunciativa da ideia de “intenção” autoral, que nega o lugar ativo do leitor no processo de produção de sentidos na interação com o texto. O gabarito dessa atividade, de maneira coerente a tal concepção de leitura, apresenta-se de maneira fechada, pois oferece uma interpretação que, embora possa ser considerada válida, apresenta-se como um caminho unívoco de resposta, ao dizer que a repetição do vocábulo “rotundamente” é usada “para resaltar las características de la mujer negra (la nariz, la boca, los dientes), sin dejar dudas, o sea, de forma clara y precisa. Es la valoración de una identidad” (op. cit., p. 256). Esse caminho de interpretação desconsidera, por exemplo, a ambivalência entre os sentidos de precisão e de circularidade, de um gesto de afirmação identitária que se constrói performativamente pelo movimento reiterativo da negação, do negar aquilo que violentamente nega esse sujeito.

Vejamos agora outro exemplo, presente no volume 1 da coleção didática de língua espanhola Confluencia, em que consta o texto “Mi belleza”, de Magia López e Alexei Rodríguez Mola, que formam o duo de hip-hop cubano Obsesión. Leia-se o fragmento abaixo:

Mi belleza afronta mis desafíos, ahuyenta mis titubeos.

No es la de revista, no es la que estás imaginando.

No es la clásica belleza eurocéntricamente hablando.

Mi belleza no escandaliza a los ojos.

Ella elige las miradas y las maneja a su antojo.

[…]

Mi belleza no necesita patrocinio para su proyecto.

Ella cuenta con suficiente presupuesto.

Habla su propio lenguaje no se desvaloriza.

Yo soy bella, no me niegues que eso te alfabetiza.

(Confluencia, vol. 1, p. 84)

Tendo em vista que o poema originalmente constitui uma faixa do álbum El disco negro da dupla cubana, é possível perceber que o livro didático parte de uma concepção expandida de quais gêneros podem, ou não, integrar a esfera da literatura. Dentre as questões de compreensão leitora relacionadas a esse texto, destacam-se as seguintes:

2. En el verso “No es la clásica belleza eurocéntricamente hablando” se utiliza un adverbio, formado a partir del adjetivo “eurocéntrico”, para modificar el verbo “hablar”. ¿Conocías ese adjetivo? ¿Qué significa hablar de la belleza de una persona “de una manera eurocéntrica”?

3. En el verso “Yo soy bella, no me niegues que eso te alfabetiza”, el poema se dirige a una segunda persona, que representa a un presunto interlocutor. De alguna manera, aquí se afirma el carácter reivindicativo y formativo de esta afirmación poética de la belleza negra. ¿Por qué esa afirmación en 1ª persona de la belleza sería también un ejercicio de afirmación racial, y por lo tanto, social, y no una simple autoafirmación individual?

(Confluencia, vol. 1, p. 84)

Em primeiro lugar, é interessante notar, a partir dessa proposta didática, uma tentativa de visibilização de outros repertórios de leitura, ignorados ou silenciados pelo cânone literário. Na questão (2), focaliza-se o uso do vocábulo “eurocéntricamente” - coincidentemente também um advérbio de modo formado pelo sufixo -mente. Percebe-se assim uma regularidade ligada à própria história dos livros didáticos desse campo disciplinar, qual seja, o uso do texto literário como pretexto para abordagem de elementos linguísticos. Porém, na coleção Confluencia, a atenção a esse modalizador conecta-se aos níveis semântico e discursivo, no sentido de que conduz o aluno-leitor a uma reflexão sobre o modo como o texto poético se inscreve em uma memória do dizer, no que tange aos efeitos de sentido em torno do belo na atualidade, fortemente atravessados ainda por padrões hierarquizantes advindos da tradição eurocêntrica de beleza clássica.

Passando à questão (3), o destaque dado ao verso “Yo soy bella, no me niegues que eso te alfabetiza” sinaliza a adesão do livro a políticas educacionais voltadas para a formação da cidadania e o letramento crítico. A focalização aí do enunciador em 1ª pessoa do singular ultrapassa os limites da expressão meramente individual, suscitando possibilidades de identificação e intervenção no debate público. Tal estratégia leva em consideração o leitor, configurando-se inclusive como um movimento oposto à ênfase essencialista sobre a ideia de ‘intenção autoral’, frequente em muitas obras didáticas.

COTEJO E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para concluir esta reflexão, gostaria de discutir comparativamente os resultados que obtive na realização desta pesquisa, enfatizando a percepção de que os corpora analisados apontam, na esfera acadêmica, um crescente tensionamento dos paradigmas de leitura vinculados às tradições canônicas dos campos linguístico-literários em que os textos literários estrangeiros são produzidos. Tal tendência ao tensionamento da tradição crítico-epistemológica, no âmbito dos estudos literários e culturais, parece consequentemente atravessar os modos de leitura e de mediação pedagógica das literaturas em línguas adicionais na esfera pedagógica no contexto da educação básica no Brasil, mobilizando certos deslocamentos.

O impacto das perspectivas comparadas, interculturais e decoloniais nas teses e dissertações da área de Literaturas Estrangeiras Modernas - nas subáreas de literaturas de línguas espanhol, francesa e inglesa -, realizadas em programas de pós-graduação do estado do Rio de Janeiro nos últimos anos, vem conduzindo a reflexões analíticas cada vez mais atentas aos contatos e conflitos linguístico-culturais enquanto condições de produção e leitura do discurso literário. Apesar disso, percebe-se também no escopo dos trabalhos acadêmicos examinados a permanência ainda de perspectivas canônicas de estudo e a reprodução de dispositivos analíticos vinculados às tradições crítico-historiográficas estrangeiras, como se o movimento de inscrição acadêmica em outro campo linguístico-literário implicasse a adesão a certos protocolos de leitura, fundados, em geral, sob a égide da ideologia do nacionalismo, do monolinguismo e da matriz epistemológica eurocêntrica.

Tal dialética de movimentos de permanência e mudança de perspectivas na esfera acadêmica vem também criando inflexões no âmbito do discurso didático-pedagógico, ainda que seja perceptível, nos livros didáticos de línguas adicionais aprovados pelo PNLD para o ensino básico, uma tendência majoritária à conservação de discursividades ligadas à tradição curricular, que projeta a literatura e a língua literária como instâncias de representação da identidade nacional. Desse modo, em geral as coleções didáticas analisadas não selecionam textos que joguem de maneira mais enfática com a relação entre línguas e entre culturas.

No entanto, já se percebe em algumas delas uma correlação tensiva entre práticas de mediação da leitura literária em línguas adicionais. Ora tais práticas apresentam-se mais voltadas a uma ‘política de fechamento’ dos sentidos (MENDONÇA, 2012MENDONÇA, M. C. (2012). Língua e ensino: políticas de fechamento. In: Mussalim, F.; Bentes, A. C. (Orgs.). Introdução à Linguística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, p. 273-303.), pautada frequentemente na leitura como pretexto para o trabalho com determinados temas transversais ou para identificação de elementos gramaticais e/ou lexicais que ratifiquem representações normativas homogeneizantes relacionadas às políticas de estandardização linguística do espanhol e do inglês (idiomas presentes no edital do PNLD aqui analisado). Ora emergem nesses instrumentos didáticos gestos de mediação mais abertos à ‘polissemia’ propiciada pela atividade leitora (ORLANDI, 2001ORLANDI, E. (2001). Discurso e leitura. São Paulo: Contexto.), mobilizando nos aprendizes brasileiros a intersecção de formações discursivas em alguns momentos próximas, em outros, afastadas dos contextos de produção em que eles se inserem, abrindo assim espaço a possíveis processos de ressubjetivação desencadeados pela heterogeneidade discursiva da leitura literária estrangeira.

Ao cotejar esses resultados, chego à constatação de que vem se tornando cada vez mais relevante, na configuração contemporânea do gênero livro didático para o componente curricular Língua Estrangeira Moderna, a incidência de estratégias de ‘descoleção’ de repertórios canônicos (GARCÍA CANCLINI, 2003GARCÍA CANCLINI, N. (2003). Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad. Heloísa P. Cintrão e Ana Regina Lessa. São Paulo: Edusp.). Tal prática na esfera pedagógica indica, a meu ver, uma inflexão discursiva resultante de viradas teóricas e de reivindicações políticas e glotopolíticas perceptíveis atualmente na esfera acadêmica, relacionadas às discussões em torno da representatividade e do ‘lugar de fala’ (RIBEIRO, 2017RIBEIRO, D. (2017). O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento/Justificando.) no âmbito da crítica cultural.

Nos movimentos de leitura do literário produzidos pelos sujeitos analisados - em geral, professores universitários ou da educação básica que enunciam através desses gêneros como autores de livros didáticos, teses ou dissertações - percebemos, por um lado, uma tentativa de legitimação das interpretações construídas por meio da adesão dialógica a referências de autoridade dos campos crítico-historiográficos vinculados às literaturas hispânicas, francófonas e anglófonas. Por outro lado, observamos, em muitos momentos, um impulso de tensionamento dos gestos de leitura por meio do diálogo com os estudos literários e culturais - sobretudo, os que se produzem a partir do Sul global - e através de processos de desterritorialização e estratégias de desconstrução das políticas de fechamento incidentes nas práticas de mediação do literário.

Tais gestos e deslizamentos, muitas vezes mobilizados pelo contraponto com a alteridade linguístico-discursiva, confirmam a importância de que sejam cada vez mais desenvolvidas e aprofundadas as reflexões sobre o papel do ensino de literaturas no ensino de línguas adicionais, seja no âmbito dos estudos acadêmicos, seja no das políticas de ensino para a educação básica.

  • 1
    Utilizo aqui o nome da área tal como consta na tabela de áreas do conhecimento do CNPq.
  • 2
    A opção por esse foco se deve ao fato de que essas literaturas são as tradicionalmente mais estudadas no âmbito da área de Literaturas Estrangeiras Modernas.
  • 3
    Cabe ressaltar que estas são as únicas línguas adicionais presentes na componente curricular Línguas Estrangeiras Modernas, do Programa Nacional do Livro Didático, desde sua criação até o edital do PNLD 2018.
  • 4
    Este recorte temporal foi estabelecido no momento da elaboração do projeto de pesquisa, submetido às agências de fomento, e o recorte espacial se deve ao fato de que o estado do Rio de Janeiro é o meu locus de formação e atuação.
  • 5
    A escolha deste edital do PNLD se deve ao fato de ter sido o último, até o momento, que contempla não só a área de Inglês, mas também a área de Espanhol, antes da revogação da Lei 11.161/2005 (que regulamentava a obrigatoriedade da oferta de língua espanhola), no âmbito da Reforma do Ensino Médio.
  • 6
    Além dos sites oficiais dos programas de pós-graduação enfocados, recorreu-se também, em diversos momentos, à consulta de dados na Plataforma Sucupira e no Catálogo de Teses & Dissertações da CAPES.
  • 7
    Replico aqui, neste caso, a nomenclatura do componente curricular utilizada nos editais do Programa Nacional do Livro Didático, até a edição do PNLD 2018.
  • 8
    Optei pelo uso de imagens escaneadas, em forma de figuras, para citar alguns fragmentos das obras analisadas nesta seção, com a finalidade de conservar aspectos gráfico-visuais característicos do gênero livro didático.

DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA

Declaro, para devidos fins, no que diz respeito ao artigo “Literatura e ensino de línguas adicionais: discursos e práticas em tensão”, de minha autoria, submetido à revista Trabalhos em Linguística Aplicada, que os dados públicos utilizados na pesquisa estão disponíveis nos endereços eletrônicos citados, permitindo amplo e irrestrito acesso.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2023
  • Aceito
    30 Out 2023
  • Publicado
    05 Jan 2024
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