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A GEOPOÉTICA DA LAMA: DOS ALAGADOS DO MANGUE A UMA ESTÉTICA DE RESISTÊNCIA1 1 Este texto tem origem em trabalho apresentado, em agosto de 2023, durante o III Colóquio Internacional Exodus e GEDLit – O Literário e o Não Literário: expulsões, cooptações e zonas nebulosas, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), na Unicamp. O artigo gerado marca o desenvolvimento do tema durante o período de 60 dias de minha licença de capacitação (entre outubro e dezembro de 2023), na mesma instituição. A pesquisa continua a ser aprofundada e deverá, em breve, ser publicada em formato de livro.

THE GEOPOETICS OF MUD: FROM MANGROVE SWAMPS TO AN AESTHETIC OF RESISTANCE

RESUMO

A partir da geopoética, esse artigo busca introduzir o conceito mais específico da geopoética da lama como forma relevante de abordagem analítica estética para a percepção do estresse ambiental e social do mundo contemporâneo. Para tanto, buscamos, em diversas manifestações artísticas brasileiras, como a poesia, a música, o cinema e as artes visuais, exemplos em que a materialidade e a simbologia da lama são usadas para revelar uma miséria que reflete, de certa forma, o descompasso entre o ser humano e o meio ambiente. Tal descompasso está na reflexão de pensadores de distintas áreas, como o médico e geógrafo Josué de Castro, o poeta e professor Michel Collot, o filósofo Gaston Bachelard, o sinólogo Augustin Berque e os pensadores indígenas Davi Kopenawa e Ailton Krenak. Essa reflexão sobre os espaços atuais acaba revelando as cargas racista e colonial que ainda imperam em suas organizações e ocupações, como apontam Silvio Almeida e Enrique Dussel. No entanto, embora seja indício dessa violência, observamos que a lama possui, devido ao poder de expressão artística de sua elasticidade formal e simbólica, potência política não apenas para denunciar mazelas socioambientais como também para propor resistências e possibilidades, que passam também pela consciência por meio da sensibilização e pela reconciliação do ser humano com seu meio.

Palavras-chave:
Geopoética; Lama; Política; Racismo; Antropoceno

ABSTRACT

Based on geopoetics, this article seeks to introduce the more specific concept of geopoetics of mud as a relevant form of an aesthetic analytical approach to the perception of environmental and social stress in the contemporary world. To this end, we sought, in various Brazilian artistic expressions, such as poetry, music, cinema, and visual arts, examples in which the materiality and symbolism of mud are used to reveal poverty and misery that reflect, in a certain way, the mismatch between human beings and the environment. This disconnection is reflected in the meditations of academicians from different areas, such as the doctor and geographer Josué de Castro, the poet and professor Michel Collot, the philosopher Gaston Bachelard, the sinologist Augustin Berque as well as the indigenous thinkers Davi Kopenawa and Ailton Krenak. This reflection on current spaces ends up revealing the racist and colonial burden that still prevails in their organizations and occupations, as Silvio Almeida and Enrique Dussel point out. However, although it is an indication of this violence, we observe that mud has, through the power of artistic expression on its material and symbolic elasticity, political power not only to denounce socio-environmental problems but also to propose resistance and possibilities, which also involve awareness through sensibility and reconciliation of human beings with their environment.

Keywords:
Geopoetics; Mud; Politics; Racism; Anthropocene

Imagens 1 e 2
Fotografia 3x4 decomposta na enchente de 2010 em Barreiros (PE), com intervenç es de Alcione Ferreira e Rafael Martins em 2018FERREIRA, Alcione; MARTINS, Rafael. (2018). Filho 01. Da série inédita História da Permanência. papel fotográfico fine arts, Coleção dos autores..

Para contracolonizar, Antônio Bispo dos Santos defende enfraquecer as palavras potentes do inimigo. Desenvolvimento, por exemplo, deve ser superada por nos desconectar do mundo, sendo uma variante da cosmofobia, o temor da relação com o mundo e com o outro que dita as mazelas ambientais e sociais de nosso tempo. Santos (2023, p. 39)SANTOS, Antônio Bispo dos. (2023). A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora. diz que, no lugar de desenvolvimento, “a palavra boa é envolvimento”, pois, além de reassumir uma relação orgânica com o universo, reativa os saberes orgânicos desse vínculo. Vínculo, portanto, não apenas metafísico, mas direto ou carnal: Meu corpo é feito da mesma carne do mundo, já dizia Merleau-Ponty (2001 [1964], p. 297)MERLEAU-PONTY. Maurice. (1964). Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 2001. ao também reconciliar mundo e sujeito de forma impreterível. Rompia, assim, por meio da fusão do ser físico com a paisagem, não apenas com o dualismo reinante no pensamento moderno ocidental. Tal fissura entre a experiência táctil da vida e sua concepção racional era também costurada por tal referência carnal e evidentemente perceptiva, ao penetrar em medular caminho entre a carne do corpo e a carne do mundo, tornadas uma enfim, na vivência dos dias, no desejo de um abraço proibido, na vontade faminta de saciar a fome de uma expressão ao mesmo tempo imanente e subjetiva do mundo.

Diante dessa absorção recíproca, assistimos aos efeitos da poluição mundial como triste metáfora da relação humana com o mundo, na qual o sujeito-eu abstrato prevalece sobre o objeto-mundo coisificado, subjugado e usado. Mais do que metáfora, essa confrontação eu-mundo acaba sendo um reflexo da atitude humana objetificante em relação ao mundo/natureza mas também consigo mesmo, como coletividade frustrada, numa contínua segregação da consciência do eu com o universo e com o outro. Tal movimento de aproximação e repulsa, acolhimento e violência entre ser humano e mundo reflete um paradoxo fundamental para o entendimento dos diversos parâmetros individuais e coletivos da vivência humana atual, para a qual meio ambiente, tensões sociais e expressão humana parecem intrinsecamente ligados. Essa percepção, para a qual sujeito e sociedade estão consubstanciados ao meio que ocupam, acaba se mostrando inerente a vivências e representações com as quais atravessamos, sentimos e construímos o mundo ao redor ao longo de nossas existências.

Nesse preâmbulo, a absorção de elementos ambientais e sociais por meio dessa percepção carnal do mundo não apenas os torna referentes à paisagem local, com todas as suas forças e malogros, mas também os impõe como parte integrante da cultura local, que interpreta e representa suas formas e texturas para compor um olhar sobre seu espaço. Adentrando os poros de nossas peles e terrenos como água lavando a tez do mundo, esse olhar sedimenta elementos que a arte transforma e potencializa como representação. Essa água, originalmente diáfana, translúcida de inocência e pureza (uma pureza inexistente, legitimada apenas pela força da tradição), torna-se lama espessa que, sobre o corpo, faz aflorar uma segunda pele, uma nova matéria, novo ser, novo olhar.

Essa lama, que contamina qualquer tentativa de percepção simplista e transparente do real, não é simplesmente metafórica. Está mais para um enxerto, originalmente, uma fusão orgânica entre plantas, que nas palavras de Bachelard possibilita a reconciliação da imaginação formal e da imaginação material, ultrapassando a definição etimológica da imaginação como faculdade de dar formas à realidade para construir imagens que ultrapassem a realidade: “É o enxerto que pode realmente dar à imagem material a exuberância das formas. É o enxerto que consegue transmitir ao imaginário formal a riqueza e densidade dos materiais” (Bachelard, 1942, p. 18BACHELARD, Gaston. (1942). L’eau et les rêves. Paris: Librairie José Corti.). Portanto, para se entender a imagem da terra molhada, imunda e barrosa, matéria ordinária para grande parte da população global, é importante contemplar a imaginação formal e material que ela suscita. É evidente, sobretudo, que a lama é parte integrante fundamental no contexto local de alguns cantos alagadiços, na constituição do imaginário e da cultura de seus atores. Parece não apenas sedimentar uma metáfora da realidade dura de quem convive com ela, mas também oferecer a possibilidade de contemplação crítica, capaz de desenvolver potências imagéticas, biológicas e sociológicas inerentes à construção do espaço da cidade e de suas relações e conflitos.

A lama emerge, ao mesmo tempo, em toda sua complexidade, como sujeira e biodiversidade, riqueza semântica e local de miséria, fonte de vida e causa de morte.Atravessando esse lamaçal de significados, resvalaremos na formação de diversas manifestações artísticas, delineando identidades, mas também entendimentos históricos e sociais dessa construção. Tais manifestações culturais perpassam, no Brasil, princípios de uma sociedade ainda estruturalmente estancada no barro espesso de uma herança colonial e escravocrata. No entanto, como adverte Silvio Almeida, hoje já não se pensa o racismo como um simples resquício de um passado não superado, mas suas formas contemporâneas são observadas também como produtos do capitalismo avançado e da racionalidade moderna. Assim, o racismo não é um resto de escravidão, por não haver oposição entre modernidade/capitalismo e escravidão: “A escravidão e o racismo são elementos constitutivos tanto da modernidade, quanto do capitalismo, de tal modo que não há como desassociar um do outro” (Almeida, 2021, p. 183ALMEIDA, Silvio Luiz de. (2021). Racismo estrutural. São Paulo: Ed. Jandaíra.). Almeida ainda comenta como o racismo naturaliza, por um lado, salários mais baixos para trabalhadores pertencentes a grupos minoritários, como também serve de pressão contra reivindicação salarial de trabalhadores brancos, por criar uma reserva de mão de obra formada de negros e imigrantes.

Embora enchentes e outras lamas se mostrem atuais para várias outras regiões, sobretudo nas periferias urbanas, numa triste universalidade da lama, seu impacto se tornou mais visível quando o próprio traçado urbano foi sedimentado pelas margens de rios, canais e mangues, marcadas por alagadiços, aterros, aberturas de canais e tantas enchentes que permeiam memória, imaginário e cotidiano do povo. Tal característica física não apenas ajudou a moldar um modo de vida e uma cultura, como também estimulou a sensibilidade e a inquietação de seus artistas, como, em Recife, na poesia de João Cabral, Manoel Bandeira e Miró da Muribeca, ou nas artes visuais e no cinema pernambucano, bastante marcado pela questão urbana; além da leveza e da força da dança, como nos passos sutis do mestre Meia Noite em sua andada de caranguejo, culminando para o fenômeno pop musical do Manguebeat. A lama se torna a carne de si e do mundo para artistas tão distintos, sem, no entanto, cair no pitoresco ou na romantização da natureza, mas inserindo os aspectos geográficos no olhar crítico sobre as mazelas e contradições de uma sociedade (Recife, por exemplo, é considerada há tempos uma das capitais mais desiguais do Brasil2 2 De fato, Recife é atualmente a terceira capital mais desigual do Brasil, segundo o Boletim Desigualdades nas Metrópoles (2012-2021), análise desenvolvida pela PUC-RS, em parceria com a Rede de Observatórios da Dívida Social na América Latina (RedODSAL). A capital pernambucana só tem um índice Gini melhor do que Natal e João Pessoa, segundo dados coletados com base na PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios). ).

O CORPO NA LAMA

A cultura oferece ferramentas para olhar, sentir e viver o mundo físico e social em seus múltiplos e complexos desdobramentos. Contudo, tais desdobramentos se encontram muitas vezes limitados pela dualidade moderna ocidental, quando separa corpo e pensamento. Tal dualismo pode ser superado, segundo Byung-Chul Han, pela posição de mediação da estética entre o teórico e o prático, sem a qual o sujeito se encontra preso na autonomia teórica das coisas e nos impulsos e paixões da prática. Para Han, é apenas na disposição estética com o objeto que o sujeito está livre e vice-versa: “A relação estética também liberta o objeto para a sua particularidade respectiva. A liberdade e a falta de coercitividade caracterizam o objeto de arte” (Han, 2019, p. 80HAN, Byung-Chul. (2019). A Salvação do Belo. Tradução de Gabriel Salvi Philipson. Petrópolis: Vozes.). A lama, como veremos, empreende essa mediação estética por sua elasticidade formal e material.

Tal separação forçada é, assim, atravessada e corrompida pela experiência estética embebida tanto da carga cultural local quanto da carne unificante do mundo, abraçando vivências, afetos e corpos, urbanidade, práticas e natureza. Origina-se, assim, uma matéria prima rica e reveladora. Michel Collot chama a relação vital entre corpo e mundo de sentimento da natureza, que é tanto fisiológica quanto afetiva e simbólica: “O corpo, sede de nossos sentimentos e de nossos pensamentos, é também a natureza em nós, e é através dele que nos comunicamos com ela” (Collot, 2013, p. 48COLLOT, Michel. (2013). Poética e filosofia da paisagem. Rio de Janeiro: Oficina Raquel.). Essa é, segundo Merleau-Ponty, a interpretação não-antropomórfica da carne comungada com a natureza, uma natureza indissociável ao corpo: “É preciso que a Natureza em nós tenha alguma relação com a Natureza fora de nós; é preciso ainda que a Natureza fora de nós nos seja desvendada pela Natureza que somos” (Merleau-Ponty, 1994, p. 267MERLEAU-PONTY, Maurice. (1994). La Nature. Paris: Seuil.).

Collot lembra que o corpo é vetor dessa troca constante, rompendo a hierarquia de pensamentos e sensibilidades outrora conformados à separação do eu com o mundo: “corpo é, ao mesmo tempo, vidente e visível, tocante e tocado, sujeito e objeto; abre-nos a um mundo do qual ele mesmo faz parte” (Merleau-Ponty, 1994, p. 44MERLEAU-PONTY, Maurice. (1994). La Nature. Paris: Seuil.). No entanto, diante do profundo fosso social brasileiro, o corpo não se torna apenas um vetor para a experiência da abertura para o mundo, mas é também capaz de absorver e representar uma consciência de impossibilidades, uma lama de bloqueios a certos espaços, para certos corpos descartados pela sociedade como objetos sem uso. São esses corpos sobretudo negros, periféricos e pobres, como descreve Carolina Maria de Jesus (2020 [1992], p. 40-41)JESUS, Carolina Maria de. (1992). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2020., em trecho que poderia resumir seu livro mais célebre, Quarto de Despejo:

As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.

Aqui não há reconciliação pacífica do corpo com mundo mediada pela estética, porém uma aproximação incômoda, ingrata, num exercício de autoconsciência de si no mundo. O cheiro nefasto de excrementos incorporado ao barro da então favela do Canindé, zona Norte de São Paulo, onde residia a mineira Carolina Maria de Jesus, também assentava com a lama encontrada por outro migrante, o Severino, que no célebre poema de João Cabral de Melo Neto encontra um morador de Mocambo entre o cais e a água do rio e o indaga: “Seu José, mestre carpina,/que lhe pergunte permita:/há muito no lamaçal/apodrece a sua vida?”. A lama fétida que penetra no homem para alimentar sua fome, onde nele some homem e aparece caranguejo, como nos primeiros escritos sobre o ciclo do caranguejo de Josué de Castro (1957CASTRO, Josué de. (1957). Documentário do Nordeste. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense., 2001 [1967])CASTRO, Josué de. (1967). Homens e Caranguejos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001., desenvolvido posteriormente em seu único romance, é a mesma lama que se apossa da cidade, entregando-a à inesquivável e constrangedora consciência de sua materialidade e simbologia, lembrada, por meio do sensorial e da moral, por Chico Science: “Ninguém foge ao cheiro sujo/da lama da Manguetown” (Science, Dengue e Maia, 1996SCIENCE, Chico; DENGUE, MAIA, Lúcio. (1996). Manguetown. Álbum Afrociberdelia. Recife: Sony BMG. CD e vinil (3’14 min).).

Tal coisificação da imagem do homem na lama, um processo também de bestificação observado por João Cabral e Josué de Castro, transparece como matéria bruta da narrativa de Ipojuca Pontes no documentário Os homens do caranguejo ou a propósito de Livramento (1968)OS HOMENS DO CARANGUEJO OU A PROPÓSITO DE LIVRAMENTO. (1968). Direção de Ipojuca Pontes. Produção: Saci Cinematográfica. Brasil., sobretudo, nas diagonais afiadas pelos enquadramentos do olhar humanista de Rucker Vieira, que fez a direção de fotografia. O filme se inicia, como em Morte e Vida Severina, relatando o ciclo de migração de famílias fugidas da seca, passando pela precariedade do trabalho na cana e alcançando a última esperança de sobrevivência na pesca de caranguejos do mangue. As imagens, antes fotografias estáticas, transformam-se em movimento cinematográfico, como numa dinâmica de novas expectativas. Mas essas logo se veem frustradas na inércia implacável de um braço inteiro afundado na lama, enquanto a narração comenta, ao som de Villa Lobos, a triste simbiose já observada por Cabral e Castro:

Nessa tarefa rudimentar, em que mãos se agitam subterraneamente em busca do alimento e a pesca resiste tenazmente, o homem confunde-se com o próprio caranguejo num mimetismo espantoso e bárbaro. É a luta pela sobrevivência contra a fome e a inanição. Mas é também uma luta triste que envolve a dor, a angústia e a humilhação.

Com o trabalho de distanciamento e aproximação a partir de zoom e de leves movimentos de câmera, os cineastas parecem querer usar a escala dos elementos para impor uma reflexão além do indivíduo como parte da coletividade e do meio, evidenciando uma situação de supressão do exercício de sujeito dessas pessoas e de sua consequente coisificação. Embora sendo um filme que se baseia unicamente num contexto econômico-materialista, esse olhar sutil sobre os indivíduos está expresso nas imagens, evidenciando como a fotografia de um filme pode acrescentar camadas mais sutis em uma obra, indo muito além do que ilustrar a ideia central do roteiro, mas adentrando num cenário mais denso da lama, ao mesmo tempo fonte de sobrevivência e estigma de miséria.

IMAGIN RIO E PO TICA DO MUNDO

No entanto, é importante ponderar que a visão de Collot sobre a natureza, tão intricada ao romantismo e à busca de um ponto de vista (ou horizonte) e de um pensamento-paisagem para adaptar esse fenômeno de ambivalência entre corpo e mundo com o pensamento e a sensibilidade europeus, acaba não dando conta do complexo entrelaçamento entre conotações históricas, sociais e estéticas erigidas da lama em sua construção natural, cultural, social e política, dentro de um intricado contexto como o das zonas alagadiças periféricas brasileiras. Esse novo tipo de racionalidade, buscado por ele, parece incapaz de adentrar nessa carne-lama característica da formação física e simbólica desses espaços, numa relação em que o racional não mais prepondera. Sobretudo, não atinge a violência que ela representa, refletindo distúrbios ecológicos com a mesma força que atinge a carne do mundo, desaguando com furor em uma violência humana estruturalmente constituída, uma violência capaz de configurar, em termos culturais, mas também físicos, um genocídio cotidiano e silencioso.

Diante disso, a própria compreensão de identidade como construção de pensamento é um fenômeno que deve ser continuadamente revisitado, para uma apreciação madura da relação entre terra, corpo e cultura, fugindo de qualquer perspectiva de pureza. Foi o que fez Édouard Glissant, ao romper com a identidade-raiz única e hegemônica para entendermos a especificidade de nossos espaços e condições. O que Glissant propõe, por meio do que ele chama de identidade-relação de uma raiz-rizoma, seria, no lugar de tentar seguir um caminho originário único, ir ao encontro de demais raízes que se emaranham num intricado e rico processo de oposições e complementaridades. Assim como as raízes dos mangues entrecruzando-se infinitamente entre profundidade e superfície do lamaçal, a ponto de se tornarem praticamente apenas um rico organismo de múltiplas origens e caminhos, a consciência histórica dos povos contemporâneos deve se acautelar contra a identidade-uno dos lugares-comuns da globalização, para se entender dentro de um processo mais heterogêneo, “determinado por um certo número de relação no/do mundo” (Glissant, 1995, p. 37GLISSANT, Édouard. (1995). Introduction à une Poétique du Divers. Montréal: Presse de l’Université de Montréal.).

Em sua releitura do sistema rizomático deleuziano, Glissant aponta, a partir da interrelação entre ilhas tão característica nas Antilhas francesas, possibilidades de resistências aos povos atacados pela hegemonia globalizada, numa violência cultural, econômica e física. Sobre a relação glissantiana de identidade-relação, Enilce Albergaria Rocha lembra que o lugar é incontornavelmente marcado por suas singularidades e opacidades, das quais apenas ficamos conscientes por meio da poética e do imaginário com que o construímos e o relacionamos com o tempo: “O imaginário nos leva ao pensamento do universo, mas a estética através da qual concretizamos nosso imaginário, nos traz sempre do universo às poéticas definíveis de nosso mundo, no qual nos inspiramos para abordar o real de nosso tempo e de nosso Lugar” (Rocha, 2002, p. 39ROCHA, Enilce Albergaria. (2002). A noção de Relação em Édouard Glissant. Ipotesi: revista de Estudos Literários, Juiz de Fora, v. 6, n. 2, p. 31-39.).

Tais poéticas e imaginários que compõem nossa identidade-relação com o mundo, por meio da percepção estética do nosso espaço e tempo, materializam-se na lama que escorre do corpo do dançarino Orun Santana, no documentário Céu de Lua, Chão de Estrelas (2022)CÉU DE LUA, CHÃO DE ESTRELAS. (2022). Direção: Camilo Soares e Orun Santana. Produção: Senda Filmes. Brasil.. Na cena em questão, a segunda do documentário, escutamos o badalo de campana de boi enquanto Orun, em meio à mata densa, banha seu corpo nu com água barrosa. Besunta-se aos poucos, espalhando a lama turva com gestos firmes, até erguer em seguida o balde de alumínio sobre a cabeça, vertendo-a em todo o corpo, para depois empreender uma dança virulenta, por vezes animalesca, de homem-cavalo, personagem selvagem e indomável que nasce como potência de ser grito forte de existência. Ao longo da performance, ele conta (em voice over) sobre a importância de olhar para o passado familiar, a história de seu avô Biu Preto, vaqueiro turrão que migra para a capital Recife com família, e de seu pai Meia Noite, que rompe com a tradição de continuidade do filho mais velho e resolve ser artista (dançarino) em vez de cuidar de boi. É nessa história, como Orun (2023) conta em entrevista exclusiva para a presente pesquisa, que a lama se liga ao fluxo de tempo e espaço, conectando sua comunidade Chão de Estrelas a sua ancestralidade:

No filme [a lama] tem a ver com o nascimento nesse território aquoso, mas com a terra [da comunidade] de Chão de Estrelas, ao mesmo tempo que estou ali nascendo e me entendo naquele território. Meu corpo é constituído dessa lama primordial que tem a ver com esse território. Esse corpo que se retorce e contorce e cria uma relação com esse espaço, com seus espinhos e suas questões, é moldado e constituído dentro dessa relação. Acho também interessante, pois o tom do barro dialoga com o tom da pele negra.

Nessa cena, a dança de Orun conecta memória, identidade e território de forma impreterível. A lama deixa de ser matéria estancada e morte, para se tornar movimento e nascimento. A lama, por sinal, em sua matéria mole, pastosa, sem forma rígida, apresenta para Bachelard a riqueza incomum de poder transitar entre imaginação formal e imaginação material, sendo capaz de constante refiguração, de eterno nascimento. Tal lama viva, aberta a formas proibidas e censuradas, torna-se capaz de reencontrar territórios perdidos, identidades apagadas, resgatando relações e potências. O pertencimento é igualmente uma questão de forma e de imaginário, pois espaço e identidade estão ligados pela matéria e pela subjetividade a um sonho comum: “O objeto colante, mole, preguiçoso, [...] corresponde, creiamos, à mais forte densidade ontológica da vida onírica. Esses sonhos [...] são alternadamente uma luta ou uma derrota para criar, para formar, para deformar, para amassar” (Bachelard, 1942, p. 123BACHELARD, Gaston. (1942). L’eau et les rêves. Paris: Librairie José Corti.). Lama é luta e resgate para Orun; é família e lar, matéria primordial.

Diante dessa sedimentação originária de formas, espaços e identidades, o risco maior é de perder o olhar crítico diante de situações sociais deploráveis ou cair na facilidade do pitoresco, numa espécie de miserabilismo paternalista. Contudo, esse olhar cheio de preconceito determinista acaba tendo, esse sim, raízes históricas claras, embora difuso numa cultura ligada à subordinação e aos privilégios coloniais ainda presentes, mesmo depois da independência política de ex-colônias. Aníbal Quijano nos chama a atenção de que tais fenômenos são frutos de um processo que ele chama de colonialidade do poder, ou seja, resquícios do colonialismo ainda impregnados em culturas e identidades nacionais baseadas num eurocentrismo que busca legitimar direta ou indiretamente fossos sociais e dominação econômica. A partir de preceitos de cor e raça, tais construções sociais e culturais apresentam uma elite pretensamente mais ligada à Europa e aos EUA do que é o resto da população do país, legitimando essa segregação social e racial como reflexo de um momento histórico. O problema dessa percepção histórica unilinear, unidirecional, sequencial ou total não é, para Quijano, apenas a subserviência às antigas metrópoles, como se fossem povos que devessem seguir as etapas de um sistema eurocentrado para poderem evoluir, justificando assim a servidão, a escravidão (colonial e moderna), a sub-industrialização nos países periféricos da globalização, como sendo uma espécie de pré-capital integrante de uma sequência histórica. Para Quijano, essa visão evolucionista reflete, sobretudo, a cultura das elites periféricas que usam dessa subserviência cultural de pretenso estado de pré-europeus para legitimar e manter seus privilégios internos diante das mazelas sociais de seus países. Ele enumera, assim, os elementos preponderantes desse eurocentrismo:

a) uma articulação peculiar entre um dualismo (pré-capital-capital, não europeu-europeu, primitivo-civilizado, tradicional-moderno, etc.) e um evolucionismo linear, unidirecional, de algum estado de natureza à sociedade moderna européia; b) a naturalização das diferenças culturais entre grupos humanos por meio de sua codificação com a idéia de raça; e c) a distorcida relocalização temporal de todas essas diferenças, de modo que tudo aquilo que é não-europeu é percebido como passado (Quijano, 2005, p. 127QUIJANO, A. (2005). Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: Lander, E. (org.), A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO Livros, p. 117-142.).

Diante da necessidade de descolonização, a lama surge ao mesmo tempo como retrato inegável de uma crise, mas também como dialética possível para a superar, transformando olhares, moldando possibilidades de leituras que não veem as mazelas sociais como fases naturais de uma etapa histórica inevitável, mas como consequências diretas dessa situação de subserviência e desigualdade. As imagens da lama suplantam, assim, a (não tanto) ingênua expressão da realidade única, abraçando múltiplas camadas de uma situação e colaborando na expressão de identidades mais complexas e olhares mais afiados. Parece, por exemplo, que as imagens salvam o filme Os Homens do Caranguejo (1968)OS HOMENS DO CARANGUEJO OU A PROPÓSITO DE LIVRAMENTO. (1968). Direção de Ipojuca Pontes. Produção: Saci Cinematográfica. Brasil. de cair na arapuca do paternalismo e do pitoresco diante da miséria dos ribeirinhos, assim como o poema O Cão sem Plumas afasta de vez qualquer exagero épico ainda resistente em Morte e Vida Severina diante do flagelo nos mangues do litoral nordestino. A lama, no cinema e nos versos, não apenas denuncia, como também possibilita a libertação das perspectivas histórica e social moldadas pela colonialidade que age para privar a sociedade de mobilidade e mudança, impedindo-nos de sair do lugar, como nos versos de Waly Salomão (2023, p. 65)SALOMÃO, Waly. (2023). Jet lag: poemas para viagem. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras. ao final de Pesadelo de Classe: “se de supetão a lama endurecer/ficar dura que nem bronze/e eu não tirar mais o pé do chão”.

Para se tirar o pé da lama e romper com qualquer imobilidade imposta, a geopoética ensina a olhar de uma perspectiva própria e não apenas por meio de um filtro que só mostra o que querem que sejamos: não-sujeitos ou, simplesmente, objetos de uma perspectiva histórica ou de mercado. Quijano observa ainda que a imposição desse modo parcial e distorcido de olhar para a realidade é corrente na América Latina. Aponta ainda a incoerência entre uma visão eurocêntrica de desenvolvimento histórico e a realidade segregadora que lhe é também inerente, posto que nega, assim, a própria possibilidade dessa dita evolução, quando “um evolucionismo unilinear e unidirecional se amalgama contraditoriamente com a visão dualista da história” (Quijano, 2005, p. 138QUIJANO, A. (2005). Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: Lander, E. (org.), A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO Livros, p. 117-142.).

Qualquer semelhança dessa contradição estrutural com a meritocracia não é mera coincidência, pois essa auxilia a criar um imaginário de competência que não apenas maquia o racismo diante das oportunidades educacionais e profissionais, como ainda ajuda a promover uma certa conformação ideológica à desigualdade racial (Almeida, 2021ALMEIDA, Silvio Luiz de. (2021). Racismo estrutural. São Paulo: Ed. Jandaíra.). Não há um sistema evolutivo quando a meta depende da submissão do outro, do deslocado, do não-europeu. A lama não é uma etapa da evolução, mas consequência histórica da exploração. Tirar o pé da lama só é possível com a mudança desse paradigma. Quijano designa ainda que essa dualidade ou hierarquia conjunta a tal linearidade histórica não reflete apenas uma desigualdade material, mas impõe uma forma de pensar e de sentir-se no mundo. Ele adverte que o eurocentrismo é um padrão de poder não apenas econômico, mas, na perspectiva de conhecimento elaborada e sistematizada a partir do século XVII, torna-se também a moldura de uma racionalidade hegemônica e segregadora. Tal formatação de pensamento não apenas separa a razão e o corpo, como também exclui povos e culturas com seu ponto de vista homogêneo, aparta sujeitos e objetos da história, além de afastar intransigentemente o ser humano da natureza. Tal forma de pensamento, para Quijano, hierarquiza a humanidade, assim como normaliza submissão e subdesenvolvimento:

[...] é pertinente destacar sobretudo o dualismo radical entre “razão” e “corpo” e entre “sujeito” e “objeto” na produção do conhecimento; tal dualismo radical está associado à propensão reducionista e homogeneizante de seu modo de definir e identificar, sobretudo na percepção da experiência social, seja em sua versão a-histórica, que percebe isolados ou separados os fenômenos ou os objetos e não requer por consequência nenhuma idéia de totalidade, seja na que admite uma idéia de totalidade evolucionista, orgânica ou sistêmica, inclusive a que pressupõe um macrossujeito histórico (Quijano, 2002, p. 5QUIJANO, Aníbal. (2002). Colonialidade, poder, globalização e democracia. Novos Rumos, ano 17, n. 37, p. 4-28.).

Sem citar Quijano, Jessé Souza chega a uma conclusão análoga à colonialidade do poder. A partir do enfoque sociológico, Souza observa que o dualismo entre racional/corpóreo, europeu/selvagem, desenvolvido/ subdesenvolvido não atua apenas na ordem geopolítica e econômica, mas também criando uma cultura que naturaliza uma elite privilegiada e uma massa sujeita a uma evidente subcidadania, mesmo que essa realidade contradiga a lei vigente. Souza amarra essa observação a partir do conceito do self pontual de Charles Taylor para compreender a identidade moderna a partir do reconhecimento social e da autoestima, como também da falta desses, que naturaliza hierarquias e impõe projeções redutoras e desvalorizadas de si para populações mais pobres. Souza busca ainda Bourdieu quando observa o habitus como sistema de estruturas cognitivas e motivadoras, inculcadas desde a infância, que moldam possibilidades e liberdades, como também limites e proibições, como espécies de filtros avaliativos que selecionam e modificam experiências que compõem a realidade.

Para Souza, observar essa subcidadania a partir do self pontual e do habitus é quebrar com o naturalismo que a hierarquia de valores esconde nos comportamentos cotidianos, desconstruindo a ilusão social acrítica de situações de dominação e valores. Assim, ao abraçar o self tayloriano, busca implementar uma ressignificação de sentidos e escolhas valorativas cristalizadas, o que, para ele, “é tornar de novo visível o reprimido e o esquecido na vida social, é tornar de novo criação cultural contingente e precária o que já havia se tornado, mais uma vez, natureza e invisibilidade” (Souza, 2018, p. 125-126SOUZA, Jessé. (2018). Subcidadania brasileira: para entender o país além do jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: LeYa.). Desconfiado do efeito político do dualismo ocidental, segue Bourdieu na empreitada de ruptura com o intelectualismo e com o mentalismo, para ultrapassar o aspecto sociológico consciente da internação de valores na reprodução valorativa e normativa da sociedade, pondo, assim, ênfase “no condicionamento pré-reflexivo, automático, emotivo, espontâneo, em uma palavra, ‘inscrito no corpo’ de nossas ações, disposições e escolhas” (Souza, 2018, p. 106-107SOUZA, Jessé. (2018). Subcidadania brasileira: para entender o país além do jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: LeYa.). Reencontra, assim, o corpo não mais como objeto da mente, mas como sujeito de direta comunicação com o mundo social.

Esse naturalismo parece ser a lama dura que nem bronze que teme Waly Salomão, ao dizer não querer apenas tirar o pé da lama, mas voar, tirar o pé do chão, viajar, desfrutar da vida antes que essa lama endureça de supetão. Naturalizar a lama é aceitar subordinação, exploração, miséria e tristeza como parte do jogo; não a olhar é alienar-se da realidade. A geopoética da lama é capaz de transitar pelos meandros dessa delicada oposição, interagindo com o mundo por meio do imaginário e da poética para revelar sua mazela sem torná-la determinista, sem perder sua plasticidade para, enfim, poder vencê-la e, mais do que isso, transformá-la em consciência e potência de transformação, saltando, como diz a canção, ao pisar no chão para ganhar liberdade na amplidão. A lama aqui é forma amorfa, não cristalizada da realidade, que suja o corpo ao mesmo passo que se impõe como experiência de constante transformação de uma consciência de mundo a partir do corpo e de uma consciência do corpo a partir do mundo.

A GEOPO TICA ANTE A FUGA DAS IMAGENS

As relações sensíveis com o espaço foram, assim, adquirindo, após tentativa de equilíbrio entre particularidades e universalidades em um contexto globalizado, a consciência de uma abordagem mais ampla, intrinsecamente ligada às experiências sociais, biológicas, psicológicas, culturais e políticas no mundo. A expressão dessa abordagem espacial múltipla caracteriza a geopoética. Consciente da confusão entre os termos, Kenneth White discrimina geopolítica e geopoética. Para ele, a geopolítica é o estudo da relação entre os países sobre o panorama geral do mundo em termos de recursos, de mercados e de segurança. Já a geopoética se refere à relação intrínseca e complexa entre o ser humano e a Terra, ou, em suas palavras: “Se a geopolítica é mundialista, a geopoética quer-se mundificante” (White, 2022WHITE, Kenneth. (2014). Passagens de Panorama géopoétique, entrevista de Kenneth White com Régis Poulet. Éditions de la Revue des Ressources, collection “Carnets de la Grande ERRance”. Tradução de Márcia Marques-Rambourg. Disponível em: https://www.institut-geopoetique.org/pt/textos-fundadores/62-precisoes. Acesso em: 26 ago. 2022.
https://www.institut-geopoetique.org/pt/...
)3 3 Citação sem número de página, por razão de o texto estar publicado no corpo do site do Instituto Internacional de Geopoética, conforme consta nas Referências no final desse artigo. .

Tal imanência com o mundo conecta inexoravelmente a manifestação cultural e artística à vivência da sociedade em seu habitat como forma de consciência histórica e social. Contudo, a expressão dessa conjunção entre o espaço, as formas de vivência e o entendimento do mundo fora desenvolvida anteriormente pela expressão da paisagem, sobretudo na pintura e na poesia. A poética da paisagem surge, aliás, na China, bem antes do que no Ocidente. Foi por volta do século III, quando a pintura e a paisagem eram ali quase indissociáveis, a partir de princípios da caligrafia que expressa a energia dos sopros vitais pela dinâmica do golpe do pincel sobre a seda ou papel. É um processo que liga inexoravelmente corpo e mundo, mantendo um fluxo físico, energético e criativo indissociáveis à pretensão artística daqueles pintores.

Sem captar tal vibração da transformação incessante do mundo, a pintura não fazia sentido algum para os artistas chineses, mesmo que nela tivessem alcançado a semelhança formal com o tema que a inspirou. Isso se dá pela necessidade de ligação total entre a obra e a dinâmica do mundo que, na concepção chinesa, é atingida por meio da realidade do objeto “manifestada por seu brilho visível, que não se limita à aparência porque inclui também o sopro (qi)” (Escande, 2000, p. 44ESCANDE, Yolaine. (2000). Le cœur et la main: l’art de la Chine traditionnelle. Paris: Hermann.). O qi (diz-se tchi) é a vibração energética da constante mudança do universo que deve fluir em todas as atividades humanas, arte incluída, como forma de confluência com a energia transformadora do tempo e do espaço. Essa relação entre paisagem, expressão e vivência do real é traduzida como mediância por Augustin Berque (1990, p. 110)BERQUE, Augustin. (1990). Médiance, de milieux en paysages. Reclus: Montpellier., que ele define como “fluxo de relações que ligam indissoluvelmente os sujeitos aos objetos”, numa troca material e cultural entre o humano e o meio4 4 Berque nomeia tal permuta de trajeção. .

Na cosmologia de muitos povos originários no Brasil, esse fluxo ou mediância que conecta o eu com o mundo vai além de uma visão ecológica, ao definir a base de toda sociedade. Dentro desses princípios, o estresse natural e social que o mundo experiencia hoje aponta para uma crise de paradigma a ser atravessada tal qual um deserto diante de si. Para executar tal passagem, Ailton Krenak (2020b, p. 42-43)KRENAK, Ailton. (2020). A vida não é útil. 1ª ed. São Paulo: Companhia da Letras. pondera que devemos derrubar velhas narrativas hegemônicas que dão ao humano um lugar de preponderância no universo, com consequências quase sempre nefastas: “Destruir a floresta, o rio, destruir as paisagens, assim como ignorar a morte das pessoas, mostra que não há parâmetro de qualidade nenhum na humanidade, que isso não passa de uma construção histórica não confirmada pela realidade.”

Krenak observa que tal construção histórica da relação entre humanidade e mundo reflete igualmente nas mazelas sociais por meio de princípios morais, éticos, espirituais e filosóficos que as justificam. Ele adverte sobre a importância das palavras e imagens para formular e legitimar visões de mundo, pensamentos e ações. Para isso, lembra que, quando se fala de outro mundo possível, isso geralmente se refere apenas ao reordenamento dos espaços e de novos entendimentos sobre a relação com a natureza, como se a humanidade não fizesse parte dela: “Na verdade, estão invocando novas formas de os velhos manjados humanos coexistirem com aquela metáfora da natureza que eles mesmos criaram para consumo próprio” (Krenak, 2020a, p. 67KRENAK, Ailton. (2020). Ideias para adiar o fim do Mundo. 2ª ed. São Paulo: Companhia da Letras.).

Davi Kopenawa5 5 Em depoimento para o antropólogo Bruce Albert. , por sua vez, sublinha a importância das palavras próprias e da contemplação das imagens para estabelecer esse elo direto e ininterrupto entre ser humano e mundo. Para falar da floresta, ele lembra que teve que contemplar “a imagem da fertilidade de suas árvores e a da gordura de seus animais de caça”, além de escutar “a voz dos espíritos abelha que vivem em suas flores e a dos seres do vento que mandam para longe as fumaças de epidemia” (Kopenawa, Albert, 2015, p. 391KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. (2015). A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras.). Diante da separação entre humano e natureza representada pela chegada do homem branco, o xamã Kopenawa lembra que, nesse terrível descompasso, perdemos a essência de pertencimento com a natureza e o contato direto com nossos espaços. Para ele, afugentamos até mesmo as imagens dos seres que compõem a essência do mundo:

A caça morreu ou fugiu para bem longe, nas serras. Em seus igarapés já não se acham peixes, nem camarões, nem caranguejos, nem arraias, nem poraquês, nem jacarés. As imagens desses bichos, enfurecidas, fugiram para longe de lá, chamadas de volta pelos outros xapiri. Assim é. Desde que fiquei adulto, vi muitas vezes os rastros ruins dos brancos na floresta. Eles não se preocupam em nada que suas árvores sejam trocadas por capim e seus rios, por córregos lamacentos! Com certeza devem pensar que tanto faz, mais tarde poderão cobrir seu solo com o cimento de suas cidades! (Kopenawa, Albert, 2015, p. 469KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. (2015). A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras.).

O rompimento de um equilíbrio espacial nos faz, uma vez mais, recair na lama e nas mazelas que espelham uma sociedade decadente. A sequência de catástrofes ambientais nos lembra o descompasso onde perdemos o pertencimento à natureza: Brumadinho, Mariana, Belo Monte, Pantanal, vale do Javari... Tensionando a relação entre a materialidade de uma catástrofe e a abstração mediática que muitas vezes distancia e aliena mais do que aproxima, faz compreender e revolta, o artista visual Lourival Cuquinha captou o equivalente a um metro quadrado de lama tóxica despejada no rio Doce devido ao rompimento da barragem do Fundão, da mineradora Samarco, em 2015, no município de Mariana (MG), e o inseriu numa lâmina cilíndrica rotatória. Tal como um Torniquete6 6 A série Torniquete, do artista, conta ainda com um cilindro repleto de petróleo coletado nas praias do Nordeste, em 2019, e outro com cinzas das queimadas na Amazônia, em 2021. (título da obra, de 2016), o fluxo é retido nesse espaço limitado, mas seu restrito movimento acaba imprimindo e apagando a textura da lama-sangue sobre o vidro como para lembrar da mortal catástrofe com essa prova material irrefutável, além de indicar, ao rodar no mesmo eixo, a perpetuação dessa violência ao longo do tempo, sugerindo que esse não foi um acidente pontual, mas a consequência de um sistema brutal de exploração, para o qual o lucro justifica quaisquer riscos ambientais e humanos. A elasticidade formal da lama, com seus rastros e marcas contínuos e efêmeros, provoca a memória contra a tentativa de apagamento e normalização do sofrimento causado pelas perdas humanas, pelo impacto ambiental e pela demora de respostas definitivas e proporcionais que responsabilizem os envolvidos e inibam tais desastres. Tal perigo de esquecimento incentivado pelos detentores do capital e artífices da catástrofe é contestado a cada renovação formal dessa lama incessante do rio Doce, que não deixa esquecer da violência dos impactos ambientais e humanos decorrentes do rompimento da barreira. A lama do Torniquete torna-se matéria ativa contra um progresso predador e excludente.

Contudo, como bem lembra Kopenawa, é no cimento dos centros urbanos que se reproduz mais nitidamente esse afastamento entre ser humano e meio ambiente, ainda mais agravado pelo estresse social decorrente de uma sociedade fundamentada em uma lógica colonial, desvelando a reminiscência de uma cultura excludente e racista, movimentada por um desenvolvimentismo implacável e para o proveito de poucos. Tal continuidade do ponto de vista histórico, sociológico e econômico, também corresponde à ótica ambiental, como bem analisa o xamã e líder político yanomami, ao ver árvores trocadas por capim, rios virando lamaçal, riacho cobertos de lixos num certo fatalismo de asfalto, sujeira e concreto, num vale-tudo que nos conduz a um ponto de não-retorno, tão falado nos dias atuais, a uma volta impossível não apenas para a natureza, mas também para a humanidade, que talvez redescubra tarde demais que faz parte dessa mesma natureza.

Tais imbricações entre natureza-cidade, corpo-mundo, saberes tradicionais-ciência são postas em evidência no trabalho de Uýra Sodoma, personagem desenvolvida pela artista indígena Emerson Pontes, que é também bióloga e educadora. Uýra se “monta” com roupas, adereços e muita maquiagem para interagir com a espacialidade e gerar imagens que tensionam questões de violência social e destruição ambiental. Em suas fotografias, há sempre a interação de um corpo transvestido com o espaço natural ou urbano para problematizar percepções e gerar novos nexos. Além da ecologia científica e dos saberes ancestrais, Uýra acrescenta de forma transversal a pauta LGBTQUIA+, borrando de forma orgânica as fronteiras entre natureza-humanidade, cidade-floresta, homem-mulher, moderno-primitivo, em interseções menos rígidas que instigam uma percepção com o ambiente de forma mais completa e conectada com o cotidiano.

Na série Mil [Quase] Mortos, Uýra (em parceria do fotógrafo Matheus Belém) relaciona seres encantados amazônicos com locais de evidente poluição e decadência, confundindo estranheza e beleza numa profícua interação com a população local. A performance foi realizada no igarapé do Mindu, córrego que corta Manaus (cidade em que mora desde os cinco anos de idade), abraçando o povoamento desde suas origens, mas que hoje se tornou um verdadeiro lixão a céu aberto, processo infelizmente corriqueiro nas cidades brasileiras. Ao se preparar para a performance, observou que os locais simplesmente não olhavam mais para o canal e suas águas, e que sua interação provocou, ao menos, que as pessoas voltassem a contemplar aquele espaço esquecido pela grande cidade. Esse embate ecológico e social também é uma disputa que perpassa o sensível e o estético:

É um abandono como paisagem, são invisíveis e abjetas as águas que nos compõem. Mas, logo após se iniciarem as fotoperformances, todo aquele “alvoroço” passava a chamar a atenção das pessoas, que se aglomeravam, passavam a olhar o igarapé (também) e a fazer fotos e vídeos. De repente, o invisível se torna visível (Pontes, 2021PONTES, Emerson. (2021). #16 Urgências do agora| Despertar-nos às florestas que dormem embaixo das ruas. Entrevista de Emerson Pontes por 4ª Parede. Disponível em: https://4parede.com/16-urgencias-do-agora-despertar-nos-as-florestas-que-dormem-embaixo-das-ruas/. Acesso em: 20 nov. 2023.
https://4parede.com/16-urgencias-do-agor...
)7 7 O texto encontra-se sem numeração, colado ao corpo do site referenciado no final do artigo. .

Quando se transforma em Boiuna, por exemplo, ganha uma cauda de oito metros, trazendo uma serpente encantada do imaginário amazônico, um ser nobre ao meio de tamanha degradação. Pontes acha que seu trabalho não acaba nas impactantes imagens captadas pelas lentes parceiras, interessando-se também por uma certa perda de controle diante do encontro e da interação popular: quando transeuntes param para assistir às performances, acabam filmando e postando nas redes, algumas vezes em tom de piada, mas muitas vezes também resgatando a memória do que faziam naquelas águas hoje tão apodrecidas. A ativação dessa memória faz parte do trabalho, assim como dados que acrescenta em sua exibição, como índice de saneamento, de coleta de lixo e de tratamento de esgoto, mostrando o descompasso de uma cidade erguida no meio da floresta8 8 Sobre Manaus, Emerson pontua: “É uma cidade onde apenas 20do esgoto é coletado e só 10é tratado, que se construiu em cima de aldeias, em um modelo que apaga tradições para se instalar. É rica e tecnológica, mas tem um dos piores índices de saneamento básico do País” (Nahe, 2021). .

Nesse contexto, não é de se estranhar que tal separação entre humano e mundo-natureza seja considerada para Kopenawa como uma perda ou fuga de imagens: para os yanomami, a imagem nunca foi algo dado de forma passiva, mas coisa sempre conquistada, recebida e em risco constante de ser usurpada. A imagem não é, portanto, um objeto recreativo desligado do meio, como muitas vezes nos tenta persuadir certo paradigma tecnicista do mundo. A imagem, ao contrário, parece ser mais uma forma de contato imprescindível para o equilíbrio entre a vivência imanente do corpo e a atividade transcendental da mente. É o que observa Viveiros de Castro, no prefácio que escreveu para o livro de Kopenawa e Albert, ao definir um onirismo especulativo yanomami, que une rituais xamânicos à estética contemplativa, no qual “a imagem tem toda a força do conceito, e em que a experiência ativamente ‘extrospectiva’ da viagem alucinatória ultracorpórea ocupa o lugar da introspecção ascética e meditabunda” (Castro, 2015, p. 40CASTRO, Eduardo Viveiros de. (2015). O recado da mata (prefácio). In: Kopenawa, Davi; Albert, Bruce, A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, p. 11-41.).

Prosseguiremos, doravante, o fluxo dessa força impregnada nas imagens de artistas e de poetas que podem nos conduzir ao reencontro de uma possível vivência mundificante, ou simplesmente paisagística, reconciliando homem e natureza. Tal onirismo especulativo, para Manoel de Barros, é atravessado pela poesia quando se atinge o reino das imagens, o reino das despalavras. Buscando o intuitivo da linguagem para aproximar o ser humano ao seu meio natural, Barros compõe, por sinal, um livro de fotografia com palavras, ou um livro de poemas que chama de Ensaios Fotográficos, abraçando o onirismo especulativo das imagens em sua forma poética:

[...] Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades de árvore./Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros./Daqui vem que todos os poetas podem humanizar as águas./Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo com as suas metáforas/ Que os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes, podem ser pré-musgos./Daqui vem que os poetas podem compreender o mundo sem conceitos./Que o poetas podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por afeto (Barros, 2010 [2001], p. 383BARROS, Manoel. (2001). Despalavra. In: Barros, Manoel de, Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010, p. 383.).

Uma reconciliação entre humanidade e meio natural não é sempre pacífica, algumas vezes nem um pouco, sobretudo quando falamos da lama abraçando palafitas e mocambos, ou escorrendo mortalmente dos picos dos morros sobre casas populares em zonas de risco. Partindo pela via contrária do jornalismo tradicional, os fotógrafos Alcione Ferreira e Rafael Martins saem da pura objetividade para entender, no projeto História da Permanência, a imagem como forma de afeto e memória. No caso, a dupla localiza sua pesquisa nas cidades atingidas pelas contínuas enchentes na Zona da Mata Sul de Pernambuco, nas quais as populações mais pobres são sempre as que mais sofrem por viverem em áreas baixas rentes ao leito dos rios. Por meio da perda ou da deteriorização de álbuns de fotografia, banhados pelas enchentes sazonais, esse trabalho fotográfico registra que tais moradores acabam não apenas perdendo seus parcos pertences materiais, como roupas, móveis e eletrodomésticos, mas também acabam muitas vezes destituídos de suas memórias materiais.

É o caso de Edileuza, 58 anos, moradora de Barreiros, que viu danificada pela lama a única fotografia de um filho que partiu há anos para tentar a vida em Goiás e nunca mais deu notícias. Quase não dá mais para ver o rosto no retrato lavado pela lama. Essa ausência acaba revelando não apenas uma luta pelo direito à moradia sem risco, mas também pelo respeito à memória que carregam algumas imagens e objetos. Edileuza já perdeu casa e fotografias, irrecuperáveis pela falta de projetos sérios de contenção de risco. O que já seria uma desgraça natural passa a ser uma catástrofe evitável diante da previsibilidade e da ingerência de soluções definitivas por parte das autoridades. As perdas materiais cíclicas são um calvário infelizmente recorrente para essas pessoas; mas a supressão definitiva de imagens de memórias representa para elas um desespero ainda mais implacável. A lama para Edileuza representa dor e destruição, porém indica também a reivindicação da subjetividade que vai além de bens materiais:

Agora eu guardo [a foto danificada] como uma lembrança, pra mim é o mesmo que ser uma relíquia. [...] Pra mim, ela tem mais valor do que todos os móveis e roupas que eu perdi. É muito valiosa, é como se fosse parte da família, sabe... não tem preço, não tem preço9 9 Relato coletado pelos fotógrafos durante a pesquisa (trabalho em curso, ainda inédito). .

Dona Edileuza guarda aquela fotografia desbotada, já quase abstrata, como objeto sagrado que emana lembranças e valores que lhe dão sentido e história. Por isso, a privação daquela imagem do filho lhe parece mais insuportável do que qualquer estrago material. Não se deixa vencer pelo apagamento físico daquela fotografia corroída pela lama, guardando cada contorno que ainda resiste como indício de sua própria existência subjetiva, seu direito de memória e afeto. Ferreira e Martins empreendem, assim, um jogo de múltiplos ao fotografar não apenas a antiga fotografia deteriorada, mas usando os meios da colagem e de intervenções plásticas diversas para acrescentar novas camadas a essas cópias imperfeitas. Somadas à ação da lama, tais imagens são novamente fotografadas, evidenciando nesse novo objeto a sedimentação da memória entre o objeto físico de representação e os valores subjetivos de crença e afeto nele imbuídos, diluídos em suas várias temporalidades e materialidades.

Tal apagar de imagem pela lama sazonal de uma evitável tragédia acaba nos lembrando o apagamento do outro no processo colonial. Enrique Dussel, por exemplo, prefere chamar o Descobrimento da América de Encobrimento, pois, desde o primeiro momento, houve mais o encobrir de identidades e culturas do que um encontro de descoberta do diferente, a começar pelo nome equivocado de índio para os povos originários. Ainda hoje, esse processo de desrespeito e apagamento é comum dentro de uma lógica de modernidade pós-colonial, para a qual nunca houve descoberta ou encontro, mas uma negação do outro; não apenas em sua materialidade afanada, mas em sua subjetividade negada. Tais renegados históricos são apenas “massa rústica ‘descoberta’ para ser civilizada pelo ‘ser’ europeu da ‘Cultura Ocidental’, mas ‘en-coberta’ em sua Alteridade” (Dussel, 1993, p. 36DUSSEL, Enrique. (1993). 1492 – o encobrimento do outro: A origem do mito da modernidade. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes.).

Dona Edileuza preserva aquela fotografia como relíquia, completando todos os dias o que falta na materialidade da imagem com suas lembranças mais íntimas, aceitando os lapsos e vazios dessa representação já disforme. Os registros dessas memórias materiais degradadas e as intervenções artísticas sobre elas reforçam a parte de encobrimento de memórias e identidades que tais eventos naturais evitáveis infligem às populações mais vulneráveis. O apagamento dessas imagens não borra apenas os indícios físicos de alguém, mas, de certa maneira, esvanece até mesmo a humanidade dessas pessoas, assegurada pelo direito à memória, mas negada por contínuos encobrimentos. O efeito da imagem mental de seu filho não apenas traz de volta a lembrança de seus traços, mas também lhe resgata a humanidade de sua saudade e sonhos, como alimento primordial de ser, trazendo a força que a faz levantar todo dia para continuar lutando por sua vida e dignidade.

A lama encobre marcas do tempo, mas não reduz a grandeza da memória que encobre ou borra. Ao contrário, parece amplificá-la pela resiliência contra o apagamento: uma resistência dialética, elástica, mutante como barro, capaz de poesia da pré-coisa, de entendimento de sedimentações naturais e históricas, assim como abertura a potenciais e transformações. Uma força política nasce como flor no asfalto da geopoética da lama; flor de mangue deslocada, poética da sobrevivência, grito desoprimido como na abertura de Febre do Rato (2011)FEBRE DO RATO. (2011). Direção de Cláudio Assis. Produção de Belavista Cinema e Produção, Parabólica Brasil e República Pureza Filmes. Brasil.: a câmera10 10 Do diretor de fotografia Walter Carvalho. adentra o Recife pelo rio Capibaribe, passando por baixo das pontes, margeando o centro urbano com suas edificações decadentes, observando a fusão da cidade com a lama do mangue, até chegar às palafitas miseráveis, verdadeiro retrato da urbe. Enquanto o filme em preto e branco passa o tom sombrio e rústico como as publicações poéticas do poeta Zizo [Irandhir Santos], cujos versos ouvimos em voice over, declamando o que parece um poema inspirado pela dor dessas imagens anfíbias:

[...] Mundo abismo, grande mundo./Logo ali, por trás do mangue,/Descansa a insônia, a faca, o serrote,/o trabalho, o sexo e o sangue/Abismo, mundo escuro,/Profundo buraco./Lateja o fardo de tuas ruas, lateja o grito ruminante./Gritos de “não”, mundo e abismo/Gritos de “não”, para meu abismo mundo.

Essa voz até então oculta se transformará em poética lacerante e lamacenta, terminando onde começa, no mangue, quando o poeta desaparece após policiais o arrancarem de um ato poético em via pública e o jogarem ao rio. Tal violência contra o estar no mundo (do corpo, da poesia) é respondida com a fusão mundificante entre carne, poesia e lama, que não se fecha em um fim absoluto de aceitação, mas se desprende na força de gritos de não. A geopoética é desenvolvida justamente por meio dessa mediância, estabelecendo um elo ininterrupto entre percepção, vivência, cultura e expressão do meio. Tal abordagem estética do mundo evidencia também uma política, a partir do olhar sobre a lama como manifestação sociológica e estética, formulada nas manifestações artísticas. Uma política primeiramente do olhar, das sensações, para em seguida vir o entendimento e abraçar a insurreição dos movimentos incessantes do mundo. A lama torna-se, enfim, potência.

Voltemos, inevitavelmente, a Josué de Castro. Ademais de sua inovadora análise científica sobre as mazelas humanas em Geografia da Fome e Geopolítica da Fome, o médico e geógrafo sempre demonstrou apreço à arte para ganhar o que a pura ciência não alcança: as sensibilidades. Além de escrever um romance, Josué se correspondeu com diversos poetas e cineastas, chegando a trocar cartas com o roteirista Cesare Zavattini e o diretor Roberto Rossellini sobre a adaptação de sua obra para o cinema. Para Josué, a arte brasileira não deveria romantizar a realidade, mas desvendar o que ele considerava uma segunda descoberta do Brasil11 11 Ela falava mais especificamente do Nordeste do Brasil. , por meio da consciência social e da sensibilidade. Para tanto, que “as coisas sejam mostradas como são, em sua crua realidade. Mostrando-se sempre as duas faces da medalha [...]. A que nos enche de orgulho e que nos mata de vergonha” (Castro, 1996 [1946], p. 274CASTRO, Josué de. (1946). Introdução à primeira edição de Geografia da Fome. In: Castro, Anna Maria de (org.), Fome, um tema proibido: Os últimos escritos de Josué de Castro. Recife: CEPE, 1996, p. 119-282.).

Uma consciência da lama antes de tudo estética, já comentada por Castro, quando lembrou que foi nos mangues lamacentos de sua infância onde aprendeu a assistir a longas histórias no fluir do rio, como quem ia para o cinema. Era um filme que não só entretinha, mas que lhe fez, antes dos livros, antes da Sorbonne (onde lecionou), antes de dirigir a FAO12 12 Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. , entender a natureza humana da fome, uma história ainda invisível na época:

Foi o rio o meu primeiro professor de história do Nordeste, da história desta terra quase sem história. A verdade é que a história dos homens do Nordeste me entrou muito mais pelos olhos do que pelos ouvidos. Entrou-me por dentro dos meus olhos ávidos de criança sob a forma destas imagens que estavam longe de serem sempre claras e risonhas (Castro, 2021 [1967], p. 16CASTRO, Josué de. (1967). Homens e Caranguejos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.).

Voltando também às águas espessas de João Cabral, nas quais os rios também se fundem, buscando revolta na margem calma do mangue: “todos os rios/preparam sua luta/de água parada,/sua luta/de fruta parada”. Além da clara alusão erótica da fruta, essa preparação silenciosa de luta na água parada do mangue expressa a fertilidade do terreno para uma insurreição contra as fomes físicas, sociais e da alma. Num poeta meticuloso como Cabral, esse embate é fecundado pela estrutura e pela forma, com suas inversões sintáxicas e semânticas, para provocar movimento e transformação no inerte, como salienta Francisco K:

O que presenciamos foi uma verdadeira reversão (ou metamorfose) na metáfora ou imagem da fruta, pela qual o sentido, assim como os de rio e mangue, passa da estagnação à ação – uma ação lenta e paciente, quase imóvel, mas, por fim, produtiva e transformadora. Também uma ação que ganha um caráter coletivo, resultante da junção de todos os rios e que, equivalendo a uma “força invencível e anônima”, assume uma indubitável potência política (K, 2019, p. 82K, Francisco. (2019). Mangue-mundo: poéticas do mangue em Josué de Castro, João Cabral de Melo Neto e Chico Science. Brasília: Siglaviva.).

Embora a lama estagnada no mangue do rio, nos recuos das enchentes e nas ruas maltratadas da periferia, seja muitas vezes indício de violência socioambiental, a lama se transforma, pela expressão artística de sua elasticidade tanto formal quanto simbólica, somada à sua rica biodiversidade, em potência política, não apenas para denunciar mazelas históricas e atuais como também para propor resistências e possibilidades. Tal transmutação geopoética trafega irrefutavelmente pela consciência por meio da contemplação do mundo e pela sensibilização aos espaços decorrentes da reconciliação do ser humano consigo e com seu meio.

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    Este texto tem origem em trabalho apresentado, em agosto de 2023, durante o III Colóquio Internacional Exodus e GEDLit – O Literário e o Não Literário: expulsões, cooptações e zonas nebulosas, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), na Unicamp. O artigo gerado marca o desenvolvimento do tema durante o período de 60 dias de minha licença de capacitação (entre outubro e dezembro de 2023), na mesma instituição. A pesquisa continua a ser aprofundada e deverá, em breve, ser publicada em formato de livro.
  • 2
    De fato, Recife é atualmente a terceira capital mais desigual do Brasil, segundo o Boletim Desigualdades nas Metrópoles (2012-2021), análise desenvolvida pela PUC-RS, em parceria com a Rede de Observatórios da Dívida Social na América Latina (RedODSAL). A capital pernambucana só tem um índice Gini melhor do que Natal e João Pessoa, segundo dados coletados com base na PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios).
  • 3
    Citação sem número de página, por razão de o texto estar publicado no corpo do site do Instituto Internacional de Geopoética, conforme consta nas Referências no final desse artigo.
  • 4
    Berque nomeia tal permuta de trajeção.
  • 5
    Em depoimento para o antropólogo Bruce Albert.
  • 6
    A série Torniquete, do artista, conta ainda com um cilindro repleto de petróleo coletado nas praias do Nordeste, em 2019, e outro com cinzas das queimadas na Amazônia, em 2021.
  • 7
    O texto encontra-se sem numeração, colado ao corpo do site referenciado no final do artigo.
  • 8
    Sobre Manaus, Emerson pontua: “É uma cidade onde apenas 20do esgoto é coletado e só 10é tratado, que se construiu em cima de aldeias, em um modelo que apaga tradições para se instalar. É rica e tecnológica, mas tem um dos piores índices de saneamento básico do País” (Nahe, 2021NAHE, Nina. (2021). Uýra Sodoma: a cobra das águas amazônicas diante da degradação ambiental. Select. Disponível em: https://select.art.br/uyra-sodoma-a-cobra-das-aguas-amazonicas-diante-da-degradacao-ambiental/. Acesso em: 20 nov. 2023.
    https://select.art.br/uyra-sodoma-a-cobr...
    ).
  • 9
    Relato coletado pelos fotógrafos durante a pesquisa (trabalho em curso, ainda inédito).
  • 10
    Do diretor de fotografia Walter Carvalho.
  • 11
    Ela falava mais especificamente do Nordeste do Brasil.
  • 12
    Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura.
  • DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA
    Declaro, para devidos fins, no que diz respeito ao artigo “A Geopoética Da Lama: Dos Alagados Do Mangue A Uma Estética De Resistência”, de minha autoria, submetido à revista Trabalhos em Linguística Aplicada, que os dados públicos utilizados na pesquisa estão disponíveis nos endereços eletrônicos citados, permitindo amplo e irrestrito acesso.

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    » https://select.art.br/uyra-sodoma-a-cobra-das-aguas-amazonicas-diante-da-degradacao-ambiental/.
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    » https://www.institut-geopoetique.org/pt/textos-fundadores/62-precisoes.

Disponibilidade de dados

DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA

Declaro, para devidos fins, no que diz respeito ao artigo “A Geopoética Da Lama: Dos Alagados Do Mangue A Uma Estética De Resistência”, de minha autoria, submetido à revista Trabalhos em Linguística Aplicada, que os dados públicos utilizados na pesquisa estão disponíveis nos endereços eletrônicos citados, permitindo amplo e irrestrito acesso.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2024
  • Aceito
    01 Abr 2024
  • Publicado
    15 Abr 2024
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