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AU REVOIR, COPA DO MUNDO DE SLAM: QUESTÕES DE GÊNERO, RAÇA E DECOLONIALIDADE NAS POESIAS-SLAMS DO SUL GLOBAL

GOODBYE GRAND POETRY SLAM: ISSUES OF GENDER, RACE AND DECOLONIALITY IN POETRY-SLAMS FROM THE GLOBAL SOUTH

RESUMO

Este artigo visa problematizar a participação de poetas na Copa do Mundo de Slam, campeonato mundial que ocorre anualmente em Paris. Em específico, pretende-se discutir questões de gênero, raça e decolonialidade nas performances poéticas de Bell Puã, slammer representante brasileira no evento de 2018, contrastando-as com outras performances de poetas europeus, brancos, cis, colonizadores, do Norte Global. Buscamos ainda defender o artivismo e o combarte como movimentos que envolvem os eventos de slams brasileiros e, por extensão, da América Latina e do Sul Global. Esta pesquisa, de cunho etnográfico, foi realizada in loco, no Grand Poetry Slam da França, em 2018 e em 2023, e no World Poetry Slam Championship (WPSC), campeonato mundial de slam realizado na Festa Literária das Periferias (FLUP), no Rio de Janeiro, em 2023. Os textos poéticos performados lá e cá revelam diferenças estéticas e, sobretudo, éticas, nas temáticas abordadas, o que se deve a fatores históricos, culturais e (geo)políticos que separam Norte e Sul Global.

Palavras-chave:
Copa do Mundo de Slam; Decolonialidade; Artivismo; Combarte

ABSTRACT

This paper aims to problematize the participation of poets in the Grand Poetry Slam, a world championship that takes place annually in Paris. Specifically, it aims to discuss issues of gender, race, and decoloniality in the poetic performances of Bell Puã, the Brazilian slammer representing the 2018 event, contrasting them with other performances by European, white, cis, colonizing poets from the Global North. We also seek to defend artivism and combarte as movements that involve Brazilian slam events and, by extension, those in Latin America and the Global South. This ethnographic research was carried out on-site at the Grand Poetry Slam in France, in 2018 and 2023, and at the World Poetry Slam Championship (WPSC), held at the Literary Festival of the Peripheries (FLUP), in Rio de Janeiro, in 2023. The poetic texts performed here and there reveal aesthetic and, above all, ethical differences in the themes addressed, which are due to the historical, cultural, and (geo) political factors that separate the Global North and South.

Keywords:
Grand Poetry Slam; Decoloniality; Artivism; Combart

INTRODUÇÃO

"União Europeia o caralho! União da América Latina!"1 1 Verso do poema "Tu no puede comprar mis dolores", performado por Bell Puã na Copa do Mundo de Slam em 2018.

(Bell Puã)

Desde 2007, a França é sede da Copa do Mundo de Slam (Grand Poetry Slam ou La Coupe du Monde de Slam de Poésie)2 2 Todos os vídeos da Copa do Mundo de Slam estão disponíveis no canal do YouTube (Grand Poetry Slam/International, [s.d.]). , evento organizado pela Federação Francesa de Slam e dirigido pelo poeta, ator e ativista cultural Pilote le Hot. O evento ocorre anualmente, ao longo de uma semana, em meados de maio ou junho, em algum ponto cultural do Quartier de Belleville, no 20ème arrondissement de Paris. Nele concorrem poetas vencedores/as de seus respectivos campeonatos nacionais de slams, de Norte a Sul Global. Na mesma semana do mundial acontecem o campeonato nacional da França (Le Slam Nacional) e também o campeonato interescolar francês (Le Slam Interscolaire – intercollège/interlycée). Esse último reúne jovens estudantes do ensino fundamental e médio de escolas de Paris e região que participam entusiasmados da competição poética.

Segundo Pilote le Hot, a Copa do Mundo de Slam foi criada em 2007 para reunir poetas do mundo inteiro que quisessem compartilhar suas poesias e seu amor pela palavra poética em um ambiente amistoso (Arnaud-Deguitre, 2012ARNAUD-DEGUITRE, T. (2012). J-1 avant la finale de la Coupe du monde de Slam. Street Press. Disponível em: https://www.streetpress.com/sujet/36994-j-1-avant-la-finale-de-la-coupe-du-monde-de-slam. Acesso em: 19 dez. 2023.
https://www.streetpress.com/sujet/36994-...
, traduzimos)3 3 No original: "L'objectif de cette Coupe du Monde est de permettre aux poètes étrangers de venir s'exprimer, de nous faire découvrir leur amour pour les mots, tout ça dans la bonne ambiance". . Nem a pandemia de Covid-19 permitiu que o evento morresse – até porque poesia é reexistência – e o mundial foi realizado de modo virtual em 2020 e 2021. Não houve, contudo, o Slam Interscolaire nesses dois anos. Em revanche, quando as competições de poesia falada e performada voltaram a ser presenciais, a Copa do Mundo de Slam ganhou novas atrações4 4 Muitos desses eventos já existiam antes da pandemia da Covid-19, como o "Slam des Cancres", "Slam de Cris", "Slam à femmes", "Poesia del Tango", "Yoga & Poésie" e o "Slam National de Haïkus", porém, nem todos foram realizados online nos dois anos pandêmicos. Vale acrescentar que, na semana em que acontece a Copa do Mundo de Slam em Paris, todo o Quartier de Belleville é tomado pelos eventos de slam: há cartazes espalhados pelas esquinas, placas indicando os locais das apresentações, bares e restaurantes da região ficam lotados; há muita música, poesia e flertes intra e internacionais. Trata-se de um evento cultural comparável à virada paulista, não no sentido da dimensão geográfica, mas do impacto cultural naquele quartier periférico de Paris. . Em 2023, por exemplo, a programação da semana incluía: "Slam Erótico", "Slam dos Cancros", "Slam do Grito", "Slam Nacional de Haikai", "Poesia do Clima", "Poesia do Tango", "Yoga & Poesia", "Slam para Mulheres", "Slam do Orgulho", "Espécie de slam à la Cocteau" (traduzimos)5 5 No original: "ÉroSlam", "Slam des Cancres", "Slam de Cris", "Slam National de Haïkus", "Poésie du Climat", "Poesia del Tango", "Yoga & Poésie", "Slam à femmes", "Slam des fiertés", "Espèce de slam à la Cocteau. O penúltimo refere-se ao "orgulho gay", pois é um slam para "pessoas não binárias, abertas e sem censura", diz programa. O último é uma homenagem à Jean Cocteau, um renomado ator, diretor de cinema, poeta, escritor, teatrólogo, cenógrafo, pintor e escultor francês. .

O Brasil estreou na Copa do Mundo de Slam em 2010, com a participação de Luanda Casella6 6 Aproveito para retificar aqui a contextualização equivocada em artigo escrito anteriormente, no qual atribuímos a Roberta Estrela D'Alva o papel de debutante (cf. Neves, Santos, 2023). , uma paulistana que se apresenta como escritora e artista performática. Luanda, que morava na Bélgica, soube do evento poético e decidiu se inscrever sem passar por qualquer seletiva. O mesmo fez Roberta Estrela D'Alva, em 2011, representando muito bem o Brasil ao finalizar o campeonato em terceiro lugar. A experiência da slammer no mundial rendeu o seu primeiro documentário sobre o tema: Slam: voz de levante (2018)SLAM: VOZ DE LEVANTE. (2017). Direção e roteiro: Roberta Estrela D'Alva e Tatiana Lohmann. Produção: Exótica Cinematográfica e Miração Filmes., produzido por ela em parceria com Tatiana Lohman.

Vale lembrar que Roberta Estrela D'Alva foi quem fundou o primeiro slam no Brasil, o ZAP!SLAM, em 2008, na capital paulista. Artista, apresentadora e curadora do Rio Poetry Slam, realizado na Festa Literária das Periferias (FLUP), no Rio de Janeiro, Roberta é figura importante na cena do slam nacional, juntamente com Emerson Alcalde, fundador do segundo slam do Brasil, em 2012, o Slam da Guilhermina, na Zona Leste de São Paulo. Emerson também foi representante brasileiro na Copa do Mundo de Slam em 2014, e voltou da Cidade Luz como vice-campeão, experiência que ele narra em sua autobiografia de slammer (Alcalde, 2022ALCALDE, E. (2022). Nos corre da poesia: autobiografia de um slammer. São Paulo: Selin Trovoar.).

Em 2018, assisti à Copa do Mundo de Slam pela primeira vez. Lá, pude observar in loco a dinâmica do mundial e acompanhar a participação, no evento, da pernambucana Isabella Puente de Andrade, mais conhecida como Bell Puã. Na época, Bell Puã, 24 anos, atuava no Slam das Minas de Pernambuco e, por ter sido a vencedora do Campeonato Nacional de Slam (o Slam Br) em 2017, representou o Brasil no mundial do ano seguinte, em 2018, como rege a regra do jogo. Bell Puã contou um pouco dessa experiência em entrevista concedida a mim na ocasião. Decepcionada por não ter chegado à final, a slammer, mulher, preta e nordestina, estranhou muito o que vivenciou ali, como problematizaremos mais adiante.

Participam da Copa do Mundo de Slam poetas de diversas nacionalidades. Os/as poetas inscritos/as são sorteados/as e divididos/as em quatro chaves em que todos participam7 7 Em 2018, havia 23 poetas inscritos, cada um representando seu país. Assim, três chaves contaram com seis poetas e uma chave ficou com cinco poetas competindo entre si. . São três rodadas e em cada uma o/a slammer performa uma poesia diferente, que é avaliada com notas de 0 a 10, atribuídas pelos cinco jurados/as escolhidos aleatoriamente na plateia, como determinado na regra do slam. Os/as poetas vencedores/as na primeira chave vão para a semi-final e performam mais três poesias autorais. Quem vence essa etapa está classificado para final do campeonato e pode escolher que poesias, das seis anteriores, prefere apresentar. Como bem descreve Emerson Alcalde (2022, p. 222)ALCALDE, E. (2022). Nos corre da poesia: autobiografia de um slammer. São Paulo: Selin Trovoar.: "A escolha dos poemas é fundamental e uma escolha errada pode mudar todo o jogo ou te tirar dele".

No palco, as poesias são declamadas na língua de origem do/a poeta, enquanto a letra do texto poético e as traduções, em inglês e francês, são projetadas em um telão que fica atrás dos/das slammers em cena. O júri deve levar em conta a originalidade, a qualidade do texto poético e a performance do/a poeta, que sobe ao palco e performa suas poesias sem qualquer adereço ou recurso sonoro, apenas com o seu corpo e sua voz – eis o espetáculo. Os/as jurados/as também levam em conta a recepção das poesias performadas; em outras palavras, são influenciados/as pela reação da plateia presente, como discutiremos neste artigo.

1. A PRESENÇA BRASILEIRA EM UM CAMPEONATO MUNDIAL DE POETRY SLAM

Durante os doze anos em que o Brasil participou da Copa do Mundo de Slam na França, nossos/as slammers sempre se destacaram entre os/as cinco primeiros/as colocados/as do campeonato. Nos últimos anos, foram as mulheres, poetas pretas e periféricas, que tomaram a cena: venceram o Slam BR e, consequentemente, representaram o Brasil na Copa do Mundo de Slam. São elas: Luz Ribeiro (em 2017)RIBEIRO, D. (2017). O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento; Justificando., Bell Puã (em 2018)BELL PUA (BRÉSIL) "Era Uma Vez". Grand Poetry Slam/International. (2018). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tvTzMWUrXT4&list=PLdjrqV2jBeLLV9lmIj9FAkMbKDM2fg6WL&index=20&t=3s. Acesso em: 27 dez. 2023.
https://www.youtube.com/watch?v=tvTzMWUr...
, Pieta Poeta (em 2019), Cinthya Kimani (em 2020), Jéssica Campos (em 2021) e Joice Zau (em 2022). As três primeiras são poetas do Slam das Minas (ou Monas, Manas ou Monstras – como se denominam as slammers em sororidade)8 8 A ideia de criar um Slam das Minas surgiu porque as poetas notaram que, de modo geral, elas tinham pouca visibilidade nos slams e quase nunca chegavam às finais dos campeonatos nacionais. Decidiram então fundar um slam só de mulheres para que assim pudessem gritar e ser escutadas em suas temáticas mais urgentes. O primeiro Slam das Minas surgiu em 2015, em Brasília; em 2016, a iniciativa chegou a São Paulo graças à poeta Luz Ribeiro. A partir de 2017, a versão se espalhou por vários estados brasileiros. Participam do Slam das Minas somente mulheres (cis ou trans), em sua maioria, jovens pretas, pobres, periféricas, que, em "suas poemas", denunciam toda e qualquer forma de violência que sofrem: o estupro, o racismo, o feminicídio, o sexismo, a misoginia, a LGBTQIAPN+fobia etc. (Neves, Santos, 2023). e a última é uma angolana que coleciona vitórias em slams brasileiros9 9 Em 2021, Joice Zau foi campeã do Slam Br, o que lhe garantiu a vaga para representar o Brasil na Copa do Mundo de Slam em 2022, na França. Também em 2022, ela foi a representante brasileira na primeira edição do World Poetry Slam Championship (WPSC), que aconteceu na Bélgica. Em seu currículo, constam ainda a vitória na Copa Lusófona Feminina de Slam e um vice-campeonato no Slam da Guilhermina. Ou seja, a irmã-africana é um fenômeno nos eventos de slams! É preciso explicar que não é a certidão de nascimento que importa e sim o país onde o/a slammer compete. Joice Zau, mesmo sendo de Angola, participou dos campeonatos brasileiros de slam, logo, foi para os mundiais representando o Brasil. Em 2020, por exemplo, a brasileira Maria Giulia Pinheiro, que reside em Coimbra, foi a representante de Portugal na Copa do Mundo de Slam. Em 2022, foi a brasileira Carol Braga, também residente em Coimbra, quem representou Portugal no mesmo mundial na França. Aliás, a mesma Carol Braga foi quem fundou o Slam das Minas Coimbra, o primeiro Slam das Minas em Portugal. A inversão não deixa de ser irônica: poetas brasileiras "colonizando" a "metrópole" ao inaugurar um Slam das Minas em terras lusitanas – colonizadas invadem país colonizador com poesias-slams! Para mais informações sobre o Slam das Minas de Coimbra, recomendo a leitura do artigo de Saru Vidal, neste mesmo dossiê. .

Emerson Alcalde (2022, p. 229)ALCALDE, E. (2022). Nos corre da poesia: autobiografia de um slammer. São Paulo: Selin Trovoar. sintetiza a participação do Brasil na Copa do Mundo de Slam no quadro a seguir, adaptado e atualizado neste artigo:

Ano Poeta-Slammer Cidade/Estado/País
2010 Luanda Casella São Paulo-SP/Brasil e Bruxelas/Bélgica
2011 Roberta Estrela D'Alva São Paulo-SP/Brasil
2012 Fábio Boca São Paulo-SP/Brasil
2013 Lews Barbosa São Paulo-SP/Brasil
2014 Emerson Alcalde São Paulo-SP/Brasil
2015 João Paiva Belo Horizonte-MG/Brasil
2016 Lucas Afonso São Paulo-SP/Brasil
2017 Luz Ribeiro São Paulo-SP/Brasil
2018 Bell Puã Recife-PE/Brasil
2019 Pieta Poeta Belo Horizonte-MG/Brasil
2020 Cinthya Kimani São Paulo-SP/Brasil
2021 Jéssica Campos São Paulo-SP/Brasil
2022 Joice Zau São Paulo-SP/Brasil e Angola/África

Três questões despertam nossa atenção a partir da leitura do quadro acima. A primeira delas é a presença maciçamente sudestina no campeonato europeu. São Paulo predomina com 10 representantes, seguido de Minas Gerais com dois e Pernambuco com uma participante apenas. Queremos ver/ter mais Nordeste, Norte e Sul nessas estatísticas! O segundo aspecto que merece atenção é a presença de poetas homens na representação brasileira na Copa do Mundo de Slam de 2012 a 2016. Durante cinco anos eles imperaram na cena do mundial realizado em Paris, o que comprova a necessidade de reação das mulheres com a criação do Slam das Minas. A terceira questão que não quer calar é a ausência de poeta brasileiro/a na Copa do Mundo de Slam em 2023. A razão é que o Brasil decidiu romper com sua participação no mundial francês para, de agora em diante, competir em outros campeonatos mundiais, que não aquele, como é o caso do Abya Yala Poetry Slam10 10 Refiro-me à Copa Slam das Américas, inaugurada em 2021 pelo rapper mexicano Comikk MG e pela multiartista brasileira Roberta Estrela D'Alva, já aqui referida. Em entrevista à pesquisadora Gabriele Cavalcante (2022), Comikk MG assim explica o batismo do Abya Yala Poetry Slam: "um Slam de toda América, ou como sabemos do continente que foi nomeado como América. Pois para nós é importante radicalizarmos o afeto e também a memória ancestral do nosso território e por isso decidimos nomear de Abya Yala e estamos nutridos de muitas comunidades [...] de América Latina e Caribe. [...] Em realidade esse nome de Abya Yala não é um nome relacionado a México e sim de toda uma terra de antes da invasão. De como é a comunidade indígena que reivindica o nome, porque este nome, era o nosso território antes da invasão [...]" (Cavalcante, 2022, p. 293-294). e do World Poetry Slam Championship (WPSC)11 11 Um novo Campeonato Mundial de Poetry Slam, cuja proposta foi definida por um manifesto assinado pelos seus membros, slammers de diversos países de todos os continentes. A primeira versão do WPSC aconteceu em 2022, na Bélgica. Em 2023, o evento ocorreu no Brasil (na FLUP, no Rio de Janeiro), e em 2024 será em Togo, na África. Para saber mais, consultar World Poetry Slam Organization ([s.d.]). .

Em 2023, fui assistir à Copa do Mundo de Slam em Paris pela segunda vez e o Brasil não estava lá. Atenta aos sinais de 2018, compreendi os motivos do nosso au revoir quando me lembrei das performances de Bell Puã e da entrevista que a slammer me concedeu naquela ocasião. Compreendi não apenas as razões de Bell Puã, mas também de Luz Ribeiro, Pieta Poeta, Cinthya Kimani, Jéssica Campo e Joyce Zau: todas mulheres negras, historicamente subalternizadas e silenciadas, mas que no palco parisiense se tornaram protagonistas do ato poético, rompendo, simbolicamente, a máscara de Anastácia12 12 Anastácia era uma mulher belíssima, negra dos olhos azuis, que viveu como escrava no Brasil em meados dos oitocentos. Ela foi sentenciada a usar uma máscara de flandres por toda a vida. A máscara de flandres era feita de chapa de aço laminada e trancada com um cadeado atrás da cabeça da pessoa escravizada, impedindo o acesso à boca. Em 1839, o artista Jacques Arago retratou em tela a Escrava Anastácia (cf. Escrava Anastácia, [s.d.]). para gritarem e se fazerem escutar reexistindo por meio de suas poesias e performances. Neste artigo, tratarei de Bell Puã, cujas performances pude acompanhar in loco.

A slammer recifense estreou no Thêatre Belleville no dia 09 de maio de 2018, performando três poesias: "Imagina", "Meu patrimônio-coração" e "Toada de Molho", uma em cada rodada. Obteve uma boa pontuação em cada uma delas, com notas que variavam entre 8,5 a 9,813 13 É importante explicar que, na regra do slam, são atribuídas cinco notas dos cinco jurados/as. A nota mais alta e a mais baixa são desconsideradas. O/a poeta é então avaliado/a a partir da média das três notas restantes. , e, apesar de não ter tirado nenhum dez, passou para a etapa seguinte bem classificada. Em sua chave, concorreram os/as poetas de Quebec (Thomas Langois), Japão (Yuri Miki), Holanda (Ozan Aydogan) e Bélgica (Lisette Ma Neza).

Dia 10 de maio de 2018, na semifinal, Bell Puã iniciou sua apresentação com a poesia "Tu no puede comprar mis dolores", em que mistura os idiomas espanhol e português; depois repetiu o poema do dia anterior, "Imagina", em que retoma versos da música homônima de John Lennon e Yoko Ono; e, por fim, performou "Era uma vez"14 14 Essa poesia foi mais tarde publicada com o título de "Era uma vez um Brasil conservador", em livro organizado por Mel Duarte (cf. Puã, 2019). Além do título, o texto poético escrito apresenta também alterações em seus versos. – a meu ver, a poesia mais potente daquela noite. Entretanto, a concorrência ali não era fácil, já que em sua chave estavam: Inglaterra (Aislinn Evans), França (Chadeline), Holanda (Ozan Aydogan) e Portugal (Luís Perdigão). Embora eu tivesse ficado impressionada com a performance do poeta português (talvez pela identificação com a língua), eram o inglês e a francesa os preferidos do público espectador presente. As notas da brasileira se mantiveram na mesma média, entre a casa do 8,0 e do 9,0, mas na última apresentação, Bell Puã passou 17 segundos dos três minutos, que é o tempo concedido para a performance, de acordo com as regras do slam, e por isso ela perdeu 0,5 na somatória total. Ela foi desclassificada e não avançou para a final.

Seria injusto dizer que sua desclassificação se deveu somente a essa penalidade. É possível afirmar que outros fatores contribuíram para tal, como os seus fortes concorrentes, por exemplo. Tanto é que da sua chave na semifinal, passaram para a final o inglês Aislinn Evans, a francesa Chadeline e o holandês Ozan Aydogan. Da outra chave, classificaram-se para a final o escocês Sam Small, o quebequense Thomas Langois e a canadense Ifrah Hussein. Embora Quebec seja uma província do Canadá, é tradição o país levar à Copa do Mundo de Slam dois representantes: o quebequense declama em francês, e a canadense, em inglês. Ambos realizaram uma exímia performance. Além da concorrência, o nervosismo de Bell Puã era evidente, o que a fez errar a letra das poesias aqui e acolá. Foi em um desses lapsos que ela deixou escapar, de improviso, mas propositalmente, o verso da epígrafe: "União Europeia o caralho! União da América Latina!", enquanto performava "Tu no puede comprar mis dolores". Ali o recado foi dado e, mais tarde, compreendemos seus motivos. Além disso, a brasileira parecia bem mais tímida em sua performance15 15 Sabemos que as performances são únicas, irrepetíveis e efêmeras, que se realizam na presença e no presente – um desafio para o/a poeta-performer. na França se compararmos com as apresentações dela no Brasil.

Dia 11 de maio de 2018, final da Copa do Mundo de Slam. No placar, a vitória foi do escocês Sam Small, com nota final 88,4; em segundo lugar, o quebequense Thomas Langois, com nota final 87,9, e, em terceiro lugar, a francesa Chadeline, com nota final 87. Dos três vencedores, dois são francófonos, sendo uma francesa raiz; no pódio, três poetas de países do Norte Global. Nada de novo no front. Emerson Alcalde (2022, p. 229)ALCALDE, E. (2022). Nos corre da poesia: autobiografia de um slammer. São Paulo: Selin Trovoar. já havia feito essa constatação que se repete desde que o mundial surgiu em 2007. Em seu quadro, aqui adaptado e atualizado, o slammer da Guilhermina mostra os/as vencedores/as do mundial desde o início do campeonato:

Ano Poeta-Slammer País
2007 Anis Mojgani Estados Unidos
2008 Danny Sherrard Estados Unidos
2009 Joaquin Zuhuataneno Estados Unidos
2010 Ian Leteku Canadá
2011 David Greudeuox Quebec
2012 Harry Baker Inglaterra
2013 Simon Roberts Quebec
2014 Ikena Canadá
2015 Clotilde de Brito França
2016 Amélie Prévost Quebec
2017 Evelyn Rasmussen Osazuwa Noruega
2018 Sam Small Escócia
2019 Jérôme Pinel França
2020 Dani Orviz Espanha
2021 Giuliano Logos Itália
2022 Lorenzo Maragoni Itália
2023 Filippo Capobianco Itália

Os Estados Unidos saem à frente, com três vitórias consecutivas (2007 a 2009), o que não é de se estranhar se levarmos em conta que foi em Chicago que nasceu a tal competição de poesia falada (spoken word), inventada por Marc Kelly Smith, em 1984, e batizada de Uptown Poetry Slam (Neves, 2017NEVES, C. A. de B. (2017). Slams – letramentos literários de reexistência ao/no mundo contemporâneo. Revista Linha D'Água. São Paulo, v. 30, n. 2, p. 92-112.). Em seguida, Quebec vence o mundial três vezes (2011, 2013 e 2016) e Canadá duas vezes (2010 e 2014). Ou seja, durante oito anos, só deu América do Norte com a medalha de ouro. Nos outros nove anos, o primeiro lugar no pódio foi ocupado por países da Europa: Inglaterra, Noruega, Escócia, França, Espanha e Itália, sendo esse último o país campeão por três vezes consecutivas (2021, 2022 e 2023). Em suma, até hoje só venceram a Copa do Mundo de Slam países do Norte Global. Países da América Latina, da África e do Oriente, como Japão e Vietnã, por exemplo, nunca na história desse campeonato tiveram esse privilégio. Daí a decisão do Brasil e de outros países do Sul Global de não mais participarem do mundial europeu na França. O verso-epígrafe de Bell Puã corrobora esse protesto que visa dar vez e voz ao Sul-Sul.

2. BELL PUÃ DÁ O SEU RECADO NA COPA DO MUNDO DE SLAM NA FRANÇA

A participação de Bell Puã na Copa do Mundo de Slam em 2018 foi bastante significativa, assim como foi a das outras poetas brasileiras pretas e periféricas. Tal presença marcadamente feminina, racializada e marginal naquele evento de slam – o que, certamente justifica a predominância de temas políticos nas letras das poesias dessas slammers – causa estranhamento ao público europeu e norte-americano. Das cinco poesias que Bell Puã performou no campeonato de 2018, escolho, subjetivamente, "Era uma vez" (Once upon a time / Il était une fois) para comentar (cf. Bell Puã Brésil, 2018BELL PUA (BRÉSIL) "Era Uma Vez". Grand Poetry Slam/International. (2018). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tvTzMWUrXT4&list=PLdjrqV2jBeLLV9lmIj9FAkMbKDM2fg6WL&index=20&t=3s. Acesso em: 27 dez. 2023.
https://www.youtube.com/watch?v=tvTzMWUr...
). Antes de apresentar a sua poesia, a poeta disse, em inglês pouco audível, que estava ali como latina-americana que queria mostrar as mazelas do Brasil.

era uma vez um Brasil conservador
branco dono e preto propriedade
africano era sem alma
e o índio era selvagem
isso, segundo o europeu16 16 No telão, o verso estava escrito diferente: "segundo o pensamento ocidental". Em outros momentos da apresentação, a poeta alterou alguns versos da poesia, cuja letra estava projetada no telão, sem, contudo, mudar o sentido deles. A transcrição feita aqui leva em conta o dito (e não o escrito) e performado por Bell Puã em cena.
nosso grande apogeu de civilização?
colonizaram até nossa mente, boy
pra tudo a Europa virou padrão:
beleza, ciência, progresso
e o Brasil há 500 anos sem sucesso
lembra das mina? mulher, vocês são linda
mas era uma vez um Brasil conservador
aprenda a sentar feito mocinha
ou prende o cabelo ou alisa de chapinha
mesmo acompanhada de uma, duas, dez mulheres
dirão que estás sozinha
vê se não encurta a roupa
mulher trabalhadora é puta
mulher que questiona é louca
mulher inteligente é plágio fala por cima da nossa voz
porque homem é o sexo frágil
vadias, vagabundas, putas, bruxas
queimadas na fogueira da inquisição
assediadas por amigos, pelo patrão,
por parentes desconhecidos
e até líder de religião
nosso corpo, as regras deles
violadas dentro de casa,
na mais movimentada das avenidas,
espaço público é cenário de guerra
com o macho que te seca
no ônibus abre as pernas, e se esfrega
sem a nossa permissão
e até ejacula sem receber punição!
não, eu grito: denuncio homens abusivos
agressores desde mãe África
ancestrais cheias de cores em senzalas
estupradas por brancos senhores
índias aculturadas
em nome de Cristo?
tantas irmãs perdidas
para o machismo
mão direita do capitalismo
fez na América desgostosa
à beira do abismo
eu sou isso: apenas uma moça latino-americana
me agarro às lutas do passado
pra ter força no presente
não defendo vidraça de banco
defendo gente
ao injusto, desobediente
me inspiro em Dandara, Aqualtune, Zeferina, Nise, Carolina
mas principalmente, nas guerreiras de atualmente:
são as terceirizadas, trabalhadoras rurais, professoras, empregadas
É tempo de primavera
Conceição Evaristo, vovó Vilma, vovó Vera
Marias, Gabrielas, Goretes, Amandas
Lisettes, Ifrahs, Sheylas, Eduardas,
Naias, Sabrinas
Brasil de golpes, reformas trabalhistas
Ditadores militares, bolsonaros, fascistas,
Apoiam massacres e chacinas
Mulher encarceirada no lar
Os pobres cheirando cola e os rico cocaína
Era uma vez um Brasil conservador
Que revolucionou
Com o poder das minas!

A poeta inicia seus versos relembrando o passado colonial do Brasil, quando o branco europeu se apropriou do preto, tratou o africano como "pagão" e o indígena como "selvagem". Em seguida, acusa a Europa da lógica perversa da colonização: do corpo ("beleza") e da mente ("ciência, progresso"), reconhecendo que, mesmo após 500 anos, o velho mundo continua impondo seu "padrão", ou melhor, seu "pensamento ocidental". Padrão ou pensamento esse que oprime as mulheres, sobretudo as pretas, obrigando-as a "se sentar como mocinha", a "prender o cabelo" ou "alisá-lo com chapinha", e "a não vestir roupa curta". "Nosso corpo, as regras deles" – um acinte!

A partir de então, Bell Puã denuncia as violências verbais comumente atribuídas à mulher ("louca", "plagiadora", "vadia", "vagabunda", "puta", "bruxa") para diminuí-la (gaslighting), para depois denunciar as violências físicas: no passado, as mulheres foram "queimadas pela inquisição", "estupradas por brancos senhores nas senzalas", "índias aculturadas em nome de Cristo"; hoje, são assediadas por "amigos", pelo "patrão", por "parentes desconhecidos" e até por "líder de religião". A poeta grita contra esses agressores, contra esses homens abusivos, que violentam mulheres no espaço público (nas "avenidas movimentadas", "o macho que te seca", no "ônibus abre as pernas, e se esfrega sem a nossa permissão") e no privado ("violadas dentro de casa") impunemente.

Muitas "Marias, Gabrielas, Goretes, Amandas, Lisettes, Ifrahs, Sheylas, Eduardas, Naias, Sabrinas, Conceição Evaristo, vovó Vilma, vovó Vera" foram vítimas desse machismo estrutural ressignificado no presente: um "machismo que é mão direita do capitalismo", associa a poeta ao acusar o sistema pelo destino da América ("desgostosa, à beira do abismo"), pelo trabalho terceirizado, pelas reformas trabalhistas, pelos golpes, pelas ditaduras, pelos bolsonaros-fascistas, pelos massacres e pelas chacinas que matam "pobres que cheiram cola, enquanto ricos cheiram cocaína". As mulheres guerreiras que lutaram no passado ("Dandara, Aqualtune, Zeferina, Nise, Carolina") são as que dão força e inspiração às mulheres do presente para revolucionar esse Brasil conservador "com o poder das minas!" – finaliza Bell Puã ("uma moça latino-americana", preta e nordestina, sim senhor!) com o braço esticado na vertical e o punho cerrado (cf. Figura 1).

Figura 1:
sequência de imagens de Bell Puã na Copa do Mundo de Slam (Paris, 2018).

Alguns aplausos e assovios entusiasmados dos poucos brasileiros na plateia, dentre eles, a família da poeta, eu e duas colegas pesquisadoras17 17 Fernanda Vilar e Lívia Bertges, colegas-testemunhas, que pensaram este artigo comigo. . Em cena, Bell Puã deu o seu recado: mostrou aos gringos um Brasil violentado desde os tempos de colônia até o desgoverno de Bolsonaro. Representou muito bem o Slam das Minas com seu grito performático contra o machismo, o sexismo, a misoginia, a cultura do estupro, o cristianismo, o racismo, o colonialismo, o capitalismo, o conservadorismo. Contudo, era uma voz dissonante diante de espectadores europeus e de concorrentes, com exceção de duas poetas pretas com quem logo a brasileira se entrosou: a representante da Bélgica, Lisette Ma Neza, originalmente de Ruanda, e a canadense Ifrah Hussein, natural de Toronto, que foi a primeira mulher a representar seu país na Copa do Mundo de Slam.

As três poetas se conheceram no mundial e os laços que as uniram vão além da rima, da métrica e da geografia. Nota-se, na letra da poesia transcrita acima, que Bell Puã improvisou um verso para inserir os nomes de Ifrah e Lisette entre as mulheres vítimas do machismo patriarcal. Sororidade que se transfigura em dororidade, no neologismo de Piedade (2017)PIEDADE, V. (2017). Dororidade. São Paulo: Editora Nós., já que eram as únicas mulheres pretas que versaram sobre racismo, machismo e violência estrutural no palco francês. Essas feridas ainda abertas de um passado colonial levam essas mulheres racializadas a buscarem a cicatrização na alteridade, na comunhão da dor, na poesia-denúncia, na escuta e na performance (po)éticas. Há um certo desconforto no ambiente europeu quando essas feridas vêm à tona, o que será discutido a seguir.

Outro movimento de empatia foi o convite de Bell Puã para que Ifrah e Lisette viessem ao Brasil partilhar sua poética no bairro central da Pequena África, no Rio de Janeiro, na Festa Literária das Periferias (FLUP)18 18 Em 2018, a FLUP foi marcada especialmente pela presença de poetas negras. , em outubro do mesmo ano. Lisette veio e levou o vice-campeonato da FLUP. Aqui a poeta ruandesa estava em casa, uma vez que as práticas de letramentos (Street, 2014STREET, B. V. (2014). Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial.) nos eventos de slams brasileiros19 19 Apoiada em Street (2014), defino os slams como eventos de letramentos que envolvem práticas sociais e culturais de leitura e escrita poéticas. Em minhas palavras: "Como eventos de letramento, os slams apresentam traços comuns observáveis: há um slammaster que chama o poeta-slammer ao palco que, por sua vez, apropria-se do microfone (quando há) para declamar, em três minutos, sua poesia em voz alta, às vezes (quase) gritando seus versos, valendo-se do corpo e da voz, em ato performático; há um público que interage com aplausos, gritos, assovios, onomatopeias; há regras que regem a batalha poética; há o jurado escolhido aleatoriamente na plateia presente; há um DJ que toca música nos intervalos das performances; há um slogan para emplacar o nome do .slam; enfim, há um "todo" de regras nesse campeonato de poesias." (Neves, 2021, p. 81). são muito semelhantes às dos slams de outros países do Sul Global, no sentido de que nesses slams prevalecem as poesias artivistas e de combarte, tema da próxima seção.

3. POESIA-SLAM. ARTIVISMO E COMBARTE NO SUL GLOBAL

A poesia-slam é compreendida por diversos poetas, especificamente do Sul Global, como artivismo, ou seja, como uma arte indissociável do ativismo. Na contextualização de Vilar (2019)VILAR, F. (2019). Migrações e periferias: o levante do slam. Estudos da Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 58, p. 1-13., o neologismo surgiu nos anos 1960 durante os movimentos de contracultura. Nos anos 1990, com a internet, o termo voltou a ser usado, dessa vez não apenas para se referir a uma prática de arte política, mas para reavaliar os conceitos de arte e de política. Nas suas palavras:

Os projetos artivísticos pensam a dimensão política da arte e cruzam os territórios do protesto social, baseados numa lógica de que a validade da arte só é possível se esta for capaz de transformar situações sociais e históricas politicamente significantes. As/os artistas fazem emergir novos cenários e possibilidades de fruição, de participação e de criação artística ao tomar o espaço urbano. Dessa maneira amplificam, sensibilizam e problematizam para a sociedade suas causas e reivindicações sociais (Vilar, 2019, p. 4VILAR, F. (2019). Migrações e periferias: o levante do slam. Estudos da Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 58, p. 1-13.).

Ainda de acordo com o/a autora, para o/a artista ativista é fundamental o reconhecimento das alteridades e a crítica à contemporaneidade. Na dualidade entre arte e ativismo, a relação entre ética e estética amplia-se, permitindo assim emergir novas subjetividades e novos discursos no campo da política. Esse modus operandi possibilita a entrada no debate público de temas que não costumam constar na agenda de países europeus, como é o caso do racismo estrutural e da colonização, por exemplo. Além disso, quando a iniciativa artística se atrela ao combate, criando novas formas de levante, tem-se o combarte – outro neologismo empregado para definir a poesia-slam (Vilar, 2019VILAR, F. (2019). Migrações e periferias: o levante do slam. Estudos da Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 58, p. 1-13.).

É nesse sentido que podemos dizer que a poesia-slam é uma expressão artística de protesto, de denúncia, de levante, de resistência, de militância, produzida por artistas da/na periferia – uma literatura de artivismo e de combarte, portanto. Bell Puã, Lisette Ma Neza e Ifrah Hussein se tornaram parceiras no artivismo e no combarte de cada dia ao colocarem os holofotes de suas poesias-slams nas lutas contemporâneas que envolvem questões de gênero, raça e (de)colonialidade. A poesia da brasileira se conectou com a poesia da ruandesa e da canadense, dividindo com elas – mulheres igualmente negras, portanto, vítimas de violências históricas – subjetividades alterizadas: "uma história ligada pela colonização e alterização de corpos não-brancos como o seu" (Vilar, 2020, p. 140VILAR, F. (2020). Slam: periferia, pós-memória e identidade. Rivista di Studi Ibero Americani, v. 12, n. 2, pp. 135-152.).

Rejane, a Rainha do Verso, em entrevista ao Jornal Literatura Comunica (Gran, 2021, p.10GRAN, I. (2021). Slam das Minas RJ: a voz das mulheres nas ruas do Rio de Janeiro. Jornal Literatura Comunica, ano 3, n. 8, p. 9-11.), reconhece que:

O slam no Brasil foi abraçado pela rua e suas questões, portanto ele vem cumprindo esse papel de arte transgressora da palavra. Vejo o slam como narrativa decolonial, pois são muitas narrativas particulares que se unem e nem todas trazem esse compromisso com a estrutura ocidental de vivências e narrativas20 20 A poeta Rejane não diferencia "eventos de slam" do gênero discursivo "poesia-slam", ao contrário do que faço (cf. Neves, 2021). .

De fato, não são todos/as os/as poetas-slammers que são atravessados/as por propósitos artivísticos, engajados/as no combarte, tampouco em narrativas decoloniais. Esse é um traço da poesia-slam presente nos eventos de slam no Brasil e em outros países do Sul Global, tal como pude averiguar ao assistir a outros campeonatos mundiais que não o realizado há 17 anos na França. Na Copa do Mundo de Slam, temas que ousam questionar o passado colonial europeu, abrindo as feridas do racismo, do patriarcado, da escravização, da imigração, da xenofobia, da religião etc. provocam, consciente ou inconscientemente, um mal-estar, e as notas dos/as jurados/as – todos franceses21 21 Homens e mulheres que estão na plateia assistindo ao campeonato. Geralmente, poetas ou frequentadores de slams na França. , diga-se de passagem – refletem isso. Notadamente, os eventos de slams realizados em países colonizados do Sul Global se tornaram palco para os/as poetas revisitarem a história, em uma espécie de acerto de contas com o passado, visando a um futuro menos injusto e desigual, evitando, assim, novas formas de colonialidade (Quijano, 2005QUIJANO, A. (2005). Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO Livros, pp. 117-142.; Mignolo, 2017MIGNOLO, W. D. (2017). Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, p. 1-18.).

Na entrevista com Bell Puã, realizada em 10 de maio de 2018, antes da participação da slammer na semifinal do campeonato22 22 A entrevista semiestruturada durou cerca de 20 minutos e foi gravada apenas em áudio, pelo celular da autora-pesquisadora, com a devida autorização da poeta. A entrevista foi posteriormente transcrita e alguns dos desvios característicos da oralidade foram eliminados. , falamos a respeito dessas impressões (recíprocas) sobre a Copa do Mundo de Slam. Destaco aqui um excerto:

Autora: Que temáticas em comum você apontaria entre as poesias-slams do Brasil e essas performadas pelos poetas que você conheceu aqui na Copa do Mundo de Slam?

Bell Puã: Ah, sinceramente, só há coisas em comum com o slam do Brasil os slams de pessoas que também são negras, não importa de onde elas vêm, mas que também são negras e que tenham lutas, assim, grandes. Porque o que eu notei aqui é que, na verdade, o slam dos europeus, assim, pelo o que eu vi do escocês, de Quebec, e outros, não é político. E não tem nada a ver com a proposta do nascimento do slam que vem do hip-hop, que vem do gueto, enfim, eu não achei que está alinhado.

Autora: Há outras semelhanças e/ou diferenças nesses dois universos, Brasil e mundo, que você tenha percebido nessa experiência aqui?

Bell Puã: Falar não só do racismo, mas também do sexismo. A francesa até fala de sexismo e a poeta de Israel também, mas, digamos assim, no geral, principalmente os homens, não existe aquela crítica política.

Autora: Isso é diferente no Brasil?

Bell Puã: Com certeza, no Brasil é totalmente político. E outra diferença é que vim do Brasil, da América Latina, então, eu sou a única da América Latina aqui. Tem vários poetas de países europeus, mas da América Latina não. E eu trago questões em relação a isso, mas eu percebi que para eles é muito mais fazer jogo de palavras, trocadilhos com a poesia.

Autora: Você tem notado isso no campeonato?

Bell Puã: Sim, com certeza, inclusive ontem eu fiquei muito chocada: a minha amiga da Bélgica23 23 Ela se refere a Lisette Ma Neza, representante da Bélgica. tirou pontuações tão baixas porque ela estava falando de coisas muito sérias, muito importantes. Enfim, no Brasil vale muito o assunto, a importância é dada ao assunto. Aqui não.

Autora: Mais alguma coisa que você queira falar, que você ache importante constar em sua entrevista para um artigo acadêmico?

Bell Puã: Eu espero que o slam não perca sua essência, sabe? Porque eu tenho sentido isso aqui, esse desconforto, e eu espero que não se perca mesmo, porque essa foi a forma que os negros, dos Estados Unidos, porque começou lá o movimento, encontraram de usar uma poesia que fosse combativa, porque poesia de amor, poesia de piada existem, sempre existiram, mas poesia combativa é que é de slam.

A leitura de Bell Puã sobre o mundial na França encontra eco em outros poetas-slammers e estudiosos do assunto, mas não há uma concepção única e universal de slam. Segundo seu criador, inicialmente o slam propôs um movimento de reunir poetas desconhecidos em Chicago, que não eram lidos nem validados como tal, mas que gostavam de partilhar suas poesias. Nas entrevistas que já concedeu24 24 Como, por exemplo, no filme-documentário Slam: voz de levante, em que foi entrevistado por Roberta Estrela D'Alva. Mais recentemente, em 09 de dezembro de 2023, Marc Smith veio pela primeira vez ao Brasil para participar da Jornada Literária BibliON: 15 anos de ZAP! SLAM, em São Paulo. Nesse evento, voltou a falar da origem e dos rumos do slam, sem rótulos e sem censuras. , Marc Kelly Smith afirma que a poesia-slam abraça ideais humanísticos universais e atende a um amplo espectro de participantes. Entretanto, como sabemos, o poetry slam viajou pelo mundo e, consequentemente, ganhou novas versões de acordo com a cultura dos países que visitou.

Desse modo, quando os eventos de slam chegaram ao Brasil na primeira década dos anos 2000, encontraram aqui os saraus literários, as batalhas de MCs e o rap dos Racionais, que já faziam sucesso nas periferias, sobretudo da capital paulista. Logo, foi ali que a poesia-slam encontrou o seu "lugar de fala", nos termos de Djamila Ribeiro (2017)RIBEIRO, D. (2017). O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento; Justificando., e de escuta25 25 Marc Smith definiu o poetry slam como um campeonato de spoken word (poesia falada), porém, nas competições, os/as poetas falam no máximo ao longo de nove minutos, se somarmos as três rodadas de poesias de três minutos, enquanto a plateia escuta versos performados por mais de uma hora. Tal matemática nos permite dizer que os eventos de slams são mais um lugar de "escuta" que de "fala". O slam exige uma escuta atenta, receptiva, amistosa, quase cúmplice, de modo que a arena se transfigura em uma espécie de divã. Nesse sentido, ouso dizer que, ao menos nos campeonatos a que tenho assistido no Brasil, a definição de slam como "batalha de poesias" caducou. Não há uma "batalha" efetivamente, pois, mais do que o desejo de vencer a competição de poesias, está a catarse do (re)encontro coletivo, que se dá a cada mês ou a cada ano. É assim que os slammers compartilham e comungam suas dores poéticas e políticas. , acomodando-se, e assim criando o que Michael Warner (2002, p. 118-119)WARNER, M. (2002). Publics and Counterpublics. New York: Zone Books. chamou de "contrapúblico subalterno", isto é, um público formado por pessoas marginalizadas, que se sentem excluídas dos "públicos dominantes", mas que desejam ter o seu lugar de fala e escuta respeitado.

De acordo com o autor, esses espaços de "contrapúblico subalterno" visam não apenas se contrapor aos "públicos dominantes", reforçando então o estatuto depreciativo histórico e colonialmente consolidado; mais do que isso, vislumbram romper os paradigmas hegemônicos, para que assim os/as poetas possam ressignificar suas identidades aos presentes que ali estão para falar e escutar poesias-slams. Nesse sentido, podemos dizer que o slam, como evento de letramento poético, é uma arena democrática de artivismo e de combarte, criador de contrapúblicos e de novas e diversas identidades.

É certo, contudo, que não podemos generalizar. Nem todo evento de slam é formado de contrapúblico, nem toda poesia-slam é artivismo e combarte. O próprio criador definiu sua criatura como ampla e universal, portanto, sem rótulos classificatórios. A lógica de Bell Puã ao associar o slam ao hip hop, ao gueto, aos negros estadunidenses faz todo sentido, porque foi na periferia de Chicago que o slam nasceu, ali está o seu embrião, ou a sua essência, como disse a slammer na entrevista. Porém, a criatura ganhou asas e coração, e saiu a vagar pelo mundo de Norte a Sul Global. Não há como controlar a "ordem dos discursos", já diria Foucault (2006)FOUCAULT, M. (2006). A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 14a Ed. São Paulo: Loyola., mas podemos ter nossas preferências éticas e estéticas e, no Brasil, assim como em outros países da América Latina e da África, os eventos de slams tornaram-se uma ágora revolucionária, e a poesia-slam performada, um ato político.

Mesmo que muitos slammers repitam que não há uma temática específica para a poesia do slam, que todos os temas são bem-vindos ao evento, o fato é que as poesias que não tratam de temas políticos, de denúncia, de militância, de crítica social, de histórias de luta e resistência, de (de)colonialidade, não ganham os campeonatos de poesias no Sul Global, contrariamente ao que ocorre no mundial da França. Como bem percebeu Bell Puã, lá valorizam mais a forma do texto poético, então os/as poetas primam por "fazer jogo de palavras, trocadilhos com a poesia", reconhece ela, decepcionada; já "no Brasil vale muito o assunto, a importância é dada ao assunto. Aqui não". Para a slammer, "poesia de amor, poesia de piada existem, sempre existiram, mas poesia combativa é que é de slam", conclui.

Eis aí uma questão que se coloca aos estudiosos da literatura e que resvala na provocação deste dossiê. Primeiramente, a poesia-slam é ou não literatura? É ou não um (novo) gênero poético? É ou não livre de temáticas específicas? É ou não "apenas" um jogo de rimas? Deve ou não ser política, de protesto, de denúncia, de militância, de luta, de resistência? Há poesia apolítica? É possível desvincular ética e estética?

O canônico Harold Bloom, por exemplo, em entrevista à revista The Paris Review (2000)BLOOM, H. (2000). Interviewed in "The Man in the Back Row Has a Question VI", by David Barber. The Paris Review, n. 154., tratou os eventos de slam com desprezo, chamando aquela poesia declamada de idiota, e a acusando pela morte da arte (Bloom, 2000BLOOM, H. (2000). Interviewed in "The Man in the Back Row Has a Question VI", by David Barber. The Paris Review, n. 154.). Contrariamente ao crítico, a minha aposta é de que a poesia-slam ressuscita o gênero poético oral ao dar voz às coletividades subalternizadas, ao resgatar o corpo para as performances, ao investir na sua potência ética e estética, assim imbricadas, revelando-se literatura contemporânea por excelência.

Baseando-me na noção antropológica de Brian Street (2014)STREET, B. V. (2014). Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial., defendo ainda que são as práticas (sociais e culturais) de leitura e escrita poéticas dos/das slammers que vão definir "o que é e o que não pode ser" poesia-slam. Ao analisar as poesias que foram performadas tanto na Copa do Mundo de Slam em Paris, em 2018 e 2023, quanto no World Poetry Slam Championship, no Rio de Janeiro, em 2023, posso concluir que a concepção de poesia-slam é compreendida de maneira diferente entre Norte e Sul Global, entre colonizadores e colonizados, entre brancos e pretos, entre homens e mulheres.

4. A LIGA DOS CAMPEÕES DA EUROPA E O PACTO DA BRANQUITUDE

Se o rap do século passado deu voz a poetas do gênero masculino, o slam da contemporaneidade deu voz para as mulheres (cis e trans) se expressarem. Contudo, esse cenário não se reflete no mundial da França. Em 2018, dos 23 competidores, 13 eram mulheres. Em 2023, dos 20 competidores, apenas sete eram mulheres. E de lá para cá, só homens europeus e brancos venceram o campeonato, sendo os três últimos italianos, como já apontado anteriormente: Sam Small, da Escócia (2018), Jérôme Pinel, da França (2019), Dani Orviz, da Espanha (2020), Giuliano Logos, da Itália (2021), Lorenzo Maragoni, da Itália (2022) e Filippo Capobianco, da Itália (2023)FILIPPO CAPOBIANCO: Divergenze – Storia Di Un Cosmologo Innamorato || Italie || Finale. (2023). Grand Poetry Slam/International. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=38VdpMEKX9s&list=PLdjrqV2jBeLJV8RkVbyJ4uaZlpDUdXSWH&index=31. Acesso em: 27 dez. 2023.
https://www.youtube.com/watch?v=38VdpMEK...
– eis o "pacto da branquitude", na expressão certeira de Cida Bento (2022)BENTO, C. (2022). O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022..

Não há semelhanças performáticas ou temas em comum entre esses poetas. Em geral, poetizam fatos cotidianos, ou questões mais amplas da sociedade contemporânea, com alguma pitada de crítica social e às vezes de humor. Não há, efetivamente, artivismo e combarte em seus versos. Por essa razão, nos interrogamos: por que até hoje não houve uma poeta mulher, racializada como não branca, do Sul Global, a levantar o troféu na Copa do Mundo de Slam, tendo em vista que são os/as jurados/as, pessoas do público presente, que determinam as notas? Há de se acrescentar que muitas vezes é a reação da plateia (aplausos, assovios, risos, gritos, estalos de dedos, expressões onomatopeicas) que influencia suas notas. Por que, então, jurados/as e plateia não elegem campeãs essas mulheres pretas, representantes de países colonizados? Por que se entusiasmam tanto com a poesia e a performance de slammers homens, racializados como brancos, de países colonizadores?

Nas duas Copas do Mundo de Slam em que estive presente, em 2018 e em 2023, notei que os textos poéticos que tratavam de histórias da colonização incomodavam os europeus. Talvez seja o efeito da "afasia colonial", expressão tão bem empregada por Ann Laura Stoler ao se referir à memória do passado colonial na França, recuperada aqui por Miguel Cardina (2021, p. 2)CARDINA, M. (2021). A afasia colonial e as encruzilhadas da memória. Memoirs Newsletter, Coimbra, n. 136, p. 1-4.. De acordo com o autor português:

este passado sempre esteve presente, embora "difícil de reparar numa linguagem que responda à violência díspar que gerou". Ao invés da noção de esquecimento, que remeteria para algo rasurado ou apagado, a noção de afasia captaria assim este sentido de "oclusão do conhecimento", patente na dificuldade de construir quadros de análise capazes de relacionar adequadamente palavras, conceitos e coisas. A Guerra Colonial portuguesa é um dos casos que Stoler menciona, de passagem, enquanto exemplificativo dessa obstrução memorial. Uma obstrução que, em bom rigor, pode e deve ser estendida à íntima e mais vasta conexão entre violência e colonialismo.

Segundo Cardina, há mais cinismo que ingenuidade nessa suposta dificuldade de expor em "palavras, conceitos e coisas" uma análise crítica do passado de violência e colonialismo. Essa pseudo "oclusão do conhecimento" é, então, rompida pelas vozes poéticas dos/as slammers que escancaram seus versos de resistência – daí o constrangimento do público na performace de Bell Puã (e, também, de Lisette Ma Neza e Ifrah Hussein) na Copa do Mundo de Slam em 2018. As três Anastácias de pele negra desmascararam os brancos colonizadores europeus no mundial de slam – em analogia a Fanon (2020)FANON, F. (2020). Pele negra, mascaras brancas. Tradução de Sebastião Nascimento e colaboração de Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora..

Em 2018, edição de que participou Bell Puã, o vencedor foi o escocês Sam Small. Pode-se dizer que seus textos eram prosas poéticas, narrativas recheadas de humor, que ele declamava de cor em uma velocidade de tirar o fôlego da plateia, que, por sua vez, gargalhava com aquela performance. No palco, não se movimentava muito e gesticulava pouco, mas sua memória, dicção e rapidez para recitar impressionavam. Em 2023, primeira edição que não contou com a participação do Brasil, o vencedor foi o italiano Filippo Capobianco. O poeta, extremamente carismático, conquistou a plateia logo na primeira rodada. Uma jornalista francesa, que assistia ao espetáculo ao meu lado, quis entrevistá-lo no primeiro dia do campeonato, impactada com a performance dele. Filippo foi ovacionado em todas as rodadas desde o primeiro dia. Ao final do campeonato, levou o troféu.

Duas poesias que Filippo performou em Paris, na Copa do Mundo de Slam de 2023, foram performadas no World Poetry Slam Championship (WPSC), na FLUP-RJ, em 2023: "Confessioni da Marina" ("Confissões de homens do mar")26 26 Aproprio-me das traduções que foram apresentadas no telão da WPSC/FLUP-2023. A primeira performance está disponível em Abertura FLUP/WPSC (2023, de 1:16:47 a 1:19:58). , em que o poeta, em tom sério, melancólico, confessa ao pai (seu interlocutor) que está apaixonado por outro homem; e "Divergenze: storia di un cosmologo innamorato" ("Divergências: história de um cosmólogo apaixonado")27 27 A segunda performance está disponível em Abertura FLUP/WPSC (2023, de 1:56:43 a 2:00:30). , em que o poeta, em tom de humor, sarcástico, narra a sua história amorosa: ele, um cosmólogo, apaixona-se e se casa com uma mulher terraplanista (Figura 2). Notam-se algumas semelhanças entre as performances apresentadas aqui e aquela à qual eu havia assistido na França. Tudo bem ensaiado, sem erros, a mesma empatia, entonação de voz, porém, no Brasil, ninguém riu durante sua segunda apresentação, e Filippo sequer passou para a etapa seguinte. Desse modo, sua participação no WPSC encerrou-se já no primeiro dia. A seguir, o texto poético transcrito em português:

Figura 2:
sequência de imagens de Filippo Capobianco no World Poetry Slam Championship (FLUP-RJ, 2023).

Divergências: história de um cosmólogo apaixonado

Saio do congresso e ela está ali
Do outro lado da rua, uma visão
Não acha que deixei cair a caneta por emoção
Nem tive tempo de pegá-la e ela sumiu: maldição!
Procuro ela na multidão, em Milão, às dezoito horas
Tudo por uma desconhecida, penso em como estou agora
Quando perdi as esperanças
Numa dança de comparsas
A multidão dispersa e ela está ali no centro
Não tenho tempo de refletir e estou a um passo de sua frente
Ela me olha. O que eu lhe explico?
Se eu não falo de trabalho, sou meio caverní-co-la...
Oi! Eu sou cosmólogo de formação e conheço
Fenômenos do céu que sei descrever como um artista:
Um raio, por exemplo, não pode mesmo despertar paixão
Mas no primeiro instante que te vi, foi amor à primeira vista
E ela: "cosmólogo? Fala sério! Eu sou terraplanista".
Terrapla... o quê? Não, peraí, há um limite para o embaraço.
Não o seu! O meu! Não se sinta atacada!
Mesmo que no fundo dos seus olhos eu veja algo de mágico
Talvez seja melhor que eu vá.
Seis meses depois comigo estava casada.
Lua de mel: tour pela Austrália
Você me disse: "pena que era falso" de volta à Itália
Entro na universidade, viro professor
Lhe dou para ler meus artigos: "que belas fábulas, amor!"
Teimosa como uma mula, forte como uma explosão
Bem igual ao nosso filho
Criado com um pouco de confusão: – A terra é um prato
– "Geoide" é o termo exato
– A Via Láctea é só fumaça,
– Porém, não conte a ninguém...
– Essa história do espaço é só um filme muito real
Uma rede de complôs internacional
A alunagem, por favor, tirado de manual
Mas são todos hologramas, como a Aurora Boreal
– Ah, não. A Aurora Boreal, não!
Escute, Joãozinho: o Sol
Como todas as outras estrelas é uma bomba sempre acesa
Que dispara centelhas no espaço interestelar
Que é escuro e frio de rachar
Elas, grandes aventureiras,
Nessa viagem espetacular
Atingem a Terra e o seu campo magnético
Que um pouco as atrai e um pouco as repele
Como as cócegas que lhe faço de modo frenético
E assim como quando você ri e se sente leve
Elas também, felizes, dançam no céu
E, então, viram luz, sim, como (minha) mãe proclama
Mas é o efeito Compton, não um holograma
Quando você ficou doente, não quis se curar
"Meu corpo", você vivia dizendo, "não poderão estudar"
Tentei convencê-la de que podia se salvar
Eu deveria constrangê-la a ir antes ao hospital
O filme da minha vida,
Um estúpido melodrama
Ficamos trancados naquele quarto por dias
A trilha sonora do eletrocardiograma
Entre os meus papéis as galáxias e você que embranquecia
Até o dia em que de repente acordei envelhecido
Você se virou na cama e me sussurrou no ouvido
Nessa viagem espetacular
Atingem a Terra e o seu campo magnético
"Eu teria dito terra plana mil, mil vezes nessa hora
Para ouvir você contar mais uma vez sobre a aurora".

As notas lá e cá refletem tal diferença na recepção de suas poesias. Aqui, Filippo pontuou 5,8; 10,0; 9,7; 8,2 e 9,0 na primeira poesia, e 7,7; 9,8; 4,8; 8,1 e 9,72 na segunda, somando 52,428 28 Como já dito anteriormente, segundo a regra do slam, as notas mais baixas e as mais altas são desconsideradas e a média é a soma das restantes. . Lá, na Copa do Mundo de Slam, Filippo escolheu essa poesia para performar na final do campeonato, já que era a rodada decisiva. Com "Divergenze" (cf. Filippo Capobianco, 2023FILIPPO CAPOBIANCO: Divergenze – Storia Di Un Cosmologo Innamorato || Italie || Finale. (2023). Grand Poetry Slam/International. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=38VdpMEKX9s&list=PLdjrqV2jBeLJV8RkVbyJ4uaZlpDUdXSWH&index=31. Acesso em: 27 dez. 2023.
https://www.youtube.com/watch?v=38VdpMEK...
), o poeta foi pontuado com uma nota 9,3, duas notas 9,6, e dois 10,0. Nas três rodadas da final, o italiano apresentou, respectivamente: "La Nascita de Cecco Palchi" ("O nascimento de Cecco Palchi"), "Divergenze – storia di um cosmólogo innamorato" e "Applichèscion" ("Aplicação"). E terminou o campeonato mundial francês com 87,5 como média final, somando as notas das três poesias performadas. O segundo lugar ficou para a poeta Mithago, da Inglaterra, com 87,3; e o terceiro, para a escocesa Angie Strachan, com 87,1 – três países da Liga dos Campeões.

Não é possível afirmar que haja temas e perfomances pré-determinados para vencer o campeonato da Copa do Mundo de Slam, porém, é curioso o fato de tanto em 2018 quanto em 2023 terem vencido poetas que performaram narrativas sarcásticas, que apelavam para um certo humor. Compartilho a impressão de Alcalde, que encarou esse mesmo tipo de concorrentes em 2014, o que me leva a concluir que é uma prática poética comum naquele mundial. Nas suas palavras:

Os temas e estilos dos poemas eram diferentes da cena brasileira. Muitos liam o poema no papel sem muita interpretação, falavam de situações complexas e outras engraçadas, beirando a comédia stand up. Lembrava o início do ZAP! SLAM quando participavam. Pessoas de diferentes idades, estilos, também tinham uns piadistas e vanguardistas, depois foi ficando mais periférico, mais jovem e mais próximo ao rap (Alcalde, 2022, p. 207ALCALDE, E. (2022). Nos corre da poesia: autobiografia de um slammer. São Paulo: Selin Trovoar.).

A comparação com a "comédia stand up" me pareceu bastante acertada. Sam Small e Filippo Capobianco não liam seus poemas no papel, ao contrário, encenavam em ato performático e suas poesias narravam "situações complexas e outras engraçadas". Tais poéticas e performances são, portanto, as que agradam jurados/as e plateia ali presentes: de público dominante e não de contrapúblico subalterno. Destaca-se ainda, na percepção de Emerson Alcalde, que aquele estilo lembrava o início do ZAP! SLAM, primeiro slam do Brasil, inaugurado por Roberta Estrela D'Alva, em 2008, em São Paulo, conforme contextualizamos na seção introdutória. De acordo com o slammer, somente "depois foi ficando mais periférico, mais jovem e mais próximo ao rap".

Muito provavelmente porque o público e os/as poetas que frequentavam o ZAP! SLAM eram, de modo geral, artistas ligados/as ao Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, como a própria fundadora. Os slams migraram do teatro para as ruas quando Emerson Alcalde criou o Slam da Guilhermina, em 2012, na Zona Leste paulistana.

A partir de então é que o evento poético passou a se identificar com a periferia e a se configurar como prática de letramento crítico e decolonial. O Slam Resistência seguiu a mesma toada e logo ganhou inúmeros seguidores nas mídias. Assim, no Brasil, o poetry slam se adaptou rapidamente ao país periférico, ao país colonizado, ao país da América Latina, ao país do Sul Global e ao seu respectivo contrapúblico subalterno.

Como explica Comikk MG, um dos fundadores do Abya Yala Poetry Slam, na entrevista que concedeu a Cavalcante (2022, p. 294)CAVALCANTE, G. (2022). Abya Yala Poetry Slam: a Copa Slam das Américas. Entrevista com Comikk Mg (México). Revista Terceira Margem, v. 26, n. 49, p. 291-299.: "[...] o Slam não é como na Europa, que se trata de competência, de competir, mas sim de denunciar, de compartir e de todas as formas que podemos expressar o que pensamos, o que sentimos. E é super interessante". O poeta mexicano enfatiza que nessa Copa América de Slam outras questões importam:

nossos problemas sociais, econômicos e políticos e, entre nós, vamos dialogando e aconselhando-nos. [...] E chegamos ao acordo de nomear o Slam como um exercício social, um pensamento crítico que não acontece somente na poesia em âmbito acadêmico ou setorizado por temas elitistas. (Cavalcante, 2022, p. 293CAVALCANTE, G. (2022). Abya Yala Poetry Slam: a Copa Slam das Américas. Entrevista com Comikk Mg (México). Revista Terceira Margem, v. 26, n. 49, p. 291-299.).

Vale dizer que as poesias de Filippo apresentadas nos dois mundiais também tinham sua conotação política. Na primeira, um filho revela sua homossexualidade ao pai; na segunda, uma esposa terraplanista é descrita de maneira caricata. A crítica à homofobia do pai e ao anticientificismo calcado na esposa estão evidentes nos dois textos poéticos. No entanto, na segunda performance, o estilo comédia stand up e a tentativa de arrancar risos da plateia carioca com o verso-clímax "Ah, não. A Aurora Boreal, não!" não conquistou o júri – formado por pessoas de diversas nacionalidades29 29 Roberta Estrela D'Alva e Emerson Alcalde, apresentadores do mundial (slammasters), tiveram esse cuidado de convidar pessoas de diferentes nacionalidades, presentes na plateia da FLUP, para atuar como jurados/as. –, e o italiano não emplacou na competição. Nosso (contra)público tem "sangue latino", logo, "nem tudo é divino nem maravilhoso". Preferimos o verso-epígrafe de Bell Puã. Não por acaso, a vencedora do WPSC (FLUP-RJ, 2023) foi a poeta colombiana Lady La profeta: primeira vez que uma latina-americana, poeta do Sul Global, ganha um mundial de slam.

  • 1
    Verso do poema "Tu no puede comprar mis dolores", performado por Bell Puã na Copa do Mundo de Slam em 2018.
  • 2
    Todos os vídeos da Copa do Mundo de Slam estão disponíveis no canal do YouTube (Grand Poetry Slam/International, [s.d.]GRAND POETRY SLAM/INTERNATIONAL. ([s.d.]). Disponível em: https://www.youtube.com/@grandpoetryslaminternation6223. Acesso em: 03 jan. 2024.
    https://www.youtube.com/@grandpoetryslam...
    ).
  • 3
    No original: "L'objectif de cette Coupe du Monde est de permettre aux poètes étrangers de venir s'exprimer, de nous faire découvrir leur amour pour les mots, tout ça dans la bonne ambiance".
  • 4
    Muitos desses eventos já existiam antes da pandemia da Covid-19, como o "Slam des Cancres", "Slam de Cris", "Slam à femmes", "Poesia del Tango", "Yoga & Poésie" e o "Slam National de Haïkus", porém, nem todos foram realizados online nos dois anos pandêmicos. Vale acrescentar que, na semana em que acontece a Copa do Mundo de Slam em Paris, todo o Quartier de Belleville é tomado pelos eventos de slam: há cartazes espalhados pelas esquinas, placas indicando os locais das apresentações, bares e restaurantes da região ficam lotados; há muita música, poesia e flertes intra e internacionais. Trata-se de um evento cultural comparável à virada paulista, não no sentido da dimensão geográfica, mas do impacto cultural naquele quartier periférico de Paris.
  • 5
    No original: "ÉroSlam", "Slam des Cancres", "Slam de Cris", "Slam National de Haïkus", "Poésie du Climat", "Poesia del Tango", "Yoga & Poésie", "Slam à femmes", "Slam des fiertés", "Espèce de slam à la Cocteau. O penúltimo refere-se ao "orgulho gay", pois é um slam para "pessoas não binárias, abertas e sem censura", diz programa. O último é uma homenagem à Jean Cocteau, um renomado ator, diretor de cinema, poeta, escritor, teatrólogo, cenógrafo, pintor e escultor francês.
  • 6
    Aproveito para retificar aqui a contextualização equivocada em artigo escrito anteriormente, no qual atribuímos a Roberta Estrela D'Alva o papel de debutante (cf. Neves, Santos, 2023NEVES, C. A. de B.; SANTOS, S. R. de J. C. (2023). Luiza Romão e "sua poema" de resistência decolonial – Slam das Minas, presente! Revista Terceira Margem, v. 27, n. 51, p. 95-118.).
  • 7
    Em 2018, havia 23 poetas inscritos, cada um representando seu país. Assim, três chaves contaram com seis poetas e uma chave ficou com cinco poetas competindo entre si.
  • 8
    A ideia de criar um Slam das Minas surgiu porque as poetas notaram que, de modo geral, elas tinham pouca visibilidade nos slams e quase nunca chegavam às finais dos campeonatos nacionais. Decidiram então fundar um slam só de mulheres para que assim pudessem gritar e ser escutadas em suas temáticas mais urgentes. O primeiro Slam das Minas surgiu em 2015, em Brasília; em 2016, a iniciativa chegou a São Paulo graças à poeta Luz Ribeiro. A partir de 2017, a versão se espalhou por vários estados brasileiros. Participam do Slam das Minas somente mulheres (cis ou trans), em sua maioria, jovens pretas, pobres, periféricas, que, em "suas poemas", denunciam toda e qualquer forma de violência que sofrem: o estupro, o racismo, o feminicídio, o sexismo, a misoginia, a LGBTQIAPN+fobia etc. (Neves, Santos, 2023NEVES, C. A. de B.; SANTOS, S. R. de J. C. (2023). Luiza Romão e "sua poema" de resistência decolonial – Slam das Minas, presente! Revista Terceira Margem, v. 27, n. 51, p. 95-118.).
  • 9
    Em 2021, Joice Zau foi campeã do Slam Br, o que lhe garantiu a vaga para representar o Brasil na Copa do Mundo de Slam em 2022, na França. Também em 2022, ela foi a representante brasileira na primeira edição do World Poetry Slam Championship (WPSC), que aconteceu na Bélgica. Em seu currículo, constam ainda a vitória na Copa Lusófona Feminina de Slam e um vice-campeonato no Slam da Guilhermina. Ou seja, a irmã-africana é um fenômeno nos eventos de slams! É preciso explicar que não é a certidão de nascimento que importa e sim o país onde o/a slammer compete. Joice Zau, mesmo sendo de Angola, participou dos campeonatos brasileiros de slam, logo, foi para os mundiais representando o Brasil. Em 2020, por exemplo, a brasileira Maria Giulia Pinheiro, que reside em Coimbra, foi a representante de Portugal na Copa do Mundo de Slam. Em 2022, foi a brasileira Carol Braga, também residente em Coimbra, quem representou Portugal no mesmo mundial na França. Aliás, a mesma Carol Braga foi quem fundou o Slam das Minas Coimbra, o primeiro Slam das Minas em Portugal. A inversão não deixa de ser irônica: poetas brasileiras "colonizando" a "metrópole" ao inaugurar um Slam das Minas em terras lusitanas – colonizadas invadem país colonizador com poesias-slams! Para mais informações sobre o Slam das Minas de Coimbra, recomendo a leitura do artigo de Saru Vidal, neste mesmo dossiê.
  • 10
    Refiro-me à Copa Slam das Américas, inaugurada em 2021 pelo rapper mexicano Comikk MG e pela multiartista brasileira Roberta Estrela D'Alva, já aqui referida. Em entrevista à pesquisadora Gabriele Cavalcante (2022)CAVALCANTE, G. (2022). Abya Yala Poetry Slam: a Copa Slam das Américas. Entrevista com Comikk Mg (México). Revista Terceira Margem, v. 26, n. 49, p. 291-299., Comikk MG assim explica o batismo do Abya Yala Poetry Slam: "um Slam de toda América, ou como sabemos do continente que foi nomeado como América. Pois para nós é importante radicalizarmos o afeto e também a memória ancestral do nosso território e por isso decidimos nomear de Abya Yala e estamos nutridos de muitas comunidades [...] de América Latina e Caribe. [...] Em realidade esse nome de Abya Yala não é um nome relacionado a México e sim de toda uma terra de antes da invasão. De como é a comunidade indígena que reivindica o nome, porque este nome, era o nosso território antes da invasão [...]" (Cavalcante, 2022, p. 293-294CAVALCANTE, G. (2022). Abya Yala Poetry Slam: a Copa Slam das Américas. Entrevista com Comikk Mg (México). Revista Terceira Margem, v. 26, n. 49, p. 291-299.).
  • 11
    Um novo Campeonato Mundial de Poetry Slam, cuja proposta foi definida por um manifesto assinado pelos seus membros, slammers de diversos países de todos os continentes. A primeira versão do WPSC aconteceu em 2022, na Bélgica. Em 2023, o evento ocorreu no Brasil (na FLUP, no Rio de Janeiro), e em 2024 será em Togo, na África. Para saber mais, consultar World Poetry Slam Organization ([s.d.])WORLD POETRY SLAM ORGANIZATION. ([s.d.]). Disponível em: https://www.worldpoetryslam.org/. Acesso em: 29 fev. 2024.
    https://www.worldpoetryslam.org/....
    .
  • 12
    Anastácia era uma mulher belíssima, negra dos olhos azuis, que viveu como escrava no Brasil em meados dos oitocentos. Ela foi sentenciada a usar uma máscara de flandres por toda a vida. A máscara de flandres era feita de chapa de aço laminada e trancada com um cadeado atrás da cabeça da pessoa escravizada, impedindo o acesso à boca. Em 1839, o artista Jacques Arago retratou em tela a Escrava Anastácia (cf. Escrava Anastácia, [s.d.]ESCRAVA ANASTÁCIA. ([s.d.]). Wikipédia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Escrava_Anast%C3%A1cia. Acesso em: 05 jan. 2024.
    https://pt.wikipedia.org/wiki/Escrava_An...
    ).
  • 13
    É importante explicar que, na regra do slam, são atribuídas cinco notas dos cinco jurados/as. A nota mais alta e a mais baixa são desconsideradas. O/a poeta é então avaliado/a a partir da média das três notas restantes.
  • 14
    Essa poesia foi mais tarde publicada com o título de "Era uma vez um Brasil conservador", em livro organizado por Mel Duarte (cf. Puã, 2019PUÃ, B. (2019). Era uma vez um Brasil conservador. In: DUARTE, Mel (Org.). Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta. São Paulo: Planeta do Brasil, pp. 30-32.). Além do título, o texto poético escrito apresenta também alterações em seus versos.
  • 15
    Sabemos que as performances são únicas, irrepetíveis e efêmeras, que se realizam na presença e no presente – um desafio para o/a poeta-performer.
  • 16
    No telão, o verso estava escrito diferente: "segundo o pensamento ocidental". Em outros momentos da apresentação, a poeta alterou alguns versos da poesia, cuja letra estava projetada no telão, sem, contudo, mudar o sentido deles. A transcrição feita aqui leva em conta o dito (e não o escrito) e performado por Bell Puã em cena.
  • 17
    Fernanda Vilar e Lívia Bertges, colegas-testemunhas, que pensaram este artigo comigo.
  • 18
    Em 2018, a FLUP foi marcada especialmente pela presença de poetas negras.
  • 19
    Apoiada em Street (2014)STREET, B. V. (2014). Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial., defino os slams como eventos de letramentos que envolvem práticas sociais e culturais de leitura e escrita poéticas. Em minhas palavras: "Como eventos de letramento, os slams apresentam traços comuns observáveis: há um slammaster que chama o poeta-slammer ao palco que, por sua vez, apropria-se do microfone (quando há) para declamar, em três minutos, sua poesia em voz alta, às vezes (quase) gritando seus versos, valendo-se do corpo e da voz, em ato performático; há um público que interage com aplausos, gritos, assovios, onomatopeias; há regras que regem a batalha poética; há o jurado escolhido aleatoriamente na plateia presente; há um DJ que toca música nos intervalos das performances; há um slogan para emplacar o nome do .slam; enfim, há um "todo" de regras nesse campeonato de poesias." (Neves, 2021, p. 81NEVES, C. A. de B. (2021). Letramentos literários em travessias na Linguística Aplicada: ensino transgressor e aprendizagem subjetiva da literatura. In: LIMA, E. (Org.). Linguística Aplicada na Unicamp: travessias e perspectivas [livro eletrônico]. Bauru, SP: Canal 6, p. 65-88.).
  • 20
    A poeta Rejane não diferencia "eventos de slam" do gênero discursivo "poesia-slam", ao contrário do que faço (cf. Neves, 2021NEVES, C. A. de B. (2021). Letramentos literários em travessias na Linguística Aplicada: ensino transgressor e aprendizagem subjetiva da literatura. In: LIMA, E. (Org.). Linguística Aplicada na Unicamp: travessias e perspectivas [livro eletrônico]. Bauru, SP: Canal 6, p. 65-88.).
  • 21
    Homens e mulheres que estão na plateia assistindo ao campeonato. Geralmente, poetas ou frequentadores de slams na França.
  • 22
    A entrevista semiestruturada durou cerca de 20 minutos e foi gravada apenas em áudio, pelo celular da autora-pesquisadora, com a devida autorização da poeta. A entrevista foi posteriormente transcrita e alguns dos desvios característicos da oralidade foram eliminados.
  • 23
    Ela se refere a Lisette Ma Neza, representante da Bélgica.
  • 24
    Como, por exemplo, no filme-documentário Slam: voz de levante, em que foi entrevistado por Roberta Estrela D'Alva. Mais recentemente, em 09 de dezembro de 2023, Marc Smith veio pela primeira vez ao Brasil para participar da Jornada Literária BibliON: 15 anos de ZAP! SLAM, em São Paulo. Nesse evento, voltou a falar da origem e dos rumos do slam, sem rótulos e sem censuras.
  • 25
    Marc Smith definiu o poetry slam como um campeonato de spoken word (poesia falada), porém, nas competições, os/as poetas falam no máximo ao longo de nove minutos, se somarmos as três rodadas de poesias de três minutos, enquanto a plateia escuta versos performados por mais de uma hora. Tal matemática nos permite dizer que os eventos de slams são mais um lugar de "escuta" que de "fala". O slam exige uma escuta atenta, receptiva, amistosa, quase cúmplice, de modo que a arena se transfigura em uma espécie de divã. Nesse sentido, ouso dizer que, ao menos nos campeonatos a que tenho assistido no Brasil, a definição de slam como "batalha de poesias" caducou. Não há uma "batalha" efetivamente, pois, mais do que o desejo de vencer a competição de poesias, está a catarse do (re)encontro coletivo, que se dá a cada mês ou a cada ano. É assim que os slammers compartilham e comungam suas dores poéticas e políticas.
  • 26
    Aproprio-me das traduções que foram apresentadas no telão da WPSC/FLUP-2023. A primeira performance está disponível em Abertura FLUP/WPSC (2023, de 1:16:47 a 1:19:58)ABERTURA FLUP/WPSC: Campeonato Mundial de Poetry Slam. (2023). Flup RJ. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-CJjFGV9R9M. Acesso em: 02 jan. 2024.
    https://www.youtube.com/watch?v=-CJjFGV9...
    .
  • 27
    A segunda performance está disponível em Abertura FLUP/WPSC (2023, de 1:56:43 a 2:00:30)ABERTURA FLUP/WPSC: Campeonato Mundial de Poetry Slam. (2023). Flup RJ. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-CJjFGV9R9M. Acesso em: 02 jan. 2024.
    https://www.youtube.com/watch?v=-CJjFGV9...
    .
  • 28
    Como já dito anteriormente, segundo a regra do slam, as notas mais baixas e as mais altas são desconsideradas e a média é a soma das restantes.
  • 29
    Roberta Estrela D'Alva e Emerson Alcalde, apresentadores do mundial (slammasters), tiveram esse cuidado de convidar pessoas de diferentes nacionalidades, presentes na plateia da FLUP, para atuar como jurados/as.
  • DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA
    A pesquisa foi realizada em campo pela autora do artigo, mas os vídeos das performances dos/as poetas referidos ao longo do texto são públicos e se encontram disponíveis no canal do YouTube, bem como as informações sobre o Grand Poetry Slam de Paris. Cf. links:
    BELL PUÃ (BRÉSIL) "Era Uma Vez". Grand Poetry Slam/International. (2018). Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=tvTzMWUrXT4&list=PLdjrqV2jBeLLV9lmIj9FAkMbKDM2fg6WL&index=20&t=3s. Acesso em: 27 dez. 2023.
    FILIPPO CAPOBIANCO: Divergenze – Storia Di Un Cosmologo Innamorato || Italie || Finale. (2023). Grand Poetry Slam/International. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=38VdpMEKX9s&list=PLdjrqV2jBeLJV8RkVbyJ4uaZlpDUdXSWH&index=31. Acesso em: 27 dez. 2023.
    GRAND POETRY SLAM/INTERNATIONAL. ([s.d.]). Disponível em: https://www.youtube.com/@grandpoetryslaminternation6223. Acesso em: 03 jan. 2024.
    WORLD POETRY SLAM ORGANIZATION. ([s.d.]). Disponível em: https://www.worldpoetryslam.org/. Acesso em: 29 fev. 2024.

REFERÊNCIAS

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    » https://www.youtube.com/watch?v=-CJjFGV9R9M.
  • ALCALDE, E. (2022). Nos corre da poesia: autobiografia de um slammer. São Paulo: Selin Trovoar.
  • ARNAUD-DEGUITRE, T. (2012). J-1 avant la finale de la Coupe du monde de Slam. Street Press. Disponível em: https://www.streetpress.com/sujet/36994-j-1-avant-la-finale-de-la-coupe-du-monde-de-slam. Acesso em: 19 dez. 2023.
    » https://www.streetpress.com/sujet/36994-j-1-avant-la-finale-de-la-coupe-du-monde-de-slam.
  • BELL PUA (BRÉSIL) "Era Uma Vez". Grand Poetry Slam/International. (2018). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tvTzMWUrXT4&list=PLdjrqV2jBeLLV9lmIj9FAkMbKDM2fg6WL&index=20&t=3s. Acesso em: 27 dez. 2023.
    » https://www.youtube.com/watch?v=tvTzMWUrXT4&list=PLdjrqV2jBeLLV9lmIj9FAkMbKDM2fg6WL&index=20&t=3s.
  • BENTO, C. (2022). O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
  • BLOOM, H. (2000). Interviewed in "The Man in the Back Row Has a Question VI", by David Barber. The Paris Review, n. 154.
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  • CAVALCANTE, G. (2022). Abya Yala Poetry Slam: a Copa Slam das Américas. Entrevista com Comikk Mg (México). Revista Terceira Margem, v. 26, n. 49, p. 291-299.
  • ESCRAVA ANASTÁCIA. ([s.d.]). Wikipédia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Escrava_Anast%C3%A1cia. Acesso em: 05 jan. 2024.
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  • FANON, F. (2020). Pele negra, mascaras brancas. Tradução de Sebastião Nascimento e colaboração de Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora.
  • FILIPPO CAPOBIANCO: Divergenze – Storia Di Un Cosmologo Innamorato || Italie || Finale. (2023). Grand Poetry Slam/International. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=38VdpMEKX9s&list=PLdjrqV2jBeLJV8RkVbyJ4uaZlpDUdXSWH&index=31. Acesso em: 27 dez. 2023.
    » https://www.youtube.com/watch?v=38VdpMEKX9s&list=PLdjrqV2jBeLJV8RkVbyJ4uaZlpDUdXSWH&index=31.
  • FOUCAULT, M. (2006). A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 14a Ed. São Paulo: Loyola.
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  • GRAND POETRY SLAM/INTERNATIONAL. ([s.d.]). Disponível em: https://www.youtube.com/@grandpoetryslaminternation6223. Acesso em: 03 jan. 2024.
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  • MIGNOLO, W. D. (2017). Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, p. 1-18.
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  • RIBEIRO, D. (2017). O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento; Justificando.
  • SLAM: VOZ DE LEVANTE. (2017). Direção e roteiro: Roberta Estrela D'Alva e Tatiana Lohmann. Produção: Exótica Cinematográfica e Miração Filmes.
  • STREET, B. V. (2014). Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial.
  • VILAR, F. (2019). Migrações e periferias: o levante do slam. Estudos da Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 58, p. 1-13.
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  • WORLD POETRY SLAM ORGANIZATION. ([s.d.]). Disponível em: https://www.worldpoetryslam.org/. Acesso em: 29 fev. 2024.
    » https://www.worldpoetryslam.org/.

Disponibilidade de dados

DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA

A pesquisa foi realizada em campo pela autora do artigo, mas os vídeos das performances dos/as poetas referidos ao longo do texto são públicos e se encontram disponíveis no canal do YouTube, bem como as informações sobre o Grand Poetry Slam de Paris. Cf. links:

BELL PUÃ (BRÉSIL) "Era Uma Vez". Grand Poetry Slam/International. (2018). Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=tvTzMWUrXT4&list=PLdjrqV2jBeLLV9lmIj9FAkMbKDM2fg6WL&index=20&t=3s. Acesso em: 27 dez. 2023.

FILIPPO CAPOBIANCO: Divergenze – Storia Di Un Cosmologo Innamorato || Italie || Finale. (2023). Grand Poetry Slam/International. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=38VdpMEKX9s&list=PLdjrqV2jBeLJV8RkVbyJ4uaZlpDUdXSWH&index=31. Acesso em: 27 dez. 2023.

GRAND POETRY SLAM/INTERNATIONAL. ([s.d.]). Disponível em: https://www.youtube.com/@grandpoetryslaminternation6223. Acesso em: 03 jan. 2024.

WORLD POETRY SLAM ORGANIZATION. ([s.d.]). Disponível em: https://www.worldpoetryslam.org/. Acesso em: 29 fev. 2024.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    09 Fev 2024
  • Aceito
    04 Mar 2024
  • Publicado
    03 Abr 2024
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