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POTÊNCIAS POÉTICAS: LEITURA E TRADUÇÃO DE POESIA EM AULAS DE LÍNGUAS ADICIONAIS

POETICAL POTENCY: READING AND TRANSLATING POETRY IN ADDITIONAL LANGUAGE CLASSES

Resumo

Buscando transpor recorrentes barreiras e receios que são postos quando se pensa a presença de textos literários e, em especial, de textos poéticos, em aulas de línguas adicionais, o presente artigo se propõe a refletir sobre quais seriam possíveis caminhos para se utilizar a poesia como uma potencialidade didática voltada ao ensino e à aprendizagem de línguas, mais especificamente da língua italiana. Nosso objetivo é, em primeiro lugar, investigar quais seriam algumas das particularidades do texto poético que poderiam estimular o contato com a língua em aprendizagem, favorecendo o desenvolvimento de competências não só linguísticas, mas também sociais, críticas e interculturais. Para tanto, espera-se explorar o texto poético como uma zona de prováveis desassossegos, desencontros, dissonâncias, mas também de estímulos à curiosidade, às reflexões críticas e aos múltiplos processos de significação possibilitados pela língua. Nesse sentido, abordaremos a leitura de poesia atrelada ainda à prática da tradução, entendendo-a como uma possibilidade pedagógica de aproximação e de interpretação imersiva de um texto poético, dando foco maior ao processo tradutório em si, mais do que a um resultado final. Por último, partindo de reflexões relacionadas ao poema “Una città come questa”, do poeta italiano Giovanni Raboni, espera-se elucidar com um exemplo concreto em que medida a prática da leitura e da tradução de poesia pode ser entendida como uma atividade que valoriza o confronto crítico e intercultural com a língua adicional, isto é, não apaziguando as dificuldades e os incômodos encontrados, mas sim se apropriando deles e os utilizando como potências para a aprendizagem.

Palavras-chave
ensino e aprendizagem de línguas adicionais; leitura de poesia; tradução de poesia

Abstract

In order to overcome recurrent barriers and concerns that arise when thinking about the presence of literary texts and, in particular poetic texts, in additional language classes, this paper proposes to discuss ways of using poetry as a didactic resource for teaching and learning languages, more specifically, the Italian language. Our objective is, first and foremost, to investigate some of the particularities of poetic texts that could encourage a closer contact with the language being learned, stimulating the development of not only linguistic skills, but also social, critical, and intercultural ones. Therefore, we intend to explore the poetic text as a zone of probable restlessness, disagreements, dissonances, but also as a way of bringing curiosity and critical awareness of the multiplicity of languages. In this sense, we will focus on poetry reading, connected to the practice of poetry translation (concentrating more on the translation process itself, rather than on a result), as a pedagogical possibility, as an immersive way of interpreting poetic texts. Finally, with the example of the poem “Una città come questa”, by the Italian poet Giovanni Raboni, we expect to elucidate how poetry reading and translation can be understood as a practice that values the confrontation with the additional language - not appeasing the difficulties encountered in this learning process, but rather appropriating them and using them as a didactical tool.

Keywords
teaching and learning additional languages; poetry reading; poetry translation

INTRODUÇÃO

Ao observarmos publicações recentes que abordam o uso de textos poéticos em contextos de ensino e aprendizagem de línguas adicionais, notamos que, ainda que escassas, todas elas tendem a seguir um movimento similar em suas argumentações. Mesmo que circunscritas a contextos específicos de aplicação, inicialmente são apontados, em geral, problemas relacionados à leitura e à compreensão de poesia em aulas de línguas, para só então, em uma espécie de defesa a acusações generalizadas, discorrer em uma chave positiva sobre o que está sendo proposto1 1 Ver, por exemplo, a construção argumentativa presente nos seguintes artigos que se dedicam ao tema: “Il testo poetico nell’insegnamento dell’Italiano L2/LS”, de Fabio Delucchi (2012), “Ensino de línguas estrangeiras: a poesia como recurso didático”, de Gustavo Figliolo (2016), e “La poesia nelle classi di Italiano LS in Camerun”, de Mbiadjeu Edgar Junior (2021). . Segundo esse tipo de análise, seriam inúmeros os motivos que afastariam os textos poéticos das salas de aula de línguas: dificuldades linguísticas intrínsecas ao tipo textual em questão (o que envolveria desde aspectos sintáticos até questões semânticas); distanciamento em relação à competência comunicativa e à pouca aplicabilidade prática da poesia a usos cotidianos das línguas; baixa interatividade entre aprendiz e o objeto de estudo; ausência de familiaridade com textos literários, tanto por parte de quem ensina, quanto por parte de quem aprende; falta de diretrizes específicas para guiar o uso de textos literários em sala de aula (ALVES, 2022ALVES, Cláudia Tavares. Leitura e tradução de textos poéticos em aulas de italiano LA. Revista Italiano UERJ, v. 13, n. 1, 2022, p. 147-159. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/revistaitalianouerj/article/view/70750/43742>. Acesso em: 21 jul. 2023.
https://www.e-publicacoes.uerj.br/revist...
), entre outros motivos continuamente citados. A recorrência desse tipo de argumentação, a qual inverte os sinais a fim de valorizar o que a princípio aparentaria ser um obstáculo para a abordagem proposta, leva a crer que exista uma espécie de névoa ao redor do texto poético quando relacionado ao ensino e à aprendizagem de línguas adicionais, cercado pela temeridade de que seria quase impossível falar sobre poesia nesse contexto sem antes defender o objeto de interesse de uma série de problematizações.

Diante dessa constatação, o ponto de partida deste artigo não é defender a poesia de tais acusações. Nossa intenção, tampouco, é apontá-la como a realização máxima de e em uma língua, evitando filiar-se a uma perspectiva didática bastante reducionista que encontrava, e por vezes ainda espera encontrar, no panteão dos textos literários a falsa ideia da “verdadeira língua culta”, como a variedade linguística que deve ser obrigatoriamente aprendida e dominada por parte de quem gostaria de se dedicar à aprendizagem de uma língua. Porém - e aqui se estabelece precisamente nossa perspectiva nesta reflexão -, é preciso reconhecer que a poesia é também uma realização de e em uma língua, isto é, trata-se de uma tipologia textual que deve ser levada em consideração quando se está aprendendo uma língua, apesar de todos os desafios implicados nesse caminho. Por isso, excluí-la, privando aprendizes do contato imersivo e do manejo direto com esse tipo de texto, seria abordar a aprendizagem por um viés limitado e seletivo, que não abarcaria a língua em toda a sua gama de complexidades.

Sobre essa questão, no âmbito dos estudos de glotodidática, o linguista italiano Paolo Balboni (2002)BALBONI, Paolo. Le sfide di Babele. Insegnare le lingue nelle società complesse. Turim: Utet Libreria, 2002. é quem nos lembra de que o texto literário e a função poética não devem ser excluídos dos processos de ensino e aprendizagem de uma língua adicional, já que são elementos essenciais, inclusive, para o desenvolvimento das competências linguística e comunicativa:

a. em toda taxonomia textual, o “texto literário” é caracterizado como diferente de outros tipos textuais: ignorar esse tipo de texto torna, portanto, incompleta a competência linguística, componente essencial da competência comunicativa;

b. em todo modelo funcional aparece, sob diversos nomes, a “função poética”: ignorar essa função torna incompleta a competência pragmática, funcional - elemento essencial da competência comunicativa (BALBONI, 2002BALBONI, Paolo. Le sfide di Babele. Insegnare le lingue nelle società complesse. Turim: Utet Libreria, 2002., p. 138).2 2 “a. in ogni tassonomia testuale il “testo letterario” è individuato come diverso dagli altri tipi testuali: ignorare questo tipo di testo, dunque, rende incompleta la competenza linguistica, componente essenziale della competenza comunicativa; b. in ogni modello funzionale compare, con diversi nomi, la “funzione poetica”: ignorare questa funzione rende incompleta la competenza pragmatica, funzionale - elemento essenziale della competenza comunicativa.” Todas as traduções aqui apresentadas são de nossa autoria, exceto se mencionado o contrário. Elas virão acompanhadas, em nota de rodapé, de suas versões em língua original.

A ausência de contato com textos literários limitaria, portanto, até mesmo o desenvolvimento da competência comunicativa, tão priorizada ainda hoje em certas abordagens de ensino e aprendizagem de línguas adicionais. Segundo Balboni, nesse sentido, ignorar esse tipo de texto comprometeria o próprio contato com a língua, que seria apresentada apenas parcialmente a quem a está aprendendo.

Para além dessa constatação inicial, e não nos limitando nesta reflexão a uma perspectiva ligada exclusivamente à glotodidática, gostaríamos de trazer contribuições para o tema a partir do ponto de vista dos estudos literários e dos estudos da tradução literária com finalidade pedagógica, agregando ainda às reflexões aqui propostas nossas próprias experiências docentes em aulas de língua italiana. Nossa intenção, por conseguinte, é criar diálogos entre áreas que por muito tempo trabalharam isoladamente entre si e, assim, possibilitar conjecturas entre teoria e prática, entre pesquisas e vivências, entre literatura e língua. Para tanto, o cerne das nossas análises se encontrará na interseção particular entre texto poético, tradução e ensino e aprendizagem de língua italiana como língua adicional. E é a partir de nossas experiências nesse campo, tão específico e ao mesmo tempo extensível a outros campos, que pretendemos delinear um percurso que nasce da prática e do diálogo, do contato, da reflexão em conjunto, focando nos processos que se instauram com discentes que se interessam por aprender a língua italiana.

Tomando como base essa perspectiva, os atos de ensinar, aprender, refletir e construir possíveis trilhas de sentidos são momentos simultâneos, entrelaçados entre si, e, por isso, inseparáveis. Tentaremos, contudo, criar um percurso crítico que possa dar conta dessas complexidades, sem a pretensão de uma argumentação exaustiva sobre a questão. Espera-se, assim, abordar os elementos que, de acordo com nosso ponto de vista, caracterizam os movimentos que se realizam quando o texto poético é colocado no centro do processo de ensino e aprendizagem de uma língua adicional. Desse modo, a aparente não naturalidade do texto poético, ou seja, exatamente o ponto em que a linguagem não visa a uma finalidade pragmática ou à comunicação imediata, conforme moldes utilitaristas, parece ser o caminho a ser explorado em uma situação de assombros, conflitos, desajustes, mas também de colaboração, identificação, partilha: a poesia, enfim, como uma potência, muito mais do que como um obstáculo, voltada à aprendizagem de uma língua.

1. DEFINIÇÕES SOBRE A POESIA: UMA TAREFA FADADA AO FRACASSO

A primeira questão que valeria a pena ser abordada em direção ao nosso objeto de interesse diz respeito ao estatuto da poesia. Nossa intenção não é delimitar as fronteiras desse tipo textual - tarefa que, em si, demandaria outro tipo de reflexão e que, de certa forma, pareceria sempre estar fadada ao fracasso. O que consideramos central é tentar entender quais características do texto poético podem desempenhar um papel importante em sala de aula, tendo em vista as possibilidades que ele abre para os processos de aprendizagem. Nesse sentido, entendemos a poesia de maneira ampla, como um instrumento que pode pôr em xeque a função meramente comunicativa da língua e que, a partir do inusitado, do insólito, do estranhamento, pode se desdobrar e se abrir a uma perspectiva outra. “A poesia faz a facilidade do difícil, do absolutamente difícil” (NANCY, 2016NANCY, Jean-Luc. Fazer, a poesia. In: NANCY, Jean-Luc. Demanda: Literatura e filosofia. Org. Ginette Michaud. Trad. João Camilo Penna, Antonio Almeida Filho, Dirlenvalder do Nascimento Loyola. Florianópolis: Ed. UFSC; Chapecó: Argos, 2016, p. 145-151., p. 146), ou, para parafrasear as palavras do filósofo francês Jean-Luc Nancy, a poesia propicia um tipo de pensamento analógico, em que sensações, emoções, sentimentos e reflexões se misturam, proporcionando um olhar sobre a palavra e o discurso que é, ao mesmo tempo, interior e exterior, íntimo e coletivo, sem solução ou pretensão de continuidade. Não podemos prescindir do que está escrito no texto poético, mas somos convidados a tensioná-lo, expandi-lo, colocá-lo em diálogo a partir de nosso sistema de valores, de nossas experiências pessoais, de nosso ponto de vista, de nosso contexto. É um campo extremamente democrático e aberto, justamente porque seu objetivo é o de nunca se fechar em apenas um sentido, em uma interpretação unívoca - mas é, antes de mais nada, uma abertura: “‘poesia’ não tem exatamente um sentido, mas, antes, o sentido do acesso a um sentido cada vez ausente, e reportado para mais longe. O sentido de ‘poesia’ é um sentido sempre a se fazer” (NANCY, 2016NANCY, Jean-Luc. Fazer, a poesia. In: NANCY, Jean-Luc. Demanda: Literatura e filosofia. Org. Ginette Michaud. Trad. João Camilo Penna, Antonio Almeida Filho, Dirlenvalder do Nascimento Loyola. Florianópolis: Ed. UFSC; Chapecó: Argos, 2016, p. 145-151., p. 146). Entendemos então que não se trata apenas do termo poesia resultar de difícil definição, como ainda, no nosso caso, pensamos a poesia como uma urdidura de significados ausentes, mas possíveis de serem explorados, pois eles se constroem a partir do contato, do diálogo, do compartilhamento. O convite que a poesia nos faz é o de nos abrirmos a essa dificuldade, de aproximarmos o que parece distante, de fazermos conviver elementos que, aparentemente, pertencem a esferas distantes da experiência, da vivência empírica envolvendo a língua.

O corpo a corpo com o texto poético permite que, ao mesmo tempo, possamos ler e refletir sobre a experiência de leitura, em um processo de “inevitável resistência a um hábito”3 3 “Inevitabile resistenza a un’abitudine.” (COLANGELO, 2023COLANGELO, Stefano. Come si legge una poesia. Roma: Carocci, 2023., p. 7). Por isso, para o professor e pesquisador italiano Stefano Colangelo, a leitura de poesia não deve ser limitada por modelos ou regida por regras pré-fixadas, já que seria preciso deixar que ela nos convide àquilo que especificamente a própria experiência demanda de nós:

quando leio um poema sou convidado a fazer pausas, a retomar o fôlego em momentos aos quais eu, normalmente, não me deteria; a poesia me demanda uma pronúncia cautelosa e desprovida de ênfase: não me é permitido desperdiçar ou, por outro lado, destacar além do necessário nada do que estou lendo (COLANGELO, 2023COLANGELO, Stefano. Come si legge una poesia. Roma: Carocci, 2023., p. 7-8).4 4 “Quando leggo una poesia sono invitato a fare pause, a prendere fiato in momenti nei quali, di norma, non mi fermerei; la poesia mi richiede una pronuncia cauta e priva di enfasi; non mi è concesso sprecare oppure, al contrario, sottolineare più del necessario nulla di ciò che sto leggendo.”

Isso porque o discurso poético, ainda segundo Colangelo, é uma peculiar fusão de emotividade e artifício, ou seja, a poesia se caracteriza por um estatuto sempre dúplice, sendo um “território possível de encontro entre impulso e perícia, entre a atenção sensível às coisas, à humanidade e aos fenômenos, por um lado, e, por outro, a tradição, o repertório, a técnica”5 5 “Territorio possibile d’incontro tra l’impulso e la perizia, tra l’attenzione sensibile alle cose, all’umanità e ai fenomeni da un lato, e la tradizione, il repertorio, la tecnica dall’altro.” (COLANGELO, 2023COLANGELO, Stefano. Come si legge una poesia. Roma: Carocci, 2023., p. 7). E é justamente nessa feliz conjunção entre forma e conteúdo, entre o que se diz e o como se diz, que, acreditamos, possam se abrir oportunidades interessantes a partir do uso de textos poéticos em sala de aula de línguas adicionais. A leitura de poesia seria vista, nesse sentido, não como uma prática mecânica, voltada ao desvelamento de técnicas e tradições, ou mesmo como um exercício de investigação e descoberta de significados pretendidos por quem a escreveu. Sua leitura seria, na verdade, vista como um gesto de “atenção sensível”, o qual seria, em síntese, o que o texto poético (e, em amplo sentido, qualquer forma de interação mediada por uma ou mais línguas) demandaria de quem o lê.

2. ENCONTROS E DESENCONTROS A PARTIR DA TRADUÇÃO

Nessa multiplicidade de significações e demandas poéticas, em especial naquilo em que a construção desses processos de significação pode se dar de maneira coletiva e colaborativa (mesmo que permeada por subjetividades), a prática da tradução literária se oferece como uma possibilidade de aproximação e de apropriação do texto poético - ainda que, como sabemos, a tradução ocupe, ao longo da história, um papel ambíguo no campo da linguística aplicada e da glotodidática. Associada a uma maneira conservadora de se entender a aprendizagem de línguas, durante décadas a prática tradutória teve dificuldades em encontrar seu lugar nas salas de aulas de línguas adicionais. Sem dúvida, contudo, ela sempre representou uma das principais formas de se familiarizar e aprender uma nova língua e o desafio, hoje, consiste em tentar mudar o ponto de vista que a coloca no papel de vilã. Dessa maneira, poderíamos atualizar esse debate e passar de uma discussão sobre os prós e os contras da tradução para uma discussão de cunho mais prático: afinal, tradução para quê?6 6 Essa dicotomia foi explorada por Paolo Balboni (2017) em seu artigo “Tradução na aprendizagem de línguas: uma abordagem ‘para quê’”, no qual o pesquisador reconhece a tradução como uma habilidade intrínseca e imprescindível ao modelo que ele mesmo cria para pensar o desenvolvimento da competência comunicativa, ultrapassando, e dando por encerrado, em certa medida, o velho debate sobre se a presença da tradução nas aulas de línguas seria ou não pertinente.

Segundo tal perspectiva, a tradução deixaria de ser um fim, um objetivo, um produto da aprendizagem, para se tornar, mais do que um recurso disponível, uma habilidade fundamental, que abriria todo um leque de outras possibilidades didáticas. Quando entendida como processo, como instrumento, como trânsito entre línguas, ela se multiplicaria em outras possibilidades, incluindo a aprendizagem pela diferença: “O que a tradução deve nos fazer sentir e experimentar de imediato, por meio da discordância das redes terminológicas e sintáticas, é a força e a inteligência da diferença das línguas” (CASSIN, 2022CASSIN, Barbara. Elogio da tradução: complicar o universal. Trad. Simone Christina Petry e Daniel Falkemback. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2022., p. 13). Em outras palavras, a tradução teria o grande poder de nos conduzir de maneira prática a perceber, na pele, a pluralidade das línguas - e, nesse caso, não somente as línguas “dos outros” mas, até mesmo ou principalmente, a “nossa” língua.

Retomando o que foi exposto até aqui, poderíamos afirmar, então, que tanto a poesia quanto a tradução podem ser entendidas como lentes para enxergar não apenas a língua, as línguas, isoladas uma das outras, mas também suas mútuas implicações com a realidade, com as culturas que elas carregam consigo e, por meio do enfrentamento dessas mesmas línguas, seria possível entrar em contato e transitar por mundos diversos que se encontram e se chocam. Poesia e tradução, enfim, como possibilidades de encontro, embate, descoberta.

Segundo a filósofa Barbara Cassin, “são necessárias duas línguas para falar uma e saber que o que falamos é uma língua, porque são necessárias duas línguas para traduzir” (CASSIN, 2022CASSIN, Barbara. Elogio da tradução: complicar o universal. Trad. Simone Christina Petry e Daniel Falkemback. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2022., p. 12). Conjecturando com suas colocações, estamos entendendo a tradução de maneira estendida, acreditando que a experiência do traduzir esteja intimamente ligada à experiência do texto traduzido, assim como a própria reflexão sobre a tradução. Ou seja, a partir do momento em que entendemos que o texto literário que temos diante de nós é fruto de tradução, de processos tradutórios, encontramo-nos, necessariamente, nessa dimensão de reflexão. A escritora Sylvia Molloy exemplifica muito bem essa atmosfera de choque e de autoconscientização em seu livro, Viver entre línguas (2018), quando descreve a situação de uma turma de discentes nova iorquinos que entram em contato com a poesia de Jorge Luis Borges por meio de uma edição bilíngue:

As coisas mudaram quando passamos da prosa de Borges para sua poesia. Explico: à diferença da edição inglesa dos contos, resolutamente monolíngue, o volume da poesia completa era bilíngue: o original em espanhol à esquerda, a versão inglesa à direita. A ideia de que existisse um “original” - apesar deles não o compreenderem, apesar de terem lido tantos contos de Borges onde a própria ideia de originalidade parecia inútil - estranhamente os confortou. [...] sentiam (uso o verbo deliberadamente, porque eles evidentemente sabiam que não era assim) que deveria ser o contrário, que o texto da esquerda em espanhol devia ser a tradução do texto da direita em inglês, aquele que tinham lido primeiro. O alívio inicial que haviam experimentado diante da ideia de um original tingiu-se de desconfiança, desassossego (MOLLOY, 2018MOLLOY, Sylvia. Viver entre línguas. Trad. Julia Tomasini e Mariana Sanchez. Belo Horizonte: Edições Relicário, 2018., p. 56).

A experiência do texto traduzido, como aponta Molloy, proporciona uma experiência de desassossego, de questionamento sobre as fronteiras entre línguas e culturas, de forma que estas se tornam mais evanescentes, limiares frágeis que permitem atravessamentos. Esse sentimento de estranhamento, em que definições dogmáticas como a de “original” são subvertidas, propicia outras possibilidades de leitura do texto poético, constituídas por trânsitos e deslizamentos. Nesse sentido, a tradução se torna, então, um instrumento de sondagem da palavra, o que nos instiga a uma compreensão profunda, não se detendo, apenas, aos seus significados imediatos. A relação que se estabelece com um texto à medida que estamos traduzindo-o é íntima e desconhecida e nos coloca diretamente em contato com a sua arquitetura profunda, com o desenho que nele subjaz.

Além disso, a tradução exige o contato absoluto com a materialidade do texto, um verdadeiro embate entre corpos e matérias que envolve toda uma série de gestos físicos, como aponta o poeta Giovanni Raboni, que, ao discorrer sobre sua prática tradutória, define-a como uma:

leitura muito lenta, constelada por uma quantidade de pequenos gestos ou eventos físicos [...] - todas as leituras, em comparação a esta tão sui generis me parecem, pensando nisso, estranhamente límpidas e abstratas e, por assim dizer, demasiado perfeitas; desprovidas de assombro, de contradições: de fisicidade, justamente (RABONI apud SANTI; GHISI, 2022SANTI, Elena; GHISI, Agnes. A sedução da língua de Patrizia Valduga: desafios da tradução. Darandina Revista Eletrônica, v. 15, n. 1, 2022. Disponível em: <http://www.urmia.ac.ir/ijltr.> Acesso em: 22 jan. 2024.
http://www.urmia.ac.ir/ijltr...
, p. 15).

Ao desassossego já comentado anteriormente, acrescentamos o assombro, sentimento que nasce dessa descida às entranhas do texto, desse explorar seu núcleo incandescente, desse acompanhar a obra que, de certa forma, se faz diante dos nossos olhos. Mas é, também, o assombro de quem lê quase que de forma arqueológica, com os instrumentos de investigação que nos são próprios (dicionários, livros, folhas de anotações…). Estabelece-se um corpo a corpo que faz com que nós, leitores e leitoras, sejamos tocados de maneira profunda pelas palavras que estão diante de nós, ao mesmo tempo em que as manuseamos (podemos finalmente manuseá-las!) e nos tornamos possuidores daquela matéria. Em resumo, poderíamos pensar que a tradução é uma forma de habitar o texto, transitar pelas palavras, familiares e estranhas ao mesmo tempo, e, com isso, abrir-se ao encontro: com a pluralidade de toda língua, com uma subjetividade nossa muito menos fixa e definida do que se possa pensar, com o outro que, no fim das contas, a depender do ponto de vista, somos nós também. Assim, descobrir-se, junto ao outro, nessa travessia linguística.

Tal percepção de si como sujeito constantemente em tensão entre línguas produz desdobramentos interessantes: a leitura desse que chamamos de outro se torna, ao mesmo tempo, leitura de si, propiciando um maior entendimento não somente dos fenômenos linguísticos, mas também culturais e sociais, nos quais estamos envolvidos. Além disso, e para além de um horizonte de proficiência em uma língua adicional, a voz do outro estranho-estrangeiro passa a compor a nossa própria voz, nosso próprio sistema linguístico, e também valorativo, o que inclui aí uma nova matriz de visões de mundo.

Percebemos, inequivocamente, que não somos fixos, mas que estamos sempre em trânsito, sempre deslizando entre várias línguas, entre todas as línguas que compõem nossa língua. Isso vai além de conceitos como norma linguística e gramática, e diz respeito muito mais aos nossos afetos, gostos, prazeres, lembranças. No fim das contas, nenhuma língua “oficial” é, pode ser, nossa casa, como aponta a pesquisadora Maria José Coracini em recente entrevista à revista Alea:

é preciso problematizar essa aparência de plenitude ou de completude atribuída à língua dita materna, até para entender que o sujeito não consegue alcançar tal completude, sempre ilusória e enganosa (...) essa promessa de língua - única, coerente, transparente, universal, de que o sujeito pode se servir como se fosse um instrumento exterior a ele, de modo intencional e controlado, ainda veiculada pela escola e pela sociedade - é a monolíngua do outro, vinda do outro, a vinda do outro que o sujeito deseja (Derrida). Trata-se de promessa de unidade, de possibilidade de sua apropriação, para se transformar em objeto (de análise, de ensino...) fixo e estável, promessa que jamais se realizará, já que rastros da subjetividade dos seres fal(t)antes se (intro)metem no discurso, atravessando cada fragmento da língua(gem). (CORACINI, 2021CORACINI, Maria José; CELADA, Maria Teresa; ANDRADE, Antonio; GASPARIN, Pablo. Ser-estar entre-línguas-culturas: entrevista com Maria José Coracini. Revista Alea, v. 23/2, 2021, p. 327-341. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/alea/article/view/47458>. Acesso em: 21 jul. 2023.
https://revistas.ufrj.br/index.php/alea/...
, p. 333-335).

A habilidade de se perceber como uma subjetividade múltipla e de transitar nessa pluralidade tem como consequência o desenvolvimento da capacidade de saber conviver com as diferenças: não harmonizar, mas viver com, em radical imersão nessa pluralidade. Não por acaso, o livro de Barbara Cassin, Elogio da tradução, carrega consigo o subtítulo, “complicar o universal”, ou seja, fugir de esquemas unificadores, apostando em uma visão macro de língua e, consequentemente, de mundo. Uma visão plural, divergente, não universalizante, cambiante, portanto, em que os opostos convergem e convivem, sem nunca se anularem ou se recomporem no um.

3. TRADUZIR PARA ENSINAR E APRENDER

Uma reflexão que, por vezes, acaba chamando a atenção de aprendizes em aulas de línguas adicionais e despertando longos debates - o que, eventualmente, pode ter desdobramentos inesperados - é aquela em relação a palavras ou conceitos que, aparentemente, geram problemas não resolvíveis e que, por isso, não poderiam ser traduzidos. Se é verdade que em tradução nunca temos uma real correspondência, pois palavras, imagens, contextos, usos, registros praticamente não coincidem em sua totalidade no choque entre as línguas, também é verdade que às vezes, traduzindo, encontramos alguns nós que acabam testando a curiosidade em sala de aula - e, às vezes, nos levando para bem além daquilo que idealmente tinha se proposto no começo da aplicação de uma atividade. Experimentar os limites desses trânsitos, sentir na pele o problema da intraduzibilidade, pode conduzir a uma experiência rica de felizes consequências em sala de aula.

Se normalmente somos levados a pensar que o intraduzível é o limite, a fronteira última, o limiar que não pode ser ultrapassado, porque a única opção se torna a não tradução, a perspectiva que Barbara Cassin propõe inverte essa visão. A filósofa afirma que “os intraduzíveis são sintomas, semânticos e/ou sintáticos, da diferença das línguas, não o que se traduz, mas o que não se cessa de (não) traduzir” (CASSIN, 2022CASSIN, Barbara. Elogio da tradução: complicar o universal. Trad. Simone Christina Petry e Daniel Falkemback. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2022., p. 24). Sintomas, portanto, que assinalam, para nós, algo, nos permitindo entrever e presenciar a pluralidade das línguas em ato, diante de nós. No fim das contas, conclui Cassin, nunca temos experiências da linguagem (única e universal), mas sim, apenas, experiências de línguas, e que, por conseguinte, o intraduzível não constitui algo que não pode ser traduzido, mas algo que, pelo contrário, continua a ser traduzido o tempo todo, pois nunca alcançamos uma tradução definitiva, completamente satisfatória. Assiste-se, enfim, a uma proliferação de possibilidades, que seria o triunfo da criatividade, da pluralidade, do diálogo, da pesquisa, do prazer pelo estar entre línguas.

Por isso, diante do que foi apresentado até agora, gostaríamos de, por fim, propor reflexões a partir de um exercício de leitura e tradução, utilizando como ponto de partida um poema do poeta italiano Giovanni Raboni, para, enfim, explorar algumas de suas múltiplas potências. Nascido em Milão, em 1932, Raboni foi poeta, crítico literário, jornalista e, também, tradutor. Sua trajetória com a palavra poética se caracteriza pela procura de uma linguagem cotidiana, próxima da realidade, sem, contudo, deixar de lado os elementos próprios do gênero poético, chegando, em algumas coletâneas, a retomar as formas mais canônicas da tradição literária italiana, como, por exemplo, o soneto.

A escolha do poema a ser abordado em específico, presente na coletânea Le case della Vetra, de 1966, justifica-se, para além de nossa familiaridade com tal repertório e das possibilidades efetivas de desenvolver as reflexões expostas anteriormente, devido à variedade linguística que ele apresenta, isto é, uma linguagem coloquial e informal, não aderente às convenções normativas da língua áulica ou a um léxico excessivamente rebuscado. O objetivo desse recorte é, também, abrir possibilidades para que futuras atividades7 7 Em particular, assinalamos, sem nos determos a tais tópicos, a possibilidade de estimular reflexões interessantes acerca das marcas da aparente oralidade que constitui o texto (como se percebe com o uso de locuções como non è per, non è qui che, la voce nel naso, entre outras), além do sistema pronominal italiano e do uso dos dêiticos (a partir de viverci, si cammina, si passa etc.), muito notável no choque entre a língua italiana e a língua portuguesa brasileira. Sobre esse último tema, cf. Romanelli (2009). sejam propostas, considerando que o poema em questão se adequa a aprendizes em diferentes níveis de aprendizagem e poderia funcionar como texto mediador para conteúdos igualmente variáveis.

Passemos, então, ao poema:

Una città come questa

non è per viverci, in fondo: piuttosto

si cammina vicino a certi muri,

si passa in certi vicoli (non lontani

dal luogo del supplizio) e parlando

con la voce nel naso

avidi, frettolosi si domanda: non è qui

che buttavano i loro cartocci gli untori?

(RABONI, 2006RABONI, Giovanni. L’opera poetica. Org. Rodolfo Zucco. Milão: Mondadori, 2006., p. 48)8 8 Em tradução de Elena Santi e Agnes Ghisi, com a colaboração de Mercedes Guardado: “Uma cidade como esta // não é para se viver, no fundo: ou melhor, / se caminha perto de certos muros, / se passa por certos becos (não distantes / do lugar do suplício) e falando / com a voz no nariz / ávidos, apressados, se pergunta: não é aqui / que espalhavam os unguentos da peste?”. O poema traduzido integra a antologia Uma cidade como esta, a ser publicado pela Edições Jabuticaba, com organização e tradução de Elena Santi e Agnes Ghisi.

Possíveis objetivos linguísticos de atividades que envolvessem esse poema seriam refletir sobre determinadas questões morfológicas, sintáticas e pragmáticas. Mas, a partir desses elementos, outros desdobramentos seriam pertinentes e encorajados, a fim de estimular a imersão dos aprendizes no texto poético. Resolvidos, em primeira instância, os problemas mais imediatos de compreensão, seria possível realizar uma análise mais precisa do poema. É importante dizer que esse texto, escrito nos anos sessenta, refere-se, nas entrelinhas, à peste que assolou Milão no século XVII. Trata-se de uma peste que foi ao mesmo tempo física - isto é, referente à epidemia bubônica que dizimou milhares de pessoas -, mas também literária - a epidemia que é contada no clássico romance de Alessandro Manzoni, I promessi sposi, de 1840 -, e, finalmente, moral - já que o poema foi publicado em meados da década de 1960, quando, segundo o ponto de vista do autor, haveria uma peste que estaria corroendo a cidade, isto é, a especulação imobiliária impulsionada pela implementação de uma economia brutalmente capitalista.

É interessante observar que, a partir do léxico e das imagens construídas, estaria supostamente claro para um público italiano que o tema central do poema seria a peste, em suas múltiplas camadas, pois há elementos semânticos que localizam geográfica e cronologicamente a temática abordada. Por outro lado, para um público leitor brasileiro, isso provavelmente não ficaria tão evidente, sobretudo devido à não transparência da palavra “untore”, cuja definição seria:

Quem unge, ungidor. Em particular, untori foram aqueles que, durante a peste de Milão de 1639, eram suspeitos de espalhar o contágio ungindo pessoas e coisas (por extensão, as portas das casas, os bancos das igrejas) com unguentos malignos; contra eles desencadeou-se frequentemente a ira popular, bem como perseguições judiciais.9 9 “Chi unge, ungitore. In particolare si chiamarono untori coloro che nella peste di Milano del 1639 furono sospetti di diffondere il contagio ungendo persone e cose (per estensione, le porte delle case, le panche delle chiese) con unguenti malefici; contro di essi si scatenò spesso l’ira popolare, e si dette anche corso a persecuzioni giudiziarie”. Definição segundo o verbete “untore” do Dicionário Treccani. Disponível em: <https://www.treccani.it/vocabolario/untore/>. Acesso em: 21 jul. 2023.

A presença dessa pequena palavra, a princípio intraduzível, permite viajar pela língua e pela literatura italianas, levando-nos a conhecer e a aprofundar aspectos históricos e sociais envolvidos em seu uso. Isso nos induz ainda a procurar respostas no próprio romance manzoniano, principalmente, na “História da coluna infame”, texto anexo em que Manzoni retrata o fato acontecido na Milão da epidemia, quando as autoridades da cidade perceberam que estavam perdendo o controle da situação e começaram a culpabilizar um grupo de pessoas, sendo estas acusadas de estarem untando com líquidos pestilentos portas e muros da cidade, espalhando, assim, o terrível morbo.

Outra expressão interessante, ligada a essa situação histórica, é “il luogo del supplizio”, uma referência ao Lazzaretto de Milão - outro termo que seria a princípio intraduzível, embora deixe transparecer outras marcas dialógicas em relação à língua portuguesa, como a palavra lazarento, sendo por isso convencionalmente aportuguesado como Lazareto. Nesse lugar, os doentes eram isolados, abandonados ao seu próprio destino e à morte, muitas vezes acompanhados de opositores políticos que queriam mutuamente se eliminar. Ficavam ali reunidos dissidentes, excêntricos, e toda sorte de pessoas que apresentavam algum tipo de “problema” social. Seria possível, a partir desse ensejo, observar em atividades envolvendo o poema a posição desse lugar nos mapas da cidade de Milão, ver fotografias antigas, refletir sobre o que esse espaço significa ainda hoje (em boa parte destruído, mas ainda presente) no perímetro urbano em que está contido.

Além disso, mais um dos possíveis caminhos para se trabalhar esse texto poético em sala de aula, atrelando-o à prática da tradução, seria valorizar, para além da leitura individual e em voz baixa, geralmente priorizada nesse tipo de atividade em sala de aula, também a leitura coletiva e em voz alta, como uma espécie de construção performática conjunta do texto em foco. Isso que por vezes pareceria óbvio, se levada em consideração a própria natureza da poesia, nem sempre é colocado em prática quando se pensa a especificidade do trabalho com um texto poético. Permitindo a existência oral do poema para além do texto escrito e estimulando o fazer coletivo por meio da declamação seria possível ativar uma das potências mais próprias da poesia, ou aquilo que Mariangela Gualtieri (2022)GUALTIERI, Mariangela. L’incanto fonico: l’arte di dire la poesia. Livro digital. Turim: Giulio Einaudi Editore, 2022., recuperando as palavras da poeta Amelia Rosselli, chama de “encanto fônico”: “A poesia demanda liberdade em relação aos vínculos semânticos, demanda fazer-se voz viva, quer ser tocada ou cantada, exatamente como qualquer partitura musical, até chegar àquilo que Amelia Rosselli chamava de ‘o encanto fônico’” (GUALTIERI, 2022GUALTIERI, Mariangela. L’incanto fonico: l’arte di dire la poesia. Livro digital. Turim: Giulio Einaudi Editore, 2022., s.p.)10 10 “La poesia chiede libertà dai vincoli semantici, chiede di farsi viva voce, vuole essere suonata, o cantata, proprio come ogni spartito musicale, fino ad arrivare a quello che Amelia Rosselli chiamava ‘l’incanto fonico.’” .

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na insubordinação às regras gramaticais e à semanticidade do mundo ordinário, a palavra poética traria em si um encantamento que deve ser ativado pela “voz viva” de quem a lê. No âmbito de ensino e aprendizagem de uma língua, isso significaria se deparar com a musicalidade que a língua demanda, isto é, com sua oralidade, sua prosódia, percebidas em minúcia. Quando observado pelo ponto de vista do encantamento, o dizer de um texto poético em voz alta se tornaria uma espécie de ritual transformador:

A poesia oral é talvez esse rito, o âmbito em que o silêncio entre as palavras, o não dito, assume uma carga explosiva e exalta o verso, o transforma em energia ativa capaz de induzir à transformação interior. Os fonemas que compõem o mantra são considerados “sementes da divindade” e lhes é reconhecido o poder de sons carregados de significado espiritual. A voz, como fenômeno acústico transcendente, o ouvido, como via de conhecimento que conduz a grandes profundidades, a palavra, através da qual tudo veio a ser, e o respiro, que pertence ao corpo sutil - isto é, todos os elementos fundantes da oralidade -, estão na base daquela revelação que a arte persegue e que a poesia, com tamanha energia penetrante, sabe fazer acontecer (GUALTIERI, 2022GUALTIERI, Mariangela. L’incanto fonico: l’arte di dire la poesia. Livro digital. Turim: Giulio Einaudi Editore, 2022., s.p.).11 11 “La poesia orale è forse questo rito, l’ambito in cui il silenzio fra le parole, il non detto, assume una carica esplosiva ed esalta il verso, lo rende energia attiva che può indurre a trasformazione interiore. I fonemi che compongono il mantra sono considerati ‘semi della divinità’, e viene riconosciuto loro il potere di suoni carichi di significato spirituale. La voce, come fenomeno acustico trascendente, l’orecchio, come via di conoscenza che conduce a grande profondità, la parola, attraverso la quale tutto è venuto in essere, e il respiro, che appartiene al corpo sottile - cioè tutti gli elementi fondanti dell’oralità -, sono alla base di quella rivelazione che l’arte persegue e che la poesia con tanta penetrante energia sa fare accadere.”

Fica claro, enfim, que atividades envolvendo leitura e tradução de poesia permitiriam que muitos outros caminhos fossem explorados, indo além do resultado do texto traduzido em si. O objetivo, de fato, não seria a tradução textual ou a busca pela essência do poema, mas todo o processo de pesquisa, análise, compreensão, reflexão e oralização que o desafio da tradução provocaria - mesmo que motivado, eventualmente, apenas por uma única palavra. Como foi possível demonstrar a partir do contato com um poema, e de todas as dificuldades e os encantamentos que esse mesmo contato poderia causar, a leitura minuciosa atrelada à tradução de textos poéticos em ambientes de ensino e aprendizagem de línguas adicionais se tornam catalisadores de conhecimentos linguísticos, literários, históricos, políticos, culturais.

Para concluir, destacamos ainda as possibilidades de construção em conjunto do saber que os textos poéticos permitem, uma vez que, em sala de aula, seria possível resgatar, além da leitura em voz alta e da dimensão performativa da voz poética, também a fruição coletiva, por meio da discussão, do debate, da pesquisa coletiva, do confronto entre todas as individualidades e personalidades envolvidas, criando percursos de leitura, compreensão e tradução que, por sua vez, possibilitam uma abertura dos próprios horizontes individuais. O contato com o “difícil”, com o não imediatamente compreensível, proporcionaria assim importantes desafios para quem está aprendendo a língua adicional. Fazer isso numa dimensão coletiva ampliaria os olhares, expandindo a compreensão e dilatando os horizontes. O resultado, por fim, estaria centrado em todo o processo, em especial no que surge como consequência do assombro diante do desconhecido. A possibilidade de aprender se daria assim nas brechas, precisamente no encontro brusco e desnorteante com o que pareceria simples, se não fosse complexificado pela travessia de uma língua a outra.

  • 1
    Ver, por exemplo, a construção argumentativa presente nos seguintes artigos que se dedicam ao tema: “Il testo poetico nell’insegnamento dell’Italiano L2/LS”, de Fabio Delucchi (2012)DELUCCHI, Fabio. Il testo poetico nell’insegnamento dell’italiano L2/LS. Italiano LinguaDue, v. 4, n. 1, 2012, p. 352-949. Disponível em: <https://riviste.unimi.it/index.php/promoitals/article/view/2288>. Acesso em: 21 jul. 2023.
    https://riviste.unimi.it/index.php/promo...
    , “Ensino de línguas estrangeiras: a poesia como recurso didático”, de Gustavo Figliolo (2016)FIGLIOLO, Gustavo. Ensino de línguas estrangeiras: a poesia como recurso didático. Revista EntreLínguas, v. 2, n. 1, 2016, p. 125-142. Disponível em: <https://periodicos.fclar.unesp.br/entrelinguas/article/view/8281>. Acesso em: 21 jul. 2023.
    https://periodicos.fclar.unesp.br/entrel...
    , e “La poesia nelle classi di Italiano LS in Camerun”, de Mbiadjeu Edgar Junior (2021)EDGAR JUNIOR, Mbiadjeu. La poesia nelle classi di Italiano LS in Camerun. Italiano LinguaDue, v. 13, n. 1, 2021, p. 934-394. Disponível em: <https://riviste.unimi.it/index.php/promoitals/article/view/15920>. Acesso em: 21 jul. 2023.
    https://riviste.unimi.it/index.php/promo...
    .
  • 2
    “a. in ogni tassonomia testuale il “testo letterario” è individuato come diverso dagli altri tipi testuali: ignorare questo tipo di testo, dunque, rende incompleta la competenza linguistica, componente essenziale della competenza comunicativa; b. in ogni modello funzionale compare, con diversi nomi, la “funzione poetica”: ignorare questa funzione rende incompleta la competenza pragmatica, funzionale - elemento essenziale della competenza comunicativa.” Todas as traduções aqui apresentadas são de nossa autoria, exceto se mencionado o contrário. Elas virão acompanhadas, em nota de rodapé, de suas versões em língua original.
  • 3
    “Inevitabile resistenza a un’abitudine.”
  • 4
    “Quando leggo una poesia sono invitato a fare pause, a prendere fiato in momenti nei quali, di norma, non mi fermerei; la poesia mi richiede una pronuncia cauta e priva di enfasi; non mi è concesso sprecare oppure, al contrario, sottolineare più del necessario nulla di ciò che sto leggendo.”
  • 5
    “Territorio possibile d’incontro tra l’impulso e la perizia, tra l’attenzione sensibile alle cose, all’umanità e ai fenomeni da un lato, e la tradizione, il repertorio, la tecnica dall’altro.”
  • 6
    Essa dicotomia foi explorada por Paolo Balboni (2017)BALBONI, Paolo. Tradução na aprendizagem de línguas: uma abordagem ‘para quê’. Revista EntreLínguas, v. 3, n. 2, 2017, p. 276-299. Disponível em: <https://periodicos.fclar.unesp.br/entrelinguas/article/view/9546>. Acesso em: 21 jul. 2023.
    https://periodicos.fclar.unesp.br/entrel...
    em seu artigo “Tradução na aprendizagem de línguas: uma abordagem ‘para quê’”, no qual o pesquisador reconhece a tradução como uma habilidade intrínseca e imprescindível ao modelo que ele mesmo cria para pensar o desenvolvimento da competência comunicativa, ultrapassando, e dando por encerrado, em certa medida, o velho debate sobre se a presença da tradução nas aulas de línguas seria ou não pertinente.
  • 7
    Em particular, assinalamos, sem nos determos a tais tópicos, a possibilidade de estimular reflexões interessantes acerca das marcas da aparente oralidade que constitui o texto (como se percebe com o uso de locuções como non è per, non è qui che, la voce nel naso, entre outras), além do sistema pronominal italiano e do uso dos dêiticos (a partir de viverci, si cammina, si passa etc.), muito notável no choque entre a língua italiana e a língua portuguesa brasileira. Sobre esse último tema, cf. Romanelli (2009)ROMANELLI, Sergio. L’insegnamento/apprendimento di pronomi dell’italiano (interferenza nella interlingua del parlante del portoghese brasiliano). In: BALBONI, Paolo; SANTIPOLO, Matteo (org.). Itals. Didattica e linguistica dell’italiano come lingua straniera. Veneza: Guerra Edizioni, v. 20, 2009..
  • 8
    Em tradução de Elena Santi e Agnes Ghisi, com a colaboração de Mercedes Guardado: “Uma cidade como esta // não é para se viver, no fundo: ou melhor, / se caminha perto de certos muros, / se passa por certos becos (não distantes / do lugar do suplício) e falando / com a voz no nariz / ávidos, apressados, se pergunta: não é aqui / que espalhavam os unguentos da peste?”. O poema traduzido integra a antologia Uma cidade como esta, a ser publicado pela Edições Jabuticaba, com organização e tradução de Elena Santi e Agnes Ghisi.
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    “Chi unge, ungitore. In particolare si chiamarono untori coloro che nella peste di Milano del 1639 furono sospetti di diffondere il contagio ungendo persone e cose (per estensione, le porte delle case, le panche delle chiese) con unguenti malefici; contro di essi si scatenò spesso l’ira popolare, e si dette anche corso a persecuzioni giudiziarie”. Definição segundo o verbete “untore” do Dicionário Treccani. Disponível em: <https://www.treccani.it/vocabolario/untore/>. Acesso em: 21 jul. 2023.
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    “La poesia chiede libertà dai vincoli semantici, chiede di farsi viva voce, vuole essere suonata, o cantata, proprio come ogni spartito musicale, fino ad arrivare a quello che Amelia Rosselli chiamava ‘l’incanto fonico.’”
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    “La poesia orale è forse questo rito, l’ambito in cui il silenzio fra le parole, il non detto, assume una carica esplosiva ed esalta il verso, lo rende energia attiva che può indurre a trasformazione interiore.
    I fonemi che compongono il mantra sono considerati ‘semi della divinità’, e viene riconosciuto loro il potere di suoni carichi di significato spirituale. La voce, come fenomeno acustico trascendente, l’orecchio, come via di conoscenza che conduce a grande profondità, la parola, attraverso la quale tutto è venuto in essere, e il respiro, che appartiene al corpo sottile - cioè tutti gli elementi fondanti dell’oralità -, sono alla base di quella rivelazione che l’arte persegue e che la poesia con tanta penetrante energia sa fare accadere.”

DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA

Os dados públicos utilizados na pesquisa estão disponíveis nos endereços eletrônicos citados, permitindo amplo e irrestrito acesso.

REFERÊNCIAS

  • ALVES, Cláudia Tavares. Leitura e tradução de textos poéticos em aulas de italiano LA. Revista Italiano UERJ, v. 13, n. 1, 2022, p. 147-159. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/revistaitalianouerj/article/view/70750/43742>. Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://www.e-publicacoes.uerj.br/revistaitalianouerj/article/view/70750/43742
  • BALBONI, Paolo. Le sfide di Babele. Insegnare le lingue nelle società complesse. Turim: Utet Libreria, 2002.
  • BALBONI, Paolo. Tradução na aprendizagem de línguas: uma abordagem ‘para quê’. Revista EntreLínguas, v. 3, n. 2, 2017, p. 276-299. Disponível em: <https://periodicos.fclar.unesp.br/entrelinguas/article/view/9546>. Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://periodicos.fclar.unesp.br/entrelinguas/article/view/9546
  • CASSIN, Barbara. Elogio da tradução: complicar o universal. Trad. Simone Christina Petry e Daniel Falkemback. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2022.
  • CORACINI, Maria José; CELADA, Maria Teresa; ANDRADE, Antonio; GASPARIN, Pablo. Ser-estar entre-línguas-culturas: entrevista com Maria José Coracini. Revista Alea, v. 23/2, 2021, p. 327-341. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/alea/article/view/47458>. Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://revistas.ufrj.br/index.php/alea/article/view/47458
  • COLANGELO, Stefano. Come si legge una poesia. Roma: Carocci, 2023.
  • DELUCCHI, Fabio. Il testo poetico nell’insegnamento dell’italiano L2/LS. Italiano LinguaDue, v. 4, n. 1, 2012, p. 352-949. Disponível em: <https://riviste.unimi.it/index.php/promoitals/article/view/2288>. Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://riviste.unimi.it/index.php/promoitals/article/view/2288
  • EDGAR JUNIOR, Mbiadjeu. La poesia nelle classi di Italiano LS in Camerun. Italiano LinguaDue, v. 13, n. 1, 2021, p. 934-394. Disponível em: <https://riviste.unimi.it/index.php/promoitals/article/view/15920>. Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://riviste.unimi.it/index.php/promoitals/article/view/15920
  • FIGLIOLO, Gustavo. Ensino de línguas estrangeiras: a poesia como recurso didático. Revista EntreLínguas, v. 2, n. 1, 2016, p. 125-142. Disponível em: <https://periodicos.fclar.unesp.br/entrelinguas/article/view/8281>. Acesso em: 21 jul. 2023.
    » https://periodicos.fclar.unesp.br/entrelinguas/article/view/8281
  • GUALTIERI, Mariangela. L’incanto fonico: l’arte di dire la poesia. Livro digital. Turim: Giulio Einaudi Editore, 2022.
  • MANZONI, Alessandro. Os noivos: incluindo a História da Coluna Infame. Trad. Francisco Degani. São Paulo: Nova Alexandria, 2012.
  • MOLLOY, Sylvia. Viver entre línguas. Trad. Julia Tomasini e Mariana Sanchez. Belo Horizonte: Edições Relicário, 2018.
  • NANCY, Jean-Luc. Fazer, a poesia. In: NANCY, Jean-Luc. Demanda: Literatura e filosofia. Org. Ginette Michaud. Trad. João Camilo Penna, Antonio Almeida Filho, Dirlenvalder do Nascimento Loyola. Florianópolis: Ed. UFSC; Chapecó: Argos, 2016, p. 145-151.
  • RABONI, Giovanni. L’opera poetica. Org. Rodolfo Zucco. Milão: Mondadori, 2006.
  • ROMANELLI, Sergio. L’insegnamento/apprendimento di pronomi dell’italiano (interferenza nella interlingua del parlante del portoghese brasiliano). In: BALBONI, Paolo; SANTIPOLO, Matteo (org.). Itals. Didattica e linguistica dell’italiano come lingua straniera. Veneza: Guerra Edizioni, v. 20, 2009.
  • SANTI, Elena; GHISI, Agnes. A sedução da língua de Patrizia Valduga: desafios da tradução. Darandina Revista Eletrônica, v. 15, n. 1, 2022. Disponível em: <http://www.urmia.ac.ir/ijltr> Acesso em: 22 jan. 2024.
    » http://www.urmia.ac.ir/ijltr

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2023
  • Aceito
    30 Out 2023
  • Publicado
    04 Jan 2024
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