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CONSTRUTO DIDÁTICO DE LEITURA LITERÁRIA NO ENSINO DE PORTUGUÊS COMO LÍNGUA ADICIONAL: UM PERCURSO ENTRE MATERIAIS E MÉTODOS

DIDACTIC CONSTRUCT OF LITERARY READING IN THE TEACHING OF PORTUGUESE AS AN ADDITIONAL LANGUAGE: A PATH BETWEEN MATERIALS AND METHODS

RESUMO

A presença da literatura no ensino de línguas adicionais incorpora a premissa de que há consenso sobre a sua importância em sala de aula. No entanto, a hesitação quanto ao modo de abordá-la ainda se projeta nas crenças de professores e pesquisadores, notadamente nos materiais didáticos e nos planejamentos de aulas. Partindo de conceitos da construção de sentidos intercultural em leitura literária nas aulas de português como língua adicional, defende-se que os textos literários são elementos fundamentais no desenvolvimento do processo cognitivo, equilibrando sua dimensão estética e dialógica à leitura de mundo dos estudantes. Nessa perspectiva, na medida em que se fortalece a relação entre mediador, texto literário e leitor, revelam-se modelos estratégicos no planejamento de cursos. Objetiva-se, neste artigo, uma investigação de tais modelos, com o propósito de examinar os procedimentos de ensino de leitura literária para estudantes estrangeiros, baseados em suas experiências de leitura como prática educativa e social. Por meio da análise desses procedimentos em aulas de línguas adicionais, procura-se demonstrar e aperfeiçoar o funcionamento dos mecanismos de mediação além dos limites dos livros didáticos, mas ainda parte integrante de atividades e de materiais de ensino. Como resultado, torna-se possível responder qual o papel da leitura de textos literários no processo de assimilação da língua portuguesa e de que forma o professor pode contribuir em sua prática didática de mediação ao permitir aproximar-se da prática social e construir sentidos, vinculando conhecimento empírico e saberes interculturais.

Palavras-chave
português como língua adicional; leitura literária; materiais didáticos; construção de sentidos

ABSTRACT

The presence of literature in additional language teaching incorporates the premise that there is a consensus on its importance in the classroom. However, hesitation regarding the manner of its utilization still permeates the beliefs of teachers and researchers, notably in instructional materials and lesson planning. Based on concepts of the construction of intercultural meaning in literary reading in Portuguese as an additional language classes, it is argued that literary texts are fundamental elements in the development of the cognitive process, balancing their aesthetic and dialogical dimensions with students’ worldviews. In this perspective, as the relationship between mediator, literary text, and reader is strengthened, strategic models reveal themselves in course planning. The aim of this study is to investigate such models, with the purpose of examining procedures for teaching literary reading to foreign language learners, based on their experiences of reading as an educational and social practice. Through the analysis of these procedures in additional language classes, the aim is to demonstrate and enhance the functioning of mediation mechanisms beyond the limits of textbooks, while still being an integral part of teaching activities and materials. As a result, it becomes possible to answer what is the role of reading literary texts in the process of assimilation of the Portuguese language and how the teacher can contribute to his didactic practice of mediation by allowing himself to approach social practice and build meanings, linking empirical knowledge and intercultural knowledge.

Keywords
Portuguese as an additional language; literary reading; instructional materials; meaning construction

INTRODUÇÃO

No âmbito intercultural do ensino de literatura em aulas de línguas adicionais, o uso de textos literários envolve o planejamento de cursos junto à escolha de procedimentos de aulas e de materiais didáticos na busca por melhor aproveitamento do potencial literário no processo de ensino-aprendizagem.

Semelhante à problemática no ensino de língua materna, a escolha de leitura de textos literários reflete uma sustentação de critérios e de estratégias baseada em um mediador capaz de selecionar e oferecer um repertório almejando a leitura interessada. Tal seleção, à primeira vista, pode parecer paradoxal entre o prazer da leitura e a leitura didatizada, entretanto, e por isso, o empenho em promover uma prática mais próxima da leitura espontânea, visando o objetivo de aprendizagem de línguas, permite a incorporação de uma abordagem que estimule essa aproximação ao mesmo tempo em que evita a subutilização dos textos.

Na elaboração e utilização de materiais didáticos, entendidos como atividades, verificam-se estratégias fundamentadas em estudos para a mediação de conhecimentos entre professor e aluno, ambos sujeitos leitores em seus contextos socioculturais. À vista da convergência e da comparação dos conhecimentos do professor leitor com os dos alunos, os desdobramentos produzem efeitos nas formas de ensino e de aprendizagem em um traçado de equilíbrio entre as competências de comunicação imediata e as complexas de domínio simbólico, expressivo.

As construções de sentido da leitura literária, tanto individuais quanto coletivas, desenvolvem o pensamento e a reflexão como atividade crítica da linguagem e, consequentemente, da experiência cultural em que a prática da apropriação dessa leitura de mundo, por meio da reativação do acesso às estruturas cognitivas em uma nova língua, reverbera sua percepção de partilhar uma vivência interna que atravessa e ultrapassa o olhar percorrido ao longo do texto. Trata-se da aprendizagem da língua com a literatura.

Justifica-se o estudo dessa empreitada uma vez que se considere a literatura muito mais do que um aporte para o ensino estrutural ou comunicativo da língua a partir de procedimentos que mobilizem conhecimentos diante da ficção e da poesia sobre a cultura do outro.

Nesse contexto, a partir da reflexão de parâmetros didáticos no plano de aulas para o ensino de literatura, propõe-se investigar as direções possíveis de práticas docentes analisando as estratégias que permitem explorar os textos literários em aulas de português para falantes de outras línguas a fim de demonstrar a relevância de procedimentos interculturais na elaboração de planos de leitura que valorizem não somente as perspectivas linguísticas, mas também as estéticas, simbólicas, históricas e sociais.

Para tal investigação, o estudo contemplou os conceitos referentes aos textos literários, às suas potencialidades intrínsecas e às competências interculturais que eles propiciam nas reflexões teóricas de Petit (2009PETIT, Michèle (2009). A arte de ler ou como resistir à adversidade. São Paulo: Ed. 34., 2019PETIT, Michèle (2019). Ler o mundo: experiências de transmissão cultural nos dias de hoje. São Paulo: Editora 34.), Jouve (2010)JOUVE, Vincent et al (2010). Entrevista com Vincent Jouve, autor de A leitura. Tradução de Brigitte Hervot. Leitura em Revista. Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio, n. 1., Kramsch (1993KRAMSCH, Claire (1993). Culture in foreign language teaching. In: Iranian Journal of Language Teaching Research. n. 1, p. 57-78, 1993. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/3876875>. Acesso em 30 abr. 2023.
http://www.jstor.org/stable/3876875...
, 2006KRAMSCH, Claire (2006). From communicative competence to symbolic competence. In: The Modern Language Journal, Wiley, v. 90, n. 2, p. 249-252, Summer, 2006. Disponível em: <http://www.sdkrashen.com/Principles_and_Practice/Principles_and_Practice.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2023.
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) e Freire (1996FREIRE, Paulo (1996). Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Anca/MST, 2002., 2006FREIRE, Paulo (2006). A importância do ato de ler. 47. ed. São Paulo: Cortez.) em consonância aos processos de ensino e aprendizagem de leitura em línguas estrangeiras, bem como aos de produção de atividades e materiais didáticos, de Krashen (1982)KRASHEN, Stephen (1982). Principles and Practice in Second Language Acquisition. Pergamon Press. Disponível em: <https://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/poesiainfantilport.htm> Acesso em 30 abr. 2023.
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, Leffa (2003LEFFA, Vilson J. (2003). Como produzir materiais para o ensino de línguas. In: Produção de materiais de ensino: teoria e prática. Pelotas: EDUCAT, p. 13-38., 2012LEFFA, Vilson (2012). Ensino de línguas: passado, presente e futuro. Revista de estudos da linguagem, v. 20, n. 2, p. 389-411.), Abreu (2006)ABREU, Márcia (2006). Cultura letrada: literatura e leitura. São Paulo: Editora UNESP. e Lajolo (2007)LAJOLO, Marisa (2007). Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6. ed., 12. impressão, São Paulo: Ática..

Efetuou-se, para tanto, a revisão de dados referentes aos estudos de leitura literária em língua estrangeira, a verificação dos níveis de seleção de leitura contidos na Proposta curricular para cursos de literatura brasileira nas unidades da rede de ensino do Itamaraty no exterior (BRASIL, 2020BRASIL (2020). Ministério das Relações Exteriores. Proposta curricular para cursos de literatura brasileira nas unidades da rede de ensino do Itamaraty no exterior - Brasília : FUNAG, 2020. 60 p. - (Propostas curriculares para ensino de português no exterior)) e a análise de protocolos na produção de materiais didáticos. Como ponto de partida das análises, aspectos levantados a partir desses estudos conceituais, como procedimentos de interação, diretrizes, requisitos e competências envolvidas no processo de ensino com os textos literários, mostraram algumas pistas das operações mais adequadas a se seguir para o seu aproveitamento no ensino de línguas.

Como resultado, apontam-se os rumos possíveis na elaboração de estratégias de ensino abrangendo os textos literários, efetivamente, como parte integrante dos materiais didáticos.

O artigo está organizado, de início, sob a perspectiva da contribuição de pressupostos teóricos que apontam para a relevância da leitura de textos literários em aulas de línguas adicionais, considerando seu papel intelectual e sensível. Em seguida, articula-se a problemática de se percorrer a leitura dialógica entre diretrizes curriculares, materiais didáticos e uma mediação capaz de potencializar as configurações de tais textos, redefinindo propostas metodológicas na elaboração de materiais literários para, enfim, depreender estratégias didáticas que permitam operar competências entre línguas junto a alunos leitores.

1. A IMPORTÂNCIA DA LEITURA DE TEXTOS LITERÁRIOS EM AULAS DE PLA (PORTUGUÊS COMO LÍNGUA ADICIONAL)

A prática docente, no contexto didático do português para estrangeiros, tem se caracterizado por meio de parâmetros interculturais para o ensino de língua que incluem os gêneros textuais junto às possibilidades de leitura social e estética. Embora ainda pouco abordados na formação de seus professores e na didática de cursos em tal contexto, os textos literários constituem grande potencial para atividades de interação linguística e desenvolvimento cognitivo através das multicamadas da linguagem e das visões de mundo.

Consoante a essa ideia, Jouve (2010)JOUVE, Vincent et al (2010). Entrevista com Vincent Jouve, autor de A leitura. Tradução de Brigitte Hervot. Leitura em Revista. Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio, n. 1. observa que estudos referentes ao tema seguem de forma entrelaçada às duas vertentes:

As pesquisas acerca da leitura podem assumir duas direções. Ou interessamo-nos pela aprendizagem da leitura e pelos métodos mais eficientes para que dê resultados; ou questionamo-nos sobre o que está em jogo no ato de ler - em particular, quando se trata de textos literários. A primeira opção relaciona-se com a didática; a segunda, com a reflexão teórica. (JOUVE, 2010JOUVE, Vincent et al (2010). Entrevista com Vincent Jouve, autor de A leitura. Tradução de Brigitte Hervot. Leitura em Revista. Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio, n. 1., p. 202)

Tais desdobramentos de direções, didaticamente possíveis, são fundamentais para refletir sobre as ações metodológicas contemporâneas, situadas historicamente e inter-relacionadas no cenário do ensino de português como língua adicional, entendendo que os textos literários, na qualidade de instrumentos cognitivos, propiciam as operações mentais por meio do processo de compreensão de informações e referências aptas a um diálogo responsivo nas decisões interpretativas baseadas em experiências.

De fato, a literatura contribui para o melhor desempenho na aquisição da língua e proporciona “atividades de introdução a competências específicas”, questões comprovadas por meio de resultados do PISA1 1 Programa Internacional de Avaliação de Estudantes ou Programme for International Student Assessment. (PETIT, 2019PETIT, Michèle (2019). Ler o mundo: experiências de transmissão cultural nos dias de hoje. São Paulo: Editora 34., p. 39-40), reforçando a tese de que o gosto pela leitura literária, bem como a leitura diversificada, elevaria o desempenho de aprendizagem. Além disso, a capacidade de examinar e avaliar é aguçada na atividade de leitura das camadas de linguagens do texto, revelando a contribuição reflexiva e crítica de referências comuns, inclusive para integrar sociedades pluriculturais contra a segregação. Afinal, “ler talvez sirva antes de tudo para elaborar um sentido, dar forma a sua experiência ou ao seu lado escuro, sua verdade interior, secreta; para criar uma margem de manobra” (PETIT, 2019PETIT, Michèle (2019). Ler o mundo: experiências de transmissão cultural nos dias de hoje. São Paulo: Editora 34., p. 43).

Destaca-se, ainda, a presença indispensável da literatura na área didático-pedagógica, considerando as afirmações de Candido (2011)CANDIDO, Antonio (2011). O direito à literatura. In: Vários escritos. 5ª ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre Azul, p. 169-179., é reflexo da necessidade universal de “manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas”, uma vez que ninguém poderia passar vinte e quatro horas sem algum tipo fabulação. Esse potencial humanizador é, assim, reconhecido como força vital e “por isso é que nas nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo”. (CANDIDO, 2011CANDIDO, Antonio (2011). O direito à literatura. In: Vários escritos. 5ª ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre Azul, p. 169-179., p. 177).

Essa dupla experiência de leitura de textos literários, que propõe exercício cognitivo e constrói sentidos para a formação da identidade, oferece formas de vivenciar o outro e a si mesmo muito além do rendimento educativo ou de algumas horas de lazer. A convergência ao olhar de humanidade compartilhada pela escrita, em Candido e Petit, concilia a reflexão da experiência de sentir-se mais conectado no mundo e da possibilidade de aproximar-se dos outros de forma diferente a partir do momento em que a leitura desperta novas percepções. Assim, um bom leitor permite-se vivenciar e, ao mesmo tempo, fazer parte de um complexo processo de reflexão crítica de sua realidade e de seu espaço compartilhado entre culturas.

O público de estudantes adultos de português como língua adicional compõe-se, em geral, de falantes de outras línguas, seja por deslocamento forçado, como as comunidades de refugiados e imigrantes, seja pela opção de programas de intercâmbio, como as relações de internacionalização entre universidades e centros culturais. O fator comum no ensino de literatura em aulas de línguas é uma condição de se perceber em um “lugar cultural” de pertencimento na fabulação, em que a formação de lembranças, espaços ficcionais, e a experiência do outro possam mesclar-se às comparações de fatos e lugares vividos, junto às reflexões de suas próprias narrativas internas.

Frente a essa perspectiva, verifica-se a demanda por uma didática que permita compartilhar as narrativas internas dos leitores envolvidos, especificamente entre os professores e os alunos, sem perder de vista o texto, o contexto e todas as marcas deixadas pelo escritor que

faz a fineza e a justiça de expor aos leitores seus melhores argumentos, tentando transformá-los, assim, em interlocutores e comparsas, os quais, tanto mais se respeita, quanto mais se lhes dão piparotes, palmadas e piscadelas de olhos, ingredientes fundamentais do pacto que escritores e leitores celebram desde que o mundo passou a circular em folhas impressas, reunidas em livros vendidos em lojas especializadas. (LAJOLO, 2007LAJOLO, Marisa (2007). Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6. ed., 12. impressão, São Paulo: Ática., p. 35)

Trata-se da visão freiriana, reconhecida e refinada por Lajolo (2007)LAJOLO, Marisa (2007). Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6. ed., 12. impressão, São Paulo: Ática. - por Kumaravadivelu (2001)KUMARAVADIVELU, Bala (2001). Toward a postmethod pedagogy. TESOL quarterly, v. 35, n. 4, p. 537-560, 2001. e Leffa (2012)LEFFA, Vilson (2012). Ensino de línguas: passado, presente e futuro. Revista de estudos da linguagem, v. 20, n. 2, p. 389-411., também, como veremos adiante nas interfaces do pós-método -, cuja premissa apresenta a necessidade de desenvolver formas de conhecimento e práticas interativas que considerem as experiências trazidas pelos participantes do ambiente pedagógico. Nesse prisma, o contexto de aprendizagem dialoga com estudos científicos na resolução de problemas em sala de aula retomando a lógica central da Linguística Aplicada, tanto em língua materna quanto em língua adicional:

na medida em que os elementos de que se constitui a especificidade do poema estão na linguagem e na medida em que a linguagem é uma construção da cultura, para que ocorra a interação entre o leitor e o texto, e para que essa interação constitua o que se costuma considerar uma experiência poética, é preciso que o leitor tenha possibilidade de percepção e reconhecimento - mesmo que inconscientes - dos elementos de linguagem que o texto manipula. (LAJOLO, 2007LAJOLO, Marisa (2007). Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6. ed., 12. impressão, São Paulo: Ática., p. 45)

Na percepção do contexto das palavras não basta traduzi-las no processo de “compreensão crítica do ato de ler”, visto que

não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. Ao ensaiar escrever sobre a importância do ato de ler, eu me senti levado - e até gostosamente - a “reler” momentos fundamentais de minha prática, guardados na memória, desde as experiências mais remotas de minha infância, de minha adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão crítica da importância do ato de ler se veio em mim constituindo. (FREIRE, 2006FREIRE, Paulo (2006). A importância do ato de ler. 47. ed. São Paulo: Cortez., p. 11)

O autor discorre sobre a alfabetização como ato de conhecimento pela palavra muito além da decodificação, e leitura como processo de experiência compartilhada capaz de suscitar o pensamento crítico a partir da consciência de mundo em seus diferentes contextos e, consequentemente, de sua valorização.

Desde o começo, na prática democrática e critica, leitura do mundo e a leitura da palavra estão dinamicamente juntas. O comando da leitura e da escrita se dá a partir de palavras e de temas significativos à experiência comum dos alfabetizandos e não de palavras e de temas apenas ligados à experiência do educador. (FREIRE, 2006FREIRE, Paulo (2006). A importância do ato de ler. 47. ed. São Paulo: Cortez., p. 29)

De fato, as leituras do mundo e da palavra de Abreu (2006)ABREU, Márcia (2006). Cultura letrada: literatura e leitura. São Paulo: Editora UNESP., Lajolo (2007)LAJOLO, Marisa (2007). Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6. ed., 12. impressão, São Paulo: Ática. e Petit (2009)PETIT, Michèle (2009). A arte de ler ou como resistir à adversidade. São Paulo: Ed. 34. conectam-se à leitura de Freire entrelaçadas pelas experiências interculturais de professores e alunos, o que não difere do processo de leitura literária em outras línguas, quando se resgatam as memórias e dinâmicas desse letramento.

Dessas perspectivas, reforça-se a afirmação de Abreu (2006ABREU, Márcia (2006). Cultura letrada: literatura e leitura. São Paulo: Editora UNESP., p. 98) de que o ato de ler não é decifrar um livro “letra após letra, palavra após palavra”, mas importa estabelecer uma reflexão com as nossas próprias referências e ideias, considerando simultaneamente “a posição do autor no campo literário (sua filiação intelectual, sua condição social e étnica, suas relações políticas etc.)”. Observe-se, entretanto, que a seleção de obras legitimadas pela crítica ou pelos professores corresponde aos elementos internos à obra e dela inseparáveis, “não tendo qualquer relação com questões externas à obra escrita, tais como o prestígio do autor ou da editora que o publica, por exemplo” (ABREU, 2006ABREU, Márcia (2006). Cultura letrada: literatura e leitura. São Paulo: Editora UNESP., p. 39).

Reconhecer essa legitimação como material de ensino implica assumir que a seleção de textos literários representativos envolve sua complexidade linguística, histórica e sociocultural.

De forma complementar, Lajolo (2007)LAJOLO, Marisa (2007). Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6. ed., 12. impressão, São Paulo: Ática. destaca que alguns “encaminhamentos” mais tradicionais no ensino de literatura, por exemplo a época de inscrição do texto, bem como seu “juízo crítico”, preservam seu contexto histórico concomitante à sua inscrição no mundo cotidiano, fatores que se juntam aos impasses individuais vividos pelo indivíduo em cada leitura. A autora observa que os encaminhamentos seriam fundamentais à vivência da complexidade do dialogismo dos textos literários; no entanto, o conhecimento dos impasses subjetivos, vividos na interioridade, não é, nem deve ser, obrigatório ao professor, uma vez que é possível conectar-se aos seus próprios impasses na leitura e às atividades com o texto.

Com isso, cabe diferir a leitura como prática social, individual e autônoma em suas escolhas culturais, e a leitura como prática de ensino, coletiva e semiautônoma, que requer uma mediação para permitir a reflexão de leituras e experiências universais entre culturas:

os textos literários nos levam a refletir sobre a maneira como nossas linguagens estruturam o mundo; nos ajudam a modelizar nossa existência pela experiência da realidade fictícia que proporcionam; e enriquecem nossa relação com o real, quando ampliam a escala de nossas emoções e nos oferecem (às vezes) um ponto de vista original. Contudo, esses efeitos « positivos » dependem também da competência de cada leitor. Para apreciar um texto literário, é preciso um mínimo de cultura - sobretudo quando se trata de um texto antigo. É a razão pela qual a mediação do ensino é indispensável. (JOUVE, 2010JOUVE, Vincent et al (2010). Entrevista com Vincent Jouve, autor de A leitura. Tradução de Brigitte Hervot. Leitura em Revista. Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio, n. 1., p. 203)

A criação, percepção e expressão do gosto individual junto ao repertório literário didático constituem marcas, portanto, da construção de conhecimento amplo e diversificado para o desenvolvimento na comunicação e interpretação, incluindo projetos que instaurem políticas públicas de leitura e que preparem diretrizes significativas aos dois contextos, individuais e coletivos. Por conseguinte, fatores essenciais no planejamento de aulas e produção de materiais, professores e aprendizes leitores tornam-se peças-chave nesse decurso.

2. PERCURSOS LITERÁRIOS EM PLA - MATERIAIS DIDÁTICOS, DIRETRIZES CURRICULARES E MEDIAÇÃO

No âmbito dos cursos de PLA, especificamente no plano de aulas, os materiais didáticos demonstram ocupar um lugar de destaque nas preocupações de recursos serem adotados. Isso inclui o ensino de literatura, especificamente os textos a serem lidos e as atividades a serem programadas.

Um dos instrumentos linguísticos essenciais mais conhecidos são os livros didáticos, atentando-nos a seus atributos e limitações. Lajolo (2007LAJOLO, Marisa (2007). Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6. ed., 12. impressão, São Paulo: Ática., p. 52) considera o ensino de língua portuguesa e o uso de livros didáticos uma “parceria antiga e mal resolvida”. Do mesmo modo, o ensino de português para falantes de outras línguas, junto às preocupações teóricas, tem espelhado essa situação como consequência da oscilação didática entre a necessidade de um roteiro norteador e a total dependência didática em um só material.

Tal constatação leva-nos a considerar as possibilidades pedagógicas limitadoras, no tempo ou no espaço, dos livros didáticos. Ainda que não se mostrem dispensáveis no processo geral de ensino, confirma-se sua natureza anacrônica de material de consumo que os transforma como tais em relação às atividades. É válido afirmar que, em sua estrutura, é usual a presença do fracionamento dos elementos linguísticos e dos aspectos interculturais a fim de permitir um meio facilitador no processo pedagógico, sujeitando, por vezes, a utilização de textos literários como pretexto para atividades linguísticas descontextualizadas.

Não se trata, afinal, de reprovar a apresentação de atividades com os textos literários nesses livros. Além disso, é verdade que o livro didático propicia, muitas vezes, o primeiro contato com poemas, crônicas ou excertos de contos e romances. Isso sem contar que seu valor como instrumento linguístico é reconhecido por pesquisadores tanto quanto seu protagonismo como guia pedagógico para professores de PLA, especialmente para os iniciantes. No entanto, o que se discute em uma proposta didática curricular ultrapassa as fronteiras das escolhas de um método de consumo, pois abrange outros instrumentos linguísticos como a própria obra literária completa em seu teor intrínseco de material autêntico, passível de compreensão e interpretação empírica no percurso de significados construídos pelos leitores.

É necessário expor igualmente que a preocupação com a finalidade de se trabalhar a literatura no contexto de aula de língua adicional como recurso didático não pode ser desvinculada da atuação do professor e de sua habilidade em conduzir as atividades de forma a se evitar o pretexto de uso simplificado e descontextualizado, especialmente, de escopo gramatical ou lexical. Um material didático não traz atividades para serem submetidas a críticas favoráveis ou desfavoráveis, nem para preparar professores integralmente nas práticas de leitura em sala de aula, pois ele é um produto de consumo didatizado e não um manual com poder de autonomia que substituirá a formação do professor. Este, sim, figura central no planejamento e desenvolvimento de atividades.

Consideradas as reflexões anteriores, perdura uma impressão de que existiria uma preocupação uníssona quanto à importância da leitura de textos literários no processo de ensino-aprendizagem de uma língua, mas não se sabe muito bem o que fazer e, principalmente, como produzir, selecionar e trabalhar seus materiais.

É nesse impasse que podemos considerar estratégias de organização a partir de diretrizes curriculares que contemplem a literatura e permitam o desenvolvimento de um programa de curso, desde o projeto de uma sequência didática até a forma de avaliação, para que o professor possa, enfim, planejar suas aulas e escolher seus recursos didáticos.

Uma iniciativa de percurso para formulação de cursos e de organização didática é a Proposta curricular para cursos de literatura brasileira nas unidades da rede de ensino do Itamaraty no exterior (BRASIL, 2020BRASIL (2020). Ministério das Relações Exteriores. Proposta curricular para cursos de literatura brasileira nas unidades da rede de ensino do Itamaraty no exterior - Brasília : FUNAG, 2020. 60 p. - (Propostas curriculares para ensino de português no exterior))2 2 Há, também, a Proposta curricular para ensino de literatura brasileira infantil / infantojuvenil nas unidades da rede de ensino do Itamaraty, de 2022. , cujas bases consideram três eixos: “questões teóricas e de métodos”; “proposta de nivelamento dos textos literários” e a “proposta de classificação das obras da estante básica de literatura brasileira da Rede Brasil Cultural”. Além disso, dois critérios norteiam as diretrizes: mediação e repertório

Baseada em pesquisas e visando a “preencher uma lacuna metodológica nas suas unidades de ensino de português” como um referencial de guia pedagógico, o documento propõe uma grade descritiva de nivelamento em consonância com os níveis de proficiência do Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros (Celpe-Bras) e do Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (QECR)” (BRASIL, 2020BRASIL (2020). Ministério das Relações Exteriores. Proposta curricular para cursos de literatura brasileira nas unidades da rede de ensino do Itamaraty no exterior - Brasília : FUNAG, 2020. 60 p. - (Propostas curriculares para ensino de português no exterior), p. 32):

Tabela 1
Correspondência entre os níveis de leitura literária e os níveis de proficiência do Celpe-Bras e do QECR

Embora se classifique como uma proposta genérica, os níveis ressaltam parâmetros coerentes no preparo de aulas e seleções possíveis de obras a serem escolhidas em materiais de ensino, o que demonstra um gesto de suprir a carência de apoio didático no ensino de literatura. Suas camadas de adequações e critérios de nivelamentos interligam-se essencialmente aos gêneros textuais, à complexidade de linguagem - incluindo variedades linguísticas - e à extensão da obra, que são fundamentadas nas escalas “simples, médios e textos-desafio”, o que contribui para a pesquisa e para o planejamento de aulas como indicações de referência.

Conforme a descrição no documento, estas são as obras da proposta de nivelamento da estante básica de literatura brasileira da Rede Brasil Cultural (BRASIL, 2020BRASIL (2020). Ministério das Relações Exteriores. Proposta curricular para cursos de literatura brasileira nas unidades da rede de ensino do Itamaraty no exterior - Brasília : FUNAG, 2020. 60 p. - (Propostas curriculares para ensino de português no exterior), p. 34-36):

Leitura Literária Nível 1: Carta a El-Rei Dom Manuel, de Pero Vaz de Caminha (versão moderna de Rubem Braga); Melhores crônicas de João do Rio; Poesias reunidas de Oswald de Andrade; Estrela da vida inteira, de Manuel Bandeira; Duzentas crônicas escolhidas, de Rubem Braga; Todas as crônicas, de Clarice Lispector; Tudo e mais um pouco, de Chacal; Poesia reunida, de Adélia Prado; Histórias de índio, de Daniel Munduruku; Marcelo, marmelo, martelo, de Ruth Rocha; Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado; A bolsa amarela, de Lygia Bojunga; Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque; Flicts, O menino maluquinho, de Ziraldo.

Leitura Literária Nível 2 - O quinze, de Raquel de Queiroz; Nova reunião: 23 livros de poesia, de Carlos Drummond de Andrade; O pagador de promessas, de Dias Gomes; Cemitério de elefantes, de Dalton Trevisan; Leite derramado, de Chico Buarque; Cinzas do norte, de Milton Hatoum; Cidade livre, de João Almino; K: relato de uma busca, de Bernardo Kucinski; O feijão e o sonho, de Orígenes Lessa.

Leitura Literária Nível 3 - A moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo; Antologia poética de Olavo Bilac; Urupês, de Monteiro Lobato; O rei da vela, de Oswald de Andrade; Incidente em Antares, de Érico Veríssimo; Jubiabá, de Jorge Amado; Nova antologia poética, de Vinícius de Moraes; Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto; A teus pés, de Ana Cristina César; As meninas, de Lygia Fagundes Teles; Feliz ano novo, de Rubem Fonseca; Toda poesia, de Paulo Leminski; Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo; Anel de vidro, de Ana Luisa Escorel; Não falei, de Beatriz Bracher.

Leitura Literária Nível 4: Marília de Dirceu, de Tomás Antonio Gonzaga; O guarani, Senhora, de José de Alencar; Noite na taverna, Os melhores poemas, de Alvares de Azevedo; Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida; O navio negreiro e outros poemas, de Castro Alves; Dom Casmurro, Os melhores contos, Crônicas escolhidas, de Machado de Assis; O cortiço, de Aluisio Azevedo; Eu e outros poemas, de Augusto dos Anjos; Triste fim de Policarpo Quaresma, Contos completos, de Lima Barreto; Vidas secas, São Bernardo, de Graciliano Ramos; Os ratos, de Dyonélio Machado; Antologia poética de Cecília Meireles; Poemas negros, de Jorge de Lima; Melhores poemas de Murilo Mendes; Melhores poemas de João Cabral de Melo Neto; O tronco, de Bernardo Élis; O livro das ignorãças, de Manoel de Barros; Quarup, de Antonio Callado; Poema sujo, de Ferreira Gullar; 50 contos e 3 novelas, de Sérgio Sant’Anna; Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato; Verdade tropical, de Caetano Veloso; Cidade de Deus, de Paulo Lins; O voo da guará vermelha, de Maria Valéria Rezende; O metro nenhum, de Francisco Alvim; Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas; Reinações de Narizinho, Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato; Indez, de Bartolomeu Campos de Queiróz

Leitura Literária Nível 5: Duas viagens ao Brasil, de Hans Staden; Poemas escolhidos de Gregório de Matos; Essencial padre Antonio Vieira: o que o turista deve ver, de Pe. Antonio Vieira; O Uruguai, de Basílio da Gama; Claudio Manuel da Costa: série essencial; Melhores poemas de Gonçalves Dias; Úrsula, de Maria Firmina dos Reis; Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; Os sertões, de Euclides da Cunha; Missal/Broquéis, de Cruz e Souza; Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade; Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade; Os cavalinhos de Platiplanto, de José J. Veiga; Sagarana, Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa; Perto do coração selvagem, A hora da estrela, de Clarice Lispector; Galáxias, de Haroldo de Campos; Um copo de cólera, de Raduan Nassar; Capão pecado, de Ferréz; Pesado demais para a ventania, de Ricardo Aleixo.

Há uma ponderação pertinente dos autores quanto à possível flexibilidade de uso das obras listadas em relação aos níveis subsequentes, visto que “o nível de complexificação da leitura depende em grande medida da intimidade do estudante com o idioma e da intensidade da mediação da leitura empreendida pelo professor” (BRASIL, 2020BRASIL (2020). Ministério das Relações Exteriores. Proposta curricular para cursos de literatura brasileira nas unidades da rede de ensino do Itamaraty no exterior - Brasília : FUNAG, 2020. 60 p. - (Propostas curriculares para ensino de português no exterior), p. 33). Reconhecendo que as indicações podem ser alteradas a depender do plano de aulas, é válido complementar que as crônicas concentradas no Nível 1, por suas características reflexivas e temáticas diversificadas entre outras, permitem seu aproveitamento em todos os níveis.

Por extensão, uma vez que se atribuem variáveis em relação à apreensão da língua e à sensibilidade do professor na escolha da obra que melhor se encaixa à realidade de cada sala de aula, é possível destacar ainda que, eventualmente, um deslocamento para níveis antecedentes também seria concebível. A título de ilustração, no caso de turmas com falantes de línguas próximas em situações de imersão, algumas obras listadas no Nível 5 como A hora da estrela, de Clarice Lispector, poderiam fazer parte do repertório de uma turma do Nível 4; e Antologia poética, de Cecília Meireles, ou Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, recomendados no Nível 4, poderiam ser lidos no Nível 3.

Ademais, ao somar as questões teóricas e os procedimentos didáticos às práticas docentes e experiência leitora dos estudantes, retomam-se outros elementos que contribuem para o aperfeiçoamento didático do uso de textos literários em aulas do português para falantes de outras línguas. Os resultados de estudos anteriores (TAKAHASHI, 2013TAKAHASHI, Neide Tomiko (2013) Leitura literária no ensino-aprendizagem do português para universitários estrangeiros. Linha D’Água, São Paulo, n. 26 (1), p. 119-40., 2014TAKAHASHI, Neide Tomiko (2014). Textos literários no ensino de português para falantes de outras línguas em contexto universitário. Estudos Linguísticos (São Paulo. 1978), 43(2), 868-881., 2015TAKAHASHI, Neide Tomiko (2015). Leitura literária em português-língua estrangeira (PLE): representações, compreensão e produção textual. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.) apontaram para a importância da recepção dos leitores na adequação de gêneros textuais, em especial suas motivações, e reforçaram a ideia de se conectar o potencial literário dos textos às atividades que possam interagir com os gostos pessoais.

Dessas constatações, depreende-se a necessidade de verificar o perfil de um professor de línguas leitor tanto quanto o de um aluno leitor. Para Jouve (2010JOUVE, Vincent et al (2010). Entrevista com Vincent Jouve, autor de A leitura. Tradução de Brigitte Hervot. Leitura em Revista. Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio, n. 1., p. 214), “de uma maneira geral, o termo « leitura » supõe uma atividade de compreensão ou de interpretação que assume sua parte de subjetividade”, o que corrobora as instâncias de leitor inscrito, previsto nesse pacto dialógico, e de leitor externo ao texto, com sua formação e todas as referências culturais prévias, ocupando um “terceiro lugar” (KRAMSCH, 2017) de onde se vê de dentro do texto e, ao mesmo tempo, de fora, posição referente a qualquer participante leitor.

Em tal empreitada, a presença de um professor-mediador em leitura de textos literários torna-se imprescindível, uma vez que, a partir de seu conhecimento, permite influenciar os leitores ao permitir que percebam que tal prática mobiliza seus conhecimentos prévios de língua, das palavras, da memória e das emoções. Assim, um mediador experiente cria condições para entrelaçar aspectos de seus saberes junto à obra lida.

O trabalho do mediador de leitura não é fácil de reduzir a um manual de funções. Seu ofício essencial é ler de muitas formas possíveis: em primeiro lugar para si mesmo, porque um mediador de leitura é um leitor sensível e perspicaz, que se deixa tocar pelos livros, que desfruta e que sonha em compartilhá-los com outras pessoas. Em segundo lugar, um mediador cria rituais, momentos e atmosferas propícias para facilitar os encontros entre livros e leitores. Às vezes, pode fazer a Hora do Conto e ler em voz alta uma ou várias histórias a um grupo, mas, outras vezes, propicia leituras íntimas e solitárias ou encontros em pequenos grupos. Assim, em certas ocasiões, conversa ou recomenda algum livro; em outras permanece em silêncio ou se oculta para deixar que livro e leitor conversem. (REYES, 2014REYES, Yolanda. Mediadores de leitura. In: FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva; VAL, Maria da Graça Ferreira da Costa; BREGUNCI, Maria das Graças de Castro (orgs.). Glossário Ceale: termos de alfabetização, leitura e escrita para alfabetizadores. Belo Horizonte: UFMG/Ceale, 2014., s/p.)

Observe-se que “oral ou escrita, a literatura é uma oferta de espaço” para vivenciar a expressividade interior e, “antes de tudo, é talvez um espaço que é encontrado nas palavras lidas, de modo vital” (PETIT, 2009PETIT, Michèle (2009). A arte de ler ou como resistir à adversidade. São Paulo: Ed. 34., p. 36). Ao compartilhar e propiciar territórios de leitura dentro e fora da sala de aula, o mediador promove certa autonomia ao leitor sem que a sua participação seja onipresente.

Nesse prisma, no equilíbrio entre técnica e experiência, o professor permite assegurar procedimentos baseados em requisitos interacionais em ambas as posições, como mediador e leitor, considerando ainda um planejamento de leitura em língua estrangeira e a condição do aluno leitor no processo de ensino.

O processo de ensino-aprendizagem de literatura em aulas de português como língua adicional segue o traçado didático-metodológico-estratégico de línguas estrangeiras. Ainda que se reconheça a discussão do pós-método (KUMARAVADIVELU, 2001KUMARAVADIVELU, Bala (2001). Toward a postmethod pedagogy. TESOL quarterly, v. 35, n. 4, p. 537-560, 2001.) em que a consolidação da ideia de sair de um roteiro metodológico seja viável, não é possível estabelecer, da mesma forma, o apagamento de um parâmetro curricular e, consequentemente, do estudo de línguas didaticamente organizado: “a verdade é que as pessoas continuam estudando línguas e os professores continuam tentando ensiná-las”. (LEFFA, 2012LEFFA, Vilson (2012). Ensino de línguas: passado, presente e futuro. Revista de estudos da linguagem, v. 20, n. 2, p. 389-411., p. 398). Evidenciam-se, dessa constatação, que as atividades que envolvam o planejamento, a consciência do autoconhecimento e da avaliação potencializam o que o aluno sabe e o que busca saber, conduzindo-o às melhores escolhas estratégicas para solucionar eventuais problemas, baseados em suas experiências de aprendizagem. Quanto aos professores, especificamente, quando se iniciam na prática docente, percebem a necessidade de confiar nos conhecimentos assimilados não se restringindo a métodos ou, por oposição, a saberes individualizados.

O conhecimento pessoal “não implica simplesmente o conhecimento comportamental de como fazer coisas particulares na sala de aula; envolve uma dimensão cognitiva que liga o pensamento à atividade, centrando-se no processo interpretativo embutido no contexto do saber o que fazer” (Freeman, 1996, p. 99). Ele não se desenvolve instantaneamente diante dos olhos que olham, como um filme se desenvolve em uma câmera instantânea. Evolui ao longo do tempo, através de um esforço determinado. Nessas circunstâncias, é evidente que os professores só podem se tornar autônomos na medida em que estiverem dispostos e aptos a iniciar um processo contínuo de autodesenvolvimento.(KUMARAVADIVELU, 2001KUMARAVADIVELU, Bala (2001). Toward a postmethod pedagogy. TESOL quarterly, v. 35, n. 4, p. 537-560, 2001., p. 549, tradução nossa)3 3 […] they quickly recognize the need to break away from such a constraining concept of method. In order to do that, they have to rely increasingly on their personal knowledge of learning and teaching. Personal knowledge “does not simply entail behavioral knowledge of how to do particular things in the classroom; it involves a cognitive dimension that links thought with activity, centering on the context-embedded, interpretive process of knowing what to do” (Freeman, 1996, p. 99). It does not develop instantly before one’s peering eyes, as a film develops in an instant camera. It evolves over time, through determined effort. Under these circumstances, it is evident that teachers can become autonomous only to the extent they are willing and able to embark on a continual process of self-development.

No segmento de tal vertente, mostra-se a valorização da autonomia e do conhecimento de procedimentos contextuais tendo em vista que

a opção por diferentes estratégias, a integração com o contexto e a possibilidade do diálogo ampliam a ação do professor, dando-lhe um papel que nunca teve antes. Se durante muito tempo buscou-se um método à prova de professor, agora busca-se um professor à prova de um método. Tudo aponta para sua autonomia. (LEFFA, 2012LEFFA, Vilson (2012). Ensino de línguas: passado, presente e futuro. Revista de estudos da linguagem, v. 20, n. 2, p. 389-411., p. 402)

Nessa configuração de ensino, projeta-se a figura “invisível” do professor como um mediador atuante que sabe abrir espaço, “um certo colocar-se em segundo plano” para a leitura autônoma (COSSON, 2015COSSON, Rildo J. (2015) A prática da leitura literária na escola: mediação ou ensino?. Nuances: estudos sobre Educação, v. 26, n. 3, p. 161-173., p. 167), permitindo evitar a dicotomia, e redução, entre ensinar somente os contextos da obra e dos autores ou mediar a leitura como atividade de lazer cultural.

É oportuno frisar neste ponto que ensinar é, também, pesquisar e estudar conforme nos atentam as observações de Freire quanto à amálgama indissolúvel entre pesquisa e ensino:

fala-se hoje, com insistência, no professor pesquisador. No meu entender o que há de pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou de atuar que se acrescente à de ensinar. Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa. O de que se precisa é que, em sua formação permanente, o professor se perceba e se assuma, porque professor, como pesquisador. (FREIRE, 1996FREIRE, Paulo (1996). Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Anca/MST, 2002., p. 14)

Assim, o aperfeiçoamento da oferta de um espaço literário deriva da experiência, observação e análise desse docente, também pesquisador, cujas práticas estudadas determinarão o reforço das capacidades críticas do aluno.

Na convergência dessas perspectivas, o estabelecimento de um plano de aulas e de um professor leitor hábil que reconheça as nuances didáticas em línguas adicionais são, portanto, as condições efetivas para o ensino com textos literários. Por um percurso didático adequado a seus propósitos e a diretrizes curriculares, muito além das abordagens ou do pós-método, a mediação inscrita por um sujeito leitor configura-se fundamental no processo de ensino-aprendizagem reconhecendo a intensificação de seu trabalho, de sua autonomia e, até mesmo, a sobrecarga de atribuições caso não exista uma rede de apoio institucional, como uma biblioteca ou acesso a opções de textos para leitura.

3. A LITERATURA NA ELABORAÇÃO DE MATERIAIS - PROCEDIMENTOS E ESTRATÉGIAS DIDÁTICAS

Ao configurar e assumir a produção de materiais didáticos como uma sequência de atividades com o objetivo de elaborar um instrumento linguístico por tarefas, torna-se necessário criar estratégias que nos guiem na sequência de atividades a serem propostas. Isso envolve etapas de organização e revela que, embora docentes e estudantes sejam peças fundamentais para o seu desempenho, a produção de artefatos de ensino “não está centrada nem no professor nem no aluno; está centrada na tarefa” (LEFFA, 2003LEFFA, Vilson J. (2003). Como produzir materiais para o ensino de línguas. In: Produção de materiais de ensino: teoria e prática. Pelotas: EDUCAT, p. 13-38., p. 39):

[...] Minimamente, deve envolver pelo menos quatro momentos: (1) análise, (2) desenvolvimento, (3) implementação e (4) avaliação. Idealmente essas quatro etapas devem formar um ciclo recursivo, onde a avaliação leve a uma nova análise, reiniciando um novo ciclo. (LEFFA, 2003LEFFA, Vilson J. (2003). Como produzir materiais para o ensino de línguas. In: Produção de materiais de ensino: teoria e prática. Pelotas: EDUCAT, p. 13-38., p. 16)

Nas etapas, as produções de materiais seguem a lógica da análise de adequação das necessidades dos alunos; seguido pelo desenvolvimento de atividades, com seus objetivos que incluem a definição de abordagens, conteúdo, atividades e recursos, junto à sua implementação pelo docente, com estratégias de uso dos materiais, e estabelecer uma avaliação para, de modo informal ou com protocolos formais, enfim, reiniciar um novo processo cíclico a uma nova análise em que se valorize a prática diversificada.

Leffa (2012LEFFA, Vilson (2012). Ensino de línguas: passado, presente e futuro. Revista de estudos da linguagem, v. 20, n. 2, p. 389-411., p. 402) segmenta ainda três linhas de ação no ensino de línguas no presente: “uma série de estratégias diversificadas que buscam atender as condições de aprendizagem do aluno, a realidade do professor e o contexto em que tudo isso ocorre”; “a implantação da pedagogia de projetos”, integrando o aluno ao seu entorno institucional pela aprendizagem de línguas, e a “pedagogia dialógica”, pela construção mútua de conhecimento. Projeta-se, nessa sequência, uma posição com certo grau de invisibilidade - “transparência, camuflagem e ocultação” - do professor, mas não menos privilegiada em seu poder de observar ou avaliar.

Se considerarmos que a mediação por artefatos culturais de ensino, dentre os quais incluem-se os materiais elaborados pelo professor, permite promover uma interação mais dinâmica no processo de ensino-aprendizagem, é possível corroborar o raciocínio de que

a elaboração do material didático atende a dois objetivos principais que se complementam: de um lado, visa a tornar o professor mais presente no seu trabalho pedagógico; de outro, tem o objetivo de assistir o desempenho do aluno na aquisição das competências desejadas. A idéia é de que, pela mediação do material produzido, a interação entre o professor e o aluno fique mais intensa e produza melhores resultados em termos de aprendizagem. (LEFFA, 2003LEFFA, Vilson J. (2003). Como produzir materiais para o ensino de línguas. In: Produção de materiais de ensino: teoria e prática. Pelotas: EDUCAT, p. 13-38., p. 10-11)

Assim, para que o aluno tenha mais controle e independência das atividades elaboradas em materiais didáticos e para que os professores possam abrir e ocupar novos espaços de mediação, as atividades devem resolver, primeiramente, o desafio de se atingir o efeito interativo proporcionado por uma leitura coletiva crítica e seu diálogo via gêneros textuais significativos no cotidiano dos estudantes (TAKAHASHI, 2015TAKAHASHI, Neide Tomiko (2015). Leitura literária em português-língua estrangeira (PLE): representações, compreensão e produção textual. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.).

Tudo isso reverbera que as atividades didáticas, tendo como ponto de partida a leitura de textos literários, possuem um caráter responsivo multidimensional, em que as inferências e interpretações permitem estabelecer relações significativas complexas de comunicação, não se restringindo a competências linguísticas simples.

Ao submeter os textos do discurso literário à apreciação, por exemplo, no gênero comentário ou resenha, estamos respondendo a uma linguagem, auxiliada por outra que é capaz de dialogar com o texto original. Promovemos, assim, uma ação responsiva na condição de língua alheia. (TAKAHASHI, 2015TAKAHASHI, Neide Tomiko (2015). Leitura literária em português-língua estrangeira (PLE): representações, compreensão e produção textual. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo., p. 80-81).

Tendo em vista o caráter dialógico dos textos literários, a apreciação do texto-resposta de outros gêneros textuais mostra-se pertinente à medida em que estabelecemos os critérios de competência a serem avaliados na atividade sem que seu potencial seja subutilizado.

Em concordância com Kramsch (2006KRAMSCH, Claire (2006). From communicative competence to symbolic competence. In: The Modern Language Journal, Wiley, v. 90, n. 2, p. 249-252, Summer, 2006. Disponível em: <http://www.sdkrashen.com/Principles_and_Practice/Principles_and_Practice.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2023.
http://www.sdkrashen.com/Principles_and_...
, 2017), discutir a competência simbólica como uma habilidade dialógica, inscrita em enunciados por Bakhtin (2003)BAKHTIN, Mikhail (2003). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes., expõe tal complexidade do ato de comunicação, visto que não bastaria apenas verificar a competência comunicativa e entender o sentido das palavras e enunciados, mas significaria compreender, também, a prática da produção de sentidos, especialmente no que se refere a estudantes universitários, com toda a bagagem cultural, em suas percepções de língua e literatura.

Partindo desse raciocínio, desenvolver a competência simbólica significa não apenas utilizar-se de vocabulário e de estratégias de comunicação, mas de “experiências incorporadas, ressonâncias emocionais e idealizações morais” (KRAMSCH 2006KRAMSCH, Claire (2006). From communicative competence to symbolic competence. In: The Modern Language Journal, Wiley, v. 90, n. 2, p. 249-252, Summer, 2006. Disponível em: <http://www.sdkrashen.com/Principles_and_Practice/Principles_and_Practice.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2023.
http://www.sdkrashen.com/Principles_and_...
, p. 251, tradução nossa)4 4 “embodied experiences, moral imaginings, and emotional resonances” , fatores que se somam às habilidades de interpretar e se expressar com os outros.

No desenvolvimento de tal competência, o trabalho com a literatura no ensino de línguas seria justamente o meio de integração pelo qual os alunos “podem aprender sobre o potencial máximo da língua em produção de sentidos”5 5 “Through literature, they can learn the full meaning making potential of language” (KRAMSCH, 2006KRAMSCH, Claire (2006). From communicative competence to symbolic competence. In: The Modern Language Journal, Wiley, v. 90, n. 2, p. 249-252, Summer, 2006. Disponível em: <http://www.sdkrashen.com/Principles_and_Practice/Principles_and_Practice.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2023.
http://www.sdkrashen.com/Principles_and_...
, p. 251, tradução nossa). A literatura permite promover, desse modo, a compreensão das três maiores interfaces da competência simbólica: a produção de complexidade, a tolerância de ambiguidade e a apreciação da forma como sentido. A complexidade, diante de suas circunstâncias e situações possíveis de comunicação, a ambiguidade dos contrastes linguísticos possíveis entre palavras e ações, por exemplo; e a apreciação no ato de perceber as formas de expressão.

Tais componentes fazem ressoar três aspectos citados por Candido em O direito à literatura, intrínsecos à complexidade de poder de construção literária que “não corrompe nem edifica”, que pode remeter ao passado com as lentes perspectivas do presente:

a função da literatura está ligada à complexidade da sua natureza, que explica inclusive o papel contraditório, mas humanizador (talvez humanizador porque contraditório). Analisando-a, podemos distinguir pelo menos três faces: (1) ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado; (2) ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos; (3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente (CANDIDO, 2011CANDIDO, Antonio (2011). O direito à literatura. In: Vários escritos. 5ª ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre Azul, p. 169-179., p. 178-9).

Depreende-se, com isso, a forte sustentação entre as interfaces da competência simbólica e da construção literária em todos os níveis do currículo de línguas, oferecendo elementos humanizadores de conhecimento para a prática docente transcultural nas variadas formas expressivas de produção de linguagens e significados.

É possível inferir, ainda, modelos de parâmetros contextuais para classificação em leitura literária, uma vez que o percurso didático envolve tanto a compreensão e interpretação quanto a escolha de obras e a avaliação dos potenciais reflexivos dessa leitura a serem indicados pelo professor.

Desse ponto, constata-se a importância de organizar protocolos em leitura literária a fim de proporcionar a mediação baseada nas hipóteses e efeitos reconhecidos (TAKAHASHI, 2015TAKAHASHI, Neide Tomiko (2015). Leitura literária em português-língua estrangeira (PLE): representações, compreensão e produção textual. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.), com objetivos claros na reflexão de situações em sala de aula, em especial quanto à exposição de textos, apontados por Krashen (1982KRASHEN, Stephen (1982). Principles and Practice in Second Language Acquisition. Pergamon Press. Disponível em: <https://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/poesiainfantilport.htm> Acesso em 30 abr. 2023.
https://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensai...
, p. 165) como requisitos que instiguem a motivação em uma leitura significativa:

  1. ser compreensível;

  2. ser interessante/ relevante;

  3. não ser sequenciada gramaticalmente;

  4. ter quantidade disponível;

  5. adequar o nível de filtro;

  6. oferecer ferramentas para a gestão de conversação.

Na síntese dos requisitos, o primeiro passo de um procedimento de atividades que se aproxime da leitura por prazer, sem dúvida, é ser compreensível a partir da escolha de textos apropriados ao grau de dificuldade de cada nível. É preciso levar em conta, ainda, o interesse pessoal proporcionando por uma leitura de textos relevantes, sem utilizações como pretexto gramatical ou a obrigação de iniciá-la por um clássico, oferecendo materiais disponíveis de acordo com o custo e o tempo. Recorre-se, neste ponto, à importância da seleção adequada de obras literárias, objetivando uma variedade eclética, baseada no interesse do aluno e na percepção do professor em promovê-lo. Por fim, seguindo tais critérios, deve-se evitar que o aluno-leitor fique na defensiva, mantendo o nível de filtro afetivo baixo, conversando e oferecendo meios para dialogar.

Diante da sequência apresentada, é pertinente acrescentar como critério o fator dialógico de um texto que ofereça a percepção de relacionar sentidos implícitos e explícitos de conhecimentos em um movimento interativo entre o autor, o texto, o contexto e o leitor para o gerenciamento da produção de atividades dialógicas de leitura.

Em consonância a esses requisitos e levando em consideração as orientações de estudos didáticos para o ensino de línguas adicionais, depreende-se a necessidade de construir um repertório literário atentando-nos aos aspectos distintivos de cada turma como seu contexto imersivo; seu histórico de proficiência linguística, de conhecimento da língua portuguesa ou de domínio de línguas próximas. Tudo isso refletindo que seu funcionamento depende de promover a presença de professores leitores para a mediação, com conhecimento no ensino de leitura literária, evitando a simplificação do papel de docente centralizador de significações.

Além disso, se partirmos da premissa de que o processo de ensino-aprendizagem de leitura literária comporta uma orientação intencional, com base em conhecimentos e práticas passíveis de serem compartilhadas, é possível reafirmar que o gosto e interesse dos alunos podem e merecem ser um ponto de partida na escolha de opções dos textos literários.

Entre a apresentação de textos, previamente selecionados, e a abertura de um roteiro a ser seguido ao longo do curso, é possível balizar um percurso de adequação em que se estimulem as operações cognitivas referenciais da leitura literária em língua adicional, considerando que um leitor hábil reconhece o que pode ser interessante de ser lido. Algo novo em outra língua, mas passível de reflexão e opinião ao construir relações significativas de seu conhecimento de mundo.

Vislumbra-se, portanto, um programa de curso que esteja aberto, em meio a materiais e métodos, à valorização da leitura de textos literários no qual, somando-se os requisitos de uma leitura significativa aos perfis de mediadores-leitores e às competências a serem atingidas, seja possível operar estratégias didáticas fundamentadas em:

  1. a)investigar e compreender as preferências dos gêneros textuais de leitura literária dos estudantes a fim de antecipar o interesse, o gosto e, considerando essas informações,

  2. b)oferecer acesso a um repertório de obras referenciadas por diretrizes para seleção do professor em consonância às preferências, proporcionando vias estruturantes para tal processo, como a aparelhagem de um acervo disponível (físico ou digital);

  3. c)promover uma leitura autônoma mais próxima da prática social, evitando, ao mesmo tempo, uma leitura escolar obrigatória a ser verificada ou a mediação apaixonada pela literatura que incentiva apenas a leitura como atividade recreativa;

  4. d)dialogar sobre o(s) texto(s) escolhido(s) abordando sua narrativa e criando um vínculo para que a leitura seja independente na criação de experiência, mas não indefinida em sua proposta de atividade a fim de permitir que se formule, de modo interativo, uma análise baseada em competência intelectual e memória sensível;

  5. e)proporcionar uma avaliação responsiva por meio de atividades dialógicas com gêneros textuais significativos no uso social - como a resenha, o artigo de opinião, as fanfics, os poemas, as encenações teatrais, entre outros, incluindo, para tanto, plataformas digitais de áudio e vídeo -, procurando avaliar o conhecimento dos alunos tanto pela compreensão crítica quanto pela sensibilidade em relação aos textos literários.

Por fim, observe-se que o desenvolvimento das estratégias pode ter seu potencial ampliado na mediação equilibrada entre a leitura individual autônoma e, ao mesmo tempo, a coletiva orientada, que vise proporcionar um espaço literário de interesse entre objetivos e atividades de construção pessoal de sentidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscou-se, neste artigo, identificar e apontar os caminhos didáticos do ensino de literatura em aulas de PLA com base na discussão das evoluções dos procedimentos metodológicos e, consequentemente, da escolha de materiais literários junto à reflexão de estudos que permitem vincular tais procedimentos às experiências de leitura de professores e alunos. Suas atuações, vale lembrar, mobilizam habilidades além do contexto da competência linguística e contemplam o movimento consciente de saberes, que não devem ser subestimados, a fim de instigar as opções mais adequadas à formação intercultural.

São essas pistas que nos possibilitam questionar e elaborar as estratégias de leitura, a produção de sentidos e a consolidação de textos da literatura, percebidos como fenômeno cultural e simbólico, em meio ao diálogo híbrido de competências entre o intelecto e a sensibilidade que torna possível interagir entre as línguas organizando significados.

Tal perspectiva sinaliza o aperfeiçoamento de vias didáticas nos contextos de ensino de línguas adicionais para projeções futuras, visando e observando não só o resultado, mas também seu próprio processo de construto na escolha de materiais e, portanto, de atividades.

É válido refletir que as formas de seleção de textos literários envolvem uma relação de valores entre conhecimentos especializados e gostos pessoais. Da mesma reflexão, considera-se que, ao proporcionar opções de leitura e atividades que ultrapassem pretextos de usos gramaticais ou lexicais, o mediador permite a participação baseada na preferência afetiva e no interesse intelectual do aluno-leitor para a construção de saberes que a literatura propicia, considerando a leitura individual imbricada ao âmbito da leitura institucional que, conciliadas, podem oferecer ressignificação da obra sem perder de vista seu contexto expressivo estético, histórico e social. Daí a importância de se configurar parâmetros curriculares para os trabalhos com a literatura a fim de que os professores-mediadores possam construir os seus próprios parâmetros didáticos de acordo com as características de suas turmas.

Além disso, é preciso acrescentar que ter à disposição recursos e materiais literários, como em bibliotecas físicas ou acervos digitais, também proporciona ao aluno maior autonomia. Ao receber as orientações do professor em sala de aula, ele pode conduzir sua leitura espontaneamente e realizá-la fora do âmbito escolar.

Como ressalva, o uso complementar e visão de prática cultural de lazer dos textos literários não invalidam os modelos estratégicos ou, mesmo, as suas potencialidades didáticas desde que haja a percepção de que as atividades sejam abrangentes, até mesmo desafiadoras, a fim de evitar o deslocamento de propiciar o conhecimento linguístico para o despertar superficial do prazer da leitura.

É preciso reconhecer, ao final, o professor mediador como um profissional de pesquisa, com formação leitora, capaz de compreender e orientar não só o potencial literário de um texto para atividades didáticas, mas também a competência intercultural simbólica de seus alunos, cujas posições autônomas, ou semiautônomas, propiciam a abertura de espaços compartilhados de leitura.

Nesse sentido, as orientações estratégicas norteiam o desafio e a discussão de antever a elaboração dos materiais literários de PLA em seu escopo didático tal qual a criação de espaços de leitura dos textos literários no planejamento de aulas permite incorporar atividades multidimensionais de compreensão e interpretação se exploradas em todas as possibilidades da língua.

  • 1
    Programa Internacional de Avaliação de Estudantes ou Programme for International Student Assessment.
  • 2
    Há, também, a Proposta curricular para ensino de literatura brasileira infantil / infantojuvenil nas unidades da rede de ensino do Itamaraty, de 2022.
  • 3
    […] they quickly recognize the need to break away from such a constraining concept of method. In order to do that, they have to rely increasingly on their personal knowledge of learning and teaching. Personal knowledge “does not simply entail behavioral knowledge of how to do particular things in the classroom; it involves a cognitive dimension that links thought with activity, centering on the context-embedded, interpretive process of knowing what to do” (Freeman, 1996, p. 99). It does not develop instantly before one’s peering eyes, as a film develops in an instant camera. It evolves over time, through determined effort. Under these circumstances, it is evident that teachers can become autonomous only to the extent they are willing and able to embark on a continual process of self-development.
  • 4
    “embodied experiences, moral imaginings, and emotional resonances”
  • 5
    “Through literature, they can learn the full meaning making potential of language”

DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA

Os dados públicos utilizados na pesquisa estão disponíveis nos endereços eletrônicos citados, permitindo amplo e irrestrito acesso.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2023
  • Aceito
    30 Out 2023
  • Publicado
    04 Jan 2024
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