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DE “NÓS” PARA “A GENTE”: A NARRATIVA COLETIVA EM TORTO ARADO

FROM “NÓS” TO “A GENTE”: THE COLLECTIVE NARRATIVE IN TORTO ARADO

RESUMO

Na literatura brasileira contemporânea, evidencia-se uma evolução da narrativa centrada no indivíduo para uma abordagem coletiva. Esta transição, no entanto, frequentemente se restringe a grupos específicos, criando barreiras na comunicação entre diferentes identidades. Recentemente, algumas obras de ficção no Brasil têm transcendido essa limitação, sendo Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, um exemplo notável. Este artigo investiga, por meio das teorias da “multidão”, de Hardt e Negri, e de análises linguísticas dos pronomes da primeira pessoa do plural, como Torto Arado consegue, ao focar em personagens femininas de um quilombo, abraçar uma inclusividade que “otencialmente une diversos gêneros, raças, classes e regiões. Argumenta-se que a transição da “escrita de nós” para a escrita da gente” simboliza um novo paradigma na narrativa coletiva, permitindo a inclusão de uma gama mais ampla de vozes e experiências.

Palavras-chave:
Torto Arado; Multidão; Escrita de nós; Inclusividade

ABSTRACT

In contemporary Brazilian literature, there is a noticeable evolution from narratives centered on the individual to a collective approach. However, this transition often restricts itself to specific groups, creating barriers to communication among different identities. Recently, some works of fiction in Brazil have transcended this limitation, with Torto Arado (Crooked Plow) by Itamar Vieira Junior being a notable example. This article investigates, using Hardt and Negri’s theories of the “multitude” and linguistic analyses of first-person plural pronouns, how Torto Arado manages to embrace inclusivity by focusing on female characters from a quilombo, potentially uniting various genders, races, classes, and regions. It is argued that the transition from “escrita de nós” (exclusive we-narrative) to “escrita da gente” (inclusive we-narrative) symbolizes a new paradigm in collective narrative, allowing for the inclusion of a broader range of voices and experiences.

Keywords:
Torto Arado; Multitude; We-narrative; Inclusivity

Nos últimos anos, tem-se observado certa intensificação da coletividade na literatura, na qual a antiga valorização do indivíduo tem gradualmente dado espaço à representação de grupos. No entanto, surge a questão de se a coletividade necessariamente implica em união de todos ou se apenas segmenta as pessoas em diferentes grupos, levando a divisões e conflitos entre eles, especialmente no contexto atual, no qual os conflitos sociais estão se acentuando. Este artigo tenta fazer uma breve análise da escrita em primeira pessoa, distinguindo entre coletivos exclusivos e coletivos inclusivos, e toma como exemplo Torto arado, de Itamar Vieira Junior, para explorar as novas possibilidades da escrita coletiva na literatura contemporânea.

DO “EU” PARA O “NÓS”

Devido à ascensão do individualismo na era pós-moderna, na segunda metade do século XX, observou-se um aumento no interesse pela escrita do eu, que é vista por muitos como uma necessidade de explorar a personalidade individual e estabelecer sua própria subjetividade. Desde que Georges Gusdorf publicou “Conditions et limites de l’autobiographie”, em 1956GUSDORF, Georges. (1956). Conditions and Limits of Autobiography. In: Olney, James (org.), Autobiography: Essays Theoretical and Critical. New Jersey: Princeton University Press, 2014, p. 28-48., a virada da autobiografia moderna de “registro histórico” para “expressão do eu” vem ganhando mais atenção dos pesquisadores. No Brasil, por exemplo, também surgiram importantes pesquisas afins na década de 1980, nomeadamente A escrita do eu, de Eliane Zagury (1982)ZAGURY, Eliane. (1982). A escrita do eu. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL., e “Júbilos e misérias do pequeno eu”, de Luiz Costa Lima (1986)COSTA LIMA, Luiz. (1986). Júbilos e misérias do pequeno eu. In: Sociedade e Discurso Ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, p. 243-309..

No final do século XX, com o aumento da atenção da sociedade contemporânea a grupos marginalizados, a tendência da “escrita de eu” se tornou ainda mais forte, mas com algumas mudanças. Se antes a escrita era um luxo para as elites intelectuais, a partir desse período mais e mais pessoas que anteriormente apenas podiam ser objetos nas narrativas dominantes começaram a confirmar a subjetividade por meio de sua própria narrativa. Exemplos incluem memórias escritas por prisioneiros como Diário de um detento (2001), de Jocenir, e Memórias de um sobrevivente (2001)JOCENIR. (2001). Diário de um detento. São Paulo: Labortexto., de Luiz Alberto Mendes. Comparados com os prisioneiros políticos, tais autores cometeram realmente crimes penais e não foram reconhecidos como pessoas importantes por si só, porém, a identidade como vítimas de violência e até sobreviventes de massacre atrai a atenção de todos. Outra escrita que desempenha papel destacado deste período é a chamada literatura de favela. Como um gênero literário, a literatura da favela se iniciou com Carolina de Jesus, nos anos de 1960, e floresceu nos anos de 1990. Parte desses trabalhos é declaradamente autobiográfica, a exemplo de Como a água do rio (2012), de Sacolinha, enquanto outros, embora se identifiquem como romances, não podem apagar completamente as características autobiográficas ou mnemónicas presentes, como Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, que ganhou fama mundial por ter sido adaptado para o cinema.

Além da identidade marginal dos escritores, também é fácil perceber como essas obras diferem da “escrita de eu” na literatura tradicional e clássica, uma vez que, mesmo na narrativa subjetiva em primeira pessoa no singular, seja para o escritor, seja para o leitor, o mais importante não é um indivíduo único e insubstituível, mas a identidade que ele representa - prisioneiros, favelados ou outros grupos marginalizados, discriminados e vítimas de violência. Isso faz com que a escrita desses grupos marginalizados tenha naturalmente um caráter “coletivo”. Para melhor ilustrar esse aspecto, pode-se tomar a noção de “escrevivência”, proposta por Conceição Evaristo, como um exemplo.

Na entrevista de abertura do recentemente estudo publicado sobre Conceição Evaristo, Escrevivência: a escrita de nós, a autora afirma claramente as diferenças entre sua forma de escrita e as tradicionais escritas de si:

Como pensar a Escrevivência em sua autonomia e em sua relação com os modelos de escrita do eu, autoficção, escrita memorialística... Ouso crer e propor que, apesar de semelhanças com os tipos de escrita citadas, a Escrevivência extrapola os campos de uma escrita que gira em torno de um sujeito individualizado (Evaristo, 2020, p. 38EVARISTO, Conceição. (2020). A Escrevivência e seus subtextos. In: Duarte, Constância Lima; Nunes, Isabella Rosado. Escrevivência: a escrita de nós Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte.).

Portanto, embora a Escrevivência enfatize a experiência pessoal, ela não é uma escrita narcisista, pois mostra os rostos de outros na imagem de si mesma, narrando assim uma história de muitas vozes.

É necessário enfatizar que essa coletividade geralmente tem fronteiras claras. Evaristo menciona logo depois que “Escrevivência surge de uma prática literária cuja autoria é negra, feminina e pobre” (Evaristo, 2020, p. 38EVARISTO, Conceição. (2020). A Escrevivência e seus subtextos. In: Duarte, Constância Lima; Nunes, Isabella Rosado. Escrevivência: a escrita de nós Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte.), definindo claramente essa escrita a partir de três perspectivas: raça, gênero e classe. Esta é também uma característica apresentada pela maioria das “escritas de nós” neste momento: por um lado, elas vão além da atenção narcisista da “escrita do eu” para o indivíduo, e, devido à união em um nível coletivo, conseguem protestar e intervir contra as injustiças da realidade, rompendo com a tradicional divisão entre “Literatura Social” e “Literatura Intimista”, usando experiências pessoais para aprofundar a revelação social. Por outro lado, essa união tem uma identidade distintiva que, às vezes, pode parecer um tanto fechada: se a tradicional “escrita de si” estabelece limites entre “eu” e “o outro”, a atual “escrita de nós” destaca ainda mais as diferenças, e até mesmo as incompatibilidades, entre “nós” e “os outros”.

Tanto na literatura carcerária e da favela, quanto em outras obras de literatura marginal, é possível ver claramente conflitos irreconciliáveis entre um grupo e um outro, seja entre os prisioneiros e os policiais, seja entre os moradores de favelas e as pessoas da classe média, seja entre as mulheres e os homens, entre os homossexuais e os heterossexuais, entre o interior do Nordeste e as metrópoles do Sudeste, entre os negros e os brancos... Considerando que um dos grupos opostos sempre esteve em uma posição desfavorecida, que sua imagem histórica foi constantemente distorcida e que a sua voz, a qual transmite seus pensamentos, sentimentos e posições, tem sido constantemente reprimida, devemos reconhecer a importância dessa forma de escrita, pois, ao afirmar a identidade de cada grupo, ela contribui significativamente para a expressão da subjetividade dos grupos marginalizados e, consequentemente, para a justiça e equidade na sociedade.

DE NÓS PARA A GENTE

Entretanto, em uma sociedade atual na qual as divisões e oposições são cada vez mais acentuadas, a política de identidade coletiva mostra seus limites na formação de um consenso social. A respeito disso, a análise de Antonio Negri e Michael Hardt sobre o conceito de “multidão” poderá nos lançar nova luz. Em seu livro Commonwealth, eles propõem: “Um efeito primário da globalização, contudo, é a criação de um mundo comum, um mundo que, para melhor ou pior, todos nós compartilhamos, um mundo que não tem um ‘exterior’. [...] independentemente de quão brilhantemente e veementemente o criticamos, estamos destinados a viver neste mundo” (Negri e Hardt, 2009, p. viiNEGRI, Antonio; HARDT, Michael. (2009). Commonwealth. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press., grifo do autor, traduzimos)1 1 No original: “One primary effect of ’lobalization, however, is the creation of a common world, a world that, for better or worse, we all share, a world that has no ‘outside. […] regardless of how brilliantly and trenchantly we critique it, we are destined to live in this world.” . Em outras palavras, numa época na qual nenhum indivíduo ou grupo pode viver e prosperar isoladamente, o essencial não é a crítica em si, mas como construir um mundo melhor juntos. Neste sentido, Negri e Hardt aproveitam o termo político “multidão”, um termo já utilizado por Maquiavel e Espinosa, e o revestem de um novo significado no contexto da globalização contemporânea. Os dois pesquisadores acreditam que, como uma forma alternativa de viver, a “multidão” pode ser vista como um sujeito de resistência a partir do interior da rede do império globalizado, e tal resistência é possível precisamente porque a multidão representa uma união aberta.

Diferente de outros conceitos de grupo como “povo”, a “multidão” não busca uma identidade unificada, mas sim se assemelha a uma “rede aberta e expansiva na qual todas as diferenças podem ser expressas livre e igualmente, uma rede que fornece os meios de encontro para que possamos trabalhar e viver em comum” (Negri e Hardt, 2004, p. xivNEGRI, Antonio; HARDT, Michael. (2004). Multitude: War and Democracy in the Age of Empire. New York: The Penguin Press., traduzimos)2 2 No original: “open and expansive network in which all differences can be expressed freely and equally, a network that provides the means of encounter so that we can work and live in common”. . Precisamente porque todas as diferenças são preservadas e não existe a necessidade de remover certas características para enfatizar outras, será eliminada, assim, a distinção entre “nós” e “outros”. Por outro lado, “multidão” não é o mesmo que “massa”, pois, ao contrário da “massa”, em que todas as características individuais são suprimidas, cada membro da “multidão” retém suas cores únicas. Em resumo, para Negri e Hardt, a principal característica da “multidão” é a união sem limites, enquanto mantém as diferenças. Assim, utilizar o conceito de “multidão” ajuda a rejeitar o modelo “identidade (idênticos)”/“diferenças”, substituindo-o por “partilha”/“singularidades”. Embora o segundo par de conceitos pareça sinônimo do primeiro, existe uma distinção crucial: identidade e diferença são mutuamente exclusivas, enquanto partilha e singularidades não são contraditórias. Isso significa que, mesmo que as pessoas trabalhem de forma diferente, tenham estilos de vida diversos, venham de diferentes regiões e tenham experiências distintas, isso não impede a comunicação e colaboração em um projeto político comum.

Quanto à literatura brasileira, acredito que haja uma alternativa que pode bem representar a visão de Negri e Hardt sobre a “multidão”. É a substituição de “escrita de nós” por “escrita da gente”. Isso é algo que muitas outras línguas, como o inglês, não conseguem fazer ao estudar o chamado “we-narratives” (narrativas de nós), porque nestas línguas é difícil distinguir entre uma primeira pessoa plural inclusiva e uma exclusiva, o que sempre acarreta uma certa ambiguidade e confusão. Segundo muitos linguistas, no português brasileiro, “a gente” é uma expressão mais inclusiva do que “nós”. Em um estudo de Ednalvo Apóstolo Campos (2008)CAMPOS, Ednalvo Apóstolo. (2008). O uso dos pronomes nós e a gente no gênero entrevista da mídia televisiva - uma análise do português culto falado em Belém. In: Anais do I SIMELP, São Paulo: SIMELP, p. 1-11. Disponível em: https://simelp.fflch.usp.br/sites/simelp.fflch.usp.br/files/inline-files/S3602.pdf. Acesso: 23 dec. 2023.
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sobre transcrições de entrevistas de televisão, ele argumenta que, enquanto “nós” é mais exclusivo (excluindo o ouvinte), “a gente” é mais inclusivo (geralmente incluindo o ouvinte). A mesma conclusão é refletida no artigo de Célia Regina dos Santos Lopes (1998)LOPES, Célia Regina dos Santos. (1998). Nós e a gente no português falado culto do Brasil. DELTA: Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, n. 14, p. 405-422.. Segundo suas estatísticas, quando as pessoas tentam expressar um grupo específico (como eu + você(s), eu + ele(s)), a frequência de “nós” é relativamente maior do que “a gente”, mas quando tentam expressar o conceito de totalidade (eu + todos), a frequência de uso de “a gente” é muito maior do que “nós”.

Dessa forma, o termo “a gente” poderá representar uma coletividade inclusiva que não exclua ninguém, a menos que certas pessoas insistam em manter ou buscar algum privilégio, fazendo uma clara distinção entre elas e a “multidão”. Mesmo que as partes envolvidas no diálogo venham de diferentes classes, gêneros, raças, idades, regiões, e tenham diferentes experiências, educações e contextos culturais, isso não impede que todos trabalhem juntos para construir um mundo sem discriminação, preconceito, injustiça, opressão, exploração e segregação. Ao mesmo tempo, os participantes convocados por este ideal não precisam abandonar suas múltiplas características para obter uma única identidade.

Em obras literárias brasileiras recentes, é possível ver esforços para reconstruir o diálogo entre diferentes grupos sociais. Por exemplo, em O Sol na cabeça (2018), de Geovani Martins, embora haja uma continuação da escrita das favelas dos anos 1990 até a década de 2010, em termos de escolha temática e estilo linguístico, o livro procura evocar a empatia dos leitores por meio da descrição de detalhes cotidianos e da perspectiva dos favelados, em vez de causar medo, na classe média urbana, com ameaças de violência. Em Solução de dois estados (2020), Michal Laub tem a intenção de mostrar as vozes representativas tanto da esquerda quanto da direita no Brasil, bem como de um mediador estrangeiro, tentando assim compreender as posições de todos e discutir as possibilidades de resolver os crescentes conflitos sociais. E em O avesso da pele, de Jefferson Tenório (2020)TENÓRIO, Jeferson. (2020). O Avesso da Pele. São Paulo: Companhia das Letras., o narrador sempre fala na segunda pessoa, proporcionando aos leitores uma forte sensação de imersão. Embora a história se concentre nas dificuldades enfrentadas pelos negros, especialmente os negros do Sul do Brasil, qualquer pessoa que tenha perdido entes queridos ou enfrentado injustiças pode se identificar com as experiências dos personagens.

Quanto à criação da sensação da coletividade, Torto Arado (2019), de Itamar Vieira Junior, merece nota especial. Sendo uma das obras mais aclamadas e comentadas do Brasil nos últimos anos (Corsini, 2021CORSINI, Leonora. (2021). Torto Arado e o encontro com o Brasil profundo. Nova Perspectiva Sistêmica, v. 30, n. 70, p. 114-117. Disponível em: https://revistanps.emnuvens.com.br/nps/article/view/669/491 Acesso: 02 mar. 2024.
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; Chagas, 2022CHAGAS, Silvania Núbia. (2022). Torto arado ou torto encanto: o jarê contando história. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 66, e6605, p. 1-14. Disponível em: https://www.scielo.br/j/elbc/a/3d8Qdz8XLWXYnsVYttX8zyc/?format=pdf⟨=pt. Acesso: 02 mar. 2024.
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; Garcia e Silva, 2023GARCIA, Izenete Nobre; SILVA, Mateus de Morais. (2023). Torto Arado: um romance para os anais da história literária contemporânea. Littera, v. 14, n. 27, p. 198-223. Disponível em: https://cajapio.ufma.br/index.php/littera/article/view/22225/12023. Acesso: 02 mar. 2024.
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), o romance não só ganhou vários prêmios literários importantes, incluindo o Prêmio Jabuti, como também esteve frequentemente no topo das listas de best-sellers. Rapidamente chamou a atenção da comunidade internacional e já foi traduzido para mais de dez idiomas, incluindo inglês, alemão, espanhol, búlgaro, polonês e japonês. Já existem muitos estudos sobre este livro, mas este texto pretende analisá-lo a partir da perspectiva de “singularidades/partilha”, argumentando que um dos motivos de seu sucesso é que, ao criar a comunidade da Fazenda Água Negra, ele evoca uma profunda simpatia e ressonância nos leitores das mais diversas esferas, transitando assim da “narrativa de nós” para a “narrativa de ‘a gente’”.

TORTO ARADO: UMA NARRATIVA INCLUSIVA

A tradução chinesa de Torto Arado foi publicada pela editora Lijiang no início de 2024. No posfácio da tradução, após agradecer pela ajuda recebida durante seus estudos e o processo de tradução, a tradutora Mao Fenglin escreveu: “No final, eu gostaria de agradecer a Torto Arado: foi você que me fez entender que os infinitos lugares longínquos, as pessoas incontáveis, todos estão relacionados comigo” (Mao, 2024, p. 338MAO, Fenglin. (2024). Posfácio de tradução. In: Vieira Junior, Itamar. Torto arado. Tradução de Mao Fenglin. Guilin: Lijiang Press.). Tal posfácio também foi a primeira resenha de Torto Arado no mundo chinês. Apesar das distâncias espaciais e culturais, Torto Arado consegue fazer a tradutora se sentir associada com os personagens. É essa a grande qualidade do livro. Ao mesmo tempo, todas as editoras que tiveram a oportunidade de ler a tradução chinesa antecipadamente descreveram Torto Arado como uma obra “chocante”, “emocionante” e “impressionante”, porque a história contada no livro também evocou uma profunda empatia nelas.

Vale ressaltar que Torto Arado não é uma história com protagonistas de identidade obscura e sem explicações concernentes ao tempo e ao local da trama. Pelo contrário, o autor dá ao tempo, local, personagens e vida características precisas e singulares. Se, para os leitores chineses, o Brasil é considerado um país distante, já no Brasil a literatura baiana, muitas vezes, é considerada uma “literatura regionalista”; a comunidade descrita por Itamar Vieira Junior é ainda mais especial, sendo que a história ocorre numa fazenda chamada Água Negra, na Chapada Diamantina. Em termos de crenças religiosas, os trabalhadores desta fazenda seguem uma religião afro-brasileira, mas não o candomblé, que já não é tão conhecido fora do Brasil, e sim a crença jarê, ainda menos popular. Da mesma forma, esses trabalhadores rurais têm mais uma identidade especial, pois são quilombolas. Sob este pano de fundo específico, Torto Arado concentra-se na família de Bibiana e Belonísia, apresentando tragédias e mistérios não tão comuns, como o corte da língua de uma das irmãs, o segredo contido na faca de Donana, além das mortes e dos episódios de loucura que permeiam o romance.

Com base nas configurações mencionadas, Torto Arado é, em primeiro lugar, um romance sobre “nós”, e o narrador frequentemente usa a primeira pessoa do plural para esboçar o contorno identitário da comunidade. No entanto, à medida que a narrativa avança e o tempo passa, essa identidade abre-se gradualmente. Por exemplo, no início do romance, quando as duas irmãs cortam/machucam suas línguas, o narrador escreve: “A tina era uma poça vermelha e nós duas chorávamos” (Vieira Junior, 2019, p. 17VIEIRA JUNIOR, Itamar. (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia.). Neste ponto, “nós” claramente refere-se a Bibiana e Belonísia; mais tarde, em “enquanto os adultos trabalhavam, cabia a nós, as crianças, espantar a praga” (Vieira Junior, 2019, p. 42VIEIRA JUNIOR, Itamar. (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia.), “nós” se refere a todas as crianças. E à medida que Bibiana, a narradora da primeira parte, “Fio de corte”, cresce, “nós” muitas vezes se refere aos arrendatários da fazenda, como em “falou sobre a escola que não seria suficiente para completarmos os estudos, mas que era um grande benefício para nós que morávamos em Água Negra, carentes de tudo” (Vieira Junior, 2019, p. 71VIEIRA JUNIOR, Itamar. (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia.).

Na segunda parte do romance, “Torto arado”, “nós” tem múltiplas referências, como raça: “uma senhora gorda e muito branca, que não dirigiu seu olhar para nós em nenhum momento” (Vieira Junior, 2019, p. 95VIEIRA JUNIOR, Itamar. (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia.), enfatizando que os trabalhadores são todos negros; ou crença: “como seria tudo sem as forças dos encantados, que por tanto tempo haviam estado entre nós” (Vieira Junior, 2019, p. 194VIEIRA JUNIOR, Itamar. (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia.), apontando a importância da crença jarê para este grupo. No entanto, em comparação com esses dois pontos, o que se destaca nesta parte é o despertar da consciência feminina. Como a narradora Belonísia comenta, “Todas nós, mulheres do campo, éramos um tanto maltratadas pelo sol e pela seca” (Vieira Junior, 2019, p. 119VIEIRA JUNIOR, Itamar. (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia.), “mas isso nada significava para nós mulheres da roça. Éramos preparadas desde cedo para gerar novos trabalhadores para os senhores, fosse para as nossas terras de morada ou qualquer outro lugar onde precisassem” (Vieira Junior, 2019, p. 129VIEIRA JUNIOR, Itamar. (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia.). A vida das mulheres rurais apresenta algumas características distintas dos homens do mesmo lugar. No entanto, de outro ponto de vista, em qualquer lugar, as dificuldades de procriação enfrentadas pelas mulheres, especialmente as mulheres de classes mais baixas, são semelhantes. Quando as mulheres rurais têm que dar à luz e criar futuros arrendatários para os proprietários de terras, as mulheres da cidade estão produzindo e criando futuros trabalhadores assalariados para os capitalistas. A atenção ao destino extremamente explorado dos corpos femininos é algo que pode ser reconhecido por mulheres de todo o mundo. Além disso, a violência doméstica contra as mulheres, sofrida e testemunhada por Belonísia, bem como a busca das mulheres por resistência e independência, são também temas centrais desta obra e de interesse para qualquer mulher.

É justamente na caracterização de personagens femininas que Torto Arado demonstra uma clara inclusividade, evocando colaboração entre diferentes grupos. Por um lado, sendo uma obra ficcional em que todas as três narradoras são mulheres, o verdadeiro autor deste romance, Itamar Vieira Junior, é um homem. No entanto, isso não o impede de perceber e retratar as dificuldades enfrentadas pelas mulheres, e ele até transmite o desejo das mulheres por liberdade, independência e autorrealização. Por outro lado, no romance, Bibiana e Belonísia representam dois tipos de mulheres. Bibiana foge com seu primo por amor e começa uma nova vida em outro lugar, tornando-se uma professora e, junto com seu marido, abraça teorias sobre direitos dos proprietários e lutas de resistência. Já Belonísia permanece em Água Negra, percebendo a vulnerabilidade das mulheres na família e na sociedade durante seu breve casamento; escolhe desistir da escola para encontrar valor em seu trabalho no campo. No entanto, assim como uma história sobre mulheres escrita por um autor masculino representa o apoio mútuo entre os sexos, a estreita colaboração entre diferentes grupos de mulheres (seja aproveitando ou fugindo do casamento, abraçando o conhecimento do livro ou da terra) é também um dos principais temas retratados no romance.

Se, na narrativa de Bibiana, o foco está principalmente na forma como ela e Belonísia conseguem uma identidade coletiva em vários níveis, na narrativa de Belonísia podemos claramente ver seu reconhecimento e sua aceitação das diferenças entre ela e a irmã: “Seu arranjo indicava a importância que eu tinha para sua vida, mesmo estando distante, mesmo percebendo que havia diferenças e estranhamentos entre nós. E dessa forma poderíamos reforçar nossos laços.” (Vieira Junior, 2019, p. 132VIEIRA JUNIOR, Itamar. (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia.). Aí, a partilha começa claramente a prevalecer. Além disso, essa diferença e esse estranhamento podem se tornar parte de uma história comum, conectando verdadeiramente o eu e o outro, aqui e ali. A frase dita por Belonísia também prevê o que os leitores sentirão ao 1er sua história: “Guardei o que pude de suas palavras para tentar decifrar as mensagens novas que trazia, transferindo sua vivência em outras terras para a nossa própria história.” (Vieira Junior, 2019, p. 132VIEIRA JUNIOR, Itamar. (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia.).

Em “Rio de sangue”, a terceira parte do romance, esta inclusividade é ainda mais evidente. Primeiramente, ao contrário das duas primeiras partes, em que as narradoras são irmãs, a narradora da terceira parte é Santa Rita Pescadeira, uma entidade do jarê. Sendo uma encantada, a santa já percorreu o mundo por centenas de anos, testemunhando muitas histórias da região de Chapada Diamantina. Como ela já se abrigou em muitos corpos, ela intrinsecamente possui uma natureza coletiva. E as pessoas que ela protege não são de uma única identidade, mas também têm características plurais; são “o povo que os donos da terra chamavam de trabalhador e morador”, e “o mesmo povo que [...] eram escravos das minas, das lavouras de cana, ou apenas os escravos de Nosso Senhor Bom Jesus” (Vieira Junior, 2019, p. 205VIEIRA JUNIOR, Itamar. (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia.), ou seja, são inúmeros trabalhadores e pessoas sofridas ao longo da história.

Em segundo lugar, como o título “Rio de Sangue” indica, esta parte descreve o crescente conflito entre os proprietários e os trabalhadores, bem como a resistência e a luta destes últimos. No final da parte anterior, o marido de Bibiana, Severo, é assassinado por causa da luta por mais direitos. Os moradores de Água Negra precisam se unir mais do que nunca, e Bibiana assume a tarefa de mobilizar todos: “Querem desonrar Severo, porque desonrando seu nome enfraquecem nossa luta. Querem proteger os poderosos. Querem nos calar, nos retirar daqui a qualquer custo. Querem nos dobrar, mas não vergaremos. Querem que a gente levante, carregando nossas coisas, e deixe a fazenda. Para onde? Não interessa.” (Vieira Junior, 2019, p. 221VIEIRA JUNIOR, Itamar. (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia.). O termo “a gente” aqui inclui todos os moradores presentes em Água Negra e, em certa maneira, também os leitores do livro, ao menos aqueles que já enfrentaram os poderosos e sofreram silenciamento, ocultação e abandono.

Por fim, há o tom alegórico criado no final do romance, fazendo com que ele transcenda uma história de um singular momento, lugar e grupo, e se torne um mito de uma nova era em busca de igualdade e justiça. Ao longo dos capítulos 10 e 11 da terceira parte, em que Santa Rita Pescadeira reconta a vida de Bibiana e Belonísia, é claro que a história das irmãs não é apenas uma simples simulação da realidade, mas também dá às personagens características dos mitos antigos. Elas se fundem com o mundo, possuem o poder de transformá-lo, mantêm-se firmes em seus ideais e, ao mesmo tempo, carregam as expectativas de toda a sua comunidade. Por isso, Santa Rita Pescadeira pode “montar” nelas, e, quase sem a consciência delas, permite que ambas colaborem para vingar-se do proprietário da fazenda. É este heroísmo uma consciência coletiva inserida nos mitos nacionais de cada grupo oprimido, tocando não só os moradores de Água Negra, mas a maioria dos leitores desta história.

CONCLUSÃO

Na literatura do século XXI, poucas obras causaram tanto impacto numa vasta gama de leitores como Torto Arado. Embora, em termos de temática, seu foco em negros, mulheres e pobres esteja em linha com uma postura politicamente correta, seu grande sucesso não se deve à política de identidade, pois, no final, todas as diferenças não são heterogeneidades que precisam ser eliminadas, mas singularidades que podem ser compartilhadas. Assim, seja para os trabalhadores da Fazenda Água Negra, seja para as pessoas em sofrimento em qualquer parte do Brasil ou do mundo, as vítimas de sistemas de opressão e exploração tendem a se identificar com os valores transmitidos por Torto Arado, sentindo simpatia pelos eventos enfrentados pelos protagonistas. É desta maneira que Torto Arado realizou a transição da “escrita de nós” para a “escrita da gente”, oferecendo-nos um novo modelo de narrativa coletiva.

  • 1
    No original: “One primary effect of ’lobalization, however, is the creation of a common world, a world that, for better or worse, we all share, a world that has no ‘outside. […] regardless of how brilliantly and trenchantly we critique it, we are destined to live in this world.”
  • 2
    No original: “open and expansive network in which all differences can be expressed freely and equally, a network that provides the means of encounter so that we can work and live in common”.
  • DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA
    Todos os dados utilizados estão listados nas referências no final do artigo.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2024
  • Aceito
    26 Fev 2024
  • Publicado
    04 Abr 2024
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