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TRAJETÓRIA TEXTUAL E ANÁLISE DISCURSIVA DE AUDIÊNCIAS PÚBLICAS SOBRE DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO SENADO

TEXTUAL TRAJECTORY AND DISCOURSE ANALYSIS OF PUBLIC HEARINGS ON THE DECRIMINALIZATION OF ABORTION IN THE SENATE

RESUMO

Este artigo é dedicado à análise das práticas sociais com base nos discursos presentes nos textos que culminaram nas audiências públicas interativas no Senado Federal sobre a Sugestão nº 15, de 2014, que “prevê a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação pelo Sistema Único de Saúde – SUS”. O corpus desta análise compõe-se da trajetória textual que levou à realização de audiências públicas, um processo de encadeamento de textos. A análise das práticas sociais com base nos discursos presentes nos textos que culminaram nas audiências públicas contribui para a compreensão geral das práticas legislativas e de lutas hegemônicas. O estudo baseia-se principalmente nos pressupostos da Análise de Discurso Crítica (ADC) e nos Novos Estudos de Letramento articulados com os aportes dos estudos das relações raciais, sobretudo dos feminismos negros. Os resultados revelam o protagonismo da linguagem e o potencial de textos agirem como agentes sociais em contextos de cerceamento de direitos à cidadania das mulheres, além do foco reprodutivo e transformacional desses textos nas hibridações das práticas sociais atuais.

Palavras-chave:
análise de discurso crítica; novos estudos de letramento; trajetória textual; aborto; senado federal

ABSTRACT

This article is dedicated to the analysis of social practices based on the discourses present in the texts that culminated in interactive public hearings in the Federal Senate on Suggestion No. 15/2014, which “provides for the decriminalization of abortion until the 12th week of pregnancy by the Unified Health System – SUS”. The corpus of this analysis is composed of the textual trajectory that led to public hearings, a process of text chaining. The analysis of social practices based on the discourses present in the texts that culminated in public hearings contributes to the understanding of legislative practices and hegemonic struggles. The study is based primarily on the assumptions of Critical Discourse Analysis and the New Literacy Studies supported by contributions from racial relations studies, especially from black feminisms. The results reveal the protagonism of language and the potential of texts to act as social agents in contexts of curtailing women’s rights to citizenship, as well as the reproductive and transformational focus of these texts on the hybridizations of current social practices.

Keywords:
critical discourse analysis; new literacy studies; textual trajectory; abortion; federal senate

INTRODUÇÃO

A interrupção voluntária da gravidez é um tema comum à vida de mulheres1 1 Ainda que atentas a uma abordagem interseccional de raça e de classe, assumimos que nossa análise nesse artigo está limitada a discussões sobre mulheres cisgênero e não dá conta da multiplicidade de experiências que corpos que gestam vivenciam de maneiras desiguais. em idade sexual reprodutiva. Para além de mulheres, as pessoas adultas em geral, em algum momento de suas vidas, confrontar-se-ão com o assunto. Essa discussão, muitas vezes passional, envolve aspectos legais, morais, religiosos e culturais, e são esses mesmos aspectos da discussão que inibem muitas mulheres cisgênero de declararem suas gestações interrompidas, além da criminalização da prática quando realizada de forma voluntária e fora das escusas previstas em lei, o que dificulta o cálculo da sua dimensão e impede a elaboração de políticas públicas adequadas para lidar com a questão.

O Ministério da Saúde concorda que “o abortamento representa um grave problema de saúde pública, com maior incidência em países em desenvolvimento, sendo uma das principais causas de mortalidade materna no mundo, inclusive no Brasil” (BRASIL, 2011, p. 7BRASIL (2011). Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Atenção humanizada ao abortamento: norma técnica. Brasília: Ministério da Saúde.). Segundo a Norma Técnica Atenção Humanizada ao Abortamento, de 2011, da Secretaria de Atenção à Saúde, do Ministério da Saúde, as mortes por abortos inseguros configuram um grave problema de saúde pública, acrescentando, com base em estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), que metade das gestações é indesejada, e que uma em cada nove mulheres recorre à interrupção voluntária da gravidez, ressaltando o aborto clandestino como prática comum. Apesar de ser considerado um procedimento relativamente simples quando realizado em ambiente salubre e com acesso a medicamentos e informações, a OMS apresenta o aborto inseguro como uma das maiores causas de morte materna, principalmente nos países subdesenvolvidos, mais especificamente entre as regiões com leis restritivas, tendo as mulheres negras como suas maiores vítimas (GOES, 2019).

As estimativas da OMS indicam que as leis restritivas e o cenário de ilegalidade aumentam a ocorrência de abortos inseguros, não impedindo a prática, mas acarretando a morte e disfunções físicas e mentais em milhões de mulheres em todo o mundo, estando relacionadas diretamente à desigualdade social (CARDOSO et al., 2020CARDOSO, B. B. et al. (2020). Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, supl. 1.). A criminalização do aborto atinge de maneira desigual as mulheres cisgênero brasileiras, conforme o entrecruzamento das matrizes de opressão às quais estão sujeitas: raça, gênero, classe, sexualidade, acesso à educação formal, entre outras. Contudo, as discussões acerca do tema extrapolam a busca pela solução de um problema de saúde que atinge toda a população e endossam um embate sobre integridade moral tanto de quem poderia vir a interromper uma gestação de forma voluntária quanto das pessoas engajadas na luta pela descriminalização. Desta forma, combater a descriminalização do aborto, ou até mesmo lutar para uma criminalização cada vez mais severa torna-se “um atestado de moralidade e preservação da própria identidade, marcada pela diferença em relação à/ao outra/o, julgada/o como imoral e contra a vida” (COÊLHO et al., 2020COÊLHO, J.et al. (2020). Discurso, identidade e direitos reprodutivos no Senado Federal. Cadernos De Linguagem E Sociedade, 21(1), 313-332.).

O fato de uma questão tão sensível e complexa ser frequentemente mobilizada para a autopromoção de figuras públicas no cenário político nos chamou a atenção para um espaço de disputa privilegiado no que diz respeito não só à temática da criminalização do aborto em si, mas, como em um jogo de xadrez, esses parlamentares movimentam peças importantes, que os permitem a aproximação ao poder, conquistando a validação de parte significativa da população brasileira, sensibilizada pela pauta conservadora de criminalização do aborto, que os entende como defensores da vida. Essas peças são movimentadas por meio de textos em grande parte do processo de disputa, o que eleva o protagonismo textual na prática social mais ampla da conquista de poder político, que utiliza a discussão sobre a criminalização do aborto para conquistar apoio popular. O jogo, nesse caso, envolve o conhecimento do funcionamento das instituições legislativas e a elaboração de estratégias que garantam que o Estado valide essas decisões de grupos específicos, como os cristãos, maioria religiosa declarada no país, e assegure o cumprimento das regras segundo os critérios estabelecidos. Não raro, ainda que constitucionalmente o Estado seja declarado laico, princípios religiosos judaico-cristãos são tomados como universais e são utilizados como justificativa para implementação de controle.

Sensíveis a essa tendência, procuramos apresentar neste artigo uma análise focada na trajetória textual que culminou na realização de audiências públicas interativas do Senado Federal a respeito da sugestão nº 15, de 2014, que “regula a interrupção voluntária da gravidez, dentro das doze primeiras semanas de gestação, pelo Sistema Único de Saúde” (SENADO FEDERAL, 2015SENADO FEDERAL. e-Cidadania. Instruir a SUG 15 de 2014, que regula a interrupção voluntária da gravidez, dentro das doze primeiras semanas de gestação. 05/05/2015 – 09:00. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=3603 Acesso: 22 set. 2015.
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). Os dados aqui apresentados dialogam com alguns dos resultados da pesquisa de mestrado intitulada “Quando o eu e o tu falam sobre o aborto das outras: uma análise dos discursos em audiências públicas interativas no Senado” (SUASSUNA, 2016SUASSUNA, Jaqueline Coêlho. Quando o eu e o tu falam do aborto das outras: uma análise dos discursos nas audiências públicas interativas no Senado. 2016. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade de Brasília, Brasília, 2016.), na qual foram analisados discursos das três primeiras audiências públicas interativas do Senado Federal sobre a sugestão nº 15, de 2014, ocorridas entre os dias 5 e 28 de maio, e no dia 6 de agosto de 2015. Aqui, é importante perceber o protagonismo da linguagem por meio do potencial de agência dos textos dentro da prática social mais ampla em que a discussão está inserida.

O objetivo deste artigo, portanto, é analisar a trajetória textual da sugestão legislativa, que se inicia com a proposta de um cidadão no portal da internet e culmina com audiências públicas interativas envolvendo especialistas e parlamentares. Buscamos, desta forma, compreender as práticas sociais referentes a discurso e letramento na trajetória textual das audiências aqui estudadas. Para tanto, este artigo está dividido em 4 seções, quais sejam: apresentação da conjuntura social em que as audiências públicas interativas estão inseridas; a seção seguinte está dedicada à análise da trajetória da cadeia de gêneros, que culminou na realização de audiências, à luz das proposições e debates dos Novos Estudos de Letramento e da Análise de Discurso Crítica; na seção 3 apresentamos uma análise discursiva do texto da justificativa da ideia legislativa nº 29.984, ilustrando que o debate sobre a descriminalização do aborto, ainda que investido de discursos progressistas e favoráveis à garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, pode reforçar estereótipos negativos sobre mulheres negras e empobrecidas; e nas considerações finais encorajamos novas pesquisas dos estudos de linguagem sobre a temática do aborto enquanto espaço revelador de relações de poder.

1. APRESENTAÇÃO DAS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS DA SUGESTÃO Nº 15

A Sugestão, oficializada em 4 de dezembro de 2014, decorre de uma proposição oriunda da sociedade civil, que chegou aos trâmites legislativos por meio do Portal e-Cidadania, tendo recebido o endosso de mais de 20.000 assinaturas de cidadãos. A lei sugerida cria um protocolo de atendimento àquelas mulheres que desejam abortar, por parte do Sistema Único de Saúde, de modo que, “somente o aborto realizado nos termos desta lei será descriminalizado no Brasil” (SENADO FEDERAL, 2015SENADO FEDERAL. e-Cidadania. Instruir a SUG 15 de 2014, que regula a interrupção voluntária da gravidez, dentro das doze primeiras semanas de gestação. 05/05/2015 – 09:00. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=3603 Acesso: 22 set. 2015.
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).

O contexto das audiências é, portanto, o de criminalização da prática. O Código Penal brasileiro sofreu alterações ao longo do tempo, porém, a questão do aborto não foi alterada desde a sua versão republicana, tratando-o como crime. Atualmente, vigora o estabelecido no Código Penal de 1940 (BRASIL, 1940BRASIL (1940). Código Penal. Decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940.), sob o título I – Dos Crimes Contra a Pessoa, Capítulo I – Dos Crimes Contra a Vida, entre os artigos 124 e 128, o aborto é considerado crime contra a vida humana, desde 1984, e quem o pratica, segundo este estatuto, é passível de detenção, sendo o aborto praticado tanto com ou sem o consentimento da mulher, diferindo apenas na duração da pena.

O Portal e-Cidadania funciona como plataforma interativa do Senado Federal, na qual é possível que os internautas acompanhem, pela internet, as audiências públicas interativas, e que participem, por meio de comentários enviados durante as sessões. Ainda que o caráter interativo das audiências seja constantemente enfatizado positivamente pelos senadores que presidem as comissões, as participações das/os cidadãs/os pela internet e por telefone não adentram notoriamente o ambiente das audiências, sendo apenas citadas como símbolo de democracia e de abertura à voz popular, mas raramente lidas ou trazidas para o debate. Apenas na 1a e na 3a audiência, nos dias 5 de maio e 6 de agosto de 2015, a última em um dia em que os senadores responsáveis pelos trabalhos, Paulo Paim (PT/RS)2 2 As filiações são apresentadas pelas siglas dos partidos e respectivos estados pelos quais os/as parlamentares cumpriam mandatos no período das audiências analisadas. e Magno Malta (PL/ES) não puderam comparecer e foram representados pelo vice-presidente da Comissão, o senador João Capiberibe (PSB/AP), duas mensagens, uma a favor e outra contra, enviadas por participantes virtuais, foram lidas na íntegra. Apesar de considerar bastante informativas as participações das/os cidadãs/os, para os propósitos deste artigo as mensagens da página não serão analisadas.

Nos dados fornecidos pelo cidadão proponente da ideia legislativa nº 29.984, conhecida por Sugestão nº 15 (SENADO FEDERAL, 2015aSENADO FEDERAL. Atividade Legislativa. Sugestão nº 15, de 2014. Disponível em: http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/119431 Acesso: 22 set. 2015a.
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), é ressaltada uma variedade de motivos pelos quais uma mulher brasileira pode interromper uma gravidez, e, segundo o memorando, “os mais comuns são para adiar a gravidez para um momento mais adequado ou para concentrar energias e recursos em crianças já existentes. Algumas mulheres, no entanto, são incapazes de cuidar de um filho, quer em razão dos custos diretos, ou devido à ausência ou falta de apoio de um pai” (SENADO FEDERAL, 2015, fl. 3SENADO FEDERAL. e-Cidadania. Instruir a SUG 15 de 2014, que regula a interrupção voluntária da gravidez, dentro das doze primeiras semanas de gestação. 05/05/2015 – 09:00. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=3603 Acesso: 22 set. 2015.
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). Além disso, relacionamentos familiares problemáticos, pouca idade da mulher, insuficiência dos programas de apoio financeiro, falta de acesso a métodos contraceptivos e estigmatização de pessoas com deficiência são os outros pontos levantados pela pessoa que fez a proposta, André de Oliveira Kiepper, um homem cisgênero que, em dezembro de 2014, época da proposta, tinha 33 anos e foi identificado como morador do estado do Rio de Janeiro. O então senador, pastor e músico gospel Magno Malta (PL/ES) foi o relator da matéria que está vinculada à Comissão de Direitos Humanos e Participação Legislativa (CDH), apesar de a primeira indicação ter sido para a senadora Martha Suplicy (PT/SP)3 3 Abertura da audiência de 28 de maio de 2015 (SENADO FEDERAL, 2015b). .

As audiências públicas interativas que debateram a Sugestão nº 15, de 2014, aconteceram em 2015 e 2016 e não resultaram na criação de um projeto de lei sobre o tema, sendo a sugestão arquivada e assumida como concluída no dia 18 de dezembro de 2018. Os convidados e as convidadas participantes dos debates foram apresentados/as enquanto médicos/as, ativistas, professores/as universitários/as, líderes religiosos, entre outros/as. Cada audiência teve em média de 7 a 11 participantes convidados/as para a mesa de debate, cada um/a com direito a fala de aproximadamente 10 minutos, com acréscimo de mais 5 minutos, caso fosse solicitado. As mesas eram constituídas de basicamente dois grupos: os/as favoráveis à descriminalização da interrupção da gravidez até a 12ª semana de gestação, e os/as contrários.

2. LETRAMENTOS E PRÁTICA SOCIAL NA TRAMITAÇÃO DA SUGESTÃO Nº 15

Existem três formas de uma ideia legislativa ser proposta pela sociedade civil: (a) por meio de representantes de Organizações Não Governamentais (ONGs), partidos políticos sem representação no Senado e/ou entidades sociais; (b) por meio do concurso nacional de redação de alunos de escola pública, “Jovem Senador”, no qual os estudantes ganhadores são convidados a propor e debater uma ideia legislativa; e (c) pelo portal e-Cidadania, no qual qualquer cidadão pode sugerir uma ideia que visa tornar-se projeto de lei. As audiências públicas interativas são debates entre especialistas no Senado Federal sobre uma ideia legislativa, que se torna uma sugestão legislativa após percorrer determinada trajetória.

A sugestão nº 15, de 2014, como supracitado, decorre de uma proposição oriunda da sociedade civil, chegando aos trâmites legislativos por meio do Portal e-Cidadania, após ter superado o endosso mínimo de 20.000 assinaturas da comunidade civil, e pretende criar um protocolo de atendimento àquelas que desejam interromper voluntariamente uma gestação pelo Sistema Único de Saúde. Após receber o endosso necessário, o senador Magno Malta (PL/ES), escolhido como relator, poderia tornar a ideia legislativa um projeto de lei, arquivá-la ou instaurar audiências públicas para que o tema fosse mais bem discutido. Neste caso, ele preferiu a terceira opção. De início, essa decisão pode ser lida como democrática e interessada no aprofundamento do debate entre especialistas, mas, após o estudo aprofundado das audiências públicas, constatou-se um aumento significativo da participação de parlamentares no decorrer das audiências, colocando-os como grupo mais robusto numericamente, possuindo direito de fala garantido em qualquer momento da sessão, e formado quase unanimemente por pessoas contrárias à descriminalização, parte de uma frente conservadora mais ampla dentro do parlamento. O senador Paulo Paim (PT/RS), que presidiu as audiências, ocupou-se em reforçar diversas vezes uma possível neutralidade frente ao tema, informando que não caberia a ele emitir nenhuma opinião, apenas presidir. Por outro lado, deputados como Marco Feliciano (PSC/SP), Flavinho (PSB/SP) e o ex-deputado Luiz Bassuma (PV/BA), entre outros, foram presenças militantes expressivas nas audiências contrárias à SUG nº 15. Além deles, cabe destacar a presença de Luís Eduardo Girão (NOVO/CE), eleito senador nas eleições de 2018, ano em que as audiências foram arquivadas (COÊLHO et al., 2020COÊLHO, J.et al. (2020). Discurso, identidade e direitos reprodutivos no Senado Federal. Cadernos De Linguagem E Sociedade, 21(1), 313-332.).

Thompson (1995)THOMPSON, J. B. (2011). Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes. propõe conceituar a ideologia como o sentido das formas simbólicas que estão inseridas nos contextos sociais e que serve para criar, instituir, manter e reproduzir relações de dominação. As posições dadas às pessoas e a qualificação do lugar ocupado por elas oferecem aos indivíduos diferentes graus de poder. Essas relações de poder assimétricas configuram a dominação. De forma recorrente, os parlamentares citados fizeram uso de estratégia de expurgo do outro, um modo de operação da ideologia na qual um inimigo comum é criado e a população é convocada a resistir coletivamente contra ele (THOMPSON, 2011THOMPSON, J. B. (2011). Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes.), assim como da estratégia de legitimação pela invenção de narrativas que culpabilizam mulheres que supostamente interrompiam gestações com requintes de crueldade contra os fetos. O fato de substituírem o termo “feto” por “crianças” em suas falas é também uma estratégia ideológica de dissimulação, ou seja, um termo que é normalmente utilizado para caracterizar algo ou alguém é usado para nomear outro, e com isso, transfere conotações positivas ou negativas de um para ou outro, como forma de sensibilizar a audiência. Da mesma forma, proferiam repetitivamente informações falsas contra o governo de Dilma Rousseff, presidenta à época, que estaria, segundo eles, investindo recursos públicos para o estímulo sexual precoce da população (SUASSUNA, 2016SUASSUNA, Jaqueline Coêlho. Quando o eu e o tu falam do aborto das outras: uma análise dos discursos nas audiências públicas interativas no Senado. 2016. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade de Brasília, Brasília, 2016.). Esse tipo de discurso falacioso, frequente nas audiências, estava em sintonia e já anunciava a onda das conhecidas fake news, que contribuíram para a ascensão de Bolsonaro à presidência em 2018 e que fizeram parte de sua comunicação governamental nos anos seguintes de seu mandato.

A decisão de instaurar as audiências públicas permitiu que políticos conservadores como o relator Magno Malta (PL/ES) angariassem apoio popular por meio de um tema complexo, porém, reduzido a uma dimensão moralizadora. Os parlamentares utilizam-se do tema como bandeira de autopromoção, e por possuírem maior tempo e possibilidade de fala nas audiências, conseguem utilizar-se do evento das audiências como plataforma de campanha, uma vez que:

A fala das/dos parlamentares é, em grande parte, voltada para a construção da própria identidade como líder e representante do povo. Há uma preocupação quase unânime em construir e manter a imagem da pessoa pública, voz daqueles que não são ouvidos, que zela pelo bem dos seus eleitores e que defende a moral cristã (COÊLHO et al., 2020COÊLHO, J.et al. (2020). Discurso, identidade e direitos reprodutivos no Senado Federal. Cadernos De Linguagem E Sociedade, 21(1), 313-332.).

Desta forma, o ambiente das audiências permitiu a autopromoção de políticos conservadores, como foi possível notar nas eleições de 2022, nas quais Magno Malta (PL/ES) retorna ao senado, após 4 anos desde o término de seu último mandato e, além dele, outros/as parlamentares que, sob a ascensão de governo de extrema-direita, levantaram a bandeira contra a descriminalização do aborto e pelo recrudescimento das punições contra as mulheres que decidissem interromper gestações indesejadas, foram eleitas/os e reeleitas/os com expressiva votação.

A trajetória da Sugestão é descrita aqui com base na coleta de documentos realizada no site do Senado Federal (2015b)SENADO FEDERAL. e-Cidadania. Instruir a SUG 15 de 2014, que regula a interrupção voluntária da gravidez, dentro das doze primeiras semanas de gestação. 28/05/2015 – 09:00. Disponível em: http://ww12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=3867. Acesso: 22 set. 2015b.
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, e por meio de entrevista telefônica com um funcionário da instituição. A análise dos documentos e da entrevista foi feita à luz das proposições e debates dos Novos Estudos de Letramento e da Análise de Discurso Crítica (ADC), que entendem as práticas sociais como “processos sociais que ligam as pessoas umas às outras, e incluem cognições compartilhadas representadas em ideologias e identidades sociais” (MAGALHÃES, 2012, p. 25MAGALHÃES, I. (2012) Letramento, intertextualidade e prática social crítica. In: MAGALHÃES, Izabel (org.). Discurso e práticas de letramento: pesquisa etnográfica e formação de professores. Campinas: Mercado das Letras.).

Entende-se o letramento como “a prática social da língua escrita, o que inclui os processos sociais da leitura e da escrita” (MAGALHÃES, 2012, p. 19MAGALHÃES, I. (2012) Letramento, intertextualidade e prática social crítica. In: MAGALHÃES, Izabel (org.). Discurso e práticas de letramento: pesquisa etnográfica e formação de professores. Campinas: Mercado das Letras.). Este trabalho considera a trajetória da ideia legislativa como um conjunto de práticas de letramento, já que envolve textos escritos, como formulários, memorandos, atas de audiência e a própria Sugestão nº 15, e que se relacionam a processos interpretativos dos participantes do processo legislativo. A tendência atual de estudos entende o letramento como uma prática social e dentro de uma perspectiva transcultural. Prática social significa uma forma de atividade social relativamente estável. Segundo Fairclough (2012)FAIRCLOUGH, N. (2012). A dialética do discurso. In: MAGALHÃES, I. (Org.). Discurso epráticas de letramento: pesquisa etnográfica e formação de professores. Campinas: Mercado das Letras., toda prática é uma articulação dialética de diversos elementos sociais em uma configuração relativamente estável, sempre incluindo o discurso. Dessa maneira, o letramento é visto como uma prática ideológica, que envolve relações de poder.

São as práticas de letramento que dão significado aos eventos de letramento, pois “referem-se a essa concepção cultural mais ampla de modos particulares de pensar sobre a leitura e a escrita e de realizá-las em contextos culturais” (STREET, 2012, p. 77STREET, B. (1995). Social literacies: Critical approaches to literacy in development, ethnography and education. Harlow, Essex: Longman.). Uma vez que práticas sociais sempre envolvem discursos, as práticas sociais de letramento podem ser compreendidas por meio da Análise de Discurso Crítica (ADC). Recorrendo-se à ADC, os textos estudados oferecem pistas para a compreensão das práticas sociais e, como ciência crítica, há preocupação com os efeitos ideológicos dos textos sobre as relações sociais. Acrescenta-se que a trajetória textual da ideia legislativa que resultou na Sugestão nº 15 é marcada por lutas hegemônicas com respeito a letramento. Segundo Fairclough (2001, p. 122)FAIRCLOUGH, N. (2001). Discurso e mudança social. Brasília: Ed. UnB.: “Hegemonia é a liderança tanto quanto dominação nos domínios econômico, político, cultural e ideológico de uma sociedade”. Portanto, a análise detalhada das práticas sociais com base nos discursos presentes nos textos que culminaram nas audiências públicas produz uma contribuição importante para a compreensão geral das práticas legislativas e suas lutas hegemônicas.

Como ponto inicial deste artigo, foram privilegiadas as formulações e discussões que atravessam as definições de práticas sociais e de discurso de letramento (RIOS, 2009RIOS, G. (2009). Literacy discourses: a sociocultural critique in Brazilian communities. Saarbrücken: Verlag.). Com tal proposta, tem-se a formulação de Street (1995)STREET, B. (1995). Social literacies: Critical approaches to literacy in development, ethnography and education. Harlow, Essex: Longman. sobre o Modelo Ideológico de Letramento, que entende que “a leitura e a escrita são práticas sociais atravessadas por relações de poder e por ideologias” (MAGALHÃES, 2012, p. 28MAGALHÃES, I. (2012) Letramento, intertextualidade e prática social crítica. In: MAGALHÃES, Izabel (org.). Discurso e práticas de letramento: pesquisa etnográfica e formação de professores. Campinas: Mercado das Letras.), e que é necessária uma perspectiva teórica que considere as dimensões do contexto social, pois “as relações de poder estabelecidas nas práticas sociais de leitura e escrita são mantidas pela ideologia” (MAGALHÃES, 2012, p. 29MAGALHÃES, I. (2012) Letramento, intertextualidade e prática social crítica. In: MAGALHÃES, Izabel (org.). Discurso e práticas de letramento: pesquisa etnográfica e formação de professores. Campinas: Mercado das Letras.).

Dada a importância do contexto para as práticas sociais, a trajetória do texto é descrita por meio de uma abordagem transcontextual, que implica esboçar as mudanças de significados do texto concomitantes às mudanças de contexto. Trajetórias textuais “são processos que atravessam contextos e a entextualização e recontextualização que ocorrem em cada travessia” (KELL, 2009, p. 83KELL, C. Literacy practices, text/s and meaning making across time and space. In: BAYNHAM et al.(eds.) The Future of Literacy Studies. Palgrave Macmillan, 2009.). A abordagem transcontextual “enfoca o movimento dos significados através dos contextos” (KELL, 2009, p. 75KELL, C. Literacy practices, text/s and meaning making across time and space. In: BAYNHAM et al.(eds.) The Future of Literacy Studies. Palgrave Macmillan, 2009.). A trajetória que levou às audiências públicas foi um processo que incluiu o encadeamento de textos, divididos em, basicamente, sete gêneros discursivos mistos: preenchimento do (1) formulário virtual do site e-Cidadania, do Senado Federal, para o registro da ideia legislativa que, após receber o endosso de 20 mil assinaturas digitais, foi encaminhado em forma de (2) memorando à presidenta da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH)4 4 Quando da escolha do/a relator/a da matéria, a CDH era presidida pela senadora Ana Rita (PT/ES), mas seu mandato acabou em 31/1/2015, antes da primeira audiência pública interativa, sendo sucedida pelo senador Paulo Paim (PT/RS). , pela Secretaria de Comissões. A CDH, após protocolá-lo em forma de (3) sugestão legislativa, distribuiu-o para o relator5 5 A escolha do relator é feita por meio de uma distribuição numérica que leva em conta apenas a quantidade de matérias que cada senador está analisando, para que não se sobrecarregue nenhum dos/as parlamentares. A primeira indicação para a relatoria do processo foi para a senadora Marta Suplicy (PMDB/SP), que o devolveu para a relatoria sem justificação. Em uma segunda distribuição, a sugestão foi encaminhada ao Senador Magno Malta (PL/ES). , que decidiu convocar, por meio de um (4) requerimento, as (5) audiências públicas (com leituras de atas, apresentações, slides etc.) de caráter interativo, por meio do envio de (6) mensagens pela internet, para que se discutisse a criação do (7) Projeto de Lei.

A análise do papel do discurso nas práticas sociais permite a compreensão do seu grau de importância e visibilidade, que são variáveis entre práticas. De modo geral, o discurso se apresenta como parte da atividade social de uma prática, em representações, e na construção de identidades. Barton (2009)BARTON, D. (2009). Understanding textual practices in a changing world. In: BAYNHAM, M.; PRINSLOO, M. (Orgs.). The future of literacy studies. Hampshire: Palgrave Macmillan. sugere que a análise de discurso, junto aos estudos do letramento, é uma poderosa maneira de pesquisa e análise de textos e práticas.

Uma análise de discurso que foque nos gêneros entende que “o discurso como parte da atividade social constitui os gêneros discursivos. Gêneros são formas diversas de agir, de produzir vida social, no modo semiótico” (FAIRCLOUGH, 2012, p. 95FAIRCLOUGH, N. (2012). A dialética do discurso. In: MAGALHÃES, I. (Org.). Discurso epráticas de letramento: pesquisa etnográfica e formação de professores. Campinas: Mercado das Letras.). Para este autor (2012), a ordem social é constituída por práticas sociais organizadas em redes de um modo particular; o aspecto discursivo/semiótico de uma ordem social é o que se pode denominar uma ordem do discurso. Ou seja, é a forma em que diversos gêneros discursivos, discursos e estilos são reunidos numa rede. Ao definir gênero discursivo, Fairclough (2003)FAIRCLOUGH, N. (2003). Analysing Discourse: textual analysis for social research. Londres: Routledge. entende-o como aspectos discursivos das formas de agir e interagir por meio dos eventos sociais. Além das práticas sociais, os modos pelos quais os gêneros discursivos organizam-se em redes de comunicação definem as formas de ação e interação em eventos sociais. A mudança nessas formas de ação e interação, ou seja, mudança nos gêneros, é uma importante transformação no Novo Capitalismo.

Essa mudança de gêneros é aquela em que gêneros distintos são combinados, e os novos gêneros surgem da nova combinação de gêneros já existentes. Alguns gêneros encontram-se em uma escala local, outros possuem uma relatividade global, intitulados gêneros de domínio. Uma cadeia de eventos envolve uma cadeia ou rede de comunicação diferente, interconectada em textos que manifestam uma corrente de diferentes gêneros, como é o caso do processo que culmina nas audiências públicas interativas, mas que é iniciado pelo preenchimento de um formulário on-line, no qual um/a cidadão/ã identifica-se e propõe a ideia legislativa. Um texto ou interação particular não está em um gênero discursivo específico, mas envolve a combinação de diferentes gêneros. Para Fairclough (2003)FAIRCLOUGH, N. (2003). Analysing Discourse: textual analysis for social research. Londres: Routledge., o gênero, dentro do Novo Capitalismo, é totalmente variável em graus de estabilização, em seu caráter fixo e em homogeneização. No período específico, há uma tensão que estimula a estabilização dos gêneros discursivos, mas também há a pressão entre fluxo e mudança. No caso específico dos gêneros analisados neste artigo, ainda que haja um canal de comunicação novo, que envolve diferentes tipos de gênero, como a participação interativa dos cidadãos pela Internet, textos consagrados à prática legislativa, como o memorando e a ata, possuem a sua perenidade no Senado Federal.

A importância do uso de determinados gêneros discursivos muda ao longo do tempo. Formulários, por exemplo, são um tipo especial de escrita estruturada e são muito importantes atualmente, devido à expansão da rede mundial de computadores. Ainda assim, dependendo do espaço virtual, a obrigação com a verdade dos dados informados varia. No caso do e-Cidadania, é obrigatória a identificação e veracidade dos dados da/o cidadã/o, tanto da/o que sugere uma ideia legislativa quanto da/o que apoia uma ideia já em pauta de votação. O formulário virtual para a proposta de ideia legislativa possui elementos caracterizadores de uma linguagem concisa e instrutiva. Todos os espaços para preenchimento são introduzidos por instruções que, além de indicarem o número máximo de caracteres em cada campo, possuem majoritariamente verbos no imperativo (“selecione”, “indique”, “exponha”, “explique”, “descreva” etc.). Como é característico do modo verbal, não há marcação de pessoa e ele é atemporal. Contudo, apesar de traços que indiquem uma distância entre a/o cidadã/ão proponente, a linguagem informal prevalece e as instruções possuem um caráter de sugestão, mais do que de ordem, o que permite que o texto alcance o maior número de leitores, como no seguinte exemplo: “Aproveite para apresentar seus argumentos e convencer os demais cidadãos a apoiá-la” (SENADO FEDERAL, 2015bSENADO FEDERAL. e-Cidadania. Instruir a SUG 15 de 2014, que regula a interrupção voluntária da gravidez, dentro das doze primeiras semanas de gestação. 28/05/2015 – 09:00. Disponível em: http://ww12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=3867. Acesso: 22 set. 2015b.
http://ww12.senado.leg.br/ecidadania/vis...
).

Cabe ressaltar que, ainda que essas características ampliem, em certa medida, a participação popular, há ainda barreiras que fazem deste um processo não totalmente democrático. Para que uma pessoa consiga propor uma ideia, é necessário que ela tenha acesso à Internet; meios físicos que possibilitem esse acesso; um conhecimento prévio que lhe permita acessar os domínios do site que a levariam até o formulário em questão; o conhecimento linguístico que possibilite a compreensão de vocábulos como “caracteres” e “honoríficos”; e o letramento que lhe possibilite escrever um texto que seja conciso e claro, o que é uma exigência do formulário, como é possível perceber nos seguintes excertos:

  • (i) Exponha, em poucas palavras, o que é essencial em sua ideia. Seja claro, pois esse campo identificará sua Ideia Legislativa na lista geral.

  • (ii) Descreva sua ideia de maneira mais detalhada. Aproveite para apresentar seus argumentos e convencer os demais cidadãos a apoiá-la (SENADO FEDERAL, 2015bSENADO FEDERAL. e-Cidadania. Instruir a SUG 15 de 2014, que regula a interrupção voluntária da gravidez, dentro das doze primeiras semanas de gestação. 28/05/2015 – 09:00. Disponível em: http://ww12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=3867. Acesso: 22 set. 2015b.
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    ).

Fairclough (2003)FAIRCLOUGH, N. (2003). Analysing Discourse: textual analysis for social research. Londres: Routledge. propõe que a mescla de gêneros discursivos no texto pode adquirir a forma do que ele denomina “formatos”, isto é, textos que são reuniões de diferentes textos envolvendo distintos gêneros discursivos, como é o caso do portal e-Cidadania. Ainda que o site traga elementos de linguagem informal, algumas exigências, como por exemplo as de clareza e concisão, vão ao encontro dos aspectos esperados em manuais de Redação Oficial, que regulam os textos da administração pública. Assim, ainda que o formulário e o site e-Cidadania possuam linguagem informal, transparece, em uma análise mais atenta, sua intenção normalizadora e burocrática, que também é excludente.

3. A ANÁLISE DO DISCURSO DA IDEIA LEGISLATIVA Nº 29.984

A análise do discurso da ideia legislativa6 6 Uma cópia do documento que traz a ideia legislativa encontra-se no anexo 1. permitiu a compreensão da prática social na qual ela está situada. Entre os dados fornecidos pelo cidadão proponente, há a exposição de motivos pelos quais ele justifica a necessidade de discussão da regulamentação do aborto voluntário, até a 12ª semana, pelo Sistema de Saúde Pública:

São muitos os motivos pelos quais brasileiras interrompem uma gravidez. Os mais comuns são para adiar a gravidez para um momento mais adequado ou para concentrar energias e recursos em crianças já existentes. Algumas mulheres, no entanto, são incapazes de cuidar de um filho, quer em razão dos custos diretos, ou devido à ausência ou falta de apoio de um pai. Outras desejam planejar para proporcionar uma melhor educação para seus filhos no futuro. As gestantes também podem possuir graves problemas de relacionamento familiar, ou se considerar jovens demais para se tornarem mães. Não raramente, abortos também são resultado de pressões sociais: para uma mulher, pode ser insuportável o estigma de ser mãe solteira ou mãe precoce. A insuficiência dos programas de apoio financeiro para as famílias, a falta de acesso ou rejeição a métodos contraceptivos, e a estigmatização de pessoas com deficiência também são fatores que podem resultar em aborto obrigatório ou seletivo. A atual legislação vitimiza a mulher, tornando-a refém de clínicas de aborto clandestinas. Não obstante, estimativas do Ministério da Saúde apontam a ocorrência de 1,25 milhão de abortos ilegais, ao ano, no Brasil (SENADO FEDERAL, 2015SENADO FEDERAL. e-Cidadania. Instruir a SUG 15 de 2014, que regula a interrupção voluntária da gravidez, dentro das doze primeiras semanas de gestação. 05/05/2015 – 09:00. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=3603 Acesso: 22 set. 2015.
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).

Para a ADC, a análise da interdiscursividade permite a investigação de discursos articulados em textos e suas vinculações com lutas hegemônicas mais amplas. A interdiscursividade está situada no que Fairclough (2003)FAIRCLOUGH, N. (2003). Analysing Discourse: textual analysis for social research. Londres: Routledge. define como categoria representacional, ou seja, pelos modos de representação do mundo. O texto da justificativa da ideia legislativa separa as mulheres em duas categorias: as incapazes de cuidar de um/a filho/a, e as outras. Os fatores que levam as mulheres da primeira categoria a recorrerem ao aborto são resumidos em razões financeiras, ausência de uma figura masculina, problemas de relacionamento familiar e a pouca idade. Esses argumentos estão vinculados com discursos que sustentam que o perfil típico das mulheres que abortam no Brasil é o de jovens adolescentes de classes sociais mais baixas, provenientes de famílias fora do padrão normativo e que não estão em um relacionamento estável com um homem. As mulheres da segunda categoria são definidas em apenas uma característica, que é antagônica à primeira: são mulheres preocupadas com a “educação” e o “futuro” de seus filhos, ou seja, segundo o que é preconizado no texto e pela concepção hegemônica, são capazes de cuidar de um/a filho/a, apenas esperam o momento mais adequado para que esse planejamento não seja frustrado. Além disso, essas mulheres aparecem no texto como atoras sociais ativas, e como experienciadoras de dois processos mentais: “planejam” e “desejam”.

O recorte de classe e de raça entre essas mulheres é simbólico e exemplifica a realidade do aborto no Brasil, em que as mulheres brancas das classes mais abastadas conseguem recorrer a abortos seguros, motivadas por questões pessoais “justificáveis” para o padrão capitalista, que entende a/o cidadã/o como consumidor/a, enquanto as empobrecidas, e, consequentemente, as mulheres negras, padecem na clandestinidade em condições insalubres. Essa relação hierárquica e interseccional baseada em raça, gênero e classe é percebida atualmente quando as barreiras geradas pelo racismo refletem a dificuldade de acesso aos serviços de saúde, a falta de planejamento reprodutivo e a baixa oferta de métodos contraceptivos, que vitima principalmente as mulheres negras e indígenas (GOES, 2019), inseridas na base da pirâmide social. Ou seja, os critérios de aceitação de uma gravidez também são sustentados por princípios racistas capitalistas, uma vez que os filhos provenientes de uma relação economicamente estável, focada na construção de um/a cidadã/o que contribui para o mercado, com possibilidade de “futuro”, são mais aceitos que os potencialmente marginalizados alvos de uma estrutura colonial racista.

No trabalho intitulado “Aborto e Saúde Pública, 20 anos de pesquisas no Brasil”, que permite traçar um perfil das mulheres que abortaram em 20 anos em grandes cidades brasileiras, as mulheres que abortam são definidas como “Predominantemente, mulheres entre 20 e 29 anos, em união estável, com até oito anos de estudo, trabalhadoras, católicas, com pelo menos um filho e usuárias de métodos contraceptivos, as quais abortaram com misoprostol” (DINIZ, 2008, p. 8DINIZ, D. (2008). Aborto e saúde pública: 20 anos de pesquisas no Brasil. Brasília: UnB.). Portanto, o texto da ideia legislativa ilustra que o debate sobre a descriminalização do aborto, ainda que investido de discursos progressistas e favoráveis à garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, se não realizado por meio de uma ótica antirracista, reforça estereótipos negativos sobre mulheres negras. A criminalização do aborto é mais uma forma de agressão e exclusão contra mulheres, principalmente, negras, empobrecidas, periféricas, fora do mercado de trabalho e com baixa escolaridade, atingidas repetidas vezes pelo entrecruzamento de opressões de gênero, de raça e de classe, entre outros, nas avenidas identitárias e estruturais da colonialidade (AKOTIRENE, 2019AKOTIRENE, C. (2019). Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen.); dessa forma, além de requerer engajamento antissexista, é primordial o engajamento antirracista na luta pelos direitos sexuais e reprodutivos. Entender a abordagem interseccional proposta pelos feminismos negros como ferramenta teórica e metodológica de compreensão e enfrentamento às violências sociais oferece uma perspectiva de análise complexa sobre os entrecruzamentos das opressões de gênero, raça, classe, sexo e outras, que atingem de maneiras desiguais mulheres em nossa sociedade (CURYEL, 2020CURIEL, O. (2020). Construindo metodologias feministas a partir do feminismo decolonial. In HOLLANDA, E. B. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.). Lélia Gonzalez preconizou a análise intercruzada do racismo e do sexismo como basilares para a compreensão da sociedade brasileira, uma vez que o a articulação do racismo com o sexismo “produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular” (GONZALEZ, 2019, p. 238GONZALEZ, L. (2019). Racismo e sexismo na cultura brasileira. In HOLLANDA, E. B. Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.).

Assumimos neste trabalho a defesa pelo acesso seguro e gratuito ao aborto como um direito de cidadania, e ressaltamos a importância de se ampliar o debate à consideração dos direitos das mulheres como indivíduos e a inclusão de sua posição social como fator de tensão à noção abstrata de indivíduo, uma vez que o grau de autonomia das mulheres é diferente dependendo das formas de controle às quais estão expostas, uma vez que “a afirmação da autonomia das mulheres para decidir sobre a interrupção da gravidez é, assim, algo que toca em questões que não se restringem ao aborto, mas ao funcionamento da democracia, aos espaços e formas da regulação do Estado, às hierarquias e formas toleráveis da dominação, aos direitos individuais e à relação entre todas essas questões e o princípio da laicidade do Estado” (BIROLI, 2014, p. 42).

O texto que justifica a ideia legislativa quanto aos motivos de interrupção da gravidez pelas mulheres no Brasil elenca três que podem ser resumidos em um: adiar a gravidez para um momento adequado. Os subjacentes a esse indicam fatores que podem não ser propícios a uma gravidez: a falta de recursos financeiros e de energia, e o estigma de ser solteira ou jovem demais, características que vão ao encontro do esboçado sobre a categoria das “mulheres incapazes de cuidar de um filho”. O proponente da ideia legislativa também divide o aborto em dois tipos: obrigatório e seletivo. Ao traçar o perfil das mulheres que podem recorrer ao aborto, dos motivos para essas interrupções, e ao separar o aborto em obrigatório ou seletivo, o discurso presente no texto da justificativa da ideia legislativa sustenta que os abortos obrigatórios são os das mulheres da primeira categoria; e os seletivos, da segunda. Ou seja, a proposta hierarquiza as mulheres de acordo com classe, geração e status familiar, e sustenta o ideal de maternidade a que, segundo presumido, todas as mulheres estão sujeitas, além da subjugação ao masculino, que quando ausente é fator de risco ao sucesso da maternidade. Desta forma, corrobora com estereótipos socialmente construídos, nos quais as mulheres negras, pretas e pardas, são destinadas a relações sexuais esporádicas, enquanto as mulheres brancas são preferíveis para o casamento e a união estável (GOES, 2018).

Após o envio da ideia legislativa, e da conquista das assinaturas digitais, a proposta de André Oliveira Kiepper foi formalizada em uma ficha informativa, recebeu a identificação de número 29.984 e foi anexada ao memorando nº 60, de 2014, da Secretaria de Comissões do Senado Federal, que o encaminhou à senadora Ana Rita, presidente da CDH, na época. Nota-se, neste ponto da trajetória, que o texto proposto precisou ser incorporado a um outro texto em posição superior de uma escala hierárquica. “Textos atuam como pessoas em interações: textos possuem agência. Eles agem como agentes por possuírem patrocinadores. Regularmente, esses patrocinadores são instituições e empregar textos é uma das maneiras das quais instituições atuam como pessoas” (BARTON, 2009, p. 49BARTON, D. (2009). Understanding textual practices in a changing world. In: BAYNHAM, M.; PRINSLOO, M. (Orgs.). The future of literacy studies. Hampshire: Palgrave Macmillan.). O memorando ao qual a ideia legislativa foi anexada serviu como uma espécie de agente credenciado (SUASSUNA, 2016SUASSUNA, Jaqueline Coêlho. Quando o eu e o tu falam do aborto das outras: uma análise dos discursos nas audiências públicas interativas no Senado. 2016. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade de Brasília, Brasília, 2016.; MAGALHÃES, 2017), que apresenta o novo texto e o introduz no espaço do Senado Federal.

Segundo Fairclough (2003)FAIRCLOUGH, N. (2003). Analysing Discourse: textual analysis for social research. Londres: Routledge., os gêneros como formas de interação constituem tipos particulares de relações sociais entre interagentes. As relações sociais são relações entre agentes sociais, que podem ocorrer entre organizações, entre grupos, ou entre indivíduos. O autor apoia-se na teoria de que as relações sociais podem variar nas dimensões de poder e de solidariedade, ou hierarquia social e distância social. “Uma questão particular ao interesse contemporâneo é a relação entre o que a análise social das redes de práticas pode sugerir sobre a hierarquia e distância social, e como a hierarquia e distância social são construídas nos gêneros” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 75FAIRCLOUGH, N. (2003). Analysing Discourse: textual analysis for social research. Londres: Routledge.)7 7 No original: An issue of particular contemporary interest is the relationship between what a social analysis of networks of practices, institutions etc. might suggest about social hierarchy and distance, and how social hierarchy and distance are construed in genres. .

O anexo da ideia legislativa possui variação de cores e o slogan “Ideias legislativas – proponha a sua!”, no qual o uso do ponto de exclamação insere um tom informal e uma sensação quase sonora ao enunciado. Já o memorando possui as características padrão de ofício exigidas ao gênero, tendo como finalidade a comunicação interna. O pronome de tratamento empregado no memorando “A sua Excelência a Senhora Senadora Ana Rita”, é de uso consagrado, e o fecho, “Respeitosamente”, com a assinatura do Diretor da Secretaria de Comissões, Dirceu Vieira Machado Filho, segundo o Manual de Redação Oficial da Presidência da República, é utilizado “para autoridades superiores” (BRASIL, 2002). O memorando, como dito anteriormente, é utilizado apenas para introduzir a nova ideia legislativa e demonstra, tanto em seu caráter textual como em sua função, a hierarquia e o distanciamento.

Uma vez recebido pela presidente da CDH, a ideia legislativa é encaminhada a um/a relator/a, que deve decidir se ela tornar-se-á um projeto de lei ou não. No caso estudado, o senador Paulo Paim (PT/RS) determinou que o assunto deveria ser discutido por especialistas antes de se tomar uma decisão sobre a tramitação do texto como PL. Para que isso fosse possível, dentro do espaço legislativo, que é um exemplo do que Barton (2009, p. 50)BARTON, D. (2009). Understanding textual practices in a changing world. In: BAYNHAM, M.; PRINSLOO, M. (Orgs.). The future of literacy studies. Hampshire: Palgrave Macmillan. identifica como “cultura da auditoria e do aumento da textualização da vida”, o senador assinou o requerimento nº 24, de 2015, que solicitava a realização das audiências públicas interativas. No requerimento, a ideia legislativa nº 29.984 já era chamada de Sugestão nº 15, e, com isso, ele é tomado neste estudo como passo seguinte na trajetória.

O requerimento é um gênero discursivo do procedimento legislativo. Ainda que sua forma seja padronizada, como a do memorando, o primeiro distingue-se do segundo quanto à formalidade dos termos empregados, como, por exemplo, não possuir destinatário definido. Nele é possível perceber claramente a marcação transitória de tempo e espaço, pois o primeiro período do texto é iniciado por verbos compostos na voz passiva: “Havendo chegado a essa Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa”. O período seguinte segue também com verbos compostos na voz passiva, sem que se marque o sujeito da ação de “crendo ser necessário um debate amplo”. O sujeito aparece definido de duas maneiras: a primeira, quando o verbo é conjugado em segunda pessoa do plural, e subtende-se um nós que inclui o próprio senador: “precisamos ouvir os representantes dos diversos segmentos da sociedade civil”, e quando o verbo seguinte é conjugado na primeira pessoa do singular, remontando à figura de autoridade e poder do senador, pessoa capaz de instaurar as audiências públicas, ou até mesmo o projeto de lei, caso julgue pertinente: “requeiro (...) a realização de audiências públicas interativas”. Ou seja, dentro deste contexto, preenche as condições de felicidade (AUSTIN, 1983AUSTIN, J. L. (1983). Performativo-constantivo. In: LIMA, J. P. de. Linguagem e acção: da filosofia analítica à linguística pragmática. Lisboa: Materiais Críticos, p. 43-58.) para criar um projeto de lei e, também, a pessoa com poder de dar prosseguimento à trajetória da ideia legislativa.

Os estudos do letramento também apontam para a importância das outras pessoas nas práticas sociais de letramento. Essas pessoas são tomadas como “luzes-orientadoras” que apoiam e inspiram outras em seus empreendimentos de letramento. Esses agentes (SUASSUNA, 2016SUASSUNA, Jaqueline Coêlho. Quando o eu e o tu falam do aborto das outras: uma análise dos discursos nas audiências públicas interativas no Senado. 2016. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade de Brasília, Brasília, 2016.; MAGALHÃES, 2017) podem agir como mediadores, mentores, corretores e escribas. Os escribas escrevem por outras pessoas (BARTON, 2009BARTON, D. (2009). Understanding textual practices in a changing world. In: BAYNHAM, M.; PRINSLOO, M. (Orgs.). The future of literacy studies. Hampshire: Palgrave Macmillan.). As práticas de discurso e letramento no Senado Federal, especificamente no recorte dessas audiências públicas interativas, também possuem facilitadores que trabalham nos “bastidores” da tramitação dos textos em análise, que tanto medeiam os textos, pois a ideia legislativa, antes de ser anexada ao memorando e levada ao interior das práticas da casa legislativa, foi analisada quanto à pertinência por um funcionário da Assessoria da CDH. O memorando em si é assinado por um funcionário da Secretaria.

Uma vez que o senador Magno Malta (PL/ES) requereu as audiências públicas interativas, a assessoria da CDH, junto ao senador, faz pesquisas para a escolha dos especialistas que participarão do debate nas audiências. Segundo entrevista realizada com o funcionário do Senado para a pesquisa, a escolha desses participantes não possui um padrão determinado, eles buscam pessoas notórias no debate sobre o aborto e tentam formar uma mesa com um número equilibrado de debatedores de ambos os lados da discussão. Barton (2009)BARTON, D. (2009). Understanding textual practices in a changing world. In: BAYNHAM, M.; PRINSLOO, M. (Orgs.). The future of literacy studies. Hampshire: Palgrave Macmillan., apoiado na teoria de Deborah Brandt, fala sobre o papel de indivíduos e instituições agindo como patrocinadores de práticas de letramento e como apoiadores e facilitadores de indivíduos. No caso das audiências aqui estudadas, os participantes debatedores exercem o papel de patrocinadores.

A ideia de apoiadores transparece que estamos falando tanto de indivíduos quanto de instituições. Essa ideia também nos permite ver como os textos vem de algum lugar e vão para algum lugar e que precisamos estudar letramentos pelos contextos (...) esses patrocinadores apoiam visões específicas e advogam por esses pontos de vista. A perspectiva de Brandt é importante para entender os meios em que a leitura e a escrita podem ser promovidas e apoiadas. O conceito de patrocínio também está ligado à ideia de financiamento de conhecimento em uma comunidade com a qual as pessoas podem contar (BARTON, 2009, p. 46BARTON, D. (2009). Understanding textual practices in a changing world. In: BAYNHAM, M.; PRINSLOO, M. (Orgs.). The future of literacy studies. Hampshire: Palgrave Macmillan.).

Cinco audiências foram realizadas, mas não desencadearam na criação do Projeto de Lei referente à ideia legislativa. Pelo decorrer dos debates, já havia demonstrações da não criação de um projeto de lei que descriminalizasse o aborto no Brasil, principalmente no que concerne aos posicionamentos públicos do relator das audiências, o senador pastor Magno Malta (PL/ES). As audiências públicas interativas são entendidas aqui segundo a definição de eventos de letramento (HEATH, 1983HEATH, S. B. (1983). Ways with words. Cambridge: Cambridge University Press.), pois são eventos textualmente orientados, com regras interacionais que os regulam, com princípio e fim marcados; ocorrem nos plenários do Senado Federal, em datas pré-agendadas, ou seja, são situados em tempo e espaço, e possuem participantes determinados. Durante as audiências públicas, uma gama de textos multimodais é utilizada tanto pelos debatedores (slides, falas apoiadas em apresentações escritas, vídeos, documentos etc.), pelos senadores (atas e documentos oficiais), quanto por cidadãos/ãs que, pelo aspecto interativo do debate, podem enviar mensagens de apoio ou crítica à página do Senado, ou por meio do “Alô Senado”, no qual telefonistas fazem o papel de escribas: escrevem as mensagens recebidas por telefone e encaminham ao senador presidente da Comissão.

Para os estudos da Pragmática, ao contrário do enunciado constativo, que tem a propriedade de ser verdadeiro ou falso, o enunciado performativo não é nem uma coisa nem outra, sua função é própria: efetuar uma ação. Formular um enunciado performativo é realizar uma ação, e como qualquer rito, depende de condições adequadas para que se tenha efeito (AUSTIN, 1983, p. 44AUSTIN, J. L. (1983). Performativo-constantivo. In: LIMA, J. P. de. Linguagem e acção: da filosofia analítica à linguística pragmática. Lisboa: Materiais Críticos, p. 43-58.). Com base nessa teoria, e focando na análise da ata lida pelo senador Paulo Paim (PT/RS) para iniciar a audiência pública interativa do dia 28 de maio de 2015, é possível observar que enunciados como o do senador não apenas informam o início da audiência pública, mas a tornam real, ou seja, criam a audiência pública: “Declaro aberta a 34a Reunião Extraordinária da Comissão Permanente de Direitos Humanos e Legislação Participativa da 1a Sessão Legislativa Ordinária da 55ª Legislatura”.

Todas as audiências são iniciadas pela leitura de um texto híbrido, que estabelece o início das audiências públicas, caracteriza-a, apresenta os participantes, indica as formas de participação possíveis, retoma alguns pontos sobre as audiências anteriores e estabelece as regras da audiência que é iniciada. Um ponto significativo da fala do senador é quando ele transparece que o texto que ele utiliza para basear a sua fala foi, na verdade, escrito por outra pessoa, que não é identificada, mas é assumida como parte da Assessoria da CDH. Os únicos participantes membros da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa que possuem identidade bem definida são os senadores. Os demais são inseridos no que Thompson (2011)THOMPSON, J. B. (2011). Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes. identifica como unificação, modo de operação da ideologia no qual “relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas através da construção, no nível simbólico, de uma forma de unidade que interliga os indivíduos numa identidade coletiva, independentemente das diferenças e divisões que possam separá-los” (THOMPSON, 2011, p. 86THOMPSON, J. B. (2011). Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes.). Além disso, o senador deixa transparecer a mediação de outros em seu texto, quando declara:

Eu vou fazer uma introdução do tema, e eu confesso que normalmente eu não leio, antes de apresentar aqui, porque eu sempre peço isso à Consultoria da Casa para aqueles que estão assistindo à nossa reunião tomarem conhecimento do que vai ser o debate. E faço essa introdução, que peço sempre que seja uma introdução técnica e não tomando posição, porque não compete aqui ao Presidente da Comissão tomar essa ou aquela posição, e, sim, suscitar o bom debate para os eleitores (DECLARAÇÃO DE PAULO PAIM, 28/5/2015).

O texto é tomado como seu, mas foi escrito por um membro da Consultoria do Senado Federal. Membros estes que estão presentes durante todo o processo de trânsito dos textos, mas que só foram revelados por meio de brechas como a exemplificada, e por meio da entrevista realizada para este trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procuramos, por meio das análises apresentadas neste artigo, contribuir para a percepção das disputas de poder manifestadas nos textos que envolveram a discussão da descriminalização do aborto no Brasil nas audiências da Sugestão nº 15. Procurou-se discutir como os textos, enquanto agentes políticos, também participam destas disputas, podendo garantir, inclusive, por meio de práticas burocráticas, que o espaço parlamentar seja utilizado como espaço de autopromoção por atores que se colocam como protetores da moral cristã, utilizando-se de temas controversos, como o caso da interrupção voluntária da gravidez, e instaurando uma espécie de pânico social. Ainda que as audiências públicas sobre a SUG nº 15 tenham sido arquivadas e não tenham gerado um projeto de lei sobre a descriminalização, permitiu que os deputados e senadores que militaram contra a descriminalização garantissem mandatos nas eleições seguintes.

A análise apontou características excludentes e sustentação de relações de poder presentes na trajetória da ideia legislativa. Dentro do Senado Federal, os textos legislativos reafirmam o poder dos parlamentares basicamente de duas formas: em detrimento do/a cidadão/ã que fez a sugestão, pois, uma vez que adentra a casa legislativa, a autoria da ideia legislativa passa a ser do relator; e em detrimento dos funcionários envolvidos efetivamente no trabalho de tramitação do texto, que, apesar de possuírem o poder hierárquico de movimentar o texto dentro do Senado, precisam do aval e da voz dos senadores para sua legitimação. Ainda mais contundentemente, ao cerrar uma discussão fundamental sobre a vida e a dignidade das mulheres em uma proposta que reforça discursos racistas patriarcais redigida por um homem e discutida em um ambiente no qual parlamentares, também homens cisgêneros, possuem mais poder de fala que os/as demais participantes legitima a sobredeterminação da participação dos discursos contrários à Sugestão, limitando o funcionamento da democracia pelo cerceamento dos direitos de cidadania das mulheres. Ainda que não tenha sido o foco deste trabalho, é mister assinalar que outras tantas violências atingem de maneiras desiguais corpos que gestam e que estão fora dos padrões da cisnormatividade e das abordagens capacitistas não trabalhadas neste artigo e nem problematizados nas discussões das audiências.

O discurso da própria Sugestão, ainda que procure descriminalizar a interrupção voluntária da gravidez, que enquanto prática clandestina dificulta o acesso de mulheres a uma atenção integral e potencializa situações de violência e vulnerabilidades, corrobora com práticas que violentam as mulheres de forma desigual. As mulheres negras são as maiores vítimas da violência obstétrica, da mortalidade materna, da criminalização do aborto, de políticas de esterilização involuntária, entre outras. Nesse sentido, o documento reafirma o discurso conservador de gênero racista e capitalista, que liga a primazia de ser mulher à maternidade e à posição de matriarca de um modelo ideal de família, ligando-a diretamente à dependência de um homem. Portanto, a sugestão legislativa mostra marcas do discurso tradicional de gênero no Brasil, segundo o qual, “ter família” significa ter um pai. Acrescenta-se que o modelo ideal para a escolha trazido pela sugestão é excludente e limitador da ação de mulheres que ele supõe jovens demais para serem mães, sem recursos financeiros para criar um/a filho/a, ou que estão fora de um relacionamento estável.

O protagonismo da linguagem e o potencial de agentes sociais que os textos possuem, investigados neste trabalho, convidam para o estudo aprofundado sobre o foco reprodutivo e transformacional desses textos no contexto do colonialismo tardio, uma vez que não são claramente localizáveis e estão imbricados nas hibridações das práticas sociais atuais. Essa análise ocupada nas discussões sobre um tema destinado ao silenciamento e ao pânico moral apresenta os discursos sobre aborto enquanto campo fértil e revelador de relações de poder e procura estimular pesquisadoras dos estudos da linguagem a desbravarem a temática, contribuindo para a elucidação das posições ideológicas e as manifestações dessas ideologias por meio da linguagem.

  • 1
    Ainda que atentas a uma abordagem interseccional de raça e de classe, assumimos que nossa análise nesse artigo está limitada a discussões sobre mulheres cisgênero e não dá conta da multiplicidade de experiências que corpos que gestam vivenciam de maneiras desiguais.
  • 2
    As filiações são apresentadas pelas siglas dos partidos e respectivos estados pelos quais os/as parlamentares cumpriam mandatos no período das audiências analisadas.
  • 3
    Abertura da audiência de 28 de maio de 2015 (SENADO FEDERAL, 2015bSENADO FEDERAL. e-Cidadania. Instruir a SUG 15 de 2014, que regula a interrupção voluntária da gravidez, dentro das doze primeiras semanas de gestação. 28/05/2015 – 09:00. Disponível em: http://ww12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=3867. Acesso: 22 set. 2015b.
    http://ww12.senado.leg.br/ecidadania/vis...
    ).
  • 4
    Quando da escolha do/a relator/a da matéria, a CDH era presidida pela senadora Ana Rita (PT/ES), mas seu mandato acabou em 31/1/2015, antes da primeira audiência pública interativa, sendo sucedida pelo senador Paulo Paim (PT/RS).
  • 5
    A escolha do relator é feita por meio de uma distribuição numérica que leva em conta apenas a quantidade de matérias que cada senador está analisando, para que não se sobrecarregue nenhum dos/as parlamentares. A primeira indicação para a relatoria do processo foi para a senadora Marta Suplicy (PMDB/SP), que o devolveu para a relatoria sem justificação. Em uma segunda distribuição, a sugestão foi encaminhada ao Senador Magno Malta (PL/ES).
  • 6
    Uma cópia do documento que traz a ideia legislativa encontra-se no anexo 1.
  • 7
    No original: An issue of particular contemporary interest is the relationship between what a social analysis of networks of practices, institutions etc. might suggest about social hierarchy and distance, and how social hierarchy and distance are construed in genres.
  • DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA
    Os dados públicos utilizados na pesquisa estão disponíveis nos endereços eletrônicos citados, permitindo amplo e irrestrito acesso.

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Disponibilidade de dados

DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS DA PESQUISA

Os dados públicos utilizados na pesquisa estão disponíveis nos endereços eletrônicos citados, permitindo amplo e irrestrito acesso.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2022
  • Aceito
    20 Maio 2024
  • Publicado
    21 Maio 2024
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