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Mãe, mestra e guia: uma análise da iconografia de Santa'Anna

Resumos

A Virgem Maria e sua mãe, Anna, foram as santas mais populares no Brasil ao longo dos séculos XVII e XVIII. A devoção a esta "gloriosa matriarca" é, com efeito, um reflexo do culto mariano. Anna veio até a ser associada com algumas virtudes da Mãe de Cristo. Três tipos de representação artística ilustram esta associação ao retratarem Anna como mãe, guia, e, sobretudo, mestra. Este trabalho propõe uma interpretação destes tipos iconográficos à luz do pensamento católico e do contexto social de Minas Gerais. Esta região testemunhou a emergência do mais importante centro artístico da América Portuguesa no século XVIII; esculturas de Santa Anna ocupavam um lugar de destaque em paróquias e capelas mineiras. Tornaram-se imagens de culto para indivíduos e grupos diversos. O objetivo desta pesquisa é compreender o significado destas imagens que não estão enraizadas em passagem alguma das Escrituras; elas constituem, ao contrário, um retrato cultural dos papéis atribuídos à maternidade.


The Virgin Mary and her mother, Anne, were the most popular female saints in Brazil throughout the seventeenth and eighteenth centuries. The devotion to this "the glorious matriarch"is, indeed, a reflection of the marian cult. Anne even came to be associated with some of the virtues of the Mother of Christ. Three types of artistic representations highlight this association by portraying Anne as mother, guide and, moreover, mistress. This paper proposes an interpretation of these iconographic types in light of both catholic thought and the social context of Minas Gerais. This region harbored the greatest art center of Portuguese America in the XVIIIth century and sculptures of Saint Anne were prominent in most parishes and chapels there. They became cult images for individuals and various groups. The aim of this research is to understand the meaning of these images that are not rooted in any scriptural passage; they are, rather, a cultural portrayal of the roles assigned to motherhood.


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  • 1
    Na Igreja Grega, a celebração ainda é chamada de "Concepção de Anna". Na Igreja Latina, é conhecida como "Concepção de Maria". Esta festa do dia 8 de dezembro (nove meses antes da festa do nascimento de Maria) não deve ser confundida com a celebração litúrgica de Sant'Anna e São Joaquim, instituída no dia 26 de julho desde 1584, por iniciativa de Gregório XIII. Um aprofundamento da maior parte dos temas tratados neste trabalho pode ser encontrado na Tese de Doutorado de Maria Beatriz de Mello e Souza, Les images de l'Immaculée Conception dans le monde luso-brésilien: leur culte et leur signification (XVIe - XVIIIe siècles). Université de Paris I - Panthéon Sorbonne, 1996. 3 vols. A tese inclui análises de diversas representações literárias e artísticas de Sant'Anna, com ilustrações das obras de arte.
  • 2
    Ver Évangiles Apocryphes, apresentação de France Quéré (Paris, Seuil, 1983), pp. 69-72.
  • 3
    Anchieta, José de. Poema da Bem-Aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus. São Paulo: Loyola, 1988. 2 vols. versos 513-514 e 517-518. Trata-se de uma edição bilíngüe, traduzida de De Beata Virgine Dei Matre Maria, com 5.785 versos.
  • 4
    Sermão da gloriosa Santa Anna, Mãy da Mãy de Deos, Pregado (...), em 26 de julho, ano de 1739. In __________. Sermões, Lisboa: Miguel Manescal da Costa, 1743. Vol. 1, p. 314.
  • 5
    De acordo com E. Gombrich, "'allegory' means literally 'saying something else'". Cf. Gombrich, E. Symbolic images: Studies in the art of the Renaissance. Oxford: Phaidon, 1985. p.19. A respeito da discussão historiográfica sobre a distinção entre alegoria e símbolo, ver pp. 183-187.
  • 6
    No disco Gerais (1975), Milton Nascimento interpreta a canção popular Cálix Bento, que apresenta a mesma idéia da iconografia: "De Jessé nasceu a vara, / e da vara nasceu a flor, / e da flor nasceu Maria, / de Maria, o Salvador".
  • 7
    In Missae Propriae Sanctorum Hispanorum... Venitiis: Typ. BalleoniAnna, 1760. p. 25.
  • 8
    Para Jorge de Carvalho, O.S.B., assim como Cristo é a "imagem" de Deus, Maria é "uma cópia" de Sant'Anna. Uma é "o retrato" da outra. Cf. Sermão... em dia de Santa Anna, no Mosteiro de Santa Anna, professando Soror Anna Maria... Lisboa: Officina de Lourenço de Anveres, 1646 e Coimbra: Thome Carvalho, 1672. p. 5-6.
  • 9
    Um exemplo português da devoção medieval a Sant'Anna que enfatiza esta linha gemgenealógica encontra-se em A vida e linhagem de Sancta Anna, Madre de Nossa Senhora e Começa aqui a vida de Sancta Anne e Sam Joachim, seu marido, até que Nosa Senhora nasceo, textos reproduzidos em Lucas, Maria Clara de Almeida. Ho Flos Sanctorum em Lingoage: os Santos Extravagantes. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1988. pp.253-265.
  • 10
    Voltaremos a este tópico na terceira parte do texto.
  • 11
    Cf. Sermão da Senhora Santa Anna... In Sermões.1798. Tomo I, pp. 228-256. O sermão é baseado na parábola de Mateus, 7: a árvore que é conhecida por seus frutos.
  • 12
    Bayão, José Pereira (†1743). Vida, prerrogativas e excelências da ínclita matrona Santa Anna, em que se prova com eficácia não casar mais que uma só vez, traduzida e acrescentada com muitos milagres dela e do senhor São Joaquim, seu único esposo.
  • 13
    Azevedo, Sebastião. Céu místico à gloriosíssima senhora Santa Anna. Lisboa, 1725; Santanna, José Pereira de. Noticia mystica, representacion metrica y verdadera historia de los abuelos de Maria e bisabuelos de Christo (...) offerecida a la gran madre de la Virgen inclita, y soberAnna abuela de Jesus S. Anna (...). Lisboa: Impressão da Música, 1730; J. P. de Santanna (Rio de Janeiro, 1696 - Portugal, 1759) era cronista dos carmelitas, Doutor em Teologia da Universidade de Coimbra, visitador das ordens militares e do Patriarcado, qualificador da Inquisição e confessor das Infantas de Portugal. Escreveu aindaMedianeira da vida eterna, Maria Santissima, Mãy de Deus (...) Parte II. Comprehende (...) devoçoens em louvor, não só da Virgem Senhora, mas tambem da Senhora Santa Anna, S. Joseph, e outros grandes santos da Sagrada Família (...) Offerecida à Mesma Soberana Imperatriz da Glória (...) Lisboa: Antonio Pedroso Galrão, 1747.
  • 14
    Natividade, Francisco da. Novena de Senhora Sant'Anna com o seu Ofício. 1708; Engrácia, Antonio de Santa. Novena de Sant'Anna, Avó de Cristo. 1720; Belém, Jerônimo de.Excelência da mulher forte ou novena de Sant'Anna. 1733. Natividade era carmelita e Santa Engrácia, franciscano; J. de Belém nasceu no Brasil. E, posteriormente, Silva, Antonio José da. Novena da gloriosa Sant'Anna, Mãe de Deus, Avó de Cristo. Lisboa, 1770; Melo, Inácio de. Tres hymnos latinos a Nossa Senhora e hum a sua Mãy a Senhora Santa Anna (s.l., s.n., s.d.); nenhum exemplar deste livro é conhecido em bibliotecas portuguesas.
  • 15
    15 Cf. Carvalho, J. de. Op. cit. pp. 5-6 e 20.
  • 16
    Soares, João Alvares. Sermão da gloriosa S. Anna, Mãy de Maria SS. Senhora Nossa, na festa que lhe consagrão os Moedeiros na Catedral da Cidade da Bahia. Lisboa: Officina Augustinianna, 1733. pp.1-31. O autor, padre secular, estudou no colégio de jesuítas da Bahia, onde nasceu em 1676. Santa Anna, Antonio de, Frei. Sermão II da gloriosa Senhora Santa Anna, Mãy da Mãy de Deos, e Avó de Jesu Christo, que se havia de pregar na Santa Sé Metropolitana de Lisboa Oriental na festa, que anualmente lhe fazem os seus devotos da Casa de Moeda, anno 1730. In Sermões varios. Lisboa: 1738. pp. 460-483.
  • 17
    Cf. Mott, Luiz. Rosa Egipcíaca. Uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand, 1993., p.122 e 496-497, grifo nosso.
  • 18
    Ela recebe como revelação uma canção que invoca Anna, Joaquim e Maria. Em 1754,Rosa vê os corações que passam a ser objetos de uma devoção afetuosa: ela acrescenta os de Anna e Joaquim aos corações de Jesus, Maria e José.Idem. pp.286-287, 299-300 e 313-332.
  • 19
    Entre as 322 irmandades em Minas, onze adotaram Anna como padroeira. Cf. Boschi, Caio. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986. pp.187-188, 190 e 198-199.
  • 20
    Ver, por exemplo, Bayão, José Pereira. Op. cit.
  • 21
    Sobre Anna e Joaquim como casal modelo, ver Holwecke, Frederick. Saint Anne. In The Catholic Encyclopedia. New York, 1907. Vol.1. Sobre a instabilidade familiar em Minas, ver Souza, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro. A pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982 e a tese de doutorado de Renato Pinto Venâncio defendida na Universidade de Paris IV-Sorbonne em 1993. Entre 1719 e 1723, 90% das crianças nascidas em Minas Gerais eram ilegítimas: este índice revela o quanto esta sociedade carecia da formação de famílias estáveis na perspectiva da Igreja.
  • 22
    Por exemplo, o professor M. O., 30 anos foi denunciado em Pernambuco, em 1594,por afirmar que "Sant'Anna primeiro que parisse a Virgem Senhora parira outras filhas". Cf. Mott, Luiz. Maria, virgem ou não? Quatro séculos de contestação no Brasil. Trabalho apresentado na XV Reunião da Associação Brasileira de Antropologia. Curitiba, 1986. p.10.
  • 23
    Cf. Mott, Luiz. Rosa Egipcíaca. Uma santa africana no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand, 1993. p. 508.
  • 24
    Idem. p. 30.
  • 25
    Para um estudo sobre a imagem medieval de Sant'Anna Mestra, ver Sheingorn, Pamela. The wise mother: the image of Saint Anne teaching the Virgin Mary.Gesta, vol. 32, n. 1, pp.69-80, 1993. Sobre a mesma imagem na época da Contra-Reforma, ver Ruiz-Calvez, Estrella. Religion de la mère, religion des mères. Sainte Anne éducatrice: les images de la mère selon l'iconographie de Sainte Anne. XVe-XVIIe siècle. In Delumeau, Jean (Dir.). La religion de ma mère. Les femmes et la transmission de la foi. Paris: Cerf, 1992. pp.123155.
  • 26
    Apud Algranti, L. M. Honradas e devotas: mulheres da Colônia: condição feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; EdUnB, 1993. p. 243.
  • 27
    Cf. História da Igreja no Brasil. Primeira época. Petrópolis: Vozes, 1979. pp. 370-371.
  • 28
    Cf. Educação de meninas: a clausura provisória. Idem. pp.239-261. Entre as instituições estudadas, a de Macaúbas, em Minas, foi a principal dedicada à educação de moças (cf. pp.23-25 e 253-255). Ver também Priore, Mary del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil colônia. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; EdUnB, 1993. pp. 309-320.
  • 29
    A porcentagem de mulheres livres que sabiam assinar o nome era extremamente baixa. Chegava a 2,2% no Rio de Janeiro de 1808-26 (e 40,33% dos homens livres). Cf. Algranti, L. M. Op.cit. p. 251.
  • 30
    Idem, p. 76.
  • 31
    Cf. Heróica e admirável vida da gloriosa Sant'Anna, Mãe de Maria Santíssima, ditada pela mesma Santa com assistência, aprovação e concurso da mesma Soberaníssima Senhora e de seu Santíssimo Filho. 120 folhas,apud Mott, L. Op. cit. p. 503.
  • 32
    O jesuíta Alexandre de Gusmão (1629-1724) assinalou a importância da educação de moças no Brasil, recomendando que se tornassem devotas da Virgem para este fim. Cf. Gusmão, Alexandre de. Arte de crear bem os filhos em idade de puerícia. Lisboa, 1685. p. 287. Ver o capítulo 25, pp.377-87, "Do especial cuidado que se devem na creaçam das meninas".
  • 33
    Algranti, L. M. Op.cit., p. 241.
  • 34
    Sobre famílias matrifocais, ver Figueredo, Luciano. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio; EdUnB, 1993 e Souza, Laura de Mello e.Op. cit. Para Michael Carroll, a estrutura familiar que ele chama "father ineffective family" é muito importante para explicar o culto mariano, sobretudo na Itália e na Espanha. Carroll, Michael.The cult of the Virgin Mary: psychological origins. Princeton: Princeton University Press, 1986. E o culto mariano é o fundamento da devoção a Sant'Anna. Para uma crítica historiográfica sobre a família patriarcal na colônia, ver Vainfas, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Campus, 1989. Capítulo 4: "Patriarcalismo e Misoginia", pp.107-142.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2002
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