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Paraíso perdido? A Amazônia como espaço de globalização política ou o que a história ambiental e a história global podem nos dizer sobre a ditadura civil-militar brasileira

Lost Paradise? The Amazon as a space of political globalization or what environmental and global history can tell us about the Brazilian civil-military dictatorship

¿Paraíso perdido? La Amazonía como espacio de globalización política o lo que la historia ambiental y global puede decirnos sobre la dictadura cívico-militar brasileña

Acker, Antoine. . Volkswagen in the Amazon: the tragedy of global development in Modern Brazil.Cambridge University Press, 2017. 330 p.

O que ainda resta dizer sobre a ditadura no e do Brasil? As diversas terminologias aplicadas na tentativa de definir o episódio, os debates no âmbito da história pública e os avanços e retrocessos no acesso à documentação não deixam dúvida: essa é uma falsa pergunta. Há muito a ser pesquisado e publicizado sobre a ditadura. O termo quase sempre soa como um apelido para evocar os anos entre 1964 e 1985, evidenciando o seu legado para a história do século XX do país. Em outra nota, suas menções mais simplistas têm sido revisitadas na tentativa de dar visibilidade aos múltiplos suportes e conexões que asseguraram sua existência e manutenção por quase três décadas1 1 Para acessar um texto-síntese que aborda tal problemática, consulte: Bezerra de Melo (2012). .

A abertura desta resenha desde a perspectiva conceitual é um indicativo de que a ditadura é um processo traumático e polêmico como poucos circunscritos entre a história e a memória social brasileira e, também, do meu lugar de percepção como leitora da obra Volkswagen in the Amazon: The Tragedy of Global Development in Modern Brazil, escrita por Antoine Acker e publicada em 2017ACKER, Antoine. Volkswagen in the Amazon: the tragedy of global development in Modern Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2017.. Isso porque, já no primeiro contato, o meu olhar sobre o livro buscou imediatamente por e pela ditadura, sem correspondência. O termo não aparece explícito no nome da obra e em nenhum dos títulos dos cinco capítulos que a compõem, a seguir traduzidos: 1) Preparando o palco: a Amazônia como horizonte, 2) A criação de um rancho modelo (1973- 1976), 3) O desenvolvimento na era da escassez (1976-1983), 4) A modernidade fora de data: trabalho forçado em Cristalino (1983-1986) e 5) O fim infeliz do Cristalino2 2 Títulos originais no livro: 1) Setting the Stage: The Amazon as a Horizon, 2) The Making of a Model Ranch (1973-1976), 3) Development in the Age of Scarcity (1976-1983), 4) Out-of-Date Modernity: Forced Labor at Cristalino (1983-1986), 5) Cristalino’s Unhappy Ending (tradução da autora). .

As orientações teóricas embasadas na história global e na história ambiental fornecem a resposta para os recortes privilegiados pelo historiador francês cuja trajetória intelectual está concatenada a diversas instituições de pesquisa e ensino na Europa e que cruzou as fronteiras de sua terra natal para alcançar o Brasil. O livro é fruto da tese de doutorado de Acker defendida junto ao European University Institute de Florença em 2014 e, tão logo, aprovada para compor a série “Global and International History” da mundialmente reconhecida Cambridge University Press.

Volkswagen in the Amazon... conta a história da Companhia Vale do Rio Cristalino (CVRC), uma fazenda de criação de gado com mais de 100 mil hectares localizada no Sudeste da Amazônia (precisamente no Estado do Pará), estabelecida em 1974 sob liderança da Volkswagen (VW). A multinacional de origem alemã esteve à frente de outras empresas que investiram no projeto, cuja realização foi facilitada graças a generosos incentivos do governo federal brasileiro, alicerçados pela Operação Amazônia (1966). O objetivo daquela que foi apelidada de “a fazenda da Volkswagen” era gerar carne para exportação, a ser processada em frigoríficos criados para esse fim na região, assim como madeira e celulose. Para isso, a fazenda foi investida de estradas e pistas de pouso. Propagandas ostentavam que os funcionários receberiam diversos benefícios laborais e que modernas técnicas agropecuárias norteariam a produção. Todavia, em menos de dez anos, escândalos ambientais e trabalhistas de proporção mundial junto à mídia e à comunidade científica passaram a notabilizar imagens divergentes do que foi previsto, conforme o leitor poderá acompanhar por uma densa, porém agradável narrativa, que cobre desde as tratativas para instalação da fazenda até idos de 1987, momento em que a CVRC foi vendida.

Além dos capítulos, o livro conta com uma introdução e um prefácio autoral. A ausência de vozes externas para apresentar essa seção é parcialmente contrabalançada por recomendações na contracapa assinadas por pesquisadores de renome do Brasil, da Alemanha e da Holanda. Na mesma medida, os agradecimentos de Antoine à sua rede de trabalho permitem intuir que, à época do doutorado, ele já era um profissional experiente e com habilidades para elevar o tema a um patamar de discussão interdisciplinar e focado em assuntos próprios à contemporaneidade, como meio ambiente, trabalho e capitalismo. Dado o esteio intelectual do autor e sua fluência em diversos idiomas, incluindo o português e o alemão, a robusta gama documental citada no livro não surpreende. Acker lançou mão de relatórios, entrevistas e matérias de jornal de circulação internacional encontradas em arquivos, sindicatos e fundações, evitando com sabedoria o chamado nacionalismo metodológico (EPPLE, 2012EPPLE, Angelika. The global, the transnational and the subaltern: The limits of history beyond the national paradigm. In: AMELINA, A.; NERGIZ, D. D.; FAIST, T.; SCHILLER, N. G. (orgs.). Beyond methodological nationalism: research methodologies for cross-border studies. New York: Routledge, 2012. p. 155-175.), comumente um avatar para interpretações restritas.

O primeiro capítulo, intitulado “Preparando o palco: a Amazônia como horizonte” é dedicado à maior floresta tropical do mundo ou, para fazer jus à perspectiva do livro, à percepção da Amazônia como tal. O foco na floresta é um ponto alto do livro e retira dos grandes centros urbanos do eixo Sul-Sudeste a exclusividade como símbolos da modernização brasileira. A floresta amazônica é apresentada como uma arena cultural e política (p. 3, p. 290) para além de clichês e estereótipos, a partir de três linhas estratégicas: primeiramente, sua construção real e virtual ligada à ideia de natureza em oposição à cultura. Em segundo lugar, as condições estruturais do projeto desenvolvimentista brasileiro, que antecedem e precedem a ditadura. E, finalmente, como a VW percebeu o desenvolvimentismo autoritário como um terreno fértil para seus investimentos sem, contudo, deixar de lidar com hesitações e disputas. Desde a abertura, fica claro que o caso de Cristalino ilustra uma mudança de perspectiva sobre os usos dos recursos naturais dentro de uma concepção muito específica de desenvolvimento, baseado na integração técnica e territorial e na predominância do ideário de industrialização, mesclando tensões e alianças semeadas a partir do encontro de especificidades latino-americanas (ditaduras, nacionalismos e desenvolvimentismo) e globais (movimento ambiental, guerra fria e direitos humanos).

O capítulo dois é designado “A criação de um rancho modelo (1973-1976)”. Seu objetivo foi examinar as negociações que resultaram no acordo para a criação de Cristalino. Esse capítulo ilumina um ponto de vista que é seguido em toda a narrativa do livro: a Amazônia e os atores que por ela respondem compõem um mundo entre espaços, tendo em conta os interesses do Brasil na exploração na floresta. A conclusão recorrente de que a ditadura civil-militar priorizava a internacionalização a qualquer custo é desconstruída, ponderando idiossincrasias de diferentes administrações que, sob um alicerce autoritário e desenvolvimentista comum, guardavam diferenças que variaram do desenvolvimentismo associado ao nacional desenvolvimentismo. Entusiasta de investimentos estrangeiros, mas pretensiosamente nacionalista, a política interna e externa brasileira entre 1964-1985 teve desconectividades, que vão desde alianças bilaterais e hemisféricas até políticas multilateristas, sendo que um dos eventos elucidativos envolveu justamente a República Federal da Alemanha3 3 Trata-se da assinatura do Acordo Nuclear entre Brasil e República Federal da Alemanha, em 1975, que custou o rompimento com o Acordo Militar travado em 1952 com os Estados Unidos. . Similarmente, malgrado as ambições da VW em explorar a Amazônia pareçam nítidas, houve fantasmas a serem esquecidos, como o insucesso do projeto Fordlândia, ocorrido décadas antes também no Estado do Pará.

Outro apontamento interessante é o deslocamento promovido por Acker do processo que criou as condições para a existência de Cristalino da ditadura civil-militar, embora a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia/SUDAM, o Banco da Amazônia e a Zona Franca de Manaus remontem à década de 1960. O historiador esclarece que o projeto da VW na floresta está mais associado ao desenvolvimentismo como um tema-chave da cultura política brasileira (GOMES, 2005GOMES, Ângela de Castro. História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas reflexões. In: SOIHET, Rachel et al. Culturas políticas. Ensaios de história cultural, História política e ensino de história. Rio de Janeiro: FAPERJ / Mauad, 2005. p. 21-44.; REIS, 2014REIS, Daniel Aarão. A ditadura faz cinquenta anos: história e cultura política nacional-estadista. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs). A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro, Zahar, 2014.) capaz de lançar ecos em distintas administrações do país no século XX, do que a uma meta exclusiva da ditadura. O Brasil, mesmo antes do golpe, sustentava um debate intelectual (e, sobretudo, político) sobre qual modelo de desenvolvimento deveria ser adotado: o agrorural ou industrial. A Fazenda Cristalino é um marco da concepção que vigorou, uma espécie de mixagem dos dois ideários que orientaram a colonização de vazios demográficos, já chamados de invenção histórica (MOREIRA, 1999MOREIRA, Vânia Maria Losada. A produção histórica dos “vazios demográficos”: guerra e chacinas no vale do rio Doce (1800-1830). Dimensões: Revista de História da Ufes, v. 9, p. 99- 123, 1999. Disponível em: Disponível em: http://www.periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2307 . Acesso em: 7 jul. 2021.
http://www.periodicos.ufes.br/dimensoes/...
).

Os capítulos três e quatro, respectivamente batizados de “O desenvolvimento na era da escassez (1976-1983)” e “A modernidade fora de data: trabalho forçado em Cristalino (1983- 1986)”, narram os principais motivos que catapultaram as polêmicas e as objeções à existência de Cristalino. Aqui, o leitor conhece os episódios de repercussão midiática que antecederam o fim da fazenda, como um incêndio de grande proporção flagrado por uma estação espacial em 1976, além das graves denúncias de escravização de trabalhadores subcontratados por funcionários da VW, em 1983. Os capítulos abordam a obscuridade de um projeto que se pretendia moderno e tecnológico, mas que, paralelamente, deu continuidade a padrões de trabalho forçado no Brasil. As fontes analisadas por Antoine contrapõem uma suposta suavização de conflitos à medida que o período democrático se aproximava.

Por último, “O fim infeliz do Cristalino” narra como a fazenda, aproximadamente uma década depois de sua inauguração, foi vendida em 1987 para uma família de origem japonesa produtora de algodão, os Matsubaras. Esse capítulo mostra, sem embargo, valioso rigor historiográfico. Não há naturalização entre causa e consequência ou sentido moral dirigido às ações da VW que permita afirmar que o projeto acabou devido aos danos cometidos, o que afasta o livro de Antoine de recortes sensacionalistas feitos pela imprensa sobre o assunto4 4 Ver, por exemplo: BRASIL DE FATO. Ditadura e Volkswagen promoveram "maior incêndio da história” na Amazônia. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/08/21/ditadura-e-volkswagen-promoveram-o-maior-incendio-da-historia-nos-anos-1970/. Acesso em: 7 jul. 2021. . No lugar disso, é oferecida uma narrativa histórica baseada em uma reconstituição temporal travada entre espaços de experiências e horizontes de expectativas - admitindo-se que o projeto da VW foi encerrado, mas que isso não se converteu imediatamente em ruptura ou redenção. Conforme comentou o autor: “Para piorar a situação, a venda do rancho não significou que os problemas estavam por trás da VW, pois o caso da “escravidão” continuou por alguns anos [...]”5 5 No original: “To make matters worse, the sale of the ranch did not mean that problems were behind VW, as the “slavery” affair continued for a couple of years [...]”. (Tradução da autora). (ACKER, 2014ACKER, Antoine; KALTMEIER, Olaf; TITTOR, Anne. The Social Production of Nature Between Coloniality and Capitalism (Introduction). Forum for InterAmerican Research, v. 9, n. 2, p. 5-24, 2016., p. 270).

Seguindo o recorte privilegiado nesta resenha, é evidente que a obra traz proveitos categóricos para o estado da arte sobre a ditadura civil-militar brasileira, contribuindo para a controvérsia sobre a chamada modernização conservadora (MOORE JR., 1975MOORE JUNIOR, B. As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1975.) na historiografia nacional. Volkswagen in the Amazon se soma a obras acadêmicas autorais e coletivas lançadas na década passada, marcada por um aquecimento no mercado editorial por conta dos 50 anos do golpe. São exemplos, entre tantos, àquelas lançadas por Daniel Aarão Reis, Rodrigo Patto de Sá Motta e Marcelo Ridenti (2014REIS, Daniel Aarão. A ditadura faz cinquenta anos: história e cultura política nacional-estadista. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs). A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro, Zahar, 2014.) e Angela de Castro Gomes e Jorge Ferreira (2014FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.). O livro se destaca pelo recorte dirigido ao meio ambiente, ainda pouco celebrado mesmo em publicações renomadas e que pretendem lançar luz sobre temáticas incipientes.

É injusto e tecnicamente errado, contudo, situar a obra somente junto à historiografia sobre ditadura, pois se trata de uma pesquisa que lida com tópicos interdisciplinares. O livro é um vetor de discussão de temas que vieram a ganhar obras exclusivas, como a continuidade do autoritarismo no país (SCHWARCZ, 2019SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.) e o lugar da Amazônia no imaginário nacional ora como promotora, ora como empecilho ao desenvolvimento (VIEIRA, 2018VIEIRA, Patrícia. States of Grace: utopia in Brazilian culture. NY: Suny Press, 2018.). Já se tratando exclusivamente da história de Cristalino, a publicação se impõe como referência principal quando comparada a outras dedicadas ao assunto, cujas conclusões são bem mais simplistas (BUCLET, 2005BUCLET, Benjamin. Entre tecnologia e escravidão: a aventura da Volkswagen na Amazônia. Revista do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-Rio: dossiê “O social em questão”, n. 13, 2005.).

O ineditismo é identificado, destarte, tanto no tema quanto na perspectiva priorizada. Um dos méritos do livro é o cruzamento de enfoques fundamentados na história ambiental e na história global. O reforço do mito da natureza intocada e virginal - um recorte de gênero, aliás -, foi recusado. Antoine clarifica que Cristalino faz parte da (re)integração da Amazônia no capitalismo global e não consistiu em uma tremenda novidade, dialogando com clássicos como a obra de Fernando Henrique Cardoso e Geraldo Müller (1977CARDOSO, Fernando Henrique; MÜLLER, Geraldo. Amazônia: expansão do capitalismo. Editora Brasiliense, 1977.). O autor, nesse sentido, está aproximado de pesquisadores brasileiros e estrangeiros que buscam ver objetos na história ambiental fora do signo da destruição (CABRAL, 2014CABRAL, Diogo de Carvalho. Na Presença da Floresta: Mata Atlântica e História Colonial Rio de Janeiro: Garamond/FAPERJ, 2014.) e do declesionismo (CORONA, 2009CORONA, Gabriella. On Nature and Power: Interview with Joachim Radkau. Global Environment, n. 3, p. 262-277, 2009.) e que promovem estudos sobre o Antropoceno desde uma perspectiva latino-americana, a exemplo de publicações correlatas de sua própria autoria (ACKER et al, 2016ACKER, Antoine; KALTMEIER, Olaf; TITTOR, Anne. The Social Production of Nature Between Coloniality and Capitalism (Introduction). Forum for InterAmerican Research, v. 9, n. 2, p. 5-24, 2016.).

No que diz respeito à história global, o conhecimento do autor sobre bibliografias e fontes estrangeiras foi um potencializador dessa abordagem - que assim é chamada pelo esforço de construção de uma arquitetura narrativa múltipla entre espaços e atores (MIDDELL; NAUMANN, 2010MIDDELL, Matthias; NAUMANN, Katja. Global History and the Spatial Turn: from the Impact of Area Studies to the Study of Critical Junctures of Globalization. Journal of Global History, v. 5, n. 1, 2010.). Ele tampouco está solitário nessa empreitada: a história global, que cada vez mais ganha terreno no Brasil, tenta ver papéis além dos Estados, dos países e das estruturas, percebendo redes transnacionais de circulação de ideias, a exemplo do que é encontrado no livro quanto à articulação do movimento ambientalista.

Finalmente, é preciso ressaltar que como outras obras elaboradas a partir do olhar estrangeiro e/ou por brasilianistas, o livro de Acker traz consigo frescor, mas acompanhado de polêmica. Ao não sumarizar a ditadura e priorizar as bases globais do projeto da CVRC, o pesquisador perde pontos perante o público ávido por uma responsabilização direta e nominada dos danos causados à sociedade brasileira pela ditadura. O lançamento da obra ocorreu em momento cabal do Brasil contemporâneo: pouco depois do impeachment de Dilma Rousseff, ocorrido em agosto de 2016, e antes da eleição de Jair Messias Bolsonaro, em outubro de 2018.

O leitor, todavia, deve evitar se deixar levar por qualquer impressão precipitada: a obra não só traz perspectivas sobre a ditadura como viu transcender o seu significado historiográfico devido às ações de reparação do Estado sobre o tema. Em 2015, a VW esteve no centro de um escândalo que publicizou a cooperação da empresa com a ditadura civil-militar, de acordo com denúncias feitas pela Comissão Nacional da Verdade e por sindicatos. Em setembro de 2020, a empresa se comprometeu a indenizar ex-funcionários e a destinar verba para a promoção do direito à memória da ditadura6 6 O episódio teve forte repercussão, tanto na imprensa brasileira quanto na alemã. Ver, por exemplo: DW Brasil. Relatório confirma colaboração ativa da Volks com ditadura no Brasil. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/relatório-confirma-colaboração-ativa-da-volks-com-ditadura-no-brasil/a-41399342. Acesso em: 3 ago. 2021. . Antes disso, curiosamente foi lançado um relatório custeado e publicado pela própria editora da multinacional intitulado “A VW do Brasil durante a ditadura militar brasileira, 1964-1985: uma abordagem histórica” (KOPPER, 2017KOPPER, Christopher. A VW do Brasil durante a ditadura militar brasileira 1964-1985: uma abordagem histórica. Wolfsburg: Volkswagen Aktiengesellschaft, 2017.), que levanta desconfianças no quadro das disputas de narrativa sobre o tema, visto que o diálogo com a historiografia é claramente evitado.

Dessa forma, o livro de Acker traz aportes de decisivo valor historiográfico, mas, também, político. Para se dar conta disso, a questão conceitual e o pouco alarde creditado nos títulos dos capítulos à ditadura precisarão ser superados. É inegável, portanto, que a obra Volkswagen in the Amazon mereça uma versão em língua portuguesa acompanhada de uma introdução atualizada e um prefácio assinado preferencialmente por um historiador brasileiro. Tal edição tenderia a contribuir com os debates públicos (e urgentes) no país sobre a expansão do agronegócio associado à tecnologia e seus prejuízos às comunidades indígenas, os usos da floresta amazônica e algumas das heranças malditas da ditadura civil-militar. O paraíso, nesses termos, não foi perdido, pois nunca existiu: seja como local de disputa na geopolítica, como o inferno verde imaginado ou como terreno para o desenvolvimentismo autoritário, a Amazônia de Acker se une às pesquisas recentes que tendem a desconstruir ideias românticas sobre a floresta sem cair em relativismos ou abandonar pactos sociais para com a promoção da democracia, ponto comum entre as melhores obras da historiografia.

Referências

  • ACKER, Antoine. Volkswagen in the Amazon: the tragedy of global development in Modern Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2017.
  • ACKER, Antoine; KALTMEIER, Olaf; TITTOR, Anne. The Social Production of Nature Between Coloniality and Capitalism (Introduction). Forum for InterAmerican Research, v. 9, n. 2, p. 5-24, 2016.
  • BEZERRA DE MELO, Demian. Ditadura “civil-militar”? Controvérsias historiográficas sobre o processo político brasileiro no pós-1964 e os desafios do tempo presente. Espaço Plural, v. XIII, n. 27, 2012.
  • BRASIL DE FATO. Ditadura e Volkswagen promoveram “maior incêndio da história” na Amazônia Disponível em:Disponível em:https://www.brasildefato.com.br/2019/08/21/ditadura-e-volkswagen-promoveram-o-maior-incendio-da-historia-nos-anos-1970/ Acesso em: 7 jul. 2021.
    » https://www.brasildefato.com.br/2019/08/21/ditadura-e-volkswagen-promoveram-o-maior-incendio-da-historia-nos-anos-1970/
  • BUCLET, Benjamin. Entre tecnologia e escravidão: a aventura da Volkswagen na Amazônia. Revista do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC-Rio: dossiê “O social em questão”, n. 13, 2005.
  • CABRAL, Diogo de Carvalho. Na Presença da Floresta: Mata Atlântica e História Colonial Rio de Janeiro: Garamond/FAPERJ, 2014.
  • CARDOSO, Fernando Henrique; MÜLLER, Geraldo. Amazônia: expansão do capitalismo. Editora Brasiliense, 1977.
  • CORONA, Gabriella. On Nature and Power: Interview with Joachim Radkau. Global Environment, n. 3, p. 262-277, 2009.
  • DW BRASIL. Relatório confirma colaboração ativa da Volks com ditadura no Brasil Disponível em: Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/relatório-confirma-colaboração-ativa-da-volks-com-ditadura-no-brasil/a-41399342 Acesso em: 3 ago. 2021.
    » https://www.dw.com/pt-br/relatório-confirma-colaboração-ativa-da-volks-com-ditadura-no-brasil/a-41399342
  • EPPLE, Angelika. The global, the transnational and the subaltern: The limits of history beyond the national paradigm. In: AMELINA, A.; NERGIZ, D. D.; FAIST, T.; SCHILLER, N. G. (orgs.). Beyond methodological nationalism: research methodologies for cross-border studies. New York: Routledge, 2012. p. 155-175.
  • FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
  • GOMES, Ângela de Castro. História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas reflexões. In: SOIHET, Rachel et al Culturas políticas. Ensaios de história cultural, História política e ensino de história. Rio de Janeiro: FAPERJ / Mauad, 2005. p. 21-44.
  • KOPPER, Christopher. A VW do Brasil durante a ditadura militar brasileira 1964-1985: uma abordagem histórica. Wolfsburg: Volkswagen Aktiengesellschaft, 2017.
  • MIDDELL, Matthias; NAUMANN, Katja. Global History and the Spatial Turn: from the Impact of Area Studies to the Study of Critical Junctures of Globalization. Journal of Global History, v. 5, n. 1, 2010.
  • MOORE JUNIOR, B. As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1975.
  • MOREIRA, Vânia Maria Losada. A produção histórica dos “vazios demográficos”: guerra e chacinas no vale do rio Doce (1800-1830). Dimensões: Revista de História da Ufes, v. 9, p. 99- 123, 1999. Disponível em: Disponível em: http://www.periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2307 Acesso em: 7 jul. 2021.
    » http://www.periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/2307
  • REIS, Daniel Aarão. A ditadura faz cinquenta anos: história e cultura política nacional-estadista. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs). A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro, Zahar, 2014.
  • SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • VIEIRA, Patrícia. States of Grace: utopia in Brazilian culture. NY: Suny Press, 2018.
  • 1
    Para acessar um texto-síntese que aborda tal problemática, consulte: Bezerra de Melo (2012).
  • 2
    Títulos originais no livro: 1) Setting the Stage: The Amazon as a Horizon, 2) The Making of a Model Ranch (1973-1976), 3) Development in the Age of Scarcity (1976-1983), 4) Out-of-Date Modernity: Forced Labor at Cristalino (1983-1986), 5) Cristalino’s Unhappy Ending (tradução da autora).
  • 3
    Trata-se da assinatura do Acordo Nuclear entre Brasil e República Federal da Alemanha, em 1975, que custou o rompimento com o Acordo Militar travado em 1952 com os Estados Unidos.
  • 4
    Ver, por exemplo: BRASIL DE FATO. Ditadura e Volkswagen promoveram "maior incêndio da história” na Amazônia. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/08/21/ditadura-e-volkswagen-promoveram-o-maior-incendio-da-historia-nos-anos-1970/. Acesso em: 7 jul. 2021.
  • 5
    No original: “To make matters worse, the sale of the ranch did not mean that problems were behind VW, as the “slavery” affair continued for a couple of years [...]”. (Tradução da autora).
  • 6
    O episódio teve forte repercussão, tanto na imprensa brasileira quanto na alemã. Ver, por exemplo: DW Brasil. Relatório confirma colaboração ativa da Volks com ditadura no Brasil. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/relatório-confirma-colaboração-ativa-da-volks-com-ditadura-no-brasil/a-41399342. Acesso em: 3 ago. 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    23 Set 2021
  • Aceito
    26 Nov 2021
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