Acessibilidade / Reportar erro

“Sr. Critico” José Veríssimo (1857-1916): a metonímia e a fortuna crítica (1916-1974)

“Mr. Critico” José Veríssimo (1857-1916): Metonymy and Critical Fortune (1916-1974)

“Sr. Crítico” José Veríssimo (1857-1916): la metonimia y la fortuna crítica (1916-1974)

RESUMO

Realiza-se neste trabalho a análise do lugar assumido pela obra de José Veríssimo no pensamento brasileiro enquanto representante da crítica e história literária produzida no final do século XIX e início do XX, por meio de diferentes leituras sobre sua vida, obra e personalidade. Por contraste, são abordadas as apreciações realizadas por essas leituras a respeito da sua atuação educacional e estudos sobre Amazônia. Com uma abordagem teórica da história e crítica literária, o artigo examina a trajetória da fortuna crítica que escrutinou a produção intelectual de José Veríssimo no transcorrer do século XX, dos folhetins de jornais à tese universitária. Desse conjunto de leituras emergiu, de uma trajetória intelectual marcada pela diversidade de temáticas, enciclopédica em abordagens e erudita em conhecimentos, a imagem do “Sr. Critico”: uma metonímia que destacou o crítico/historiador literário em detrimento do polígrafo intelectual oitocentista.

Palavras-chave
José Veríssimo; trajetória intelectual; consagração literária; história e crítica literária; fortuna crítica

ABSTRACT

This article analyzes different texts covering José Veríssimo’s life, work and personality to assess the author’s place in Brazilian thought as representative of the critical and literary history produced in the late 19th and early 20th centuries as well as his educational performance and Amazonian studies. With a theoretical approach to history and literary criticism, the article examines the trajectory of the critical fortune that scrutinized José Veríssimo’s intellectual production throughout the 20th century, from newspaper serials to his university thesis. From this intellectual trajectory marked by thematic diversity, an encyclopedic approach, and scholarly knowledge, there emerged the image of “Mr. Critico”: a metonymy that highlighted the literary critic/historian over the nineteenth-century intellectual polygrapher.

Keywords
José Veríssimo; Intellectual Trajectory; Literary Consecration; History and Literary Criticism; Critical Fortune

RESUMEN

En este trabajo se realiza el análisis del lugar asumido por la obra de José Veríssimo, por medio de diferentes lecturas de su vida, obra y personalidad, en el pensamiento brasileño en cuanto representante de la crítica e historia literaria producida a finales del siglo XIX e inicios del XX. Por contraste, se abordan las apreciaciones realizadas por esas lecturas con respecto de su actuación educacional y estudios sobre la Amazonía. Con un abordaje teórico de la historia y crítica literaria, el artículo examina la trayectoria intelectual de José Veríssimo en el transcurrir del siglo XX, desde los folletos y periódicos, hasta la tesis universitaria. De este conjunto de lecturas surgió, de una trayectoria intelectual marcada por la diversidad temáticas, enciclopédicas en enfoques eruditos en conocimientos, la imagen del “Sr. Crítico”: una metonimia que destacó el crítico/historiador literario en detrimento del polígrafo intelectual decimonónico.

Palabras Clave
José Veríssimo; trayectoria intelectual; consagración literaria; Historia y crítica literaria; fortuna crítica

Introdução

A crítica literária brasileira foi uma das modalidades de manifestação do pensamento social e, ao mesmo tempo, de estruturação do campo literário no Brasil, no final do século XIX até meados do século XX. Ao analisar os últimos lançamentos literários no rodapé dos jornais, a crítica literária consistia em uma esfera de circulação entre produtores (escritores e editoras) e consumidores (leitores) de bens simbólicos (JONHSON, 1995). Essa atividade de difusão contribuiu para a emergência do campo literário brasileiro – sobretudo, com a fundação das universidades e o advento da crítica universitária –, em razão de sua natureza intrinsecamente consagradora na seleção dos critérios de julgamento e dos conceitos estéticos associados à atividade literária. A fortuna crítica permitiu a construção do conhecimento, bem como a produção de imagens, sobre a literatura brasileira ao selecionar os principais movimentos, as obras mais importantes, os críticos memoráveis e os escritores consagrados, e incorporá-los na formação do cânone literário nacional (SÜSSEKIND, 2002SÜSSEKIND, Flora. Rodapés, tratados e ensaios: a formação da crítica literária brasileira moderna. In: SÜSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2002. p. 15-36.).

A trajetória intelectual de José Veríssimo foi objeto de uma fortuna crítica apaixonada, fosse para exaltá-lo, fosse para detratá-lo. No seio dos defensores, Veríssimo era um dos maiores críticos literários de seu tempo, por sua independência, honestidade e imparcialidade. Seus estudos demonstrariam domínio artístico e científico, comparável a grandes críticos franceses de então, como Sainte-Beuve e Brunetière, e um caráter bastante distinto das obras de Silvio Romero e Araripe Júnior, seus contemporâneos. Entre seus desafetos, o autor de Estudos brasileiros não passava de um crítico parcial e arrogante, sem qualquer sensibilidade poética, com uma escrita rebuscada e por vezes incompreensível, cujos trabalhos se distinguiam pela falta de cultura artística e filosófica, pois confundia moralismo sobre os costumes literários de seu tempo com análise literária e narrativa histórica; em suma, um Sainte-Beuve peixe-boi, um crítico das tartarugas (VENTURA, 1991VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.). Portanto, várias imagens opostas e antagônicas foram projetadas sobre seu itinerário intelectual, transcorrido na transição entre os séculos XIX e XX, e localizado entre o Pará e o Rio de Janeiro.

Nesse sentido, o presente artigo investiga o lugar assumido pela obra de José Veríssimo, por meio de diferentes leituras sobre sua vida, obra e personalidade, no pensamento brasileiro enquanto representante da crítica e da história literária produzida no final do século XIX e início do XX – assim como, por contraste, as apreciações realizadas por essas leituras a respeito de sua atuação educacional e estudos sobre a Amazônia. Tais leituras, por sua vez, lançaram luzes e sombras sobre a trajetória intelectual de José Veríssimo entre o Pará e o Rio de Janeiro. No Quadro 1, os dados biobibliográficos são organizados para auxiliar na compreensão da trajetória intelectual e profissional de José Veríssimo.

Quadro 1
Dados biobibliográficos de José Veríssimo

Do ponto de vista do estatuto da crítica literária entre 1916 e 1974, observou-se uma transição nos modelos teóricos que orientavam a escrita dos estudos literários ao passar do rodapé literário do jornal às teses e dissertações do ambiente universitário. Nesse processo de mudança, determinados “cânones” ou “clássicos” da crítica literária brasileira eram evocados, como foi o caso de José Veríssimo, para elogiar ou para criticar à luz da fundamentação/corrente teórica que se estava querendo detratar ou defender. Assim, argumenta-se que as imagens produzidas sobre o conjunto da obra polígrafa de José Veríssimo, privilegiando, sobretudo, seus estudos de história e crítica literária, contribuíram para a emergência da metonímia do “Sr. Critico”, uma vez que foram analisados conforme as lentes teóricas dos estudiosos nesse contexto de transição da crítica militante de rodapé de jornal para a crítica científica na universidade (JONHSON, 1995; SÜSSEKIND, 2002SÜSSEKIND, Flora. Rodapés, tratados e ensaios: a formação da crítica literária brasileira moderna. In: SÜSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2002. p. 15-36.).

O artigo foi organizado em quatro partes. A primeira consiste nas leituras elaboradas antes e depois da morte de Veríssimo, em 1916. Já a segunda analisa a biografia escrita por Francisco Prisco, de 1937PRISCO, Francisco. José Verissimo: sua vida e suas obras. Rio de Janeiro: Brigueit, 1937., que representou uma defesa da figura humana e intelectual de José Veríssimo. A terceira seleciona as análises formuladas no contexto da comemoração do centenário de nascimento, em 1957, na qual houve uma celebração do seu legado e memória. Por fim, a quarta parte apresenta o exame crítico da obra de João Alexandre Barbosa, de 1974, que produziu a canonização dessas imagens como tese universitária.

Os contemporâneos (1916)

A transição do século XIX para o século XX, do ponto de vista da crítica literária, foi marcada pela passagem da crítica naturalista à crítica impressionista, cujos representantes, respectivamente, eram Silvio Romero e José Veríssimo. Nessa passagem, debatia-se dois conceitos de literatura que deveriam, em última instância, orientar o estatuto da crítica literária. A crítica naturalista defendia uma concepção ampla de literatura baseada no critério “nacionalístico”; todas as atividades intelectuais e seus respectivos registros escritos – da crônica aos relatórios de presidente de província – serviriam à construção da nacionalidade. Por sua vez, a crítica impressionista pautava-se por um conceito restrito de literatura, que buscava selecionar o texto literário por suas características estilísticas de composição estética, o critério consistia na beleza do texto escrito e na capacidade imaginativa da linguagem literária (VENTURA, 1991VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.).

Essas duas vertentes de crítica literária coexistiram nos rodapés dos jornais brasileiros. A crítica de rodapé distinguia-se por ser uma atividade não especializada, geralmente exercida por homens de letras autodidatas ou bacharéis, cujo principal meio de expressão eram os jornais. Süssekind (2002, p. 17-18)SÜSSEKIND, Flora. Rodapés, tratados e ensaios: a formação da crítica literária brasileira moderna. In: SÜSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2002. p. 15-36. identificou três características formais nesse tipo de atividade intelectual: a) ocupava o intervalo entre a crônica e o noticiário, cuja exigência baseava-se na eloquência para convencer o grande público e na adaptação ao ritmo industrial de publicação semanal; b) desempenhava uma função publicitária de difusão de informação constante, que, não raras vezes, envolvia-se em polêmicas e buscava formar a opinião do seu público leitor; e c) organizava um estreito circuito com o mercado editorial ao veicular os últimos livros publicados e influenciar diretamente o consumo do público leitor.

Nesse momento de transição, os jornais brasileiros assumiam posição política e cultural com notícias de caráter opinativo, guardando estreitas semelhanças com o jornalismo francês de então; essas características jornalísticas admitiam que na crítica de rodapé predominasse a vertente impressionista e, não por acaso, tinham como referência críticos literários franceses, como Sainte-Beuve e Brunetière (SÜSSEKIND, 2002SÜSSEKIND, Flora. Rodapés, tratados e ensaios: a formação da crítica literária brasileira moderna. In: SÜSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2002. p. 15-36.; VENTURA, 1991VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.). Antonio Salles, Carlos Magalhães de Azeredo, Silvio Romero e Arthur Motta foram contemporâneos de José Veríssimo, exerceram o ofício de críticos de rodapé e, com suas considerações sobre o trabalho intelectual de Veríssimo, contribuíram para a construção da imagem de José Veríssimo enquanto crítico e historiador da literatura brasileira radicado no Rio de Janeiro.

Em 1897, na Revista Brazileira, sob o título “Os nossos academicos”, Antonio Salles realizou a apresentação da vida e da obra dos quarenta membros da primeira instituição nacional dedicada às letras e à língua pátria: a Academia Brasileira de Letras. É interessante observar a exposição da carreira de José Veríssimo, diretor da revista, desde 1895, por ser representativa da projeção de imagens sobre sua vida, obra e personalidade. No tribunal da crítica literária, Silvio Romero ocupara por vezes a cadeira de acusador e de advogado, raramente a de juiz (SALLES, 1897, p. 145SALLES, Alberto. Nossos academicos. Revista Brazileira, ano 3, t. 10, p. 140-150, 1897.). Nesse tribunal, segundo Salles, o papel de juiz era desempenhado com probidade e independência por José Veríssimo: “A sua franqueza, sempre igual para todos, tem sido interpretada como severidade systematica por aquelles que pelo seu excessivo melindre são levados a enxergar pessimismo preconcebido onde só ha probidade e independencia” (SALLES, 1897, p. 146, grifos meusSALLES, Alberto. Nossos academicos. Revista Brazileira, ano 3, t. 10, p. 140-150, 1897.).

Com essa credencial, Salles passou em revista as atividades e as obras publicadas por Veríssimo no Pará e no Rio de Janeiro, nas quais era possível notar que “o educacionista, o ethologo e o critico estão intimamente ligados na individualidade do Sr. José Verissimo” (SALLES, 1897, p. 146, grifos meusSALLES, Alberto. Nossos academicos. Revista Brazileira, ano 3, t. 10, p. 140-150, 1897.). As imagens de educacionista, ethologo e critico evocadas por Antonio Salles foram relevantes – sobretudo, a de juiz independente e probo – porque, provavelmente, passaram pela chancela de José Veríssimo. Foram imagens autorizadas sobre a carreira intelectual do diretor da revista. A apresentação de Salles apontou pressupostos na produção de uma longeva metonímia: das miríades de interesses sociais, políticos e literários do intelectual polígrafo e de conhecimentos enciclopédicos, destacou-se o juiz independente e probo no tribunal da crítica. Essa imagem surgiu das páginas da Revista Brazileira; foi desse lugar que Antonio Salles qualificou a atividade intelectual de José Veríssimo no momento da inauguração da Academia Brasileira de Letras.

A segunda edição de Cenas da vida amazônica foi publicada em 1899, pela editora Garnier, e Carlos Magalhães de Azeredo resenhou-a no Homens e livros, de 1902. Nessa leitura, Veríssimo convertera-se de escritor de ficção em crítico literário, cumprindo assim uma missão diante de um contexto marcado pela falta de críticos dedicados ao ofício. Cenas era uma obra da juventude vivida no Pará, na qual retratava, com qualidades singulares de escritor, aquele ambiente exuberante em natureza e exótico em gentes, distante e estranho. Entre os contemporâneos de Veríssimo, Carlos Magalhães de Azeredo (1902)AZEREDO, Carlos Magalhães de. Homens e livros. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1902. foi o primeiro a assinalar a notoriedade como crítico literário em termos de missão. Neste caso, Cenas era um trabalho de mocidade, cujas características ficcionais não perduraram na carreira do escritor; assim como a temática amazônica, dedicado que estava Veríssimo, no presente da escrita de Azeredo (1902)AZEREDO, Carlos Magalhães de. Homens e livros. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1902., à crítica literária e à literatura brasileira.

José Veríssimo também foi alvo de censuras tecidas pela pena de Silvio Romero. Iniciada em 1906, no Compêndio de história da literatura brasileira, escrita junto com João Ribeiro, e finalizada em 1909, no Zeverissimações ineptas da crítica. Na polêmica com Veríssimo, havia antecedentes e reverberações de uma polêmica anterior, movida contra Machado de Assis. Na verdade, ambas consistiram, por diferentes formas de argumentação literária e ofensas pessoais, na defesa do projeto crítico de Silvio Romero – o critério “nacionalístico” –, ao qual Machado e Veríssimo haviam incorrido na insolência de se oporem com seus trabalhos literário e crítico. Os romances do escritor fluminense não contribuíram para a formação da nacionalidade e as apreciações críticas do intelectual paraense não avaliavam para conhecer a pátria (VENTURA, 1991VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.).

Entre Silvio Romero e José Veríssimo ocorria uma divergência entre projeto de história literária e linguagem crítica. Até 1894, Veríssimo e Romero compartilhavam os pressupostos da crítica naturalista; no entanto, o primeiro inclinou-se para a crítica impressionista. Na publicação da segunda edição de História da literatura brasileira, de Silvio Romero, em 1902, Veríssimo escreveu uma resenha crítica – inclusa no Estudos de literatura brasileira – congratulando a obra como um grande acontecimento literário, em razão de sua abordagem sociológica da literatura, e tecendo apontamentos críticos sobre o conceito amplo de literatura, a inexatidão da periodização literária, a falta de imparcialidade e os marcos de origens da história literária. Neste último aspecto, sublinha Ventura (1991)VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991., residia o maior ponto de desavença. Ao ponderar que Francisco Adolfo de Varnhagen, na introdução ao Florilégio da poesia brasileira, de 1850, inaugurava uma tradição de escrita da história literária, segundo Veríssimo, vinculando as demais produções posteriores de Ferdinand Wolf, Norberto Silva, Fernandes Pinheiro e Silvio Romero (VENTURA, 1991VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.).

Ao considerar as críticas improcedentes, Silvio Romero contestou-as no Compêndio (1906)ROMERO, Silvio; RIBEIRO, João. Compêndio de história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Alves, 1906.. Com a sua História, o intelectual sergipano reivindicava o lugar de fundador da moderna história literária no Brasil, ao reputar a si próprio a condição de introdutor do critério etnográfico e da teoria da mestiçagem, do estudo da poesia popular e da inclusão de todos os gêneros/autores/obras na história literária brasileira. Por essa razão, Romero avaliava que a introdução de Varnhagen, além de não atender a esses atributos, era incipiente em termos de caráter filosófico e critérios sistemáticos na abordagem da história literária. José Veríssimo conferia as inovações evocadas por Romero ao ensaio de Varnhagen; em resposta às objeções de Romero, Veríssimo redigiu o capítulo “Sobre alguns conceitos do sr. Silvio Romero”, do Que é literatura?, de 1907. Tais questões de prioridade e precedência eram fundamentais para a concepção evolucionista de Romero, pois a representatividade de autor/obra dependia da sua ordem de inserção na evolução cultural brasileira. A primeira edição da História de Romero era de 1888, enquanto o ensaio de Varnhagen datava de 1850. Portanto, para ser fundador era necessário desqualificar o trabalho de Varnhagen em favor do seu, supostamente o marco fundador da moderna história literária no Brasil.

Em 18 de dezembro de 1906, Silvio Romero proferiu o discurso de recepção de Euclides da Cunha, na Academia Brasileira de Letras. Euclides cumpriu as formalidades da consagração, tecendo elogios a Valentim Magalhães e Castro Alves, respectivamente o antecessor e o patrono da cadeira. Romero, fugindo à praxe, teceu críticas a Valentim Magalhães, Castro Alves, ao governo, aos anarquistas etc. Nelas, reafirmava o valor e superioridade da obra de Tobias Barreto, que havia sido obscurecida em favor de Castro Alves por uma “crítica de arribação”. José Veríssimo percebeu a indireta e considerou a crítica uma ofensa pessoal ao colocar em questão a sua probidade literária, cuja resposta foi publicada no “Post scriptum” presente em Que é literatura? (VENTURA, 1991VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.). Por suas diferenças de linguagem crítica, nos embates entre a crítica naturalista e o impressionismo crítico, Romero escreveu Zeverissimações ineptas da crítica, de 1909ROMERO, Silvio. Zeverissimações ineptas da crítica: repulsas e desabafos. Porto: Oficinas do Comércio do Porto, 1909.. Do ponto de vista literário, a crítica de Veríssimo era totalmente destituída dos conhecimentos indispensáveis das disciplinas científicas, da erudição literária e da especulação filosófica; do ponto de vista pessoal, as críticas de Romero transformavam-se em ofensas, ao chamá-lo de “Sainte-Beuve peixe-boi” e “crítico das tartarugas” (VENTURA, 1991VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.).

Novamente, no âmbito da Academia Brasileira de Letras, a vida e a obra de José Veríssimo foram abordadas no Perfis Academicos da cadeira nº 18 – fundada por José Veríssimo –, realizado por Arthur Motta na Revista da Academia Brasileira de Letras, de março de 1930. O perfil de Arthur Motta pautou-se por uma leitura similar à de Carlos Magalhães de Azeredo (1902)AZEREDO, Carlos Magalhães de. Homens e livros. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1902.: a busca da gênese do crítico literário na trajetória intelectual de Veríssimo. Embora Cenas da vida amazônica fosse um excelente livro de ficção, para Motta, José Veríssimo estava explorando um gênero estranho às suas aptidões para a crítica literária. Os seis volumes de Estudos de literatura brazileira – publicados entre 1901 e 1907 – representaram a afirmação de Veríssimo como crítico autorizado e respeitado, constituindo a melhor parte de sua obra. Esses estudos revelaram a sua evolução como crítico e o alargamento de sua capacidade de julgamento estético, apurando sua cultura científica e filosófica, ao apresentar um programa da nacionalidade brasileira.

Arthur Motta (1930)MOTTA, Arthur. Perfis academicos, cadeira 18, José Veríssimo. Revista da Academia Brazileira de Letras, ano 21, v. 32, n. 97, p. 9-27, jan. 1930. sintetizava vários elementos que foram levantados pelas leituras anteriores sobre a obra de José Veríssimo, acentuando como um traço fundamental a emergência da imagem de crítico literário: fosse para elogiá-lo, fosse para detratá-lo, houve a preocupação de demarcar a gênese e estabelecer a missão do “Sr. Critico”. Tal operação tornava caudatárias outras dimensões de sua obra, como aquelas dedicadas à educação e à Amazônia. Entre os contemporâneos, alguns apresentaram maior ou menor conhecimento sobre fatos da vida de José Veríssimo que auxiliam na leitura de seus estudos. Lançar luz sobre a vida de Veríssimo, considero, representou a distinção da biografia Jose Verissimo: sua vida e suas obras, de Francisco Prisco, de 1937PRISCO, Francisco. José Verissimo: sua vida e suas obras. Rio de Janeiro: Brigueit, 1937..

José Verissimo: sua vida e suas obras (1937)

O campo literário brasileiro estruturou-se entre 1930 e 1945, em função da organização de um circuito produtivo de bens simbólicos, conectando diretamente mecanismos de produção, circulação e consagração. Nesse circuito, a crítica literária desempenhou um papel fundamental de reconhecimento e consagração. Ao exercer essa atividade consagradora, pautada nos protocolos do próprio meio literário, ficava demonstrada a constituição da autonomia do campo literário das injunções e dos constrangimentos externos, principalmente do campo político (JOHNSON, 1995JOHNSON, Randal. A dinâmica do campo literário brasileiro. Revista USP, São Paulo, n. 26, p. 164-181, 1995.).

No entanto, tratando-se do caso brasileiro, sob os auspícios do Estado Novo, com forte presença dos aparatos estatais no financiamento, planejamento e censura das atividades culturais, essa autonomia era cambiante e ambivalente. A crítica literária, nesse contexto, ao mesmo tempo que procurava consagrar os escritores e os críticos vivos, também fazia investimentos no reconhecimento dos escritores e dos críticos mortos. A crítica impressionista do rodapé dos jornais predominava, embora começasse a receber críticas mais sistemáticas da emergente crítica universitária (JOHNSON, 1995JOHNSON, Randal. A dinâmica do campo literário brasileiro. Revista USP, São Paulo, n. 26, p. 164-181, 1995.; RAMASSOTE, 2011RAMASSOTE, Rodrigo Martins. Inquietudes da crítica literária militante de Antonio Candido. Tempo Social, São Paulo, v. 23, n. 2, p. 41-70, 2011.; SÜSSEKIND, 2002SÜSSEKIND, Flora. Rodapés, tratados e ensaios: a formação da crítica literária brasileira moderna. In: SÜSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2002. p. 15-36.). José Veríssimo era o grande representante da crítica impressionista e, nesse contexto de crescente contestação, Francisco Prisco escreveu uma biografia que, ao retomar a tradição de escrita biográfica do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), defendia seu legado crítico.

José Verissimo: sua vida e suas obras significou uma inflexão na fortuna crítica sobre o intelectual paraense ao dialogar com parte considerável de seus contemporâneos e compor uma imagem da trajetória e obra de José Veríssimo. Sua contribuição foi construir uma narrativa sobre os principais acontecimentos da vida de José Veríssimo e suas respectivas produções intelectuais, utilizando, para isso, as categorias de destino e vocação: o “Sr. Critico” seria o ápice de uma carreira intelectual, cujas primeiras manifestações no Pará apenas precipitariam sua inclinação definitiva como grande estudioso da literatura brasileira no Rio de Janeiro. A metonímia do “Sr. Critico” era agraciada com um estudo biográfico. Francisco Prisco procurou, à luz dos acontecimentos biográficos, investigar a psicologia do autor: a obra copiosa e rigorosa como desdobramento direto da personalidade independente e honesta.

Isso ficou evidenciado na abordagem de Francisco Prisco sobre as obras de Veríssimo produzidas no Pará e no Rio de Janeiro em relação à Amazônia. Primeiras páginas e Cenas da vida amazônica, ambas do contexto paraense, foram consideradas “produções da juventude” (PRISCO, 1937, p. 14PRISCO, Francisco. José Verissimo: sua vida e suas obras. Rio de Janeiro: Brigueit, 1937.). Em Primeiras páginas, de 1878, observava “os inevitáveis defeitos dum trabalho de estréa”, ao passo que sublinhava “o homem destinado á sedutora convivencia com os livros” (PRISCO, 1937, p. 12-13, grifo meuPRISCO, Francisco. José Verissimo: sua vida e suas obras. Rio de Janeiro: Brigueit, 1937.). Embora essa mesma obra tenha “só o merito da prioridade que, como se sabe, é em letras muito relativo. É apenas, como dizem os bibliographos, um cimelio, uma raridade bibliographica” (PRISCO, 1937, p. 14-15, grifos meuPRISCO, Francisco. José Verissimo: sua vida e suas obras. Rio de Janeiro: Brigueit, 1937.). Por sua vez, Cenas da vida amazônica, de 1886, recebeu uma apreciação um pouco mais entusiasmada de Francisco Prisco ao considerá-la uma das primeiras manifestações do naturalismo no Brasil. Neste volume de contos, para aqueles estudiosos das coisas brasileiras, havia o valor documental da beleza descritiva do narrador e a exatidão e honestidade do observador da realidade amazônica: tal documento literário reproduziu José Veríssimo, “através do seu temperamento, o que viu e sentiu, herdando-nos um livro de emoção forte, de arte verdadeira, de alta e nobre inspiração” (PRISCO, 1937, p. 48, grifo meuPRISCO, Francisco. José Verissimo: sua vida e suas obras. Rio de Janeiro: Brigueit, 1937.).

Aos estudos escritos no Rio de Janeiro, reservou um capítulo para resenhá-los, curiosamente chamado de “Opera minor”, que incluía A Amazônia, A pesca na Amazônia, Pará e Amazonas e Interesses da Amazônia. Tais textos empenhavam-se em publicizar a Amazônia, conforme o próprio Veríssimo, uma região tão rica e vasta e tão desconhecida. Por isso, esses breves opúsculos expunham um panorama geral da geografia, sociologia e economia da região, de modo a torná-la conhecida do grande público. Esses estudos destacavam suas potencialidades econômicas para a agricultura e a navegação fluvial; e denunciavam seus principais problemas, como a baixa densidade demográfica e a pouca diversidade da cadeia produtiva, concentrada nas atividades extrativas, sobretudo da borracha. Como é possível notar, esse esforço de divulgação não foi visto por Francisco Prisco com tanta relevância no conjunto das obras de José Veríssimo. Diferente do Cenas da vida Amazônica, considerada uma obra de juventude com seus méritos literários, esses breves estudos sobre a Amazônia foram tão somente classificados por opera minor, cuja resenha já era um relevante serviço para a posteridade.

O capítulo mais volumoso da biografia foi destinado à atividade crítica, intitulado “José Veríssimo – o crítico”. A imagem construída do “Sr. Critico” de José Veríssimo por Francisco Prisco incorporou características levantadas pelos contemporâneos: probidade intelectual, honestidade, independência e sinceridade. Comparava, por vezes, seu trabalho crítico com a austeridade da magistratura e com o desejo de orientação do professorado. Não raras vezes, também o comparou com críticos nacionais e estrangeiros. Pelas semelhanças, era o nosso Sainte-Beuve. Pela proeminência, diante de Silvio Romero e Araripe Júnior, “coube, sem contestação, o sceptro da critica literaria no Brasil” (PRISCO, 1937, p. 148, grifo meuPRISCO, Francisco. José Verissimo: sua vida e suas obras. Rio de Janeiro: Brigueit, 1937.). Das inúmeras polêmicas, geralmente Veríssimo as encarava com indiferença; porém, ressaltou Prisco, apenas uma respondeu por escrito: a de Silvio Romero, por ter atacado sua probidade literária, jamais contestada pelos seus desafetos, cuja discordância restringia-se à opinião e ao julgamento. A resposta à “crítica de arribação” foi realizada por Veríssimo no “Post scriptum”, do livro Que é literatura? Assim rebateu Veríssimo:

Mas si o discurso academico vem cheio dessa coisa odiosa e repugnante, o eu do orador, que aos elogios das personagens a quem, segundo os estylos, os deve, substitue o seu proprio panegyrico, e o peiora não com as finas e leves ironias que o genero permitte e até desafia, ou ainda com algum desabrimento de idéas ou expressões em boa forma toleraveis, mas com indirectas grosseiras, chulices de capadocio, allusões intencionalmente affrontosas e outras inconveniencias, esquecendo o orador que não falla por si, mas como orgão da Academia, falta menos a qualquer rhetorica que aos mais comesinhos preceitos de civilidade (VERÍSSIMO, 1907, p. 272-273VERÍSSIMO, José. Post scriptum. In: VERÍSSIMO, José. Que é literatura? Outros escriptos. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1907. p. 271-292.).

Tal probidade literária destacava, segundo Francisco Prisco, sua vasta cultura filosófica e científica, balizando, assim, a qualidade de seus trabalhos críticos. O talento e o engenho do autor na composição da obra literária eram alguns dos seus critérios fundamentais, embora a correção da linguagem e as questões de estilo também fizessem parte de suas apreciações. Algumas críticas foram pontuadas a respeito de sua insensibilidade para a poesia, a pouca paciência com os escritores jovens e a escrita excessivamente rebuscada (mal escrita, muitos diriam), as quais, de acordo com Prisco, eram levianas e injustas. Aliás, na conclusão levantou a questão da justiça: “Soffreu em vida a injustiça duma legião de literatos (…); já é tempo de se lhe fazer justiça, a justiça que elle esperava lhe fizessem depois de morto” (PRISCO, 1937, 187-188, grifos meusPRISCO, Francisco. José Verissimo: sua vida e suas obras. Rio de Janeiro: Brigueit, 1937.).

Tais páginas de “simples impressões”, motivadas pelo “testimunho (sic) de admiração e de saudade”, procuravam também ser uma biografia vingadora, embora bastante laudatória e condescendente. Essa expressão foi consagrada por Eça de Queiroz, ao autointitular-se um “artista vingador”, e por Euclides da Cunha ao considerar Os sertões e Paraíso perdido como “livros vingadores”; igualmente coloco o livro de Francisco Prisco na mesma tradição que, por diferentes meios e contexto, procura fazer justiça a um tema, grupo ou indivíduo. De modo similar, identifiquei que a escrita biográfica de Francisco Prisco estava associada a outra tradição: a produção biográfica do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB).

Maria da Glória de Oliveira (2011)OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a história: a biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2011. investigou as biografias publicadas na seção “Biografias de brasileiros distintos por letras, armas e virtudes” da Revista Trimestral, desde a fundação do periódico, em 1838, até os anos finais do Império. A pedra fundamental do projeto, lançada no discurso inaugural do cônego Januário da Cunha Barbosa, consistia em incorporar a memória da vida dos grandes homens à escrita da história nacional. Ao lado da construção da história da nação, dos grandes acontecimentos, da construção do Estado, era necessário escrever a respeito da vida dos grandes homens, cujas distinções de letras, armas e virtudes também contribuíam para a construção nacional. Contudo, segundo Oliveira, a peculiaridade do projeto biográfico do instituto também estava em fazer justiça aos ilustres biografados no tribunal da posteridade. É possível afirmar que o estudo de Francisco Prisco buscou fazer justiça a José Veríssimo, transformando seu livro em uma biografia vingadora no tribunal da posteridade da crítica literária brasileira.

A terceira edição do História da literatura brasileira, de José Veríssimo, foi publicada pela Editora José Olympio em 1954. No Diário de São Paulo, de 15 de julho de 1954, Otto Maria Carpeaux (1954)CARPEAUX, Otto Maria. A história de José Veríssimo. Diário de São Paulo, São Paulo, p. 4, 15 jul. 1954. publicou a resenha intitulada “A história de José Veríssimo”. Segundo Carpeaux, a história de Veríssimo representava a palavra final de sua carreira como crítico literário. Assim, para Carpeaux, Romero era um historiador da literatura; por sua vez, Veríssimo era um crítico literário, um “Brunetière dos trópicos”. “O moralista Veríssimo” foi o título da resenha publicada por Afrânio Coutinho (1954)COUTINHO, Afrânio. O moralista Veríssimo. Diário de Notícias, p. 3, 25 jul. 1954. nas páginas do Diário de Notícias, em 25 de julho de 1954. Coutinho concordava com Carpeaux: Veríssimo era mais um crítico literário do que um historiador da literatura. Para Coutinho, a história de Veríssimo representava uma espécie de “testamento crítico”, o último trabalho de sua reconhecida carreira de crítico literário.

Em 1957, no centenário de nascimento de José Veríssimo, ocorreu um conjunto de publicações que procuraram retomar sua trajetória e seu legado intelectual, ao ressaltar as qualidades e os limites de seus trabalhos de história e crítica literária, com caráter de celebração e comemoração.

O centenário (1957)

A década de 1950 representou o apogeu dos suplementos literários nos jornais cariocas e paulistanos, o esgotamento da crítica de rodapé e a emergência da crítica universitária. Também foi marcada pela mudança na estrutura organizativa dos jornais, que passaram a adotar o modelo estadunidense de redação, focado na notícia e na informação, ao empregar as técnicas do lead e da pirâmide invertida. Nesse momento, parte da crítica universitária incorporou as contribuições do New Criticism, tendo Afrânio Coutinho como seu principal divulgador, ao demandar uma crítica literária pautada no rigor científico; esse mesmo rigor foi almejado pelos integrantes da revista Clima, formada por jovens estudantes da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, sob a influência francesa de Roger Bastide e Jean Maugüé; apesar do tempo curto de duração, entre 1941 e 1944, foi o début de Antonio Candido como crítico literário (JOHNSON, 1995JOHNSON, Randal. A dinâmica do campo literário brasileiro. Revista USP, São Paulo, n. 26, p. 164-181, 1995.; PONTES, 1998PONTES, Heloisa. Destinos mistos: os críticos do grupo Clima. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.; RAMASSOTE, 2011RAMASSOTE, Rodrigo Martins. Inquietudes da crítica literária militante de Antonio Candido. Tempo Social, São Paulo, v. 23, n. 2, p. 41-70, 2011.; SERRANO, 2017SERRANO, Pedro Bueno de Melo. Mapa da crítica de rodapé paulista (1920-1950). Teresa, São Paulo, n. 18, p. 93-107, 2017. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/teresa/article/view/127333. Acesso em: 14 abr. 2024.
https://www.revistas.usp.br/teresa/artic...
).

De acordo com Alzira Abreu (1996)ABREU, Alzira Alves de. Os suplementos literários: os intelectuais e a imprensa nos anos 50. In: ABREU, Alzira Alves de (Org.). A imprensa em transição: o jornalismo brasileiro nos anos 50. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996. p. 13-60., os suplementos literários cumpriam a função de um espaço de sociabilidade intelectual, exerciam o papel de mediação cultural e atendiam às demandas do mercado editorial em franca expansão e ávido pela divulgação de seus lançamentos. A autora apontou três características predominantes nos suplementos literários do período. Primeiro, aqueles voltados à divulgação de ideias vinculadas ao passado e à tradição – exemplos disso foram o Jornal do Comércio e A Manhã. Segundo, aqueles que reservaram espaço para os movimentos de vanguarda na literatura, nas artes plásticas, no cinema e no teatro – como foi o caso do Jornal do Brasil e O Estado de São Paulo. Por fim, aqueles cuja ênfase estava mais voltada à veiculação de informação do que à divulgação de ideias – a exemplo do Folha da Manhã e O Globo.

As duas grandes manifestações de comemoração do centenário de nascimento de José Veríssimo, em função dos lugares de destaque e da riqueza documental, foram a conferência de Peregrino Júnior na Academia Brasileira de Letras, proferida em 11 de abril (quinta-feira), publicada no Jornal do Comércio, e as páginas dedicadas no “Suplemento Literário” do Estado de São Paulo, em 13 de abril (sábado), com as colaborações de Wilson Martins, José Aderaldo Castello, Lúcia Miguel-Pereira e Antonio Candido, acompanhadas de transcrições de correspondências, documentos e trechos de obra, além de reproduções de fotografias e charges. A exemplo da antologia escolar José Veríssimo – crítica, integrante da coleção Nossos Clássicos, organizada por Olívio Montenegro e editada em 1958 pela Editora Agir, que considerava José Veríssimo um clássico da literatura brasileira em razão de sua atividade crítica (MORAES, 2019MORAES, Felipe Tavares de. José Veríssimo, um clássico brasileiro: a antologia escolar como canonização literária e formação de leitores. História da Educação, Santa Maria, v. 23, e87137, p. 1-18, 2019.), o Jornal do Comércio e o Estado de São Paulo também reconheciam sua contribuição para a formação da crítica literária moderna no Brasil.

Às 17 horas, no tradicional chá das quintas-feiras, em sessão solene e comemorativa, Peregrino Júnior (1957)PEREGRINO JÚNIOR, João. José Veríssimo em carne e osso. Jornal do Comércio, 28 abr. 1957. leu a conferência José Veríssimo em carne e osso. O conferencista buscava justapor o “crítico José Veríssimo” áspero e severo ao “José Veríssimo de carne e osso”, revelando suas fraquezas, paixões, dúvidas e grandezas. Veríssimo sempre foi reconhecido pela ação da palavra, por seus estudos críticos, enquanto sua presença pessoal era vista como amarga e triste. Peregrino Júnior considerava que, embora tímido e introvertido, Veríssimo era um sujeito de grande caráter, de bom trato íntimo, que amava os amigos.

A conferência expôs detalhes preciosos da vida de José Veríssimo até então desconhecidos pelo grande público e que não constavam na biografia de Francisco Prisco (1937)PRISCO, Francisco. José Verissimo: sua vida e suas obras. Rio de Janeiro: Brigueit, 1937.: por exemplo, a participação na caça de jacarés no interior paraense, a quase deportação do Pará no contexto da transição republicana e a revelação da causa de seu óbito (ataque de uremia); isso se devia ao contato em primeira mão com documentação primária: as correspondências e o caderno de notas – considerando que a biografia de Prisco era baseada em pesquisa bibliográfica, examinada nos escritos produzidos pelos contemporâneos de Veríssimo. Por seu turno, a “biografia” de Peregrino Júnior (1957)PEREGRINO JÚNIOR, João. José Veríssimo em carne e osso. Jornal do Comércio, 28 abr. 1957. não era tão completa se comparada à de Prisco; no entanto, em razão do seu material de consulta, levantou fatos desconhecidos até então sobre a intimidade de José Veríssimo. Com toda a pompa e circunstância, a Academia Brasileira de Letras comemorava o centenário de nascimento de José Veríssimo, um dos seus membros fundadores e ilustre imortal. Ao lado da imagem do “Sr. Critico”, com a qual contribuiu bastante desde a sua fundação e no tempo dos contemporâneos d e Veríssimo, havia também o esforço de apresentar outras facetas, mais humanas, mais íntimas, do fundador da cadeira nº 18. Da conferência de Peregrino Júnior (1957)PEREGRINO JÚNIOR, João. José Veríssimo em carne e osso. Jornal do Comércio, 28 abr. 1957., cotejada em pesquisa documental, emerge um Veríssimo mais cotidiano, um Veríssimo de carne e osso, um “Sr. Critico” de carne e osso.

O “Suplemento Literário” do O Estado de São Paulo (1956-1974) foi idealizado por Antonio Candido e dirigido por Décio de Almeida Prado, ambos integrantes da revista Clima nos anos 1940. Não por acaso, o suplemento recebeu colaborações de professores(as) da Universidade de São Paulo, na forma de resultados de pesquisa ou resenhas bibliográficas vinculadas às Ciências Humanas, tais como Roger Bastide, Gilda de Mello e Souza e Florestan Fernandes. O projeto de Antonio Candido era a combinação entre a capacidade de divulgação do suplemento e a consistência analítica da revista literária. Em outras palavras, Candido pugnava por um suplemento que veiculasse manifestações artísticas de vanguarda, ao passo que aspirava que as sofisticadas análises da cátedra universitária ocupassem as páginas do jornal (ABREU, 1996, p. 53-54ABREU, Alzira Alves de. Os suplementos literários: os intelectuais e a imprensa nos anos 50. In: ABREU, Alzira Alves de (Org.). A imprensa em transição: o jornalismo brasileiro nos anos 50. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996. p. 13-60.).

Embora os artigos sobre acontecimentos históricos ou biografias de grandes personagens históricos, predominantes nos suplementos da época, fossem colocados em segundo plano no suplemento do Estado de São Paulo em 1957, um suplemento de vanguarda rendia homenagens à tradição ao comemorar o centenário do principal representante da crítica impressionista. No tocante à relevância dos argumentos para o escopo deste artigo, seleciono os textos de Wilson Martins e José Aderaldo Castello.

Wilson Martins (1957)MARTINS, Wilson. O crítico José Veríssimo. O Estado de São Paulo, São Paulo, Suplemento Literário, p. 5, 13 abr. 1957. analisou as características da crítica literária de José Veríssimo no ensaio “O crítico José Veríssimo”. A crítica de José Veríssimo era marcada por três grandes coordenadas: “o interesse estetico, as leituras universais e a preocupação nacionalista”, de modo que “as primeiras o habilitavam e preparavam para exercer a missão que escolhera, do ponto de vista que se colocara; as três se dinamizavam entre si e modificavam, com isso, a sua natureza intrínseca” (MARTINS, 1957, p. 5, grifo meuMARTINS, Wilson. O crítico José Veríssimo. O Estado de São Paulo, São Paulo, Suplemento Literário, p. 5, 13 abr. 1957.). Wilson Martins, na esteira de Carlos Magalhães de Azevedo, um dos contemporâneos de Veríssimo, considerava que o ofício de crítico em Veríssimo era uma missão – além do claro tom de defesa, como fizera Francisco Prisco. Segundo Serrano, “o mais interessante em seu perfil [Wilson Martins] foi a reivindicação, algo extemporânea, do impressionismo – o autor defendeu a crítica jornalística pelo século XX adentro, já numa época em que o modelo caíra em desuso” (SERRANO, 2017, p. 102, grifo meuSERRANO, Pedro Bueno de Melo. Mapa da crítica de rodapé paulista (1920-1950). Teresa, São Paulo, n. 18, p. 93-107, 2017. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/teresa/article/view/127333. Acesso em: 14 abr. 2024.
https://www.revistas.usp.br/teresa/artic...
). Em diferentes contextos, seja dos contemporâneos, seja de celebração, as imagens vão se repetindo, criando e reproduzindo a metonímia do “Sr. Critico”.

Com o título “Bio-bibliografia de José Veríssimo”, José Aderaldo Castello (1957)CASTELLO, José Aderaldo. Bio-bibliografia de José Veríssimo. O Estado de São Paulo, São Paulo, Suplemento Literário, p. 5, 13 abr. 1957. expôs uma leitura bastante original da trajetória e das obras de José Veríssimo. Preocupou-se com os detalhes de produção e composição das obras, além de ter uma visão equilibrada da produção de Veríssimo nos contextos amazônico e carioca. Embora tenha qualificado a primeira como “fase provinciana”, sem qualquer significado menor ou de demérito, distinguiu-se, por sua vez, de Francisco Prisco (1937)PRISCO, Francisco. José Verissimo: sua vida e suas obras. Rio de Janeiro: Brigueit, 1937., que considerava as obras do contexto paraense como preparatórias, enquanto um ensaio da vocação e realização do destino para o advento do crítico literário no Rio de Janeiro. E convém não esquecer: Castello (1957)CASTELLO, José Aderaldo. Bio-bibliografia de José Veríssimo. O Estado de São Paulo, São Paulo, Suplemento Literário, p. 5, 13 abr. 1957. escreveu esse perfil sem qualquer citação a José Verissimo: sua vida e suas obras, e sem consultar a documentação primária, como foi o caso de Peregrino Júnior. Portanto, acredito que o perfil foi fruto de uma cuidadosa pesquisa bibliográfica, apesar de não haver referência às fontes, característica bastante comum dos textos jornalísticos do período.

No contexto do centenário, também surgiram textos propondo um balanço ou revisão da obra crítica de José Veríssimo. Foi o caso de Osmar Pimentel (1957)PIMENTEL, Osmar. Um anjo de guarda-chuva. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. 4, 13 jul. 1957. e seu “Um anjo de guarda-chuva”, publicado em 13 de julho de 1957 no O Estado de São Paulo. Osmar Pimentel pontuava a falta de uma análise isenta que revelasse as virtudes e os defeitos do trabalho crítico de José Veríssimo. “Um anjo de guarda-chuva”, verso retirado de um poema (não citado), Pimentel classificava Veríssimo, quando vivo, como um anjo da crítica literária, reconhecido pela justiça e equilíbrio, diferente de Silvio Romero, o demônio da historiografia literária brasileira. “A revisão que a obra critica de José Verissimo está reclamando deve partir da analise profunda”, uma vez que, acentuava Osmar Pimentel (1957)PIMENTEL, Osmar. Um anjo de guarda-chuva. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. 4, 13 jul. 1957., “é preciso por isso, compreender verdadeiramente José Verissimo, que ainda continua sendo, como diria o poeta, o surpreendente anjo de guarda-chuva de nossa critica literaria” (PIMENTEL, 1957, p. 4PIMENTEL, Osmar. Um anjo de guarda-chuva. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. 4, 13 jul. 1957.).

Tal revisão, cogito, foi concretizada em A tradição do impasse, de João Alexandre Barbosa (1974)BARBOSA, João Alexandre. A tradição do impasse: linguagem da crítica e crítica da linguagem em José Veríssimo. São Paulo: Ática, 1974., a primeira tese universitária sobre a obra de José Veríssimo, defendida em 1970 no curso de Teoria Literária da Universidade de São Paulo. Na verdade, o trabalho de João Alexandre Barbosa canonizou a imagem do “Sr. Critico” de José Veríssimo em um lugar novo: a universidade.

A tradição do impasse (1974): a canonização da imagem

No artigo “Um outro Veríssimo”, publicado no O Estado de São Paulo em 25 de fevereiro de 1967, João Alexandre Barbosa comentou trechos do livro Estudos da literatura brasileira. Sua intenção era evidenciar o desconhecimento sobre os Estudos – ainda nas primeiras edições, quase todas esgotadas –, no qual Veríssimo desenvolveu vários temas e questões, e uma vez comparado com a sua obra de síntese, História da literatura brasileira, podia-se conhecer outras facetas de seu exercício intelectual. Nos Estudos, autores como Gonçalves Dias, João Francisco Lisboa e Joaquim Nabuco, por exemplo, receberam estudos marcados pelos insights históricos de Veríssimo. Assim, nas páginas dos Estudos havia um José Veríssimo desconhecido: “Este é um outro Veríssimo. Um autor que, sobretudo no cinquentenário de sua morte, precisava encontrar uma editora capaz de prestar um serviço valioso á cultura nacional reeditando-lhe os ‘Estudos’, permitindo, assim, a sua volta á circulação” (BARBOSA, 1967, p. 3, grifo meuBARBOSA, João Alexandre. Um outro Veríssimo. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. 3, 25 fev. 1967.).

João Alexandre Barbosa, nesse breve artigo, já demonstrava a necessidade de reedição de uma das principais obras críticas de José Veríssimo: Estudos de literatura brasileira, até aquele momento, ainda estava na primeira edição pela Editora Garnier – os seis volumes foram publicados entre 1901 e 1907 –, configurando-se em uma raridade bibliográfica. Esse outro Veríssimo, que não cabia nos rótulos de crítico “esteticista” e “moralizante”, precisava ser redescoberto, pois estava praticamente desconhecido das novas gerações de críticos, dos estudiosos da literatura e da cultura brasileira em geral. Portanto, no cinquentenário de sua morte, em 1966, tornava-se mais que oportuna a reedição desses volumes, pois, uma vez preenchida tal lacuna editorial, a editora que colocasse novamente em circulação os Estudos prestaria um relevante serviço à cultura brasileira. O apelo de João Alexandre Barbosa não só foi ouvido, como também duas editoras em parceria se interessaram pela empreitada: a Editora Itatiaia, de Belo Horizonte, e a Editora da Universidade de São Paulo. Ambas relançaram, entre 1976 e 1977, os seis volumes já conhecidos dos Estudos de Literatura Brasileira, e um inédito sétimo volume, recomendando por Veríssimo para publicação póstuma.

Antes disso, João Alexandre Barbosa defendia sua tese de doutorado em Teoria Literária na Universidade de São Paulo, em 1970, com o título Linguagem da crítica e a crítica da linguagem: um estudo de caso brasileiro (José Veríssimo), a qual, em 1974, foi publicada pela Editora Ática: A tradição do impasse: linguagem da crítica e crítica da linguagem em José Veríssimo. De acordo com Flora Süssekind (2002)SÜSSEKIND, Flora. Rodapés, tratados e ensaios: a formação da crítica literária brasileira moderna. In: SÜSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2002. p. 15-36., a crítica-scholar foi uma inflexão na especialização da atividade crítica que buscava imprimir rigor teórico e metodológico às análises das manifestações literárias no âmbito da universidade. Essa proposta de crítica dividia-se em duas perspectivas que discutiam a relação entre obra, autor e sociedade: a) o new criticism assinalava a separação entre texto e autor/meio social ao propor uma análise interna da obra literária com caráter estético, sendo divulgada nos estudos de Afrânio Coutinho; b) a crítica dialética, exposta nos trabalhos de Antonio Candido, compreendia que a obra literária tinha uma margem de autonomia, enquanto manifestação da linguagem, devido aos condicionamentos do processo social/histórico, assim, problematizava-se a relação contraditória entre literatura e sociedade.

João Alexandre Barbosa (1974)BARBOSA, João Alexandre. A tradição do impasse: linguagem da crítica e crítica da linguagem em José Veríssimo. São Paulo: Ática, 1974. estava alinhado com a segunda concepção: a crítica universitária buscava entender a gênese da crítica impressionista enquanto fenômeno de linguagem inserido no processo sócio-histórico. Então, eis a tese sobre a crítica da linguagem e a linguagem da crítica em José Veríssimo, de João Alexandre Barbosa. Em 1894, no livro Estudos brasileiros – 2ª série, houve uma mudança na concepção crítica de José Veríssimo, de uma visão naturalista (todos os fatos da cultura são literatura) para uma leitura impressionista (literatura era a produção cultural realizada com finalidade artística) dos fenômenos literários. Tal mudança não realizou uma crítica da linguagem literária que fosse capaz de identificar a especificidade da forma literária enquanto objeto histórico e estético. Conforme Barbosa, Veríssimo não era um crítico moralista ou esteticista, pois a sua leitura das obras literárias era impressionista, largamente fundamentada em suas preferências pessoais. Isso tudo em um momento histórico em que a crítica literária e a própria condição de escritor passavam por um processo de profissionalização, exigindo, ao mesmo tempo, uma atividade cada vez mais especializada e uma postura política cada vez mais imparcial e independente no contexto das primeiras décadas republicanas.

Uma vez exposta a argumentação de João Alexandre Barbosa (1974)BARBOSA, João Alexandre. A tradição do impasse: linguagem da crítica e crítica da linguagem em José Veríssimo. São Paulo: Ática, 1974., detenho-me aqui na crítica à sua classificação da obra de José Veríssimo, presente no primeiro capítulo, “Um mapa da obra”. Essa classificação vai permeando os demais capítulos de sua tese: a divisão e a hierarquia da obra de José Veríssimo entre provincial, produzida no Pará, e nacional, composta no Rio de Janeiro. Considero que Barbosa realizou uma síntese das imagens produzidas sobre a vida, a obra e a personalidade de Veríssimo. Na verdade, ele canoniza aquelas imagens, transformando-as em tese universitária.

Tal classificação acompanhava a argumentação de João Alexandre Barbosa. Os estudos produzidos na fase provincial ainda eram marcados pela indecisão e pela pouca maturidade do jovem escritor, que, oscilando entre os esquemas ficcionais e etnográficos, pautava-se por uma concepção de crítica naturalista. Neste momento naturalista, o principal trabalho na crítica literária de Veríssimo foi o “A literatura brasileira – sua formação e destino (relance)”. O livro que registra a passagem para a fase nacional, no Rio de Janeiro, e consequentemente a mudança na visão de crítica literária, foi Estudos brasileiros – 2ª série, ocorrendo uma “transição metodológica” entre as preocupações “nacionalísticas” da Geração de 1870 e a abordagem da especificidade do fenômeno literário enquanto arte literária. Na página 42, Barbosa afirmava a respeito dessa transição: “a imagem de um José Veríssimo etnógrafo, que se frustrou em favor do crítico e historiador literário” (BARBOSA, 1974, p. 42, grifo meuBARBOSA, João Alexandre. A tradição do impasse: linguagem da crítica e crítica da linguagem em José Veríssimo. São Paulo: Ática, 1974.).

Essa frustração identificada por Barbosa significou a hierarquia operada por sua análise entre os estudos enciclopédicos sobre história, educação, literatura e crítica literária realizados no Pará, orientados pelas teorias cientificistas da Geração de 1870, e os trabalhos escritos no Rio de Janeiro pautados pelo impressionismo crítico de inspiração francesa, preocupados com a especificidade do fenômeno literário – representando, assim, a melhor e mais importante parte de sua obra, e constituindo-se, definitivamente, no “Sr. Critico” José Veríssimo. Tal frustração e hierarquia foram operadas em razão do horizonte de expectativa do estudo de João Alexandre Barbosa, definindo a inflexão e o limite de sua análise. A tradição do impasse na crítica literária brasileira, na transição entre o século XIX e XX, acabou obscurecendo uma das suas características principais: a dimensão polígrafa e enciclopédica da pena de José Veríssimo; ao lado da crítica e história literária, mantiveram o interesse onipresente por sua região de origem, a Amazônia, e a educação como principal forma de intervenção social nos problemas sociais de seu tempo – além do interesse pela cultura e sociedade latino-americana.

Evidencia-se essa dimensão nos dados biobibliográficos no Pará e no Rio de Janeiro, conforme dispostos no Quadro 1. Para Felipe Moraes (2018)MORAES, Felipe Tavares de. José Veríssimo (1857-1916), intelectual amazônico: geração 1870 e a educação no Grão-Pará (1877-1891). 2018. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018., a obra de Veríssimo abordou diversos temas e questões, sobretudo relacionados à Amazônia e à educação. No Pará, destacam-se os estudos sobre a cultura amazônica no Scenas da vida amazônica (1886) e sobre a temática educacional em A educação nacional (1890). No Rio de Janeiro, continuou escrevendo sobre questões amazônicas nos livros Amazonia – questões econômicas (1892) e Interesses da Amazonia (1915), e ocupou espaços relevantes no campo educacional carioca como professor e diretor no Ginásio Nacional (1892-1897) e na Escola Normal (1898-1916).

Como se vê, Barbosa (1974)BARBOSA, João Alexandre. A tradição do impasse: linguagem da crítica e crítica da linguagem em José Veríssimo. São Paulo: Ática, 1974. incorporou a metonímia na crítica universitária: evidenciou o crítico literário em detrimento do intelectual enciclopédico cujos interesses conjugavam crítica, história, antropologia – especialmente os estudos direcionados à educação e à Amazônia. Sintetizou todas as imagens a respeito da atividade crítica de José Veríssimo em sua tese da tradição do impasse, uma vez que o núcleo comum de todas aquelas imagens estava assentado em três pilares principais: estabelecer a gênese do crítico, selecionar suas características e apontar suas obras mais relevantes. Para Barbosa, o crítico literário, aquele outro Veríssimo desconhecido, surgiu do deslocamento entre o Pará e o Rio de Janeiro, despontando da mudança entre os esquemas ficcionais e etnográficos da crítica naturalista e a adoção do impressionismo crítico do julgamento do gosto e do talento da arte literária, uma mudança expressa justamente nos volumes cuja reedição ocorreu no artigo de 1967: os Estudos de literatura brasileira. Portanto, reitero, a tradição do impasse era a imagem do “Sr. Critico” de José Veríssimo transformada em tese universitária.

Entre 1976 e 1977, a parceria entre a Editoria Itatiaia e a Editora da Universidade de São Paulo – provavelmente em resposta aos apelos do artigo de 1967 – foi responsável pela reedição dos seis volumes conhecidos e um sétimo volume inédito dos Estudos de Literatura Brasileira.

A edição dos Estudos foi destinada aos cuidados de João Etienne Filho, responsável pela sugestão de um prefácio para cada volume, escritos por autoras e autores reconhecidos pelos estudos sobre crítica literária e cultura brasileira: primeira série, “A crítica em série” por João Alexandre Barbosa; segunda série, “José Veríssimo e o Brasil” por Vivaldi Moreira; terceira série, “Um crítico julgador” por Oscar Mendes; quarta série, “Introdução” por Letícia Malard; e a sexta série, “A missão histórica da crítica de José Veríssimo” por Melânia Silva Aguiar. O próprio Etienne Filho assinava um dos prefácios – quinta série, “Revisão de José Veríssimo” – e algumas orelhas dos livros – segunda, terceira, quinta, sexta e sétima série. Apenas a apresentação do sétimo volume, até então inédito, foi reservada ao prof. Luiz Carlos Alves, da Faculdade de Letras da Universidade de Federal de Minas Gerais.

Em linhas gerais, os prefácios tiveram elementos comuns em suas estruturas de apresentação de cada série. Cada um, a seu modo, evocava a importância da reedição dos Estudos – parabenizando a iniciativa das editoras Itatiaia e Edusp – por ser uma obra fundamental da história da crítica literária no Brasil. Havia muita atualidade nas considerações realizadas por José Veríssimo há setenta anos a respeito de autores que se consagraram na literatura brasileira, como Graça Aranha, Olavo Bilac, Euclides da Cunha etc. Tais análises ainda tinham relevância, fosse por sua validade crítica, fosse por serem um ponto de partida para novas reflexões – ressaltando os limites de ser uma crítica no calor dos acontecimentos literários. Essa reedição era uma boa oportunidade de compreender um momento da história da crítica brasileira e de apreender o que havia de atualidade e o que necessitava de revisão em sua obra, uma das precursoras da crítica literária no Brasil.

Fasto Cunha, no artigo “José Veríssimo e os impasses da crítica literária”, de 25 de junho de 1977, no Jornal do Brasil, ao repercutir a reedição das séries – “A publicação dos seis volumes de Estudos de literatura brasileira de José Veríssimo, nos convida a uma reflexão mais longa sobre essa literatura, sua crítica e seu real conhecimento” (CUNHA, 1977, p. 6CUNHA, Fausto. José Veríssimo e os impasses da crítica literária. Jornal do Brasil, p. 6, 25 jun. 1977.) –, realizou dois apontamentos representativos do que estou tratando aqui. A respeito do projeto editorial: “José Veríssimo sai engrandecido dessa reedição em tão boa hora promovida pela editora Itatiaia e pela Universidade de São Paulo? Sem dúvida” (CUNHA, 1977, p. 6CUNHA, Fausto. José Veríssimo e os impasses da crítica literária. Jornal do Brasil, p. 6, 25 jun. 1977.). Sobre o lugar de grande pesquisador da obra de José Veríssimo: “E João Alexandre Barbosa, afinal o responsável por uma nova avaliação da obra crítica de José Veríssimo, com o seu livro A Tradição do Impasse, de 1974” (CUNHA, 1977, p. 6CUNHA, Fausto. José Veríssimo e os impasses da crítica literária. Jornal do Brasil, p. 6, 25 jun. 1977.).

A tese de doutorado e o projeto editorial da Itatiaia/Edusp foram duas formas fundamentais para a canonização da imagem do “Sr. Critico” de José Veríssimo.

Considerações finais

Em 1902, na quinta série de Estudos de literatura brasileira, José Veríssimo resenhou o livro de Carlos Magalhães de Azeredo, Homens e livros. Sem qualquer menção ao capítulo dedicado à sua obra crítica, o intelectual paraense apontava: “Não me parece de bom aviso querer a crítica, à força de explicações, às vezes sutis e especiosas, emendar a personalidade moral de um escritor e, mesmo por simpatia, pretender fazê-lo qual desejava que ele fosse” (VERÍSSIMO, 1977, p. 37, grifos meusVERÍSSIMO, José. Um livro de crítica – Homens e livros do Sr. Magalhães de Azeredo. In: VERÍSSIMO, José. Estudos de literatura brasileira – 5ª série. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1977. p. 37-40.).

Conforme a discussão realizada neste artigo, documento e analiso um longo processo de emenda pela fortuna crítica de José Veríssimo da imagem que “desejava que ele fosse”: do “Sr. Critico”. Tal emenda nada mais foi do que uma lenta e persistente forma de reconhecimento e de consagração. A composição da imagem de José Veríssimo como crítico literário ocorreu por meio da relação direta entre personalidade severa/imparcial/independente e a obra rigorosa e dotada de probidade literária. Retira-se, desse modo, o sujeito da história ao transformar sua experiência em fruto da personalidade, ignorando a agência condicionada pela jaula flexível (GINZBURG, 2006, p. 20GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.) da estrutura social, política e cultural.

Isso não foi apenas responsabilidade da fortuna crítica. A autoimagem de José Veríssimo sobre sua trajetória intelectual, sobretudo no Rio de Janeiro, projetava independência, imparcialidade e probidade literária – sua síntese foi o dístico: grão de ironia e ceticismo –, contribuindo na construção das imagens pela fortuna crítica. Desse modo, as imagens da fortuna crítica registraram o árduo processo de profissionalização dos escritores entre as últimas décadas do Império e as primeiras décadas republicanas. Estes buscavam forjar um status profissional e uma atividade inclinada cada vez mais para a especialização, cujo maior desdobramento institucional foi a fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1897. Ao mesmo tempo que essas imagens evidenciam a transição da crítica de rodapé impressionista nas páginas dos jornais à crítica-scholar nos trabalhos acadêmicos da universidade, esse processo é marcado pela especialização da linguagem crítica ao incorporar os postulados da pesquisa científica: a crítica universitária fez homenagens à tradição e analisou o legado crítico de José Veríssimo, canonizando a figura do “Sr. Critico”.

Esta metonímia lançou luzes sobre uma parte da vasta obra intelectual de José Veríssimo: aquela destinada à crítica e à história literária, cujas contribuições fincaram seu lugar no pensamento brasileiro enquanto um dos fundadores – ao lado de Silvio Romero e Araripe Júnior – da crítica literária no Brasil. Por outro lado, deixaram nas sombras – apesar de evocadas, colocadas como coadjuvantes – suas contribuições educacionais e seus estudos sobre a sociedade e a cultura amazônica, ambas preocupações de toda a sua carreira. “Sr. Critico” substituiu o intelectual polígrafo e enciclopédico que viveu entre dois mundos: o Pará imperial e o Rio de Janeiro republicano.

Referências

  • ABREU, Alzira Alves de. Os suplementos literários: os intelectuais e a imprensa nos anos 50. In: ABREU, Alzira Alves de (Org.). A imprensa em transição: o jornalismo brasileiro nos anos 50. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996. p. 13-60.
  • AZEREDO, Carlos Magalhães de. Homens e livros Rio de Janeiro: H. Garnier, 1902.
  • BARBOSA, João Alexandre. Um outro Veríssimo. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. 3, 25 fev. 1967.
  • BARBOSA, João Alexandre. Linguagem da crítica e a crítica da linguagem: um estudo de caso brasileiro (José Veríssimo). 1970. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1970.
  • BARBOSA, João Alexandre. A tradição do impasse: linguagem da crítica e crítica da linguagem em José Veríssimo. São Paulo: Ática, 1974.
  • CARPEAUX, Otto Maria. A história de José Veríssimo. Diário de São Paulo, São Paulo, p. 4, 15 jul. 1954.
  • CASTELLO, José Aderaldo. Bio-bibliografia de José Veríssimo. O Estado de São Paulo, São Paulo, Suplemento Literário, p. 5, 13 abr. 1957.
  • COUTINHO, Afrânio. O moralista Veríssimo. Diário de Notícias, p. 3, 25 jul. 1954.
  • CUNHA, Fausto. José Veríssimo e os impasses da crítica literária. Jornal do Brasil, p. 6, 25 jun. 1977.
  • GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
  • JOHNSON, Randal. A dinâmica do campo literário brasileiro. Revista USP, São Paulo, n. 26, p. 164-181, 1995.
  • MARTINS, Wilson. O crítico José Veríssimo. O Estado de São Paulo, São Paulo, Suplemento Literário, p. 5, 13 abr. 1957.
  • MORAES, Felipe Tavares de. José Veríssimo, um clássico brasileiro: a antologia escolar como canonização literária e formação de leitores. História da Educação, Santa Maria, v. 23, e87137, p. 1-18, 2019.
  • MORAES, Felipe Tavares de. José Veríssimo (1857-1916), intelectual amazônico: geração 1870 e a educação no Grão-Pará (1877-1891). 2018. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
  • MOTTA, Arthur. Perfis academicos, cadeira 18, José Veríssimo. Revista da Academia Brazileira de Letras, ano 21, v. 32, n. 97, p. 9-27, jan. 1930.
  • OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a história: a biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2011.
  • PEREGRINO JÚNIOR, João. José Veríssimo em carne e osso. Jornal do Comércio, 28 abr. 1957.
  • PIMENTEL, Osmar. Um anjo de guarda-chuva. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. 4, 13 jul. 1957.
  • PONTES, Heloisa. Destinos mistos: os críticos do grupo Clima São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • PRISCO, Francisco. José Verissimo: sua vida e suas obras. Rio de Janeiro: Brigueit, 1937.
  • RAMASSOTE, Rodrigo Martins. Inquietudes da crítica literária militante de Antonio Candido. Tempo Social, São Paulo, v. 23, n. 2, p. 41-70, 2011.
  • SALLES, Alberto. Nossos academicos. Revista Brazileira, ano 3, t. 10, p. 140-150, 1897.
  • SERRANO, Pedro Bueno de Melo. Mapa da crítica de rodapé paulista (1920-1950). Teresa, São Paulo, n. 18, p. 93-107, 2017. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/teresa/article/view/127333 Acesso em: 14 abr. 2024.
    » https://www.revistas.usp.br/teresa/article/view/127333
  • ROMERO, Silvio; RIBEIRO, João. Compêndio de história da literatura brasileira Rio de Janeiro: Alves, 1906.
  • ROMERO, Silvio. Zeverissimações ineptas da crítica: repulsas e desabafos. Porto: Oficinas do Comércio do Porto, 1909.
  • SÜSSEKIND, Flora. Rodapés, tratados e ensaios: a formação da crítica literária brasileira moderna. In: SÜSSEKIND, Flora. Papéis colados Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2002. p. 15-36.
  • VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
  • VERÍSSIMO, Ignácio José. José Veríssimo visto por dentro Manaus: Ed. Governo do Estado do Amazonas, 1966.
  • VERÍSSIMO, José. Post scriptum In: VERÍSSIMO, José. Que é literatura? Outros escriptos Rio de Janeiro: H. Garnier, 1907. p. 271-292.
  • VERÍSSIMO, José. Um livro de crítica – Homens e livros do Sr. Magalhães de Azeredo. In: VERÍSSIMO, José. Estudos de literatura brasileira – 5ª série Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1977. p. 37-40.
Editora responsável: Luiza Larangeira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2022
  • Aceito
    13 Fev 2023
Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo de São Francisco de Paula, n. 1., CEP 20051-070, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, Tel.: (55 21) 2252-8033 R.202, Fax: (55 21) 2221-0341 R.202 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: topoi@revistatopoi.org