Acessibilidade / Reportar erro

Os imigrantes de Martin Eden. Classe, nacionalidade e experiência na literatura de Jack London

The immigrants of Martin Eden. Class, Nationality, and Experience in Jack London’s Literature

Los inmigrantes de Martin Eden. Clase, nacionalidad y experiencia en la literatura de Jack London

RESUMO

A proposta deste artigo é discutir como dizer “imigrante” é não dizer tudo, e como é preciso levar em conta o lugar socioeconômico para entender o significado da imigração. Para tal, analisam-se diferentes imigrantes presentes no romance Martin Eden (1907-1909), de autoria de Jack London, através da fusão dialética de texto e contexto, conforme formulada por Antonio Candido. O romance tem uma série de personagens secundários que podem ser identificados como imigrantes e/ou que têm sua nacionalidade não americana sublinhada. O argumento central é o de que a condição de imigrante nos Estados Unidos da virada do século XIX foi influenciada pelas tensões de classe que se intensificavam, bem como pelas disputas político-filosóficas travadas ao longo do processo de fragilização da ideologia liberal, resultado histórico da consolidação do regime monopolista.

Palavras-chave
História dos Estados Unidos; imigração; literatura norte-americana; Jack London; Martin Eden

ABSTRACT

This paper proposes that the label “immigrant” is not enough, as it is necessary to acknowledge one’s socioeconomic place to understand the meaning of immigration. To explore this idea, the paper analyzes different immigrant characters in Jack London’s novel Martin Eden (1907-1909) using a dialectic fusion of text and context, as Antonio Candido has proposed. The novel has a group of secondary characters who can be identified as immigrants and/or have their non-American identity underlined. This article argues that the immigration condition in the United States at the turn of the nineteenth century was influenced by intensifying class tensions, as well as by the political and philosophical disputes waged during the weakening of liberal ideology, result of the historical consolidation of monopoly capitalism.

Keywords
United States History; Immigration; American Literature; Jack London; Martin Eden

RESUMEN

La propuesta de este artículo es discutir cómo decir “inmigrante” y no decir todo, y cómo es necesario llevar en cuenta la posición socioeconómica para entender el significado de la inmigración. Para eso, se analiza la presencia de diferentes inmigrantes en la obra de Martín Eden (1907-1909), de autoría de Jack London, a través de la difusión dialéctica del texto y contexto, conforme formulada por Antonio Candido. El romance tiene una serie de personajes secundarios que pueden ser identificados como inmigrantes y que tienen su nacionalidad no americana destacada. El argumento central es el de que la condición de inmigrante en los Estados Unidos de finales del siglo XIX fue influida por las tensiones de clases que se intensificaban, así como por las disputas político-filosóficas iniciadas a lo largo del proceso de fragilización de la ideología liberal, resultado de la consolidación del régimen monopolista.

Palabras Clave
Historia de los Estados Unidos; inmigración; literatura norteamericana; Jack London; Martin Eden

Em seu clássico panorama da história dos Estados Unidos, We, the People (Nós, o povo), Leo Huberman (1978, p. 1-2)HUBERMAN, Leo. História da riqueza dos EUA (Nós, o povo). São Paulo: Brasiliense, 1978. abre o primeiro capítulo dizendo:

Desde o início, a América foi um imã a atrair os povos da terra. (...) Este grande imã, medindo três mil milhas de largura e mil e quinhentas milhas de comprimento, atraiu todos os tipos e variedades de seres humanos vivos. Gente branca, preta, amarela, de pele escura; católicos, protestantes, huguenotes, quakers, batistas, metodistas, unitarianos, judeus; espanhóis, ingleses, alemães, franceses, noruegueses, suecos, dinamarqueses, chineses, japoneses, holandeses, boêmios, italianos, austríacos, eslavos, poloneses, romenos, russos – e a lista está apenas começando; fazendeiros, mineiros, aventureiros, soldados, marinheiros, ricos, pobres, mendigos, ladrões, sapateiros, alfaiates, atores, músicos, ministros religiosos, engenheiros, escritores, cantores, cavadores de valas, industriais, açougueiros, padeiros e fabricantes de velas.

O argumento de Huberman é que a história da sociedade estadunidense, desde tempos remotos até o momento em que ele escrevia, na década de 1930, era indissociável da imigração. Esse argumento, uma síntese dele, pode ser encontrado na abertura do livro de Oscar Handlin (1959, p. 1)HANDLIN, Oscar. Immigration as a Factor in American History. Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice-Hall, 1959., uma das maiores autoridades intelectuais sobre o assunto:

A imigração tinha sido (...) um aspecto tão familiar do desenvolvimento americano que somente no final do século XIX é que algum questionamento foi levantado quanto à justeza de sua continuação. Toda a história do povoamento do continente fora a história da imigração1 1 Trad. livre do autor: “Immigration had so long been a familiar aspect of American development that it was not until the end of the nineteenth century that any question was raised as to the propriety of its continuance. The whole history of the peopling of the continent had been one of immigration”. .

Os dois historiadores apontam o fato de que, na história dos Estados Unidos, a imigração é um processo tão presente que durante muito tempo ele foi encarado (ou não encarado) como uma espécie de não questão. A vinda e a presença de imigrantes eram elementos tão orgânicos à lógica social estadunidense que, até por volta do final do século XIX, eram um “fato da vida”: notados, sim, mas não necessariamente seccionados do restante do tecido social para merecer escorço singular.

Neste artigo, da afirmação dos dois historiadores extrai-se um importante corolário: discutir historicamente o problema da imigração nos Estados Unidos implica reconhecer que ele nem sempre esteve colocado sob os termos “imigração” ou “imigrante”. No livro que tomamos como documento histórico, o romance Martin Eden, de Jack London, a palavra “imigrante” (ou mesmo “migrante”) não é usada, mas há diversos personagens, todos parte de um elenco de apoio, que são identificados por suas nacionalidades não americanas e que têm sua condição de imigrantes atestada direta ou indiretamente pela narrativa (como imigrantes ou filhos deles).

Aliás, no conjunto da obra de London, a questão “imigração e imigrantes” costuma ser bastante escorregadia, pois se apresenta de vários modos e com vários nomes. Ora está indiretamente contida na celebração quase eugênica dos nórdicos e dos anglo-saxões, ora se manifesta na preocupação com o que ele chamou de “O Perigo Amarelo”, ora diluída em seu internacionalismo e na sua crítica à civilização capitalista daqueles mesmos anglo-saxões que por vezes celebrou. Por isso, e pelo fato de que London escreveu muito durante a vida, é possível encontrar desde leituras que criticam sua incômoda aproximação das ideias racistas de seu tempo (REESMAN, 2009REESMAN, Jeanne Campbell. Jack London’s Racial Lives: A Critical Biography. Athens: University of Georgia Press, 2009.; SWIFT, 2002SWIFT, John N. Jack London’s “The Unparalleled Invasion”: Germ Warfare, Eugenics, and Cultural Hygiene. American Literary Realism, Illinois, v. 35, n. 1, p. 59-71, 2002.) até leituras que sublinham “seus esforços para combater sentimentos anti-asiáticos encontrados no jornalismo de sua época” (MÉTRAUX, 2009, p. 29MÉTRAUX, Daniel A. Jack London and The Yellow Peril. Education About Asia, v. 14, n. 1, p. 29-33, 2009.; MÉTRAUX, 2008MÉTRAUX, Daniel A. Jack London Reporting from Tokyo and Manchuria: The Forgotten Role of an Influential Observer of Early Modern Asia. Asia Pacific: Perspectives, v. 8, n. 1, p. 1-6, jun. 2008.)2 2 Trad. livre do autor: “his efforts to combat the anti-Asian sentiments found in American journalism during this period”. .

O objetivo aqui é tratar o romance Martin Eden como uma fonte histórica que permite observar certas realidades indiretas da vida dos imigrantes nos Estados Unidos, sendo a principal delas suas cercanias de classe. Interessa entender como se relacionam seus lugares socioeconômicos (sua condição de classe) e seus lugares étnicos (expressos nas nacionalidades, neste caso). A hipótese que propomos é que as delimitações de classe e suas implicações são fatores que podem reforçar ou amenizar delimitações étnicas e nacionais, de modo que a condição de imigrante se torna mais ou menos saliente de acordo com a dialética social e econômica em que se insere, bem como pelas afiliações ideológicas e morais que estabelece no interior dessa mesma dialética.

É importante notar que essa é uma proposta dentre outras possíveis, entre as quais gostaríamos de destacar o estudo de Jeanne Campbell Reesman, Jack London’s Racial Lives. O que ela se propõe a fazer nesse competente livro é passar em revista a obra de London à luz das questões raciais e de identidade, uma vez que, segundo ela, “raça é parte de quase tudo o que há de importante nos escritos de London” (REESMAN, 2009, p. 1REESMAN, Jeanne Campbell. Jack London’s Racial Lives: A Critical Biography. Athens: University of Georgia Press, 2009.)3 3 Trad. livre do autor: “race is part of nearly everything important in London's writings”. . Por conta disso, ela propõe uma chave analítica distinta para a interpretação de Martin Eden, que é quase o oposto da que propomos aqui, pois, a seu ver, o romance “aborda diferenças de classe em termos de passagem racial” (REESMAN, 2009, p. 1REESMAN, Jeanne Campbell. Jack London’s Racial Lives: A Critical Biography. Athens: University of Georgia Press, 2009.)4 4 Trad. livre do autor: “addresses class differences in terms of racial passing”. . A diferença do ângulo de observação, conforme veremos ao longo do texto, enriquece nossa análise.

Há um desafio particular quanto à nossa fonte. O romance de Jack London que nos propomos a dissecar (a) não foi escrito por um imigrante e (b) não tem como tema a imigração ou os imigrantes. Antes de interdição, entendemos isso como uma interessante oportunidade de flagrar no contrapé, diluído no interior de outros problemas, a questão da imigração. Pela narrativa de London, temos a chance de surpreender os pontos cegos e as normas surdas dessa questão nos Estados Unidos da virada do século XIX, por meio daquilo que Marc Bloch (2001, p. 95)BLOCH, Marc. Apologia da história ou O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. nomeou “testemunhos involuntários”.

Trata-se de uma manobra metodológica melindrosa. Para não confundir ênfases com naturalidade, nem generalizar a partir de especificidades, é fundamental compreender o romance como romance e também o lugar que ocupa na trajetória de London. Essa é a condição para ler as fontes, como disse Ginzburg, “desvirtuando, por assim dizer, as intenções das evidências; indo contra ou além das razões pelas quais elas foram construídas” (GINZBURG apud PALLARES-BURKE, 2000, p. 284-285PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia (Org.). As muitas faces da história: nove entrevistas. São Paulo: Ed. Unesp, 2000.).

Por essa razão, o artigo se divide em duas partes: (1) dissecação do romance como obra literária e como parte da trajetória biobibliográfica de Jack London; e (2) análise do romance como fonte, como documento histórico que permite lançar luz sobre a relação entre imigrantes e condição de classe.

Martin Eden

Martin Eden foi escrito entre junho de 1907 e fevereiro de 1908, tendo sido iniciado em Honolulu, no Havaí, e terminado em Papeete, no Taiti (LONDON, 1921, p. 170-171LONDON, Charmian K. The Book of Jack London. New York: The Century Company, 1921. v. 2.). A publicação, serializada, iniciou em setembro de 1908, na revista Pacific Monthly, seguindo a dinâmica de trabalho já consagrada por Jack London: primeiro, publicações fragmentadas em revistas e periódicos; mais tarde, sua publicação coligida, em forma de romance, pela Macmillan (o que, neste caso, ocorreu em setembro de 1909). O título inicial era “Sucesso”, mas foi alterado por decisão editorial da Pacific Monthly, que pagou sete mil dólares pelos direitos de publicação (LABOR, 2014, p. 282LABOR, Earl. Jack London: An American Life. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2014.).

À época da escrita do romance, London e sua esposa estavam em meio a uma viagem marítima ao redor do mundo a bordo do veleiro Snark. O planejamento inicial envolvia um roteiro ambicioso, cuja realização deveria levar sete anos. O escritor, muito pragmático quanto ao aspecto material de seu ofício, deu conta de arranjar contratos e promessas de publicação para os “diários” do Snark e também para outros textos que planejava escrever ao longo da viagem. Os escritos sobre a jornada foram publicados (The Cruise of the Snark, 1911), bem como uma série de textos, entre os quais se encontra Martin Eden; a viagem, no entanto, enfrentou numerosas dificuldades e foi interrompida muito antes do previsto.

Quando se pôs a escrever Martin Eden, London já era uma figura conhecida nos Estados Unidos. Não apenas como um escritor célebre, cujo profissionalismo o havia tornado uma espécie de self-made man literário, mas também como um socialista famoso, a ponto de, entre 1905 e 1906, ter viajado por diversos estados norte-americanos proferindo palestras sobre a causa. Esse curioso amálgama de identidade, self-made man e militante socialista, está encravado em diversos de seus textos, inclusive no romance que aqui analisamos.

Em 1905, a revista Cosmopolitan convidou diversas celebridades para escrever artigos cujo título deveria ser “O que a vida significa para mim” (“What Life Means to Me”), e London foi um desses convidados. O texto, escrito em novembro de 1905 e publicado em junho de 1906, era uma ousada defesa do socialismo e uma severa crítica ao capitalismo, o que alimentou longos debates e empilhou críticas positivas, tendo sido para alguns “a melhor coisa que London escreveu” (KINGMAN, 1979, p. 164KINGMAN, Russ. A Pictorial Life of Jack London. New York: Crown, 1979.)5 5 Trad. livre do autor: “the best thing he ever wrote”. .

A situação é significativa para entender a medula filosófica de Martin Eden: a celebridade comercial de London, sua proeminência no establishment, granjeou-lhe o convite da Cosmopolitan, mas o espaço concedido foi usado justamente para criticar o mesmo establishment que, em última instância, o havia colocado em tal posição. Mencionamos esse texto da Cosmopolitan porque seu trajeto argumentativo, no que ele tem de autobiográfico e de filosófico, é uma espécie de esboço do romance Martin Eden.

Nas páginas da revista, London narrou sua origem social, sua árdua batalha pela subsistência, sua ascensão às luzes da ribalta literária e editorial, assim como seu desencantamento com as elites. O artigo inicia com “Eu nasci na classe trabalhadora” e “Meu lugar na sociedade era na parte de baixo”; continua com “Meu ambiente era bruto, duro e cru”; prossegue com “Diante de mim erguia-se o colossal edifício da sociedade, e, na minha mente, o único caminho era a subida”; e praticamente ao fim, desiludido, sentencia: “Eu descobri que não gostava do andar de cima da sociedade. Intelectualmente, eu estava entediado. Moral e espiritualmente, eu estava enojado” (LONDON, 1910, p. 293-308LONDON, Jack. Revolution and Other Essays. New York: Macmillan, 1910.)6 6 Trad. livre do autor: “I was born in the working-class”; “My environment was crude and rough and raw”; My place in society was in the bottom”; “Above me towered the colossal edifice of society, and to my mind the only way out was up”; “I discovered that I did not like to live on the parlor floor of society. Intellectually I was bored. Morally and spiritually I was sickened”. .

Nas páginas do romance, vemos se desenrolar uma trama muito parecida: o protagonista Martin Eden é de origem pobre; tem de se sujeitar a uma série de trabalhos extenuantes e mal pagos; escreve com um afinco desesperado em busca de se estabelecer como escritor profissional e estar à altura do amor de Ruth Morse, a menina rica; alcança popularidade e riqueza; e, por fim, se desencanta com aquele mundo das elites sociais e culturais ao qual quisera pertencer por tanto tempo.

Quanto a isso, a trajetória de Eden carrega traços próprios de seu tempo. Uma desconfiança em relação ao poder do dinheiro crescia nos Estados Unidos, ainda que convivesse com uma fascinação por esse mesmo poder. A ambiguidade faz parte da composição de Martin Eden e, em alguma medida, do próprio London. O historiador norte-americano Jackson T. Lears (2009, p. 55)LEARS, Jackson T. J. Rebirth of a Nation: The Making of Modern America, 1877-1920. New York: HarperCollins, 2009. afirmou sobre a atmosfera sociocultural do período:

A promessa alquímica de súbita autotransformação deu ao dinheiro uma força centrífuga e um gume corrosivo. Ele podia dissolver comunidades sólidas e laços sociais, impelir jovens para fora de seus lugares ancestrais em busca de novas possibilidades (...). Costume, moral e tradição – tudo se dissolvia7 7 Trad. livre do autor: “The alchemical promise of sudden self-transformation gave money a centrifugal force and a corrosive edge. It could dissolve settled communities and social bonds, send young men spinning off from their ancestral seats in search of fresh possibilities, clothe reprobates and rakes in raiments of possibilities (...). Custom, tradition, morality – all dissolved”. .

A vitória do Norte manufatureiro na Guerra de Secessão (c. 1861-1865) criou condições para a expansão e o aprofundamento do capitalismo industrial, assim como alavancou a concentração econômica, escancarada no regime monopólico das décadas finais do século XIX. O que se estabeleceu a partir da Guerra Civil foi, em larga medida, a hegemonia de um modelo econômico baseado no trabalho livre, industrial e assalariado, em detrimento de um modelo escravista e predominantemente agrícola. A integração econômica nacional, inclusive por meio de um Estado de envergadura proporcional – o “Colosso Federal”, na expressão de Peter Zavodnyik (2011)ZAVODNYIK, Peter. The Rise of the Federal Colossus: The Growth of Federal Power from Lincoln to F. D. R. Santa Barbara: Praeger, 2011. –, foi um dos resultados do conflito, e com ela a expansão de uma economia de mercado monetizada, a qual estava “rodeada de ansiedades” (LEARS, 2009, p. 52LEARS, Jackson T. J. Rebirth of a Nation: The Making of Modern America, 1877-1920. New York: HarperCollins, 2009.)8 8 Trad. livre do autor: “anxieties surrounded”. .

Aquilo que no artigo “What Life Means to Me” London condensou em algumas poucas páginas, no romance foi estendido e aprofundado para resultar em um volume de mais de quatrocentas. Isso se deve não apenas à composição de uma narrativa mais convencional (com personagens, diálogos, descrições, tempo, espaço etc.), mas também ao adensamento da discussão filosófica e à adição de numerosos detalhes autobiográficos ao protagonista.

A seu modo, portanto, Martin Eden guarda uma forte simetria com a vida de Jack London. Earle Labor descreveu-o como “quase autobiográfico” e “o mais intensamente pessoal de todos os romances de London” (LABOR, 2014, p. 262LABOR, Earl. Jack London: An American Life. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2014.)9 9 Trad. livre do autor: “quasi-autobiographical”; “most intensely personal of all Londo's novels”. , e a filha de Jack, Joan London, disse que “até certo ponto, Martin Eden é Jack London” (LONDON, 1939, p. 330LONDON, Joan. Jack London and His Times: An Unconventional Biography. New York: The Book League of America, 1939.)10 10 Trad. livre do autor: “Up to a certain point Martin Eden was Jack London”. . Dada a deliberada aproximação entre o protagonista e o escritor, Martin Eden pode ser lido como uma espécie de roman à clef, em que numerosas passagens da vida de London se tornaram estofo do protagonista, e em que personagens do livro correspondem muito simetricamente a pessoas com quem London conviveu. O aluguel da máquina de escrever, a relação acidentada com os cunhados, as aspirações literárias, o método de escrita e publicação, o trabalho na lavanderia, a vida de marinheiro, o amor juvenil idealizado11 11 A Ruth Morse do romance foi inspirada em Mable Applegrath, menina mais abastada do que Jack, por quem ele teve um amor devocional na juventude, o qual acabou não vingando. Além disto, assim como no romance, o contato de Jack com Mable ocorreu por meio do irmão dela, Ted Applegrath. , a contabilidade de subsistência, a publicação que “salvou” os projetos literários12 12 No romance, isso aparece cifrado de modo anedótico. Jack London afirmou diversas vezes que foram os 40 dólares que recebeu da revista Black Cat que lhe permitiram não desistir de seus intentos literários. Martin Eden recebe a mesma quantia, mas da revista White Mouse (LONDON, 1916, p. 220-221). , etc. são elementos compartilhados por personagem e escritor.

Se é possível dizer que, esquematicamente, Martin Eden segue o trajeto esboçado em “What Life Means to Me”, é preciso notar que existem também diferenças, e a principal delas diz respeito ao protagonista, que, apesar das semelhanças com o escritor, é uma versão modificada dele. O principal ponto de distinção, segundo o próprio London, está “em sua atitude em relação ao socialismo” (apud LONDON, 1939, p. 330LONDON, Joan. Jack London and His Times: An Unconventional Biography. New York: The Book League of America, 1939.)13 13 Trad. livre do autor: “They differed, according to Jack, in their attitude toward socialism”. : enquanto London atuava como um porta-voz do Socialismo, Eden era radicalmente individualista, e esse contraste é elemento fundante da obra em questão.

Em seus esforços de ascensão social, o protagonista do romance desenvolve um senso muito agudo de individualismo, ao passo que defende máximas da filosofia nietzscheana quanto à afirmação do gênio e da individualidade criativa. Aferra-se a esses valores para municiar suas ambições literárias e para se nutrir quando tudo parece contradizê-lo. A princípio, a escalada social que ele pretendia tem como objetivo o amor de Ruth Morse, filha das elites, cujo convívio Martin passou a partilhar por conta de um acidente. Conforme a trama avança, no entanto, o brilho das elites vai se desvanecendo, a aura idealizada de Ruth embaciando, e Martin descobre que as demarcações de classe são bem mais rígidas do que ele inicialmente supunha.

A epifania de Martin vibrava na mesma frequência da sociedade norte-americana de então, que se via cada vez mais confrontada com a estratificação de classe. Esse acontecimento teve um impacto tão intenso quanto intensa tinha sido, por anos, a crença de que uma das particularidades nacionais dos Estados Unidos era não ter classe (LEARS, 2009, p. 81LEARS, Jackson T. J. Rebirth of a Nation: The Making of Modern America, 1877-1920. New York: HarperCollins, 2009.). Os historiadores Douglas Steeples e David Whitten (1998, p. 15-16)STEEPLES, Douglas W.; WHITTEN, David O. Democracy in Desperation: The Depression of 1893. Westport: Greenwood Press, 1998. falam de um “vasto endividamento agrícola” nas últimas décadas do século XIX, especialmente depois de 1893, e Whitten (2001)WHITTEN, David O. The Depression of 1893. Economic History Association, Auburn, 2001. Disponível em: https://eh.net/encyclopedia/the-depression-of-1893. Acesso em: 7 set. 2018.
https://eh.net/encyclopedia/the-depressi...
, em outro trabalho, comentou que as estimativas de desemprego nessa época variam entre 1/6 e 1/8 da força de trabalho, mantendo-se, de qualquer modo, acima dos 10% por vários anos. O formidável avanço da industrialização na virada do século ampliou o contingente da classe operária, dando-lhe contornos sociais e econômicos mais bem definidos, ainda que em seu interior convivessem grupos e indivíduos de origens tão diversas: ex-pequenos proprietários agrícolas, a antiga classe média urbana em vias de proletarização, ex-escravos emigrados do Sul, uma grande massa de imigrantes vindos de todos os cantos da Europa e de partes da Ásia etc.

Das ambiguidades materializadas na trajetória de Martin Eden ressoam também impressões historicamente vivenciadas, em especial aquela que foi resumida de modo lapidar por Henry George (1904, p. 10)GEORGE, Henry. Progress and Poverty: An Inquiry in the Cause of Industrial Depressions and of Increase of Want with Increase of Wealth. New York: Doubleday Page & Co., 1904. em um livro de grande impacto na época: “a associação entre pobreza e progresso é o grande enigma de nosso tempo. Ela é o fator central a partir do qual surgem as dificuldades industriais, sociais e políticas que deixam o mundo perplexo”14 14 Trad. livre do autor: “This association of poverty with progress is the great enigma of our times. It is the central fact from which spring industrial, social, and political difficulties that perplex the world”. . Os alarmantes indicadores mencionados conviviam com taxas de enriquecimento de magnatas como Rockefeller, Morgan e Carnegie, por exemplo, de modo que as fronteiras de classe se tornassem crescentemente visíveis. Em um estudo sobre a formação da classe média norte-americana entre os séculos XVIII e XIX, Stuart Blumin (2002, p. 258)BLUMIN, Stuart M. The Emergence of the Middle Class: Social Experience in the American City, 1760-1900. New York: Cambridge University Press, 2002. afirmou que “uma estrutura social mais claramente definida na história estadunidense, assim como uma consciência mais aguçada entre os americanos sobre as classes em que se dividiam, somente emergiram nos anos que se seguiram à Guerra Civil”15 15 Trad. livre do autor: “The most clearly defined social structure in American history, and the deepest awareness among Americans of the classes that divided them, emerged in the years following the Civil War”. .

A saliência com que a classe é um elemento estruturante da narrativa de Martin Eden e da visão de mundo de Jack London não pode ser tratada como sinal de alguma ortodoxia socialista ou marxista. Essa saliência compunha a experiência histórica dos Estados Unidos nesse momento decisivo de sua construção nacional e da consolidação do capitalismo.

Ao longo do desencantamento pelo qual Martin Eden passa durante o romance, seu individualismo filosófico se adensa, pois as negativas que ele recebe das classes superiores reforçam-no quando estas mesmas classes são despidas de sua inicial grandeza. À medida que seus esforços literários começam a render frutos, contrariando as reprimendas que recebera, o senso de autoafirmação daquela postura individualista se consolida, ao passo que as feições filosóficas do protagonista se delimitam em definitivo. Ele passa a ser, então, a expressão idealizada do individualismo: um jogador implacável na competição social.

Em diversas cartas, London declarou que o objetivo do livro era uma crítica ao individualismo e o repúdio às elites sociais com as quais veio a roçar ombros depois de sua ascensão. Na carta enviada a Frederick Irons Bamford, de 23 de novembro de 1909, por exemplo, ele escreve que o romance “era um ataque ao individualismo” (apud BAMFORD, 1976, p. 177BAMFORD, Georgia Loring. The Mystery of Jack London: Some of his Friends, Also a Few Letters – a Reminiscence. New York: Norwood, 1976.)16 16 Trad. livre do autor: “this book is an attack on individualism”. ; e no telegrama enviado a Cloudesley Johns, de 17 de fevereiro de 1908, afirmou: “Acabei de terminar um romance de 145 mil palavras que é um ataque à burguesia e a tudo o que a burguesia defende” (apud LONDON, 1921, p. 169LONDON, Charmian K. The Book of Jack London. New York: The Century Company, 1921. v. 2.)17 17 Trad. Livre do autor: “Have just finished a 145,000 [word] novel that is an attack upon the bourgeoisie and all that bourgeoisie stands for”. . Mesmo anos mais tarde, em 1916, ele reafirmou suas intenções em carta a Henry Meale Brand: “Martin Eden e O lobo do mar (...) eram protestos contra a filosofia de Nietzsche, na medida em que a filosofia nietzscheana expõe força e individualismo até a guerra e a destruição, contra a cooperação, a democracia e o socialismo” (apud LONDON, 1921, p. 348LONDON, Charmian K. The Book of Jack London. New York: The Century Company, 1921. v. 2.)18 18 Trad. Livre do autor: “‘Martin Eden’, and ‘The Sea-Wolf’ a long time before ‘Martin Eden’, were protests against cooperation, democracy and socialism”. .

Cabe a pergunta: como pode o personagem que é o epítome do individualismo ser o alter ego do escritor, quando a crítica a esse mesmo individualismo é a raison d’être do romance? Seria o romance, nesses termos, uma espécie de esconjuro de si mesmo?

Pondo real e ficcional frente a frente, entende-se que aquele antigo amálgama de identidade, o do self-made man socialista, tornou-se o cerne dramático do romance. Uma parte substancial do interesse do livro encontra-se nesse curioso cruzamento da trajetória do escritor com a do protagonista, pois a partir desse ponto de vista, Martin Eden constitui-se em um peculiar espelho retorcido no qual o personagem que se quer desconstruir filosoficamente (em seu individualismo) foi construído por meio de um decalque autobiográfico, cuja trajetória contém rastros dessa mesma filosofia. Afinal, o self-made man Jack London foi um individualista durante bastante tempo e vinha fazendo ajustes de contas com esse passado desde, pelo menos, 1902.

O famoso texto “Como me tornei socialista”, escrito nesse mesmo ano, emblematiza essa autodevassa. Nele, London faz uma autocrítica quanto ao fato de ter se vinculado à “escola do individualismo” durante muito tempo (LONDON, 1905, p. 267LONDON, Jack. War of the Classes. New York: Macmillan, 1905.). Ele afirmou ainda: “Eu conseguia ver minha vida somente num frenesi furioso como uma das bestas louras de Nietzsche, vagando luxuriosamente e conquistando as coisas por pura força e superioridade”, ao passo que conclui: “Eu era um individualista desenfreado” (LONDON, 1905, p. 268-270LONDON, Jack. War of the Classes. New York: Macmillan, 1905.)19 19 Trad. Livre do autor: “I could see myself only raging through life without end like one of Nietzsche’s blondbeasts, lustfully roving and conquering by sheer superiority and strength”; “I was a rampant individualist”. . Passar em revista a trajetória de London até aquele ponto implica reconhecer que uma leitura nesses termos era bastante razoável; afinal, ele havia saído dos baixios sociais para a condição de escritor mais bem pago de sua época. Não espanta que essa ascensão tenha favorecido uma visão individualista de si mesmo, algo perfeitamente consoante com a mitologia do self-made man.

No texto “Como me tornei socialista”, London chama sua aproximação do socialismo de “conversão”, comparando-a ao “modo como os teutônicos pagãos se tornaram cristãos” (LONDON, 1905, p. 267LONDON, Jack. War of the Classes. New York: Macmillan, 1905.)20 20 Trad. Livre do autor: “conversion”; “the way in which the Teutonic pagans became Christians – it was hammered into me”. . Ele desejava acentuar esse traço intelectual e político (socialista) em detrimento dos outros, anteriores (individualista).

A seu modo, portanto, o artigo de 1905 (“What Life Means to Me”) é uma continuação desse processo de esconjuro, bem como O lobo do mar, aludido na carta de 1916, e também o romance Martin Eden. É isto que explica porque há, ao mesmo tempo, tanta proximidade e tanta distância entre o protagonista desse livro e o seu autor: a espinha dorsal da vida de Martin Eden é a trajetória do próprio London, mas de uma parte da qual este buscava se afastar e criticar. Por isso é que o protagonista do romance é tão cheio de contradições: é um individualista, mas se relaciona de modo solidário com companheiros de condição; é um materialista inveterado, mas também um inflamado idealista; é um crítico da ideologia liberal-burguesa, mas também um self-made man.

O protagonista é a arena onde se batem o Jack London de antes e o Jack London de então; o individualista e o socialista; o nietzscheano e o marxista; o crente nos valores liberais norte-americanos e o apóstata desse credo.

Na biografia do pai, Joan London afirmou que “até certo ponto, Martin Eden é Jack London”, e mais adiante ela explica qual é esse “ponto”: Martin Eden era “o individualista reacionário, isolado da força vital de um movimento revolucionário mundial (...), condenado à desilusão e à amargura”; ao passo que Jack era “um socialista com caloroso interesse no destino daqueles menos afortunados que ele” (LONDON, 1939, p. 330LONDON, Joan. Jack London and His Times: An Unconventional Biography. New York: The Book League of America, 1939.)21 21 Trad. livre do autor: “up to a certain point Martin Eden was Jack London”; “the reactionary individualist, isolated from the vital force of a world-wide revolutionary movement that sought to destroy the regime which enslaved and crippled most of mankind, was doomed to disillusionment and bitterness”; “a socialist with a warm interest in the fate of those less fortunate than himself”. .

Dois espíritos distintos, unidos na trajetória de uma mesma pessoa. Por isso Martin Eden é esse espelho retorcido: Jack não podia simplesmente se desfazer desse passado, que era o dele mesmo; mas urgia criticá-lo e depurá-lo, para afirmar sua filiação aos valores próprios de um socialista. Disso resulta o aspecto ambíguo, por vezes contraditório, do livro: elevado o protagonista à epítome da ideia filosófica que se quer atacar, não podia ser ele o herói do livro. Restou, portanto, desconstruí-lo por meio da tragédia, dando-lhe o final melancólico do romance, o suicídio.

Até que esse desfecho trágico se consolide, no entanto, a narrativa se constitui basicamente de uma árdua mas notável ascensão, tanto do rapaz pobre à prosperidade material quanto do humilde semiletrado à posição de titã literário e filosófico22 22 Onde o livro ser comumente considerado pela crítica um Künstlerroman, um romance de aprendizado do artista, o que faz muito sentido, pois nele se encontra todo o pathos do amadurecimento artístico e do esforço para encontrar forma adequada à sua expressão. . Ou seja, praticamente todo o romance decorre nessa zona cinzenta, e somente ao fim se decide sobre o sentido da conduta do protagonista, dissolvendo-o na sua derradeira desolação suicida. Disso resulta que Martin Eden seja antes um herói trágico ou anti-herói do que um vilão ou personagem desprezível.

É muito provável que a recepção confusa que a obra teve à época se deva a isso. Joan London disse que “a maioria dos leitores (...) a consideraram somente como uma ‘história de sucesso’” (LONDON, 1939, p. 329LONDON, Joan. Jack London and His Times: An Unconventional Biography. New York: The Book League of America, 1939.)23 23 Trad. livre do autor: “most readers (...) have regarded it solely as a ‘success story’”. , isto é, que engrossava o coro voluntarista da cultura liberal dos Estados Unidos, para regozijo da crítica burguesa e para a desconfiança dos socialistas. Na cópia do livro que enviou a Upton Sinclair, Jack escreveu: “Um dos motivos desse livro era o ataque ao individualismo (...). Eu devo tê-lo estragado, porque nenhum resenhista o descobriu” (apud LONDON, 1939, p. 329-330LONDON, Joan. Jack London and His Times: An Unconventional Biography. New York: The Book League of America, 1939.)24 24 Trad. livre do autor: “One of my motifs, in this book, was an attack on individualism. (...) I must have bungled, for not a single reviewer has discovered it”. . Entre as notas que London tinha à cabeceira quando de seu falecimento estava uma que dizia: “Biografia socialista. Martin Eden e O lobo do mar, ataques à filosofia nietzscheana, cujo ponto mesmo os socialistas ignoraram” (LONDON, 1939, p. 356LONDON, Joan. Jack London and His Times: An Unconventional Biography. New York: The Book League of America, 1939.)25 25 Trad. livre do autor: “Socialist biography. Martin Eden a nd The Sea-Wolf, attacks on Nietzschean philosophy, which even the socialists missed the point of”. .

Parte substancial da tragédia de Martin Eden se deve à sua desilusão para com a elite social e econômica: “Humpf! Eles são repugnantes! E pensar que em minha inocência eu sonhava que as pessoas que ocupavam altas posições, que viviam em boas casas, e que possuíam boa educação e contas bancárias, eram pessoas de valor!” (LONDON, 1916, p. 326LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)26 26 Trad. livre do autor: “Faugh! They are sickening. And to think of it, I dreamed in my innocence that the persons who sat in the high places, who lived in fine houses and had educations and bank accounts, were worth while!”. . Martin supunha que a posição de superioridade material dessa elite coincidisse com grandeza cultural e espiritual, e que essa grandeza fosse a razão daquela superioridade, algo que ele descobre não ser verdade. Daí o crítico Harold Spinner, em texto de 1970, ter chamado a atenção para o fato de que Martin Eden foi “um dos primeiros romances a documentar a desintegração da história americana de sucesso, o colapso final das lendas de Horatio Alger, e a grande queda do Evangelho da Riqueza” (apud OWNBEY, 1978, p. 114OWNBEY, Ray W. Jack London: Essays in Criticism. New York: Peregrine Smith, 1978.)27 27 Trad. livre do autor: “Martin Eden is one of the first novels that documents the disintegration of the American success story, the final collapse of the Horatio Alger legend, the great fall of the Gospel of Wealth myth”. .

A passagem do século XIX para o XX nos Estados Unidos foi palco de mudanças históricas profundas, entre as quais destacamos três: a industrialização acelerada, a concentração econômica que consolidou os monopólios e oligopólios, e a formação de uma classe trabalhadora moderna (via proletarização das antigas classes médias e via imigração, sobretudo). A coincidência desses três processos não foi uma fatalidade cronológica, e nem passou despercebida aos habitantes desse tempo, ainda que frequentemente sob a forma de ambiguidade. Os magnatas eram, como os chamou Debouzy (1972, p. 9), “monstros de duas cabeças”: ora chamados de “barões ladrões” (robber barons), ora “reverenciados por jornais e políticos como verdadeiros self-made men” (JUNQUEIRA, 2018, p. 136JUNQUEIRA, Mary Anne. Estados Unidos: Estado Nacional e narrativa da nação (1776-1900). São Paulo: Edusp, 2018.).

Em livro de 1953 dedicado ao assunto, The Age of Moguls, o historiador norte-americano Stewart Holbrook afirmou que “os homens desse livro têm sido descritos, ao longo de um século, como gigantes e Titãs, e mais frequentemente como patifes, ladrões e velhacos”28 28 Trad. livre do autor: “The men in this book have been described variously during a century as giants and Titans, and more often as rogues, robbers, and rascals”. . Contudo, observou também, logo à frente, que “eles têm sido tratados como uma classe” (HOLBROOK, 2010, p. 13, grifo nossoHOLBROOK, Stewart. The Age of the Moguls. New York: Routledge, 2010.)29 29 Trad. livre do autor: “They have usually been treated as a class”. . Da chamada Gilded Age (c. 1870-1900), uma espécie de era idílica do capitalismo monopolista, para a chamada Progressive Era (c. 1900-1915), quando se tornou comum escrachar publicamente os monopólios, a figura do magnata foi perdendo o brilho e indo de herói à vilão. Dito de outro modo: o significado político e cultural do magnata (e do capitalismo monopolista) foi mudando de sinal na medida em que as relações sociais e econômicas também mudavam de conteúdo, ganhando acento predatório e fomentando um empobrecimento crescente.

Para London, a solução de continuidade existencial após essa viragem de valores aparece do seguinte modo: “Eu voltei para a classe trabalhadora na qual eu havia nascido e à qual pertencia. (...) O imponente edifício da sociedade acima da minha cabeça não contém mais encantos para mim. É a fundação do edifício que me interessa” (LONDON, 1910, p. 308LONDON, Jack. Revolution and Other Essays. New York: Macmillan, 1910.)30 30 Trad. livre do autor: “So I went back to the working-class, in which I had been born and where I belong. (...) The imposing edifice of society above my head holds no delights for me. It is the foundation of the edifice that interests me”. . O socialismo se ofereceu como esse meio de atar o antes e o agora em torno de um porvir, de um projeto social e político.

Para Eden, por sua vez, não havia esse caminho: o individualismo o isolava e o tornava presa da melancolia, da completa perda de sentido com que se despedem dele as linhas finais do romance, que narram seu terrível afogamento suicida31 31 Na primeira cópia impressa do livro, com a qual presenteou sua esposa Charmian, Jack London chegou a escrever: “Viu só? Martin não tinha você!” (LONDON, 1921, p. 182). .

A aparição dos imigrantes está inserida organicamente nesse romance. Como nos propomos aqui a fazer uma leitura do romance à contrapelo, com objetivos distintos daqueles que ele próprio possui, coube não ignorar essas questões, pois somente entendendo a “economia interna da obra” é que podemos “fundir texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra” (CANDIDO, 2010, p. 12CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2010.).

Por meio dessa concepção é que se pode tomar o livro como fonte histórica, pois desse modo entendemos sua significação social através de sua existência como, digamos, objeto estético. Trocando em termos, podemos dizer que nos interessa analisar a realidade histórica “através da” literatura, tanto quanto “na” literatura. Tanto quanto um conjunto de “aparições” a ser mapeado no texto ficcional, a realidade histórica interessa sobretudo como elemento ativo, como “componente de uma estrutura literária” (CANDIDO, 2010, p. 9CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2010.), como “dispositivo literário que capta e dramatiza” (SCHWARZ, 1997, p. 11SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo – Machado de Assis. São Paulo: Ed. 34, 1997.).

Nisso nos apoiamos também em Sevcenko (1989, p. 20)SEVCENKO, Nicolau. A literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1989. quando pontifica:

Afinal, todo escritor possui uma espécie de liberdade condicional de criação, uma vez que os seus temas, motivos, valores, normas ou revoltas são fornecidos ou sugeridos pela sua sociedade e seu tempo – e é destes que eles falam. Fora de qualquer dúvida: a literatura é antes de mais nada um produto artístico, destinado a agradar e a comover: mas como se pode imaginar uma árvore sem raízes, ou como pode a qualidade dos seus frutos não depender das características do solo, da natureza do clima e das condições ambientais?

Cabe entender que não há literatura sem experiência social, do mesmo modo que não há ficcional sem real. No entanto, essa afirmação não aceita como corolário a pressuposição de que a literatura (e o ficcional) são como meros reflexos ou excrescências da sociedade (e do real). Candido (2010)CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2010. chamava isso de “sociologismo” e Alfredo Bosi (2005, p. 325)BOSI, Alfredo. Caminhos entre a literatura e a história. Estudos Avançados, São Paulo, v. 19, n. 55, p. 315-334, 2005., apoiando-se na obra de Otto Maria Carpeaux, de “meia verdade do determinismo sociológico”.

Entender o papel do “social” e do “histórico” no texto literário, afirmam os três críticos, serve para esclarecer o funcionamento da literatura em seus diversos desdobramentos. O que propomos, na esteira de Sevcenko (1989)SEVCENKO, Nicolau. A literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1989. e também de Chalhoub (2003)CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003., é que esse entendimento pode ser virado na outra direção, servindo para esclarecer a realidade tornada ingrediente da ficção. Assim, a literatura e a história podem se iluminar mutuamente; afinal, a decisão de incorporar elementos do real no ficcional é um ato tanto literário quanto histórico. Munidos disso, passemos à análise da questão da “imigração”.

Imigrantes e classe social

Em Martin Eden há cinco personagens que podem ser chamados de imigrantes: o Sr. Butler, próspero advogado australiano; o holandês não nomeado, gerente da lavanderia onde trabalhou Martin Eden; Hermann von Schmidt, o cunhado alemão do protagonista; Maria Silva, a portuguesa dona da pensão onde Martin morava; e o merceeiro português não nomeado, em cujo estabelecimento o protagonista compra mantimentos.

Chamamos esses personagens de imigrantes seja porque eles têm suas trajetórias aos Estados Unidos explicitamente narradas, seja pelo fato de que são identificados por sua nacionalidade não americana. Esmiuçaremos isto mais à frente. O que interessa chamar a atenção no momento é o fato de que esses cinco personagens podem ser divididos em dois grupos: há os “de cima”, burgueses ou aburguesados (Sr. Butler, o gerente holandês e Hermann von Schmidt); e há os “de baixo”, trabalhadores empobrecidos ou ligeiramente remediados (o merceeiro português e Maria Silva). Além dessa divisão, pode-se também dizer que eles descrevem uma espécie de escala decrescente, pois do Sr. Butler até Maria Silva se vai dos altos da pirâmide socioeconômica até os seus baixios, com os demais personagens mencionados constituindo, respectivamente, pontos de referência na descida.

A disposição espacial desses personagens, que os localiza verticalmente, toma como base uma pirâmide social na qual os índices mais acima e mais abaixo servem como identificação de classe, o que os vincula de modo bastante simétrico à estratificação social à qual o romance alude recorrentemente. Como a trama deste está firmemente atada à trajetória do protagonista, e como esta conta de um processo de ascensão social, a capacidade de identificar esses mesmos níveis é elemento fundamental para a realização tanto do enredo do livro (em termos literários) quanto de seu objetivo político-filosófico (a crítica ao individualismo). Dado que todos os personagens identificados como imigrantes constituem uma espécie de elenco de suporte à trama principal, orbitando ao redor da trajetória do protagonista, eles são dispostos nesses diferentes níveis para identificá-los e dar-lhes corpo.

Dito de outra maneira: Jack London recrutou diferentes personagens para dar corpo à noção de “classe”, com vistas a delinear e valorar níveis sociais que permitissem dar um determinado sentido ao movimento do protagonista ao longo do romance. Se os imigrantes entram aí como encarnações possíveis desses níveis, também entra a sua condição de imigrante como parte disso. Ou seja, o caminho que London percorreu em uma direção (usar os imigrantes para personificar as classes), podemos percorrer no sentido reverso (tomando a “classe” para entender a materialização da condição de imigrante).

Aqui é possível notar o distanciamento de nossa interpretação em relação à de Reesman. Enquanto argumentamos que as cercanias de classe são determinantes para o recrutamento (ou não) de diferentes nacionalidades e etnias para sublinhar alteridade, a autora afirma que “a raça em Martin Eden é uma metáfora para identidade, posição de classe e masculinidade, sublinhando não o problema da classe (...), mas também o próprio senso de identidade de Martin” (REESMAN, 2009, p. 212REESMAN, Jeanne Campbell. Jack London’s Racial Lives: A Critical Biography. Athens: University of Georgia Press, 2009.)32 32 Trad. livre do autor: “Race in Martin Eden is a metaphor for identity, class position, and masculinity, underlying not only the novel’s problem of class but also Martin’s sense of identity itself”; “race as class”. . Donde “raça como classe” (REESMAN, 2009, p. 208REESMAN, Jeanne Campbell. Jack London’s Racial Lives: A Critical Biography. Athens: University of Georgia Press, 2009.).

A leitura é interessante e o argumento de Reesman é bastante persuasivo, mas insistimos que o sublinhar da classe é determinante para a interpretação, na medida em que expressa a disposição voluntária do escritor. Em um momento histórico em que as desigualdades socioeconômicas se acentuavam e a estrutura de classes se tornava mais visível, parece-nos que o destaque de London à classe como elemento de construção do argumento do livro é item de primeira grandeza. Procuramos demonstrá-lo nas páginas que seguem.

É bastante provável que London tenha notado, ao longo de sua vida, um sensível aumento no número de pessoas de outras nacionalidades, embora a imigração do final do século do XIX e início do XX tenha se concentrado mais na porção leste do território, em franca industrialização (U.S. DEPARTMENT OF HOMELAND SECURITY, 2010U.S. DEPARTMENT OF HOMELAND SECURITY. Persons Obtaining U.S. Legal Permanent Resident Status by Census Region and Division of Residence: Washington, D.C.: U.S. Department of Homeland Security, Office of Immigration Statistics, 2010. 1 mapa, color. Disponível em: https://www.dhs.gov/sites/default/files/publications/lpr-historical-resident-trends-by-state-1892-2010.pdf. Acesso em: 7 dez. 2021.
https://www.dhs.gov/sites/default/files/...
). Em que pese essa distribuição geográfica desigual, os Relatórios Anuais de Imigração produzidos pelo Departamento de Segurança Nacional dos Estados Unidos permitem argumentar a favor daquela percepção: entre 1900 e 1909, mais de 8,2 milhões de imigrantes entraram legalmente nos Estados Unidos (U.S. DEPARTMENT OF HOMELAND SECURITY, 2011, p. 7U.S. DEPARTMENT OF HOMELAND SECURITY. Yearbook of Immigration Statistics: 2010. Washington, D.C.: U.S. Department of Homeland Security, Office of Immigration Statistics, 2011. 110p.), e para uma população do país continental, de acordo com o Censo de 1910, que era de pouco menos de 92 milhões (algo próximo de 9%)! (U.S. CENSUS BUREAU, 1913U.S. CENSUS BUREAU. Thirteenth Census of the United States Taken in the Year 1910: Volume I – Population. Washington, D.C.: Bureau of the Census Library, 1913. Disponível em: https://www.census.gov/library/publications/1913/dec/vol-1-population.html. Acesso em: 5 dez. 2021.
https://www.census.gov/library/publicati...
).

É necessário sublinhar que a presença de não americanos era bastante comum na Califórnia, considerando a história de sua ocupação – o território foi uma possessão colonial espanhola entre os séculos XVI e XIX e parte do território mexicano entre 1821 e 1848. A isso se deve adicionar, ainda, a explosão migratória disparada pela “Corrida do Ouro” nas décadas de 1840-1850, que reuniu aventureiros e soldados da fortuna de diversas nacionalidades.

Embora esses sejam fatores importantes a se considerar quanto à composição da sociedade californiana, as nacionalidades não americanas que London atrela aos personagens de Martin Eden não compõem necessariamente grupos majoritários de qualquer um desses momentos da história da Califórnia. Isso impede uma leitura mais, por assim dizer, alegórica em relação à questão da imigração. Nenhum dos personagens imigrantes ou não americanos compõe um tipo ideal de sua nacionalidade; sua composição se dá, antes, em termos de verossimilhança e, como argumentamos, em um plano secundário (ou seja, não são estereótipos nem arquétipos).

Para entender a historicidade do romance quanto à imigração norte-americana, procedamos à análise do primeiro grupo de personagens, os “de cima”, dissecando-os em escala decrescente.

No que diz respeito ao Sr. Butler, é por meio das palavras de Ruth Morse, o interesse romântico de Martin Eden, que descobrimos suas origens:

Considere o Sr. Butler. Ele não tinha (...) nenhuma vantagem de início. O pai dele tinha sido um caixa de banco, e por anos definhou em virtude de uma tuberculose no Arizona, de modo que, quando faleceu, o Sr. Butler (...) encontrou-se sozinho no mundo. O pai dele tinha vindo da Austrália, sabe, então ele não tinha parentes na Califórnia. O Sr. Butler foi trabalhar numa tipografia – eu o ouvi falar disso muitas vezes – e no início ganhava três dólares por semana. A renda dele hoje em dia é de pelo menos trinta mil ao ano. Como ele conseguiu fazer isto? Ele foi honesto, leal e econômico. Ele negou a si os divertimentos que a maioria dos jovens se permite. Ele se comprometeu a economizar uma certa quantia toda semana, não importando o que ele precisasse fazer para conseguir atingir essa quantia. Evidentemente, em pouco tempo ele estava ganhando mais do que três dólares por semana, e conforme seus ordenados cresceram, ele economizou cada vez mais (LONDON, 1916, p. 71LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)33 33 Trad. livre do autor: “‘There is Mr. Butler’ (...). He had comparatively no advantages at first. His father had been a bank cashier, but he lingered for years, dying of consumption in Arizona, so that when he was dead, Mr. Butler, Charles Butler he was called, found himself alone in the world. His father had come from Australia, you know, and so he had no relatives in California. He went to work in a printing-office, – I have heard him tell of it many times, – and he got three dollars a week, at first. His income to-day is at least thirty thousand a year. How did he do it? He was honest, and faithful, and industrious, and economical. He denied himself the enjoyments that most boys indulge in. He made it a point to save so much every week, no matter what he had to do without in order to save it. Of course, he was soon earning more than three dollars a week, and as his wages increased he saved more and more”. .

Para Ruth, filha do empresário Morse, característico burguês, a conduta do Sr. Butler é modelar: ele segue a frugalidade e a industriosidade preconizadas por Benjamin Franklin, as mesmas que Max Weber tratou como pedra angular do “espírito do capitalismo”. Aos olhos de Ruth, o destino do Sr. Butler já estava traçado, pois, seguindo a cartilha do self-made man, era apenas uma questão de tempo até que ele alcançasse os cumes da prosperidade. É desse modo que ela arremata a narrativa sobre a vida dele:

Ele trabalhou, disse papai, como nenhum outro contínuo antes. O Sr. Butler estava sempre ansioso por trabalhar. (...) Todo tempo livre era dedicado a estudar. Ele estudava contabilidade e datilografia, e pagava lições de taquigrafia ditando, à noite, para um estenógrafo judicial que precisava praticar. Ele rapidamente se tornou auxiliar de escritório e se tornou indispensável. Papai o apreciava muito e notou que ele estava destinado a subir na vida. (...) Ele se tornou um advogado, e mal tinha retornado ao escritório quando papai lhe ofereceu sociedade. Ele é um grande homem (...). Uma vida assim serve de inspiração a todos nós. Ela mostra que um homem com disposição pode se erguer acima de seu meio (LONDON, 1916, p. 73-74LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)34 34 Trad. livre do autor: “He worked, so father says, as no other office boy he ever had. Mr. Butler was always eager to work. He never was late, and he was usually at the office a few minutes before his regular time. And yet he saved his time. Every spare moment was devoted to study. He studied book-keeping and type-writing, and he paid for lessons in shorthand by dictating at night to a court reporter who needed practice. He quickly became a clerk, and he made himself invaluable. Father appreciated him and saw that he was bound to rise. It was on father's suggestion that he went to law college. He became a lawyer, and hardly was he back in the office when father took him in as junior partner. He is a great man. He refused the United States Senate several times, and father says he could become a justice of the Supreme Court any time a vacancy occurs, if he wants to. Such a life is an inspiration to all of us. It shows us that a man with will may rise superior to his environment”. .

A narrativa de Ruth segue bem de perto o enredo típico das dime-novels de Horatio Alger Jr., muito populares à época, chamadas de “dos trapos ao luxo” (from rags to riches). A estrada que se estende de um a outro é pavimentada pela dedicação fervorosa ao trabalho e agudas autodisciplina e autossacrifício. No relato de Ruth encontram-se duas dimensões da pertença de classe, ambas centrais para o argumento de Jack London: o substrato material e a afiliação ideológica. O Sr. Butler é identificado como burguês por ser sócio de uma grande firma de advocacia e ganhar “trinta mil dólares ao ano”, mas também porque subscreve à ideologia do self-made man, o “homem destinado a subir na vida”.

Martin Eden, oriundo dos baixios sociais e no ardor da juventude, discorda da conclusão moral oferecida por Ruth. Ele admite que se trata de “um grande homem”, mas oferece uma réplica que demarca a fronteira de classe por meio da divergência ideológica:

Aposto com você uma coisa (...), que o Sr. Butler não é alegre agora, nos seus dias de fartura. Ele se alimentou mal por anos e anos, quando jovem, e seu estômago não deve estar bem atualmente. (...) Aposto que ele sofre de dispepsia! (LONDON, 1916, p. 72LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)35 35 Trad. livre do autor: “‘There's one thing I'll bet you,’ he said, ‘and it is that Mr. Butler is nothin' gay-hearted now in his fat days. He fed himself like that for years an' years, on a boy's stomach, an' I bet his stomach's none too good now for it. (...) I’ll bet he’s got dyspepsia right now!”. .

Diante da tréplica de Ruth quanto ao preço justo da ascensão – “Mas pense no que ele é agora!” –, Martin não insiste e se cala, mas London nos faculta acesso ao estado de espírito do personagem: “Ele estava insatisfeito com a carreira do Sr. Butler. Havia algo de mesquinho nela, afinal. Trinta mil dólares ao ano era algo bom, mas a dispepsia e a inabilidade de ser humanamente feliz acabavam roubando essa renda principesca de todo o seu valor” (LONDON, 1916, p. 74LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)36 36 Trad. livre do autor: “He was dissatisfied with Mr. Butler's career. There was something paltry about it, after all. Thirty thousand a year was all right, but dyspepsia and inability to be humanly happy robbed such princely income of all its value”. .

A divergência entre a visão existencial de Martin e a do Sr. Butler (e de Ruth) estava calcada na distância de classe, pois em situações opostas da dinâmica social e econômica, um no topo e outro na porção inferior, eles não partilham do mesmo entendimento quanto ao trabalho. Especificamente em relação à condição de imigrante, a assimilação do Sr. Butler quanto à ética liberal torna sua origem não americana algo menos importante, ao passo que sua filiação ideológica tanto expressa sua condição de classe quanto sua “americanização”. Isto é, apesar de sua ascendência australiana, é contra o pano de fundo da pertença de classe que London o recorta, com a adoção pelo Sr. Butler dos valores liberais dominantes da época o imiscuindo no seio da burguesia e tornando secundária sua condição de descendente de imigrantes.

Como o diálogo acima ocorre no início do livro, quando Martin ainda cultivava uma imagem idealizada dessa burguesia, as fronteiras de classe não se tensionam de modo dramático na sequência. A divergência com Ruth é tímida, e a sombra ainda veneranda de um membro da elite faz com que a crítica de Martin se desarme e fique restrita aos domínios interiores. A condição imigrante do Sr. Butler, portanto, não é mobilizada naquela situação social e, por isso, não se materializa em experiência.

Em descenso na escala social, encontramos o holandês da lavanderia logo após o Sr. Butler. Ele é o gerente do hotel no qual se encontra a lavanderia onde Martin e outro personagem, Joe Dawson, trabalham. A descrição da rotina laboral dos dois é bastante pormenorizada, visto que London trabalhou durante alguns meses em uma lavanderia semelhante a essa. Para não tornar exaustiva essa descrição, transcrevemos somente o trecho em que London explica a situação de Martin após algumas semanas de trabalho:

Ele estava morto. Sua alma parecia morta. Ele era uma besta, uma besta de trabalho. Ele não via beleza no brilho do sol peneirado pelas folhas verdes, nem o azul da abóbada celeste sussurrava insinuante a velha vastidão cósmica e os segredos tremendo para serem revelados. A vida era intoleravelmente tediosa e estúpida, e o gosto dela era amargo em sua boca (LONDON, 1916, p . 152LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)37 37 Trad. livre do autor: “He was dead. His soul seemed dead. He was a beast, a work-beast. He saw no beauty in the sunshine sifting down through the green leaves, nor did the azure vault of the sky whisper as of old and hint of cosmic vastness and secrets trembling to disclosure. Life was intolerably dull and stupid, and its taste was bad in his mouth”. .

O cotidiano prático do trabalho na lavanderia, tal como o relato de Ruth, desnuda as distâncias de classe. Na condição de trabalhadores, Martin e Dawson enxergam-se na relação que mantêm com o proprietário holandês, que ocupa a posição de patrão. A exaustão física e mental dos dois atua no romance como um lembrete da oposição de seus interesses aos do holandês, e alimenta um micro-momento catártico da trama, quando Dawson explode diante de “um lote extra de roupa fina para engomar”:

— Vou me demitir. (...) Não vou aceitar isto. Vou sair de uma vez. De que adianta eu trabalhar que nem um escravo a semana toda, economizando minutos, e aí eles vêm me dando roupa extra para engomar? Este é um país livre e eu vou dizer praquele holandês gordo o que acho dele. E num vou dizer em francês. Em americano simples está bom para mim (LONDON, 1916 , p. 146 -147LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916. )38 38 Trad. livre do autor: “‘I'm goin' to quit,’ he announced. ‘I won't stand for it. I'm goin' to quit it cold. What's the good of me workin' like a slave all week, a-savin' minutes, an' them a-comin' an' ringin' in fancy-starch extras on me? This is a free country, an' I'm goin' to tell that fat Dutchman what I think of him. An' I won't tell 'm in French. Plain United States is good enough for me’”. .

A nacionalidade desse imigrante ou descendente de imigrante (o livro não traz informações definitivas a esse respeito) é parte da explosão de Dawson. Embora compreendamos que é a distância de classe que London sublinhava aqui, é curioso como o xingamento “holandês gordo” serve como meio de expressão dessa distância, e também a ameaça de usar o “bom inglês” ao invés do “francês” para a desforra prometida.

Isso se agudiza mais à frente, em outro episódio, quando Joe Dawson descobre o que considerou um abuso de seu trabalho e de Martin:

ao carregar o caminhão com roupas sujas para lavar, Joe notou a camisa do gerente do hotel. Ele conhecia a marca, e com uma súbita e gloriosa consciência de liberdade, ele atirou a camisa no chão e pisou nela. “Queria que você estivesse vestindo ela, seu holandês cabeça de porco!” — ele gritou. “Vestindo ela bem aqui, onde eu te pegaria! Toma isto! E isto! Dane-se!” (LONDON, 1916, p. 159LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)39 39 Trad. livre do autor: “filling the truck with soiled clothes for the washer, Joe spied the hotel manager's shirt. He knew its mark, and with a sudden glorious consciousness of freedom he threw it on the floor and stamped on it. ‘I wish you was in it, you pig-headed Dutchman!’, he shouted. ‘In it, an' right there where I've got you! Take that! an' that! an' that! damn you! Hold me back, somebody! Hold me back!”. .

Como na outra ocasião, a nacionalidade é tomada em acepção pejorativa, constituindo parte do ataque furioso de Dawson à camisa, tornada símbolo da exploração. O fato de o gerente ter adicionado uma peça particular para ser lavada junto com a roupa suja do hotel se torna tanto mais grave pelo fato de ser aquele um “holandês cabeça de porco”. Novamente, a pertença de classe está entrelaçada na narrativa que menciona a nacionalidade não americana como um traço do perfil dos personagens. Nesse caso, contudo, ela é mais saliente do que no caso anterior, seja pela descida que se opera na classe social, seja porque a situação-limite se prestava a expressões mais hostis. Posto de outro modo: a condição de imigrante foi mobilizada pela comoção da cena e se tornou experiência.

Na porção inferior do grupo dos “de cima” encontra-se Hermann von Schmidt, o cunhado alemão de Martin Eden, marido de sua irmã Marian. É razoável supor que parte das feições negativas do personagem venha do cunhado de Jack London, com quem este não mantinha boas relações: von Schmidt é descrito como “um jovem e industrioso mecânico de origem alemã, que, após ter aprendido bem o ofício, abriu sua própria oficina de conserto de bicicletas. Além disso, tendo conseguido se tornar representante de uma marca barata de rodas, ele prosperava” (LONDON, 1916, p. 260LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)40 40 Trad. livre do autor: “His sister Marian had been keeping company with an industrious young mechanic, of German extraction, who, after thoroughly learning the trade, had set up for himself in a bicycle-repair shop. Also, having got the agency for a low-grade make of wheel, he was prosperous”. .

Trata-se de um recém pequeno proprietário, dono de um estabelecimento comercial e, por tal, materialmente remediado. É possível tomá-lo como um dos membros daquela clássica pequena burguesia norte-americana analisada por Wright Mills. Tendo galgado alguns patamares na escala social, von Schmidt tendia a engrossar o lenga-lenga ideológico do homem que se faz a si mesmo por meio do trabalho. Em grande parte, é a isso que se devem as péssimas relações entre von Schmidt e Martin Eden.

O primeiro contato entre os dois é já belicoso. Martin havia composto um poema inspirado em sua irmã, e von Schmidt, julgando-o indecente, se enfureceu com o aspirante a escritor. Nessa cena, é dito que Martin “leu nas feições (...) do outro a mais obstinada reprovação”. Como as ambições literárias de Martin exigiam dedicação que lhe subtraía o tempo dedicado ao trabalho braçal, é nesse ponto que von Schmidt o reprova.

Na conversa que teve com Martin dias após esse primeiro contato, Marian lhe pergunta em tom velado de reprimenda: “Por que não vai trabalhar?”, ao passo que ele diz:

— Vejo que esse seu Hermann esteve falando-lhe a meu respeito. (...) Bem, diga a ele que cuide de sua própria vida.

(...)

[Marian] — Acho que seria muito melhor se você tivesse um emprego (...). Hermann disse...

[Martin] — O Hermann que se dane! (LONDON, 1916, p. 262LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)41 41 Trad. livre do autor: “He broke into a laugh that was only half-hearted. ‘That Hermann of yours has been talking to you’. (...) ‘Well, you tell that Hermann of yours to mind his own business’ (...). ‘I think it would be much better if you got a job,’ (...) said Hermann’; ‘Damn Hermann!’”. .

As relações entre von Schmidt e Martin permanecem estremecidas devido às suas visões existenciais conflitantes. Conforme visto anteriormente, essas afiliações ideológicas são emblemas de identidade de classe e, portanto, elementos de demarcação social. Assim como com o Sr. Butler, a assimilação do Evangelho do Trabalho coloca em segundo plano a nacionalidade não americana, tornando-o, na trama de Jack London, um representante dos valores burgueses capitalistas – logo, um personagem desprezível.

A diplomacia entre os dois não permanece quando há ocasiões em que a distância de classe se agudiza. Quando Martin consegue um “surto temporário de prosperidade” (LONDON, 1916, p. 302LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)42 42 Trad. livre do autor: “temporary splurge of prosperity”. por conta da venda de seus escritos, ele retira sua bicicleta do penhor e resolve mandá-la consertar na oficina do cunhado, somente para tê-la retornada sem reparo algum:

Naquele mesmo dia, mais tarde, telefonou ao noivo de sua irmã, e descobriu que este não queria ter nada com ele, “o que quer que fosse”. “Hermann von Schmidt, (...) tenho vontade de ir aí e socar esse seu nariz holandês.”43 43 O uso do termo “holandês” (em inglês “Dutchman”) pode dever-se a uma confusão de Jack London, seja com o personagem gerente do hotel, seja porque as regiões de fronteira entre Alemanha e Países Baixos, Baixa Saxônia e Vestfália, eram de assentamento razoavelmente recente (não era incomum a designação dos alemães por região, como em “pomeranos”, “bávaros” ou “renanos”, por exemplo). Uma terceira possibilidade de explicação é a proximidade entre os termos “Dutchman” (holandês) e “Deutschman” (corruptela de “alemão”). De um ou de outro modo, no entanto, a questão não desautoriza o argumento que propomos. “Se você vier à minha oficina, mando chamar a polícia. Vou te mostrar. Oh, eu sei bem de você, você não vai fazer bagunça comigo. Não quero nada de tipos como você. Você é um vagabundo, isso é o que você é, e eu não sou bobo. Você não vai se encostar em mim porque estou casando com sua irmã. Por que você não trabalha e leva uma vida honesta, hein? (LONDON, 1916, p. 302-303LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)44 44 Trad. livre do autor: “A little later in the day he telephoned his sister's betrothed, and learned that that person didn't want anything to do with him in ‘any shape, manner, or form’. ‘Hermann von Schmidt,’ Martin answered cheerfully, ‘I've a good mind to come over and punch that Dutch nose of yours.’ ‘You come to my shop,’ came the reply, ‘an' I'll send for the police. An' I'll put you through, too. Oh, I know you, but you can't make no rough-house with me. I don't want nothin' to do with the likes of you. You're a loafer, that's what, an' I ain't asleep. You ain't goin' to do no spongin' off me just because I'm marryin' your sister. Why don't you go to work an' earn an honest livin', eh?’”. .

A secundariedade da extração alemã do cunhado que se verificou na passagem anterior, quando não estava envolvida uma situação de tamanha comoção, é aqui trazida ao primeiro plano e recrutada como forma de agressão verbal. A nacionalidade não americana de von Schmidt surge como elemento saliente da relação quando a tensão classista se intensifica.

Essa leitura é corroborada por outro momento em que a origem alemã de von Schmidt é trazida à tona no texto: na ocasião em que Marian e o marido convidam Martin Eden para jantar. A essa altura do romance, Martin já se tornara um escritor próspero e publicamente reconhecido, e como outro dos convivas do jantar é “o superintendente das agências da Companhia de Bicicletas Asa na costa do Pacífico”, descobre-se que “von Schmidt desejava agradar-lhe e bajulá-lo, pois dele é que se poderia obter a representação das bicicletas em Oakland” (LONDON, 1916, p. 381LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)45 45 Trad. livre do autor: “the superintendent of the Pacific Coast agencies for the Asa Bicycle Company. Him von Schmidt desired to please and propitiate because from him could be obtained the Oakland agency for t he bic yc le ”. . Isto é, o cunhado de Martin tentou usá-lo para adular o inspetor e conseguir vantagens econômicas; em outros termos, tentou explorá-lo. Como o protagonista não quer prejudicar a irmã, ele se controla, mas London nos permite ver sua tempestade interior: “No seu íntimo Martin entendeu a situação muito bem, enquanto se inclinava para trás e deliciava-se olhando para a cabeça de von Schmidt, em sonho socando-a até quase arrancá-la, golpe atrás de golpe acertando-o em cheio – o risonho holandês!” (LONDON, 1916, p. 381LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)46 46 Trad. livre do autor: “And in his heart of hearts Martin understood the situation only too well, as he leaned back and gloated at Von Schmidt's head, in fancy punching it well-nigh off of him, sending blow after blow home just right – the chuckle-headed Dutchman!”. .

Tal como no caso anterior, é quando os limites de classe são sentidos em um nível concreto, como que “se manifestando” na dinâmica social, que a condição de imigrante ou a nacionalidade assalta o primeiro plano das relações. Estão em jogo aqui linhas de identidade muito sutis e eventualmente muito explícitas, que são (ou não) postas em ação a partir de cenários concretos, mobilizadas pelos sujeitos que neles se encontram e a eles respondem. A condição de imigrante é experiencial, e em tais termos, articulada à condição de classe, ainda que não de modo mecânico ou estritamente simétrico. Isto é, teimosamente presente a despeito da irregularidade de sua aparição explícita.

Passemos agora à análise do segundo grupo, o dos “de baixo”. Quando Martin deixa de morar com a irmã Gertrude, é para a pensão de Maria Silva que se muda. Próximo dela encontra-se o estabelecimento do merceeiro português não nomeado, onde o protagonista passa a comprar seus mantimentos. Devido aos poucos recursos de que dispõe, Martin se vê obrigado a recorrer às compras a fiado. Apesar disso, a assimetria das posições econômicas entre o merceeiro e Martin não contribui para que se desenvolva entre eles uma relação tal como aquela existente com o gerente holandês, marcada pela verticalidade.

Embora a propriedade do estabelecimento possa servir ao merceeiro português como elemento de guindagem social, a relação que se desenvolve entre ele e Martin é curiosamente horizontal. Quando o protagonista se torna o centro de um escândalo político e passa a ser visto com desconfiança ou mesmo com desprezo, o merceeiro momentaneamente “recusou-se a conceder-lhe mais crédito”, mas a recusa durou pouco. London (1916, p. 199)LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916. põe o merceeiro a se explicar:

“Porque, você vê”, disse ele, “você não ter trabalho, eu perder dinheiro”. E Martin não podia contradizê-lo. (...) Não era um bom princípio, nos negócios, fornecer crédito para um sujeito jovem e forte da classe trabalhadora que era preguiçoso demais para trabalhar47 47 Trad. livre do autor: “‘For you see,’ said the grocer, ‘you no catcha da work, I losa da mon'.’And Martin could reply nothing. There was no way of explaining. It was not true business principle to allow credit to a strong-bodied young fellow of the working-class who was too lazy to work”. .

A lógica contábil aplicada pelo merceeiro é praticamente a mesma empregada pelo Sr. Butler e por von Schmidt, e, no entanto, ela não é tornada matéria para pregações moralistas. É tomada como contingência e não como afirmação de distâncias de condição e de classe. É um elemento que, se impacta sobre Martin, impacta também sobre o próprio merceeiro, ambos sujeitos à mesma lógica econômica: se a Martin a recusa de crédito implica dificuldades em obter mantimentos, ao merceeiro português ela implica em sua sobrevivência material. Martin compreende a condição compartilhada e não reage como de costume, erguendo-se furioso, mas sim reconhecendo que “não era um bom princípio, nos negócios, fornecer crédito” sem a promessa sólida de pagamento.

Esse breve diálogo se encerra de modo simbólico, com o merceeiro português dizendo, no seu inglês claudicante: “Você conseguir trabalho, eu deixar você pegar mais comida (...). Sem trabalho, sem comida. Essa é o trato”. No entanto, escreve London (1916, p. 199)LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916., “para provar que se tratava somente de prudência comercial e não preconceito, ‘Tomar uma bebida por conta da casa – bons amigos da mesmo jeito’”48 48 Trad. livre do autor: “‘You catcha da job, I let you have mora da grub,’ the grocer assured Martin. ‘No job, no grub. Thata da business.’ And then, to show that it was purely business foresight and not prejudice, ‘Hava da drink on da house – good friends justa da same’”. .

Pela relação que se estabeleceu, na qual a distância de classe não se agudizou, o fato da nacionalidade não americana do merceeiro pouco vem à tona, passando quase despercebido. Isto é, a condição de imigrante ou de descendente de imigrantes não se materializou em experiência de modo agudo, porque o conflito socioeconômico não a precipitou. A busca de London por construir no romance um retrato caloroso dos trabalhadores, espécie de cavalo de batalha de sua “conversão socialista”, não solicitou a nacionalidade não americana do merceeiro como traço definidor de seu perfil literário.

Algo parecido, especialmente intenso neste caso, acontece com Maria Silva, a portuguesa dona da pensão onde Martin Eden mora durante a maior parte do livro. Devido ao contato mais profundo com o protagonista, a personagem acaba sendo explorada com maior detalhe na narrativa, o que nos permite aferir com precisão a sua condição:

[Martin] pagava dois dólares por mês pelo quarto que alugava da senhora portuguesa, Maria Silva, uma viúva trabalhadeira e temperamental que criava sua grande prole não se sabe exatamente como, e que, em intervalos irregulares, afogava suas mágoas e seu cansaço numa garrafa do ralo e amargo vinho que comprava na mercearia e bar da esquina por quinze centavos. Depois de detestar, de início, ela e sua língua ferina, Martin passou a admirá-la por conta de sua brava luta. (...) Grande parte de seu orçamento [de Maria] vinha da lavagem da roupa de seus prósperos vizinhos. (...) Outra fonte de renda de Maria eram suas duas vacas, que ela ordenhava todo dia de manhã e à noite e que sobreviviam clandestinamente em lotes baldios e da grama que crescia em ambos os lados da calçada. As vacas eram assistidas sempre por um ou mais dos esfarrapados filhos de Maria, cuja atenta vigilância consistia em ficar de olho nos fiscais da carrocinha (LONDON, 1916, p. 194 - 195LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)49 49 Trad. livre do autor: “He paid two dollars and a half a month rent for the small room he got from his Portuguese landlady, Maria Silva, a virago and a widow, hard working and harsher tempered, rearing her large brood of children somehow, and drowning her sorrow and fatigue at irregular intervals in a gallon of the thin, sour wine that she bought from the corner grocery and saloon for fifteen cents. From detesting her and her foul tongue at first, Martin grew to admire her as he observed the brave fight she made. There were but four rooms in the little house – three, when Martin's was subtracted. One of these, the parlor, gay with an ingrain carpet and dolorous with a funeral card and a death-picture of one of her numerous departed babes, was kept strictly for company. The blinds were always down, and her barefooted tribe was never permitted to enter the sacred precinct save on state occasions. She cooked, and all ate, in the kitchen, where she likewise washed, starched, and ironed clothes on all days of the week except Sunday; for her income came largely from taking in washing from her more prosperous neighbors. Remained the bedroom, small as the one occupied by Martin, into which she and her seven little ones crowded and slept. It was an ever-lasting miracle to Martin how it was accomplished, and from her side of the thin partition he heard nightly every detail of the going to bed, the squalls and squabbles, the soft chattering, and the sleepy, twittering noises as of birds. Another source of income to Maria were her cows, two of them, which she milked night and morning and which gained a surreptitious livelihood from vacant lots and the grass that grew on either side the public side walks, attended always by one or more of her ragged boys, whose watchful guardianship consisted chiefly in keeping their eyes out for the poundmen”. .

Em suma, como declarado mais à frente, “Maria Silva era pobre”, e “[t]odos os aspectos da pobreza lhe eram familiares” (LONDON, 1916, p. 209LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)50 50 Trad. livre do autor: “Maria Silva was poor, and all the ways of poverty were clear to her”. .

Exceto nas partes finais do romance, Martin experimentava condições similares de pobreza, “vivendo como um espartano”51 51 Trad. livre do autor: “living like a Spartan”. : encontra-se sujeito aos trabalhos braçais, tem uma contabilidade constritiva e muito irregular, cozinha no próprio quarto para economizar e vive penhorando seus pertences. Essa condição comum, adida ao convívio, torna-se a base para a solidariedade entre os dois personagens: “Ainda que fossem criaturas totalmente diferentes entre si, estavam sozinhos na sua miséria, e embora esta fosse tacitamente ignorada, era o laço que os ajuntou” (LONDON, 1916, p. 210LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)52 52 Trad. livre do autor: “Utterly differentiated creatures that they were, they were lonely in their misery, and though the misery was tacitly ignored, it was the bond that drew them together”. .

A precária existência material compartilhada os coloca no mesmo patamar social, ambos pertencentes às classes subalternizadas, os “de baixo”. Desse modo, no romance, a portuguesa se torna uma personagem abrutalhada, porém solidária, dona de uma generosidade cujo contraponto é Ruth:

Ruth nunca chegou a ler a fome no rosto de Martin, que se tornou magro conforme o pequeno vazio das bochechas cresceu. Na verdade, ela recebeu com satisfação a mudança no rosto dele. Esta parecia refiná-lo, retirando dele as imperfeições de pele e o vigor animalesco que atraía e repelia Ruth. Às vezes, ela notava admirada um brilho incomum nos olhos de Martin, pois o tornava mais parecido com um poeta ou um acadêmico. (...) Maria, ao contrário, lia outra história nas bochechas vazias e nos olhos ardentes, notando neles, dia após dia, o fluxo e o refluxo de suas fortunas. Ela o viu deixar a casa com o sobretudo e retornar sem ele, embora o dia fosse frio, e então notou que suas bochechas ficaram mais cheias e a febre de fome deixou seus olhos. Da mesma maneira ela viu a bicicleta e o relógio de pulso dele desaparecerem, e depois de cada um desses eventos percebeu como seu vigor florescia novamente (LONDON, 1916, p. 209-210LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)53 53 Trad. livre do autor: “Ruth never read hunger in Martin's face, which had grown lean and had enlarged the slight hollows in the cheeks. In fact, she marked the change in his face with satisfaction. It seemed to refine him, to remove from him much of the dross of flesh and the too animal-like vigor that lured her while she detested it. Sometimes, when with her, she noted an unusual brightness in his eyes, and she admired it, for it made him appear more the poet and the scholar (...). But Maria Silva read a different tale in the hollow cheeks and the burning eyes, and she noted the changes in them from day to day, by them following the ebb and flow of his fortunes. She saw him leave the house with his overcoat and return without it, though the day was chill and raw, and promptly she saw his cheeks fill out slightly and the fire of hunger leave his eyes. In the same way she had seen his wheel and watch go, and after each event she had seen his vigor bloom again”. .

A conhecida solidariedade horizontal dos subalternizados encontra em Maria Silva uma de suas heroínas, marcando assim a distância social, econômica e moral que a separa de Ruth, a menina rica:

Pobreza, para Ruth, era uma palavra que significava uma condição de existência não-agradável. Isto representava a totalidade de seu conhecimento acerca do assunto (...). Embora soubesse que a pobreza era tudo menos agradável, ela tinha o confortável sentimento de classe média que a pobreza era saudável porque constituía um incentivo para o sucesso a todos os homens que não fossem incapazes ou burros de carga (LONDON, 1916, p. 209LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)54 54 Trad. livre do autor: “Poverty, to Ruth, was a word signifying a not-nice condition of existence. That was her total knowledge on the subject. She knew Martin was poor, and his condition she associated in her mind with the boyhood of Abraham Lincoln, of Mr. Butler, and of other men who had become successes. Also, while aware that poverty was anything but delectable, she had a comfortable middle-class feeling that poverty was salutary, that it was a sharp spur that urged on to success all men who were not degraded and hopeless drudges”. .

Se ao longo do livro Ruth vai sendo desconstruída juntamente com os demais membros de sua classe, revelados como donos de uma grandeza vazia, de aparência, o movimento reverso ocorre com Maria Silva, elevada pela graça da solidariedade. Quando ela envia a Martin um pão e “uma avantajada tigela de sopa quente”, ele lembra da prole dela e chega a “pergunta[r]-se (...), em seu íntimo, se era correto tirá-la às bocas de sua própria carne e sangue”. A conclusão a que Martin chega é a seguinte: “conhecendo, como conhecia, a vida dos pobres, sabia que, se havia caridade no mundo, estava diante dela” (LONDON, 1916, p. 210LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)55 55 Trad. livre do autor: “a great pitcher of hot soup”; “debating inwardly the while whether she was justified in taking it from the mouths of her own flesh and blood”; “knowing as he did the lives of the poor, and that if ever in the world there was charity, this was it”. .

Reesman (2009, p. 210)REESMAN, Jeanne Campbell. Jack London’s Racial Lives: A Critical Biography. Athens: University of Georgia Press, 2009. oferece uma leitura alternativa sobre a relação de Martin com os Silva: “sua gentileza e compaixão com os menos afortunados, especialmente a família dos Silva, ironicamente resulta na sua mistura com eles de um modo que ameaça sua identidade como um homem branco, contribuindo para que ele perca Ruth Morse”56 56 Trad. livre do autor: “His kindness and compassion for those less fortunate than he, especially the Silva Family, ironically results in his mixing with them in ways that threaten his identity as a white man, contributing to his loss of Ruth Morse”. . Para a autora, a ascensão social de Martin foi comprometida porque ele se misturou com pessoas que não correspondem ao ideal de brancura específico das classes altas dos Estados Unidos de então, em que a origem anglo-saxã ou nórdica é imperiosa. Em outras palavras, a linha de corte é racial. O que argumentamos, de modo distinto, embora não excludente, é que a linha de corte passa pela classe, antes da raça ou da nacionalidade, e que essas últimas são (ou não) tornadas decisivas na medida em que aquela as precipita. Se quanto a isso é difícil ou mesmo impossível ser definitivo, o romance de London autoriza tal leitura.

É em uma das ocasiões de convívio fraterno entre esses personagens que a narrativa nos dá a conhecer as origens de imigrante de Maria Silva. Em conversa, Martin conta-lhe passagens de sua vida de marinheiro e menciona ter passado pelas terras de origem da portuguesa: “Maria ficou maravilhada ao descobrir que ele estivera nos Açores, onde ela tinha vivido até os onze anos de idade. Ficou duplamente maravilhada ao descobrir que ele estivera nas ilhas havaianas, para onde ela havia migrado com sua família” (LONDON, 1916, p. 210LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.)57 57 Trad. livre do autor: “Maria was amazed to learn that he had been in the Azores, where she had lived until she was eleven. She was doubly amazed that he had been in the Hawaiian Islands, whither she had migrated from the Azores with her people. But her amazement passed all bounds when he told her he had been on Maui, the particular island whereon she had attained womanhood and married”. .

Tal como aconteceu com o merceeiro português, com Maria Silva a condição de imigrante é notada de modo discreto, não se constituindo como um fator central da relação entre ela e Martin. O entendimento horizontal que mantêm, assim como a comunhão moral e ideológica, não eletrificam a nacionalidade como arma de acusação ou de agressão.

Maria Silva provavelmente fez parte do processo de crescimento da imigração de portugueses para os Estados Unidos entre 1880 e 1930, coincidindo com o que Baganha (2003)BAGANHA, Maria Ioannis B. Portuguese Transatlantic Migration. In: BAILY, Samuel L.; MÍGUEZ, Eduardo J. (Eds.). Mass Migration to Modern Latin America. Wilmington: Jaguar Books, 2003. p. 51-68. chamou de “deterioração das condições do mercado de trabalho português”. A maioria dos mais de 2 milhões de imigrantes saídos de Portugal entre 1855 e 1930 foram para o Brasil (cerca de 80%), mas o segundo destino principal era os Estados Unidos (BAGANHA, 2003, p. 51-68BAGANHA, Maria Ioannis B. Portuguese Transatlantic Migration. In: BAILY, Samuel L.; MÍGUEZ, Eduardo J. (Eds.). Mass Migration to Modern Latin America. Wilmington: Jaguar Books, 2003. p. 51-68.). Baganha (2003, p. 53)BAGANHA, Maria Ioannis B. Portuguese Transatlantic Migration. In: BAILY, Samuel L.; MÍGUEZ, Eduardo J. (Eds.). Mass Migration to Modern Latin America. Wilmington: Jaguar Books, 2003. p. 51-68. afirma que “a severa queda de oportunidades de emprego para mulheres na região norte do país e em Açores ajuda a explicar a participação crescente de mulheres nos fluxos migratórios da década de 1900”58 58 Trad. livre do autor: “The severe decrease of jobs opportunities for women in northern regions of the mainland and Azores Islands helps to explain increasing female participation in the migratory flow after the 1900s.” . Acossadas pelo desenvolvimento econômico desigual de Portugal, Marias como a do livro engrossaram as fileiras de imigrantes desde fins do século XIX.

Ao não ser requisitada pela dinâmica social que envolve Martin e Maria Silva, a nacionalidade portuguesa dela não ganha saliência, ou, no limite, a ganha como elemento de uma já estabelecida relação de solidariedade de classe. Atua, portanto, como um reforço, um complemento casual, antes de um traço destacado, eventualmente explosivo.

No romance, portanto, o que se vê quanto ao grupo dos “de baixo” é que o esforço de simpatia socialista praticado por Jack London põe em segundo plano o traço imigrante e/ou a nacionalidade não americana. A ausência de tensões de classe entre o protagonista e os personagens de outra nacionalidade corrobora o argumento de que fatores étnicos ou nacionais comumente entrelaçados à questão da imigração estão fortemente atrelados à estratificação social e à luta de classes socialmente encampada, participando de suas dinâmicas e sendo por meio delas salientados ou secundarizados.

Considerações finais

Para definir, equilibrar e pôr em funcionamento as diversas peças que formam o romance Martin Eden, Jack London utilizou-se de personagens de diferentes nacionalidades. Tanto em relação à dimensão mais propriamente literária (a formação autobiográfica do artista) quanto em relação à crítica social do romance (a crítica à burguesia e aos valores burgueses, sobretudo ao individualismo), a percepção da divisão de classes era fundamental, inclusive como elemento constitutivo da experiência social naquele tempo de grandes transformações históricas. O elemento “imigração” entra na composição do romance nesses termos, sujeito a essas estrutura e dinâmica, motivo pelo qual propomos interpretá-lo através dela.

Analisando os personagens imigrantes e/ou de nacionalidade não americana, percebemos que eles se dividem em dois grupos de acordo com seu lugar na escala social e no espectro de valores ideológicos: os “de cima” e os “de baixo”.

O grupo dos “de cima” é constituído de burgueses e pequeno-burgueses, e é alvo da crítica de London, sobretudo pela sua profissão de fé nos valores individuais e liberais típicos do capitalismo estadunidense. Nesse grupo, flagra-se o elemento “imigração” sendo salientado pelo tensionamento de classe com que esses personagens foram construídos, com xingamentos e agressões verbais trazendo à superfície do texto essa nacionalidade distinta e funcionando como elemento de diferenciação social e de antagonismo político-ideológico, por assim dizer.

O grupo dos “de baixo” é constituído de trabalhadores pobres ou ligeiramente remediados, sendo o receptáculo da simpatia de London. Nesse sentido, as tensões de classe que caracterizam a relação do protagonista com o grupo dos “de cima” são dirimidas, dando lugar a um sentimento de solidariedade horizontal, no qual a “segunda natureza da camarederie do trabalho” (LONDON, 1916, p. 142LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.) preside o conjunto das relações sociais. Em tal cenário, o elemento “imigração” aparece como contingente e secundário, pois não atiçado pelas tensões sociais de classe.

A composição da galeria de personagens segue de perto os valores típicos de um socialista, disposta como está em classes sociais devidamente “etiquetadas” em termos morais e políticos. Ainda há, no entanto, uma zona de contato maior entre a realidade histórica e a ficção, a qual transborda qualquer eventual cartilha socialista. Nessa zona, London dialoga com as transformações históricas nos Estados Unidos de então, quando as fronteiras de classe se tornavam mais visíveis e as distâncias de classe mais intransponíveis. O afastamento de seu passado individualista o fez vibrar na mesma frequência de uma parte da sociedade norte-americana para a qual a vida sob o capitalismo monopolista tornava-se cada vez mais insuportável, e para a qual grandes fortunas como as dos magnatas eram cada vez mais obscenas.

O ressentimento contra o declínio social e a proletarização podia ou não se acoplar ao ressentimento e à desconfiança contra aqueles que ocupavam os postos mais altos daquela sociedade. Em ambos os casos, o ponto de injunção da experiência social é o que chamamos no início do texto de cercanias de classe, mas isso não significou que essa tenha sido necessariamente a leitura desses homens e mulheres. O aumento das desigualdades socioeconômicas via exploração dentro de quadros monopólicos não subsidiou uma resposta política homogênea. Houve aqueles que se voltaram à crítica do reinado dos magnatas e do capitalismo, por exemplo, como a IWW (Industrial Workers of the World), fundada em 1905, e os diversos críticos sociais da Era Progressista; mas também houve aqueles para quem a demarcação racial se mostrou mais urgente, como no movimento anti-imigracionista cujo crescimento desembocou na Dillingham Commission de 1907-1910 e nos “tribais anos vinte” (HIGHAM, 1999, p. 264-299HIGHAM, John. Strangers in the Land: Patterns of American Nativism, 1860-1925. New Brunswick: Rutgers University Press, 1999.)59 59 Trad. livre do autor: “tribal twenties”. . Em qualquer um dos casos, explica London, o critério subjacente é a classe, embora a etnia, a cor da pele, a compleição física e a nacionalidade por vezes tenham se oferecido como o pasto do ressentimento. O escritor opera sobre essa lâmina que corta ora para cá, ora para lá.

O Jack London de Martin Eden encontra-se, nesse sentido, a meio caminho entre o sujeito social (que expressa as opiniões de seu tempo) e o indivíduo (que as pensa “fora da curva” delas mesmas). Seu apego aos valores liberais novecentistas o arrastava para perto da visão hegemônica de então, sintonizada ideologicamente com o capitalismo triunfante; mas sua adoção intensificada do socialismo o levava para junto das forças que se opunham a essa hegemonia capitalista, desafiando aqueles mesmos valores. Os imigrantes, nesse ínterim, acabaram por se tornar um dos numerosos cabos de guerra que formam o livro: são sugados pelo torvelinho da luta de classes e reivindicados ideologicamente, no caso de London, para dar corpo, em um só tempo, à devassa pessoal e à celebração da solidariedade dos “de baixo”.

A verossimilhança buscada por London ao construir esses personagens, portanto, acaba por nos permitir entender que as linhas que demarcam a classe atravessam a nacionalidade e vice-versa. O que argumentamos que Martin Eden demonstra, indiretamente, é que o anti-imigracionismo e o nativismo que cresceram nos Estados Unidos nesse período estiveram calcados sobre demarcações socioeconômicas tanto quanto (e talvez mais) sobre linhas étnicas e raciais, estas últimas vazadas na nacionalidade e, portanto, recrutáveis pelo patriotismo norte-americano.

Sondando o romance em suas zonas cinzentas e pontos cegos, percebemos que a condição de imigrante nos Estados Unidos de fins do século XIX e início do XX se materializa como experiência (e é, então, obliquamente apropriada por Jack London) quando a dialética social os suscita e como que os catalisa, sobretudo em momentos de antagonismos de classe. Nesses momentos, a condição do imigrante é recrutada para os conflitos sociais, mobilizada como arma mesmo, tornando-se assim parte desse quadro de tensões maiores, em forte consonância com a dialética histórica do período, em que uma estrutura de classes moderna (carreada pela industrialização intensa) se cristalizava no país juntamente com o crescimento das desigualdades sociais e materiais.

No caso dos Estados Unidos, devido à organicidade até então vigente em relação à imigração, e particularmente durante o período em que London viveu, quando se acirrava a competição econômica oligopólica, não nos parece coincidência que assim se apresentasse o estado de coisas. A oligopolização da economia levou à proletarização de diversos setores sociais outrora prósperos; o agigantamento da escala industrial requisitou a transferência crescente de contingentes imigrantes para o território estadunidense. Aquele processo tornou particularmente visíveis as fronteiras de classe até então relativamente dissimuladas; este acirrou a competição social e econômica entre os rincões subalternos da sociedade, cada vez mais populosos e marcados pela “competição econômica desesperada” (ZINN, 1994, p. 259ZINN, Howard. A People’s History of the United States. London; New York: Longman Books, 1994.)60 60 Trad. livre do autor: “desperate economic competition”. .

Nesses termos, Martin Eden se ergue como uma crônica inesperada das ansiedades sociais que marcaram a transição histórica da Era Dourada para a Era Progressista, da qual os imigrantes formam um capítulo importante. Eles eram parte crucial da equação industrial e salarial na condição de mão de obra barata, e serviram também como cavalo de batalha do patriotismo para dificultar a unidade política da classe trabalhadora norte-americana.

O elemento “imigração” e a nomeação de pessoas e grupos como “imigrantes” compõem parte desse grande processo, de modo que o modesto elenco de suporte de Martin Eden serve como demonstração, ainda que de modo indireto, do supramencionado argumento de Oscar Handlin (1959)HANDLIN, Oscar. Immigration as a Factor in American History. Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice-Hall, 1959.: a saliência da condição de imigrante alimentou-se de e relacionou-se intimamente com a saliência da condição de classe, não sendo simples coincidência, portanto, que a difusão do termo “imigrante” tenha ocorrido no mesmo momento em que a estrutura e as fronteiras de classe se tornavam particularmente visíveis na história dos Estados Unidos. Eram, enfim, faces da mesma moeda.

  • 1
    Trad. livre do autor: “Immigration had so long been a familiar aspect of American development that it was not until the end of the nineteenth century that any question was raised as to the propriety of its continuance. The whole history of the peopling of the continent had been one of immigration”.
  • 2
    Trad. livre do autor: “his efforts to combat the anti-Asian sentiments found in American journalism during this period”.
  • 3
    Trad. livre do autor: “race is part of nearly everything important in London's writings”.
  • 4
    Trad. livre do autor: “addresses class differences in terms of racial passing”.
  • 5
    Trad. livre do autor: “the best thing he ever wrote”.
  • 6
    Trad. livre do autor: “I was born in the working-class”; “My environment was crude and rough and raw”; My place in society was in the bottom”; “Above me towered the colossal edifice of society, and to my mind the only way out was up”; “I discovered that I did not like to live on the parlor floor of society. Intellectually I was bored. Morally and spiritually I was sickened”.
  • 7
    Trad. livre do autor: “The alchemical promise of sudden self-transformation gave money a centrifugal force and a corrosive edge. It could dissolve settled communities and social bonds, send young men spinning off from their ancestral seats in search of fresh possibilities, clothe reprobates and rakes in raiments of possibilities (...). Custom, tradition, morality – all dissolved”.
  • 8
    Trad. livre do autor: “anxieties surrounded”.
  • 9
    Trad. livre do autor: “quasi-autobiographical”; “most intensely personal of all Londo's novels”.
  • 10
    Trad. livre do autor: “Up to a certain point Martin Eden was Jack London”.
  • 11
    A Ruth Morse do romance foi inspirada em Mable Applegrath, menina mais abastada do que Jack, por quem ele teve um amor devocional na juventude, o qual acabou não vingando. Além disto, assim como no romance, o contato de Jack com Mable ocorreu por meio do irmão dela, Ted Applegrath.
  • 12
    No romance, isso aparece cifrado de modo anedótico. Jack London afirmou diversas vezes que foram os 40 dólares que recebeu da revista Black Cat que lhe permitiram não desistir de seus intentos literários. Martin Eden recebe a mesma quantia, mas da revista White Mouse (LONDON, 1916, p. 220-221LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.).
  • 13
    Trad. livre do autor: “They differed, according to Jack, in their attitude toward socialism”.
  • 14
    Trad. livre do autor: “This association of poverty with progress is the great enigma of our times. It is the central fact from which spring industrial, social, and political difficulties that perplex the world”.
  • 15
    Trad. livre do autor: “The most clearly defined social structure in American history, and the deepest awareness among Americans of the classes that divided them, emerged in the years following the Civil War”.
  • 16
    Trad. livre do autor: “this book is an attack on individualism”.
  • 17
    Trad. Livre do autor: “Have just finished a 145,000 [word] novel that is an attack upon the bourgeoisie and all that bourgeoisie stands for”.
  • 18
    Trad. Livre do autor: “‘Martin Eden’, and ‘The Sea-Wolf’ a long time before ‘Martin Eden’, were protests against cooperation, democracy and socialism”.
  • 19
    Trad. Livre do autor: “I could see myself only raging through life without end like one of Nietzsche’s blondbeasts, lustfully roving and conquering by sheer superiority and strength”; “I was a rampant individualist”.
  • 20
    Trad. Livre do autor: “conversion”; “the way in which the Teutonic pagans became Christians – it was hammered into me”.
  • 21
    Trad. livre do autor: “up to a certain point Martin Eden was Jack London”; “the reactionary individualist, isolated from the vital force of a world-wide revolutionary movement that sought to destroy the regime which enslaved and crippled most of mankind, was doomed to disillusionment and bitterness”; “a socialist with a warm interest in the fate of those less fortunate than himself”.
  • 22
    Onde o livro ser comumente considerado pela crítica um Künstlerroman, um romance de aprendizado do artista, o que faz muito sentido, pois nele se encontra todo o pathos do amadurecimento artístico e do esforço para encontrar forma adequada à sua expressão.
  • 23
    Trad. livre do autor: “most readers (...) have regarded it solely as a ‘success story’”.
  • 24
    Trad. livre do autor: “One of my motifs, in this book, was an attack on individualism. (...) I must have bungled, for not a single reviewer has discovered it”.
  • 25
    Trad. livre do autor: “Socialist biography. Martin Eden a nd The Sea-Wolf, attacks on Nietzschean philosophy, which even the socialists missed the point of”.
  • 26
    Trad. livre do autor: “Faugh! They are sickening. And to think of it, I dreamed in my innocence that the persons who sat in the high places, who lived in fine houses and had educations and bank accounts, were worth while!”.
  • 27
    Trad. livre do autor: “Martin Eden is one of the first novels that documents the disintegration of the American success story, the final collapse of the Horatio Alger legend, the great fall of the Gospel of Wealth myth”.
  • 28
    Trad. livre do autor: “The men in this book have been described variously during a century as giants and Titans, and more often as rogues, robbers, and rascals”.
  • 29
    Trad. livre do autor: “They have usually been treated as a class”.
  • 30
    Trad. livre do autor: “So I went back to the working-class, in which I had been born and where I belong. (...) The imposing edifice of society above my head holds no delights for me. It is the foundation of the edifice that interests me”.
  • 31
    Na primeira cópia impressa do livro, com a qual presenteou sua esposa Charmian, Jack London chegou a escrever: “Viu só? Martin não tinha você!” (LONDON, 1921, p. 182LONDON, Charmian K. The Book of Jack London. New York: The Century Company, 1921. v. 2.).
  • 32
    Trad. livre do autor: “Race in Martin Eden is a metaphor for identity, class position, and masculinity, underlying not only the novel’s problem of class but also Martin’s sense of identity itself”; “race as class”.
  • 33
    Trad. livre do autor: “‘There is Mr. Butler’ (...). He had comparatively no advantages at first. His father had been a bank cashier, but he lingered for years, dying of consumption in Arizona, so that when he was dead, Mr. Butler, Charles Butler he was called, found himself alone in the world. His father had come from Australia, you know, and so he had no relatives in California. He went to work in a printing-office, – I have heard him tell of it many times, – and he got three dollars a week, at first. His income to-day is at least thirty thousand a year. How did he do it? He was honest, and faithful, and industrious, and economical. He denied himself the enjoyments that most boys indulge in. He made it a point to save so much every week, no matter what he had to do without in order to save it. Of course, he was soon earning more than three dollars a week, and as his wages increased he saved more and more”.
  • 34
    Trad. livre do autor: “He worked, so father says, as no other office boy he ever had. Mr. Butler was always eager to work. He never was late, and he was usually at the office a few minutes before his regular time. And yet he saved his time. Every spare moment was devoted to study. He studied book-keeping and type-writing, and he paid for lessons in shorthand by dictating at night to a court reporter who needed practice. He quickly became a clerk, and he made himself invaluable. Father appreciated him and saw that he was bound to rise. It was on father's suggestion that he went to law college. He became a lawyer, and hardly was he back in the office when father took him in as junior partner. He is a great man. He refused the United States Senate several times, and father says he could become a justice of the Supreme Court any time a vacancy occurs, if he wants to. Such a life is an inspiration to all of us. It shows us that a man with will may rise superior to his environment”.
  • 35
    Trad. livre do autor: “‘There's one thing I'll bet you,’ he said, ‘and it is that Mr. Butler is nothin' gay-hearted now in his fat days. He fed himself like that for years an' years, on a boy's stomach, an' I bet his stomach's none too good now for it. (...) I’ll bet he’s got dyspepsia right now!”.
  • 36
    Trad. livre do autor: “He was dissatisfied with Mr. Butler's career. There was something paltry about it, after all. Thirty thousand a year was all right, but dyspepsia and inability to be humanly happy robbed such princely income of all its value”.
  • 37
    Trad. livre do autor: “He was dead. His soul seemed dead. He was a beast, a work-beast. He saw no beauty in the sunshine sifting down through the green leaves, nor did the azure vault of the sky whisper as of old and hint of cosmic vastness and secrets trembling to disclosure. Life was intolerably dull and stupid, and its taste was bad in his mouth”.
  • 38
    Trad. livre do autor: “‘I'm goin' to quit,’ he announced. ‘I won't stand for it. I'm goin' to quit it cold. What's the good of me workin' like a slave all week, a-savin' minutes, an' them a-comin' an' ringin' in fancy-starch extras on me? This is a free country, an' I'm goin' to tell that fat Dutchman what I think of him. An' I won't tell 'm in French. Plain United States is good enough for me’”.
  • 39
    Trad. livre do autor: “filling the truck with soiled clothes for the washer, Joe spied the hotel manager's shirt. He knew its mark, and with a sudden glorious consciousness of freedom he threw it on the floor and stamped on it. ‘I wish you was in it, you pig-headed Dutchman!’, he shouted. ‘In it, an' right there where I've got you! Take that! an' that! an' that! damn you! Hold me back, somebody! Hold me back!”.
  • 40
    Trad. livre do autor: “His sister Marian had been keeping company with an industrious young mechanic, of German extraction, who, after thoroughly learning the trade, had set up for himself in a bicycle-repair shop. Also, having got the agency for a low-grade make of wheel, he was prosperous”.
  • 41
    Trad. livre do autor: “He broke into a laugh that was only half-hearted. ‘That Hermann of yours has been talking to you’. (...) ‘Well, you tell that Hermann of yours to mind his own business’ (...). ‘I think it would be much better if you got a job,’ (...) said Hermann’; ‘Damn Hermann!’”.
  • 42
    Trad. livre do autor: “temporary splurge of prosperity”.
  • 43
    O uso do termo “holandês” (em inglês “Dutchman”) pode dever-se a uma confusão de Jack London, seja com o personagem gerente do hotel, seja porque as regiões de fronteira entre Alemanha e Países Baixos, Baixa Saxônia e Vestfália, eram de assentamento razoavelmente recente (não era incomum a designação dos alemães por região, como em “pomeranos”, “bávaros” ou “renanos”, por exemplo). Uma terceira possibilidade de explicação é a proximidade entre os termos “Dutchman” (holandês) e “Deutschman” (corruptela de “alemão”). De um ou de outro modo, no entanto, a questão não desautoriza o argumento que propomos.
  • 44
    Trad. livre do autor: “A little later in the day he telephoned his sister's betrothed, and learned that that person didn't want anything to do with him in ‘any shape, manner, or form’. ‘Hermann von Schmidt,’ Martin answered cheerfully, ‘I've a good mind to come over and punch that Dutch nose of yours.’ ‘You come to my shop,’ came the reply, ‘an' I'll send for the police. An' I'll put you through, too. Oh, I know you, but you can't make no rough-house with me. I don't want nothin' to do with the likes of you. You're a loafer, that's what, an' I ain't asleep. You ain't goin' to do no spongin' off me just because I'm marryin' your sister. Why don't you go to work an' earn an honest livin', eh?’”.
  • 45
    Trad. livre do autor: “the superintendent of the Pacific Coast agencies for the Asa Bicycle Company. Him von Schmidt desired to please and propitiate because from him could be obtained the Oakland agency for t he bic yc le ”.
  • 46
    Trad. livre do autor: “And in his heart of hearts Martin understood the situation only too well, as he leaned back and gloated at Von Schmidt's head, in fancy punching it well-nigh off of him, sending blow after blow home just right – the chuckle-headed Dutchman!”.
  • 47
    Trad. livre do autor: “‘For you see,’ said the grocer, ‘you no catcha da work, I losa da mon'.’And Martin could reply nothing. There was no way of explaining. It was not true business principle to allow credit to a strong-bodied young fellow of the working-class who was too lazy to work”.
  • 48
    Trad. livre do autor: “‘You catcha da job, I let you have mora da grub,’ the grocer assured Martin. ‘No job, no grub. Thata da business.’ And then, to show that it was purely business foresight and not prejudice, ‘Hava da drink on da house – good friends justa da same’”.
  • 49
    Trad. livre do autor: “He paid two dollars and a half a month rent for the small room he got from his Portuguese landlady, Maria Silva, a virago and a widow, hard working and harsher tempered, rearing her large brood of children somehow, and drowning her sorrow and fatigue at irregular intervals in a gallon of the thin, sour wine that she bought from the corner grocery and saloon for fifteen cents. From detesting her and her foul tongue at first, Martin grew to admire her as he observed the brave fight she made. There were but four rooms in the little house – three, when Martin's was subtracted. One of these, the parlor, gay with an ingrain carpet and dolorous with a funeral card and a death-picture of one of her numerous departed babes, was kept strictly for company. The blinds were always down, and her barefooted tribe was never permitted to enter the sacred precinct save on state occasions. She cooked, and all ate, in the kitchen, where she likewise washed, starched, and ironed clothes on all days of the week except Sunday; for her income came largely from taking in washing from her more prosperous neighbors. Remained the bedroom, small as the one occupied by Martin, into which she and her seven little ones crowded and slept. It was an ever-lasting miracle to Martin how it was accomplished, and from her side of the thin partition he heard nightly every detail of the going to bed, the squalls and squabbles, the soft chattering, and the sleepy, twittering noises as of birds. Another source of income to Maria were her cows, two of them, which she milked night and morning and which gained a surreptitious livelihood from vacant lots and the grass that grew on either side the public side walks, attended always by one or more of her ragged boys, whose watchful guardianship consisted chiefly in keeping their eyes out for the poundmen”.
  • 50
    Trad. livre do autor: “Maria Silva was poor, and all the ways of poverty were clear to her”.
  • 51
    Trad. livre do autor: “living like a Spartan”.
  • 52
    Trad. livre do autor: “Utterly differentiated creatures that they were, they were lonely in their misery, and though the misery was tacitly ignored, it was the bond that drew them together”.
  • 53
    Trad. livre do autor: “Ruth never read hunger in Martin's face, which had grown lean and had enlarged the slight hollows in the cheeks. In fact, she marked the change in his face with satisfaction. It seemed to refine him, to remove from him much of the dross of flesh and the too animal-like vigor that lured her while she detested it. Sometimes, when with her, she noted an unusual brightness in his eyes, and she admired it, for it made him appear more the poet and the scholar (...). But Maria Silva read a different tale in the hollow cheeks and the burning eyes, and she noted the changes in them from day to day, by them following the ebb and flow of his fortunes. She saw him leave the house with his overcoat and return without it, though the day was chill and raw, and promptly she saw his cheeks fill out slightly and the fire of hunger leave his eyes. In the same way she had seen his wheel and watch go, and after each event she had seen his vigor bloom again”.
  • 54
    Trad. livre do autor: “Poverty, to Ruth, was a word signifying a not-nice condition of existence. That was her total knowledge on the subject. She knew Martin was poor, and his condition she associated in her mind with the boyhood of Abraham Lincoln, of Mr. Butler, and of other men who had become successes. Also, while aware that poverty was anything but delectable, she had a comfortable middle-class feeling that poverty was salutary, that it was a sharp spur that urged on to success all men who were not degraded and hopeless drudges”.
  • 55
    Trad. livre do autor: “a great pitcher of hot soup”; “debating inwardly the while whether she was justified in taking it from the mouths of her own flesh and blood”; “knowing as he did the lives of the poor, and that if ever in the world there was charity, this was it”.
  • 56
    Trad. livre do autor: “His kindness and compassion for those less fortunate than he, especially the Silva Family, ironically results in his mixing with them in ways that threaten his identity as a white man, contributing to his loss of Ruth Morse”.
  • 57
    Trad. livre do autor: “Maria was amazed to learn that he had been in the Azores, where she had lived until she was eleven. She was doubly amazed that he had been in the Hawaiian Islands, whither she had migrated from the Azores with her people. But her amazement passed all bounds when he told her he had been on Maui, the particular island whereon she had attained womanhood and married”.
  • 58
    Trad. livre do autor: “The severe decrease of jobs opportunities for women in northern regions of the mainland and Azores Islands helps to explain increasing female participation in the migratory flow after the 1900s.”
  • 59
    Trad. livre do autor: “tribal twenties”.
  • 60
    Trad. livre do autor: “desperate economic competition”.

Referências

  • BAGANHA, Maria Ioannis B. Portuguese Transatlantic Migration. In: BAILY, Samuel L.; MÍGUEZ, Eduardo J. (Eds.). Mass Migration to Modern Latin America. Wilmington: Jaguar Books, 2003. p. 51-68.
  • BAMFORD, Georgia Loring. The Mystery of Jack London: Some of his Friends, Also a Few Letters – a Reminiscence. New York: Norwood, 1976.
  • BLOCH, Marc. Apologia da história ou O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
  • BLUMIN, Stuart M. The Emergence of the Middle Class: Social Experience in the American City, 1760-1900. New York: Cambridge University Press, 2002.
  • BOSI, Alfredo. Caminhos entre a literatura e a história. Estudos Avançados, São Paulo, v. 19, n. 55, p. 315-334, 2005.
  • CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2010.
  • CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
  • GEORGE, Henry. Progress and Poverty: An Inquiry in the Cause of Industrial Depressions and of Increase of Want with Increase of Wealth. New York: Doubleday Page & Co., 1904.
  • HANDLIN, Oscar. Immigration as a Factor in American History. Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice-Hall, 1959.
  • HIGHAM, John. Strangers in the Land: Patterns of American Nativism, 1860-1925. New Brunswick: Rutgers University Press, 1999.
  • HOLBROOK, Stewart. The Age of the Moguls. New York: Routledge, 2010.
  • HUBERMAN, Leo. História da riqueza dos EUA (Nós, o povo). São Paulo: Brasiliense, 1978.
  • JUNQUEIRA, Mary Anne. Estados Unidos: Estado Nacional e narrativa da nação (1776-1900). São Paulo: Edusp, 2018.
  • KINGMAN, Russ. A Pictorial Life of Jack London. New York: Crown, 1979.
  • LABOR, Earl. Jack London: An American Life. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2014.
  • LEARS, Jackson T. J. Rebirth of a Nation: The Making of Modern America, 1877-1920. New York: HarperCollins, 2009.
  • LONDON, Jack. War of the Classes. New York: Macmillan, 1905.
  • LONDON, Jack. Revolution and Other Essays. New York: Macmillan, 1910.
  • LONDON, Jack. Martin Eden. New York: Macmillan, 1916.
  • LONDON, Charmian K. The Book of Jack London. New York: The Century Company, 1921. v. 2.
  • LONDON, Joan. Jack London and His Times: An Unconventional Biography. New York: The Book League of America, 1939.
  • MÉTRAUX, Daniel A. Jack London and The Yellow Peril. Education About Asia, v. 14, n. 1, p. 29-33, 2009.
  • MÉTRAUX, Daniel A. Jack London Reporting from Tokyo and Manchuria: The Forgotten Role of an Influential Observer of Early Modern Asia. Asia Pacific: Perspectives, v. 8, n. 1, p. 1-6, jun. 2008.
  • OWNBEY, Ray W. Jack London: Essays in Criticism. New York: Peregrine Smith, 1978.
  • PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia (Org.). As muitas faces da história: nove entrevistas. São Paulo: Ed. Unesp, 2000.
  • REESMAN, Jeanne Campbell. Jack London’s Racial Lives: A Critical Biography. Athens: University of Georgia Press, 2009.
  • SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo – Machado de Assis. São Paulo: Ed. 34, 1997.
  • SEVCENKO, Nicolau. A literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1989.
  • STEEPLES, Douglas W.; WHITTEN, David O. Democracy in Desperation: The Depression of 1893. Westport: Greenwood Press, 1998.
  • SWIFT, John N. Jack London’s “The Unparalleled Invasion”: Germ Warfare, Eugenics, and Cultural Hygiene. American Literary Realism, Illinois, v. 35, n. 1, p. 59-71, 2002.
  • U.S. CENSUS BUREAU. Thirteenth Census of the United States Taken in the Year 1910: Volume I – Population. Washington, D.C.: Bureau of the Census Library, 1913. Disponível em: https://www.census.gov/library/publications/1913/dec/vol-1-population.html Acesso em: 5 dez. 2021.
    » https://www.census.gov/library/publications/1913/dec/vol-1-population.html
  • U.S. DEPARTMENT OF HOMELAND SECURITY. Persons Obtaining U.S. Legal Permanent Resident Status by Census Region and Division of Residence: Washington, D.C.: U.S. Department of Homeland Security, Office of Immigration Statistics, 2010. 1 mapa, color. Disponível em: https://www.dhs.gov/sites/default/files/publications/lpr-historical-resident-trends-by-state-1892-2010.pdf Acesso em: 7 dez. 2021.
    » https://www.dhs.gov/sites/default/files/publications/lpr-historical-resident-trends-by-state-1892-2010.pdf
  • U.S. DEPARTMENT OF HOMELAND SECURITY. Yearbook of Immigration Statistics: 2010. Washington, D.C.: U.S. Department of Homeland Security, Office of Immigration Statistics, 2011. 110p.
  • WHITTEN, David O. The Depression of 1893. Economic History Association, Auburn, 2001. Disponível em: https://eh.net/encyclopedia/the-depression-of-1893 Acesso em: 7 set. 2018.
    » https://eh.net/encyclopedia/the-depression-of-1893
  • ZAVODNYIK, Peter. The Rise of the Federal Colossus: The Growth of Federal Power from Lincoln to F. D. R. Santa Barbara: Praeger, 2011.
  • ZINN, Howard. A People’s History of the United States. London; New York: Longman Books, 1994.
Editores responsáveis: Vinícius Liebel e Luiza Larangeira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    18 Ago 2022
  • Aceito
    12 Mar 2023
Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo de São Francisco de Paula, n. 1., CEP 20051-070, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, Tel.: (55 21) 2252-8033 R.202, Fax: (55 21) 2221-0341 R.202 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: topoi@revistatopoi.org