Acessibilidade / Reportar erro

Descartes e a técnica

TRADUÇÃO

Descartes e a técnica

Georges Canguilhem

Tradutor: Lígia Fraga Silveira

Departamento de Filosofia - Faculdade de Educação, Filosofia, Ciências Sociais e da Documentação - UNESP - 17500 - Marília - SP

SUMÁRIO - A atividade técnica é um simples prolongamento do conhecimento objetivo, como tornou-se comum pensá-la a partir da filosofia positivista, ou é ela a expressão de um "poder" proginal, fundamentalmente criador e para o qual a ciência elaboraria, algumas vezes posteriormente um programa de desenvolvimento ou um código de precauções? A filosofia cartesiana parece ter abordado frontalmente este importante problema e ter considerado, mais do que se crê normalmente, a relação da teoria e da prática de uma maneira ampla e nuançada. Tem-se o direito, portanto, de pensar que a reflexão sobre a significação da técnica é central no sistema cartesiano.

Descartes nunca deixou de afirmar que a ciência que tinha a ambição de dar ao mesmo tempo o exemplo e o modelo à humanidade era uma ciência "útil à vida". Certas passagens dos Príncipes parecem deixar mesmo entender que a utilidade da física cartesiana dispensaria uma interrogação sobre sua objetividade (1, p. 123). No entanto isto não deve dar o direito de assimilar o pensamento de Descartes a estas filosofias que em nossos dias tentaram, com diversas finalidades e de diversas maneiras, reduzir todos os valores do julgamento ao valor Pragmático. Descartes diz expressa e freqüentemente que a eficácia das artes tem por condição a verdade do conhecimento, observando mesmo que o desenvolvimento de uma arte rudimentar é o sinal de que suas regras utilizam inconscientemente verdades (1, p. 18, 1. 22-27). E ainda que não haja consagrado especialmente um tratado em sua obra ao problema técnico, não nos é proibido pensar que a reflexão filosófica sobre a natureza e o valor da atividade técnica não seja em Descartes acidental e secundária. Após Leonardo da Vinci e Bacon e assim como eles, Descartes reabilita o trabalho, a construção das máquinas e a acomodação por eles da natureza à humanidade, do desprezo no qual tinham sido mantidos pelo pensamento filosófico dos antigos, exceção feita aos atomistas.

Sobre este ponto, não cabe duvidar que o pensamento cartesiano tenha consciência de marcar uma conversão. Somente cessando de considerar o Discours de la Methode como a história de uma formação, que se poderia ser surpreendido pela oposição existente entre os principios da moral tais quais são expostos na terceira parte e tais como são na sexta parte, sendo esta última confirmada pelo prefácio dos Príncipes. A resignação estóica promove a separação entre o que depende do homem e o que não depende, a resolução de antes mudar os desejos humanos do que a ordem do mundo, como por exemplo não desejar a saúde no momento da doença, todas essas confissões de humildade e de impotência são ponto por ponto contraditos pela profissão de fé na técnica, pelo entusiasmo dominador que inaugura a sexta parte. Tornar o homem "Mestre e possuidor da natureza", desejar a invenção de uma infinidade de artifícios úteis, livrar-se das doenças e talvez vencer também a morte, todos esses desejos claramente formulados são apresentados como outra coisa que meros sonhos. Renunciando em fazer da necessidade virtude, Descartes propõe a si e a nós transformar em potência o conhecimento da necessidade. Sabe-se como a filosofia estóica negava tão vigorosamente o progresso humano quanto afirmava a providência divina. Toda filosofia que identifica realidade e finalidade deve estabilizar os atributos humanos num sistema hierárquico de qualidades e de essências de onde toda possibilidade de correção e de remanejamento está excluída como arrastando consigo a queda de todo o edifício. Segundo os estóicos, a espécie humana é desde a origem provida de todas as suas perfeições e quando o mundo renascer do abrasamento universal, a mesma humanidade e o mesmo Sócrates renascerão. O pensamento estóico é tão pouco equívoco que Lucrécio, no quinto livro de De rerum natura, com a intenção de refutá-lo, liga a negação de todo plano providencial relativo ao universo à afirmação do progresso técnico pelo qual a humanidade, cada vez mais engenhosa e melhor informada, modifica sua relação ao meio cósmico, dá a si mesma o que não lhe foi dado e se eleva pelo trabalho até a perfeição da qual toda filosofia teológica a fez descer

Na doutrina de Descartes, como naquela dos atomistas, uma matéria sem qualidades reais, um universo sem hierarquia teleológica, são as razões metafísicas da fé na eficácia criadora da técnica. A enérgica negação da finalidade natural é na filosofia de Descartes a condição de uma teoria mecânica da natureza e de uma teoria mecanicista da arte. A este respeito, não é sem interesse observar o cuidado com que Descartes defende, em sua teoria das verdades eternas, a absoluta liberdade de Deus e combate toda interpretação dos atributos divinos que, distingüindo-os uns dos outros, os subordinaria uns aos outros, e especialmente a vontade ao entendimento, é plenamente inteligível na hipótese que faz da preocupação técnica um dos núcleos da filosofia cartesiana. Não admitir a mínima anterioridade, mesmo lógica, do entendimento sobre a vontade, manter os princípios de todo conhecimento verdadeiro em sua forma e em seu conteúdo como criaturas não é somente liberar Deus de uma dependência incompatível com sua infinitude, é negar a finalidade no universo. Esta negação não é somente a condição preliminar de uma inteligência efetiva da matéria reduzida à exterioridade quantitativa, é também por isso mesmo, a razão de formular a obrigação para o homem da construção técnica e de vaticinar o seu sucesso.

O que Descartes conhecia e esperava das técnicas? Sua correspondência, relida deste ponto de vista, nos impõe a imagem de um homem muito diversamente curioso de receitas e de práticas e muito atento em descobrir em cada uma delas as causas ou as leis que explicam sua eficácia. Sem dúvida, o corte dos vidros para instrumentos de ótica, a construção das máquinas e a arte médica são os temas mais comuns de suas reflexões. Mas as práticas rotineiras do camponês e do soldado, como também a informação pragmática do viajante lhe fornecem numerosas situações de comparação ou ocasiões de verificar suas explicações teóricas. O crescimento dos vegetais transplantados em função dos terrenos, o amadurecimento dos frutos nas árvores, a fabricação da manteiga pela separação dos corpos diferentemente densos, a maneira pela qual as crianças erguem-se sobre os cavalos agitando as pernas, o repicar dos sinos com a finalidade de fender as nuvens à maneira do raio, são igualmente convites à reflexão que a vida no campo lhe ofereceu. O soldado sabe que friccionando óleo nas pontas das lanças para limpá-las isso faz aparecer algumas vezes labaredas. O habitante de Amsterdã é sensível a tudo que a vida de um grande porto manifesta de indústria humana devotada à criação de comodidades e de embelezamento, a tudo o que essa população da qual se vê todos os dias várias pessoas vindas de lugares opostos pode oferecer como testemunho da diversidade humana. É com surpresa admirativa que se vê Descartes tratar indiferentemente e com o mesmo escrúpulo de inteligência metódica os problemas técnicos os mais especiais e os mais disparates: chaminés que fumegam, elevação das águas e a secagem dos brejos, diagnósticos médicos, uso e dosagem dos remédios, autômatos, trajetória e velocidade das balas, força das espadas, sonoridade dos sinos. Notemos ainda que o interesse de Descartes pela artilharia, pela medicina, pelos autômatos é partilhado por muitos de seus contemporâneos na França e na Itália. Mas o importante é que a atenção aos detalhes técnicos, a todas as dificuldades por menores que sejam, que o homem encontra em seu domínio sobre a natureza esteja sustentada numa física e numa metafísica. Quanto aos sonhos de Descartes cuja ambição em alcançar o domínio sobre o universo é o programa abreviado, são bem conhecidos: restituir a visão aos cegos, ver os animais da lua, se é que há, tornar os homens sábios e felizes pela medicina, voar como os pássaros. As considerações de ordem medicinal estão dispersas em toda a obra cartesiana. Descartes confessa à princesa Elisabeth que a conservação da saúde foi sempre a principal finalidade de seus estudos (2, p. 329) e sem dúvida pensou segundo a palavra popular citada a ele por Huygens, que "este desagradável costume de morrer terá fim um dia" (3, p. 550). As preocupações técnicas relativas à ótica estão consignadas em sua correspondência com Ferrier (de 1629 a 1638) e na Dioptrique. Quanto às pesquisas e experiências de Descartes relativas às máquinas conhecemos, além do pequeno tratado sobre a explicação dos engenhos de levantar peso escrito por Huygens em 1637, só o resumo feito por Baillet as relações entre Descartes e Villebressieu, engenheiro do Rei (4, p. 209, 214, 218). Baillet nos faz a enumeração das invenções que Villebressieu seria devedor das sugestões de Descartes: máquina para levantar as águas, ponte rolante para a escalada das praças, navio dobrável e portátil para atravessar os rios, carreta para o transporte dos soldados feridos. Este breve recenseamento tão ínfimo possa parecer de temas, de pesquisas técnicas às quais se interessava Descartes deveria ser feito, pois, em nossa opinião, é por não ter rejeitado "de abaixar seu pensamento até as menores invenções mecânicas" (4, p.185) que Descartes concebeu entre a teoria e a prática relações cuja significação filosófica nos parece importante ao mesmo tempo para a inteligência de seu pensamento e para toda reflexão filosófica em geral.

Deve-se agora buscar nos textos como Descartes colocou e resolveu o problema das relações entre teoria e técnica. São inúmeros os textos onde Descartes proclama a imperfeição das rotinas artesãs estranhas a qualquer conhecimento dos objetos e dos fenômenos que elas utilizam, afirmando ao mesmo tempo que toda ação consciente de seu alcance é posterior à ciência correspondente. Descartes despreza a arte sem explicação (4, p. 195), os inventores sem método (5, p. 380), desconfia ao extremo dos artesãos que não trabalham sob sua direção quanto às explicações que ele lhes sugere (4, p. 501 e 506). As Regulae contêm sobre esse assunto as mais significativas passagens. Desde a primeira regra, Descartes opõe à diversidade das aptidões técnicas, exclusivas umas das outras, a unidade da inteligência teórica e se propõe alcançar por ela um conhecimento integral e sem omissão. Toda aquisição de verdade constituindo-se em regra metodológica, o pensamento conduzido de verdade, em verdade torna-se capaz de assegurar à ação segurança e eficácia, conseqüências de uma atenção sem distração que a especialização artesã, limitada e parcial, busca de uma maneira vã. Na quinta regra, Descartes cita entre as ilusões que seu método tende a eliminar aquela das pessoas que "estudam mecânica sem saber física e que fabricam ao acaso novos motores". A esta absurda presunção se opõe a admirável afirmação dos Príncipes: "Todas as regras das Mecânicas pertencem à Física, de maneira que todas as coisas que são artificiais são a partir daí naturais" (1, p. 321-322). Assim "é necessário ter explicado quais são as leis da natureza e como age ordinariamente antes que se possa ensinar como pode ser aplicada a efeitos aos quais está acostumada" (3, p.50). Fazer sem compreender é próprio àquele que é só técnico, prometer sem efetuar é a definição do charlatão, obter efeitos pela inteligência das causas é a ambição cartesiana. A consciência do possível técnico nos é dada pelo conhecimento do necessário teórico. Até aqui nada há na filosofia cartesiana relativamente à técnica que não nos pareça evidente, se compreendemos por evidência a longa familiaridade do pensamento moderno com um tema de reflexão que, de Leonardo da Vinci a Marx, passando pelos Enciclopedistas e Comte, foi a ocasião de um desenvolvimento que se tornou clássico.

Entretanto, esta tese do conhecimento convertível em ação técnica não se apresenta no pensamento cartesiano sem importantes restrições. Descartes percebe muito claramente, na passagem da teoria à prática, "dificuldades" que a inteligência suposta perfeita não saberia por si mesma resolver. Todo conhecimento possível suposto dado não poderia, em certos casos, eliminar da realização técnica certas imperfeições. Ainda que um anjo realizasse um espelho de Arquimedes não poderia fazê-lo capaz de queimar a uma légua de distância sem lhe dar uma grandeza excessiva (4, p. 109). Ainda que um anjo desse as instruções teóricas para a construção de uma balança romana capaz de pesar até 200 libras "é quase impossível que se observe de uma maneira tão justa fazendo com que não haja erro, e assim a prática faria vergonha à teoria" (3, p. 469), e é por este motivo que Descartes aconselha graduar o instrumento por meio de tentativa empírica. Da mesma maneira, cinco anos após ter feito a teoria das lunetas, Descartes escreve a Mersenne, no que concerne à fabricação desses instrumentos, que há uma diferença entre a teoria e a prática e que esta não pode atingir a perfeição daquela (6, p. 585). Importa observar que nesses três exemplos do espelho, da balança romana e da luneta, as teorias da reflexão e da refração óticas e da alavanca foram os primeiros sucessos da ciência cartesiana. De uma maneira ainda mais explícita, se o problema do vôo aparece como insolúvel para Descartes não é por razões de ordem teórica, mas por razões de ordem técnica: "Pode-se muito bem fazer uma máquina que se sustente no ar como um pássaro, metaphysice loquendo pois esses mesmos pássaros, ao menos segundo eu, são tais máquinas, mas não physice ou moraliter loquendo, porque seria necessário forças tão sutis e unidade tão fortes que não poderiam ser fabricadas por homens" (6, p. 163).

A respeito desta defasagem entre as funções humanas de ciência e de construção que todavia sua filosofia parece nos convidar a ter como homogêneas e convertíveis no sentido da primeira para a segunda, Descartes não se explicou e cabe-nos buscar alguma luz nos textos ou numa aproximação dos temas de seu pensamento. Descartes afirmou que se deve poder deduzir a experiência a partir de princípios intuitivamente distintos, aos quais denomina ora "sementes de verdades", ora "natureza simples", ora "absolutos"; e simultaneamente estimou não poder levar em consideração efeitos particulares sem de início buscar constatá-los, isto é, experimentá-los como dados que um outro ato de Deus teria podido fazer outros ainda que não menos inteligíveis. A célebre passagem do Discours de la Méthode (VI Parte), onde a impossibilidade de uma dedução integral dos efeitos a partir das causas conduz Descartes a admitir a obrigação "que se vá de encontro às causas pelos efeitos", indica nitidamente que é na proporção de sua possibilidade de utilização técnica que as "formas ou espécies de corpos" são obstáculo ao desenvolvimento contínuo da dedução analítica. O sábio pode deduzir das primeiras causas "céus, astros, uma terra e mesmo sobre a terra água, ar, fogo, minerais", isto é, "efeitos ordinários", "coisas comuns e simples". Mas se a matéria é para a ciência o homogêneo e o anônimo, a matéria que o técnico se propõe "relacionar ao uso que dela fazemos" é o particular e o diverso. Este é o motivo porque a ciência cartesiana reconhece a necessidade da tentativa experimental. E o texto do Discours de la Méthode onde o pensamento de Descartes procede da teoria à técnica parece-nos receber uma luz incontestável deste outro texto dos Principes, onde o progresso do pensamento vai da técnica à teoria:..."a Medicina, as Mecânicas e em geral todas as artes que o conhecimento da física pode servir têm por finalidade aplicar de tal modo alguns corpos sensíveis uns aos outros que, pela seqüência das causas naturais, alguns efeitos sensíveis sejam produzidos; o que faremos tão bem, considerando a seqüência de algumas causas assim imaginadas, ainda que falsas, como se elas fossem as verdadeiras, pois que esta seqüência é suposta semelhante, naquilo que concerne os efeitos sensíveis" (1, p. 322-323). Assim se em certos casos, a prática "envergonha a teoria", é porque "toda aplicação dos corpos sensíveis uns aos outros", digamos toda síntese técnica, deve normalmente incluir, operando sobre espécies de corpos cuja dedução não pode ser integral, o imprevisível e o inesperado.

Indo ainda mais longe, descobre-se na obra cartesiana a consciência de uma forma de relação entre o conhecimento e a construção diversa daquela que faz depender, mesmo com reservas, a segunda da primeira. Tal nos parece ser o ensinamento da admirável Dioptrique atentamente relida em função do problema geral que nos ocupa. O ponto de partida da ótica teórica é a invenção da luneta de aproximação, invenção devida a experiência e à fortuna, seguida de uma imitação servil e cega. Mas esta invenção sofre ainda muitas dificuldades e Descartes pensa que é necessário determinar cientificamente as condições de eficácia, isto é, deduzir a figura dos vidros das leis da luz. Assim um sucesso técnico puramente fortuito é a ocasião na qual "muitos bons espíritos encontraram várias coisas em ótica" (7, p. 82) e especialmente deu a Descartes "ocasião para escrever este tratado" (7, p. 82 e 159). O conhecimento da natureza depende portanto duplamente, segundo a Dioptrique, da técnica humana. Primeiramente, no sentido que o instrumento, aqui a luneta de aumento serve para descobrir novos fenômenos (7, p. 81 e 226). A dependência no entanto manifesta-se sobretudo, no sentido que a imperfeição técnica fornece "a ocasião" de pesquisas teóricas pelas "dificuldades" que é preciso resolver. A ciência procede da técnica não como se o verdadeiro fosse uma codificação do útil, um registro do sucesso, mas ao contrário na medida em que o embaraço técnico, o insucesso e o fracasso convidam o espírito a se interrogar sobre a natureza das resistências encontradas pela arte humana, a conceber o obstáculo como objeto independente dos desejos humanos e a buscar um conhecimento verdadeiro. Desta técnica que a ciência, pretende entretanto reger, propondo-lhe converter conscientemente leis em regras, mas cujo elã não esperou a permissão do teórico, onde é necessário buscar a iniciativa? Esta iniciativa não se encontra no entendimento, ainda que o entendimento dê ao homem informado o meio de ultrapassar "o alcance ordinário dos artesãos" (7, p. 227). A iniciativa da técnica encontra-se nas exigências do vivente. Do mesmo modo que Descartes experimenta a urgente obrigação de constituir a medicina infalível com a qual há longo tempo sonha para quando seus cabelos embranquecerem (4, p. 435) e porque a morte o privaria desta "esperança de mais de um século" que justifica o cuidado que ele emprega em se conservar (4, p. 507); da mesma maneira para que escreva a Dioptrique é necessário que olhos doentes ou capazes de ilusões tenham tornado algum homem inapto para discernir infalivelmente todas as coisas úteis à conduta da vida. E visto que "não poderíamos fazer para nós um novo corpo" (7, p. 147), devemos acrescentar aos órgãos interiores, órgãos exteriores (7, p. 148), aos órgãos naturais, órgãos artificiais (7, p. 165). É nas necessidades, no apetite e na vontade que é preciso buscar a iniciativa da fabricação técnica (1, p. 123). O cuidado tomado por Descartes ao afirmar em sua teoria da união da alma e do corpo a irredutibilidade das afeições e em sua teoria do erro, a originalidade da vontade, significa verossimilmente aos seus olhos a impossibilidade de unificar numa filosofia do entendimento puro, num puro sistema de julgamento de conhecimento, esta vida que o propósito da filosofia consistem em querer bem viver. Assim a irredutibilidade final da técnica à ciência, do construir ao conhecer; a impossibilidade de uma transformação total e contínua da ciência em ação, fariam voltar à afirmação da originalidade de um "poder". Na consciência humana como em Deus, a vontade ou a liberdade não estão nos limites da inteligência. Ver na técnica uma ação sempre num certo grau sintética, e enquanto tal não analisável, não é, do ponto de vista cartesiano, nos parece, retirar-lhe todo valor, pois que é ver nela um modo, ainda que inferior, de criação.

Resta evidentemente colocar a questão de saber por que, se as considerações sumariamente expostas acima são exatas, não há na filosofia cartesiana uma teoria da criação, isto é, no fundo uma estética. Sem dúvida, da ausência, é difícil concluir o que quer que seja. Mas pode-se perguntar se Descartes não sentiu talvez confusamente que, admitindo a possibilidade de um problema estético em geral, iria contradizer a solução dada ao problema teórico em geral. Descartes resolveu por uma mecânica e uma física geométrica o problema da inteligência do real. Assumindo o movimento como uma intuição fundamental da mesma ordem que a extensão e o número, eliminando logo de início tudo o que o movimento inclui de qualitativo e de sintético, Descartes, ainda que visse nesta noção o princípio de toda variedade material, se obrigava a não colocar o problema da diversificação, o qual constitui um dos aspectos do problema da criação. Confessou muito lealmente, como se sabe pelo Discours de la Méthode, que a análise geométrica tinha limites, mas talvez não tenha querido se confessar ou confessar que a impossibilidade de uma moral "definitiva", pois não pode haver uma tal moral desde que a ação comporta normalmente um elã e um risco, significava igualmente a impossibilidade de uma ciência analítica "definitiva", como quis que fosse a sua.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1. DESCARTES - Princpipes. In: Oeuvres de Descartes, Adam et P. Tannery, IX-2. J. Vrin, Paris, 1971.
  • 2. DESCARTES - Correspondance. In: Oeuvres de Descartes, Adam et P. Tannery, IV, J. Vrin Paris.
  • 3. DESCARTES - Correspondance, II, J. Vrin, Paris.
  • 4. DESCARTES - Correspondance, I, J. Vrin, Paris.
  • 5. DESCARTES - Regulae ad directionem ingenii, X, J. Vrin, Paris, 1974.
  • 6. DESCARTES - Correspondance, III, J. Vrin, Paris.
  • 7. DESCARTES - Dioptrique, VI, J. Vrin, Paris, 1965.
  • (
    1
    ).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Dez 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 1982
    Universidade Estadual Paulista, Departamento de Filosofia Av.Hygino Muzzi Filho, 737, 17525-900 Marília-São Paulo/Brasil, Tel.: 55 (14) 3402-1306, Fax: 55 (14) 3402-1302 - Marília - SP - Brazil
    E-mail: transformacao@marilia.unesp.br