Referência do texto comentado: ROSELINO, Luis Felipe de Salles. Max Weber e Adorno sobre o conceito de progresso: contrastes da racionalização técnica na música e na pintura. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, Número Especial, p. 317-340, 2020.
Num parágrafo do seu artigo “Max Weber e Adorno, sobre o conceito de progresso: Contrastes da racionalização técnica na música e na pintura”, dedicado à interpenetração estética entre composições musicais e composições picturais, Luis Felipe de Salles Roselino refere-se ao conceito adorniano de pseudomorfose aplicado à pintura. Por ser um conceito-chave na teoria estética do filósofo frankfurtiano e contribuir para a elucidação das principais teses que, no presente artigo, são elencadas, creio que ele deve ser contrastado com o de “convergência” (Konvergenz), tal como vem formulado no texto “Über einige Relationen zwischen Musik und Malerei” (1978), de Adorno.
Apesar do seu posicionamento crítico face à sociedade e racionalidade modernas e, no âmbito estético, aos modelos organicistas que consagravam o “todo” como máxima expressão da harmonia entre as “partes”, os princípios de autonomia que Adorno reivindica da arte, do discurso estético e das práticas artísticas em geral entroncam, ainda, em muitos dos ideais de emancipação legados pela Aufklärung. A arte, articulada segundo esse registo autónomo e apartada do puro entretenimento, é, por excelência, a esfera da sociedade onde gravita a própria crítica da sociedade. Logo, na terminologia dialéctica adorniana, a arte só pode ser autónoma se não for puramente autónoma, se, a bem dizer, incorporar em cada sua manifestação os elementos heterogéneos que põem em causa a sua própria autonomia. A reentrada desses elementos acontece, de forma irrefreável, já nos processos de criação artísticos, nomeadamente por meio das marcas históricas e sociais transportadas pelos meios materiais dos quais se servem os artistas para criar.
Ora, conectada com o ideal de autonomia da arte, encontra-se, igualmente, a questão da relação das formas artísticas entre si, a qual pode ser vertida na pergunta seguinte: podem as diversas modalidades de criar arte preservar a sua autonomia, quando submetidas à materialidade e a princípios estruturantes que lhes não são originariamente exclusivos? O texto “Die Kunst und die Künste” é, nesse sentido, um ponto hermenêutico decisivo para se compreender, no pensamento estético adorniano, uma teorização aberta do entrelaçamento das formas artísticas, que é designada de Verfransung, face ao conceito marcadamente negativo de pseudomorfose. Se, como Adorno assevera, numa linguagem assaz psicanalítica, “[...] os géneros artísticos parecem gozar de uma espécie de promiscuidade que vai contra os tabus da civilização” (ADORNO, 19671. ADORNO T. Die Kunst und die Künste. In Theodor W. Adorno: Ohne Leitbild: Parva Aesthetica, Frankfurt am Main: Suhrkamp. 1967, p. 158-182., p. 161), é porque, empiricamente, há uma crescente fluidez dos limites das artes entre si, impulsionada e expressa pelo cruzamento das dinâmicas do tempo com as do espaço. Música, pintura, escultura e literatura adquirem, agora, uma heterorreferencialidade espácio-temporal, cuja natureza se deixa discriminar apenas pela da invocação da forma artística, a qual, estruturalmente, lhe serve de base: as composições de Karlheinz Stockhausen, mesmo intencionalmente musicais, congregam múltiplos elementos extramusicais importados da esfera visual; e, nas telas de Paul Klee, o inverso também acontece - a visualidade deixa-se penetrar pela musicalidade.
Embora Adorno, em rigor, não defenda uma unidimensionalidade fisiológica das modalidades sensoriais, nem, tão-pouco, uma constituição autorreferencial e autossuficiente das categoriais temporais e espaciais, ele crê que cada forma artística introduz um impulso de individuação de ambas as categoriais. Por isso, o filósofo frankfturtiano concebe, ainda, a música como Zeitkunst e a pintura como Raumkunst. No caso da primeira, por exemplo, a ordem temporal está conectada com a sequenciação objectiva do tempo e a transcendência ante a simples contingência do movimento e do fluxo. Inversamente, as imagens são dadas através da simultaneidade, da qual dependem as múltiplas relações estéticas estabelecidas entre as partes de uma composição pictural.
Contudo, Raumkunst não é sinónimo de ausência de implicações temporais, como sucede no âmago da polarização espaço-tempo introduzida por Gotthold Ephraim Lessing, no seu Laokoon: oder über die Grenzen der Malerei und Poesie. A tensão que ocorre nos processos de articulação entre essas mesmas partes traz, duplamente, à expressão as dinâmicas do tempo e a sua participação decisiva na concepção dos efeitos sensoriais da simultaneidade. Da mesma maneira, a música encontra-se sujeita a uma “espacialização” (Verräumlichung), nomeadamente por intermédio dos processos de notação. Todavia, em Philosophie der neuen Musik, Adorno torna assaz claro que a total espacialização da música põe em causa tanto a objectivação expressiva do tempo quanto a temporalidade interna que anima a formação da consciência dos seres; o filósofo dirige, aqui, uma crítica assertiva à espacialização musical promovida por Igor Stravinsky, a ponto de afirmar que, nesse caso, a música tende a ser transformada num mero “parasita da pintura” (ADORNO, 19753. ADORNO T. Philosophie der neuen Musik. In Theodor W. Adorno: Gesammelte Schriften, Vol. 12, Herausgegeben von Rolf Tiedemann, Frankfurt am Main: Suhrkamp. 1975., p. 178).
Os limites entre as artes são, antes de tudo, restrições impostas pela materialidade de cada médium, não sendo, consequentemente, objecto de uma mera mitigação formal, tal como se pretendia com a formulação wagneriana do Gesamtkunstwerk. Logo, no caso da pseudomorfose, na qual uma forma artística imita outra que lhe é materialmente oposta, há uma tendência para o sincretismo e a erosão dialéctica das diferenças que as separam. As formas artísticas podem confluir, mas, apenas, se a distinta imanência dos seus princípios não for posta em causa e tiver expressão no seio do processo que enceta as relações. Ao contrário da pseudomorfose, cuja natureza estética repousa num aparente princípio de reciprocidade, e da uniformização promovida pelo Gesamtkunstwerk, Adorno chama a esse processo dialéctico de “convergência” (Konvergenz).
A importância do texto “Über einige Relationen zwischen Musik und Malerei” tem que ver, precisamente, com a consideração positiva - vertida no conceito de convergência - das possibilidades intermediais das formas artísticas. Um dos maiores exemplos de tal articulação superior - porque aquilo que, nesse sentido estrito, converge visa, paralelamente, a divergir daquilo que aliena - é-nos dado pelo liame estético entre a atonalidade musical e os traços desfigurativos da pintura modernista. Como se lê, ainda, em Ästhetische Theorie, também a indeterminação que permeia as obras picturais da action painting e as composições da música aleatória são capazes de fornecer nexos analógicos entre as artes e, assim, objectivar um modo diferente de articular e interpelar a própria imaginação dos espectadores (ADORNO, 19702. ADORNO T., Ästhetische Theorie. In Theodor W. Adorno: Gesammelte Schriften, Vol. 7, Herausgegeben von Rolf Tiedemann, Frankfurkt am Main: Suhrkamp. 1970., p. 64). Aliás, essa preocupação comum em promover as potencialidades da imaginação fez com que muitos movimentos artísticos vanguardistas do século vinte edificassem os seus programas estéticos contra a reificação dos artefactos tecnológicos e a possibilidade mimética de a arte importar, acriticamente, os modelos maquínicos da tecnologia. O próprio conceito de pseudomorfose indicia, sobremaneira, um procedimento artístico mimético baseado na reprodução. Trata-se de um processo eminentemente técnico, o qual, subvertendo as contingências estéticas da criação artística, duplica as mesmas formas de manufactura dos produtos de consumo.
A pergunta que formulei no início desta breve reflexão - saber se o entrelaçamento das artes depaupera a sua própria autonomia - não abarca, ainda, na obra de Adorno, a questão dos ambientes e das superfícies tecnológicas multimodais. Quer a pseudomorfose, quer a convergência são processos poiéticos maioritariamente centrados na importação da forma; ou seja, a absorção estética que cada género artístico pode empreender, perante os demais, situa-se fora do âmbito das suas relações empíricas ou, pelo menos, não as pressupõe ab initio. Hoje, mais do que nunca, o desafio teórico passa por perceber como formas artísticas potencial e estruturalmente distintas, mas que partilham a mesma superfície de inscrição, podem, na acepção adorniana, “convergir”, sem perder a singularidade do seu perfil estético.
Referências
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1ADORNO T. Die Kunst und die Künste. In Theodor W. Adorno: Ohne Leitbild: Parva Aesthetica, Frankfurt am Main: Suhrkamp. 1967, p. 158-182.
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2ADORNO T., Ästhetische Theorie. In Theodor W. Adorno: Gesammelte Schriften, Vol. 7, Herausgegeben von Rolf Tiedemann, Frankfurkt am Main: Suhrkamp. 1970.
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3ADORNO T. Philosophie der neuen Musik. In Theodor W. Adorno: Gesammelte Schriften, Vol. 12, Herausgegeben von Rolf Tiedemann, Frankfurt am Main: Suhrkamp. 1975.
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4ADORNO T. Über einige Relationen zwischen Musik und Malerei. In Theodor W. Adorno: Gesammelte Schriften, Vol. 16, Herausgegeben von Rolf Tiedemann, Frankfurkt am Main: Suhrkamp. 1978, p. 628-642.
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Docente e Investigador na Universidade de Coimbra, Instituto de Estudos Filosóficos (IEF), Departamento de Filosofia, Comunicação e Informação. https://orcid./0000-0003-3516-661X. E-mail: bragajoaquim77@gmail.com
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http://dx.doi.org/10.1590/0101-3173.2020.v43esp.24.p341
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
26 Abr 2021 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
05 Jun 2020 -
Aceito
27 Jun 2020