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Escrita: kLee. Klee. kleE. klEe / figura

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Escrita / kLee. Klee. kleE. klEe / figura

1. Epígrafe , esfinge. Paul Klee, aconselhando os seus alunos:

" A escrita não é clareza, mas expressão - pensem nos chineses - e o exercício torna-a cada vez mais sensível, intuitiva, espiritual . "

Em geral o mestre desenhava com a mão esquerda e escrevia com a direita ; podia também desenhar ou pintar com ambas, simultaneamente . Porém, " a mão esquerda escreve sobretudo hieróglifos ". Razão suficiente para um privilégio inquestionável.

Por enquanto , aliás , razão ainda no encoberto, quase secreta mesmo. Delirante inclinação pessoal ? Escolha baseada em alguma razão objetiva ?

Eis-nos , assim , no coração do problema.

2. Epígrafe sobressalente - A lucidez de Picasso, também convocada a fim de nos auxiliar um pouco, leva-nos a constatar uma inesperada convergência de posições: "Se eu tivesse nascido chinês , não seria pintor , mas escritor. Eu escreveria meus quadros."

Encontramos a declaração no catálogo da exposição Oeuvres des Musées de Leningrad et de Moscou, Paris , Editions Cercle d'Art, 1955. Páginas mais à frente descobrimos também esta preciosidade : " Picasso é um pintor que tem o jeito de quem escreve " , teria afirmado Jean Cocteau, numa brilhante intuição. Mas isto já é pano para outras mangas.

3. Arqueologia da figura - Há um evento ao qual ainda não se atribuiu suficiente importância , tanto na história da arte quanto na reflexão sobre questões estéticas. Trata-se da partilha entre os símbolos lingüísticos e os meios de representação usados ( por tradição ) nas imprecisamente chamadas "artes de superfície ", onde se recorre à espacialização dos signos visuais sobre um delimitado suporte fixo, bidimensional , plano: seja tela ou madeira, papel, muro ou pedra

o discurso (verbal) de um lado

a invenção (das figuras) de outro

repartição absoluta

linhas, cores, ângulos ----x---- letras, palavras, sentenças texturas textos

um impensado

que, no entanto, constituiria durante séculos, do XV ao XI X um dos eixos fundamentais da simbólica ocidental

desde o quattrocento até o impressionismo, um só desígnio, claramente formulado e exaustivamente praticado - representar as aparências do mundo sensível, de modo convincente e fidedigno; a todo custo fabricar uma minuciosa reconstituição ilusória, a janela aberta para o excitante espetáculo; os fenômenos ressurgindo em sua plenitude; a natural e espontânea re-apresentação dos seres visíveis

(vale dizer - já vistos, a serem vistos um dia, concebidos como potencialmente visualizáveis

santos, demônios, cavaleiros, a morte, pierrôs, comerciantes, fêmeas, rios, frutas ou montanhas

"representando-nos florestas, cidades, homens e mesmo batalhas e tempestades", para grande fascínio de um soldado, metafísico, matemático e teórico do método das ciências - René Descartes, Cartesius.

Possivelmente foi também um gênio maligno que inspirou a Leonardo da Vinci mais uma de suas experiências - o sujeito interpõe um vidro entre a cena e ele próprio, fecha um dos olhos, mantém a cabeça rigorosamente imóvel e vai fixando os elementos que surgiram no écran. Estava-se requintando e elevando à perfeição a sistemática exploração da perspectiva linear, tão "dolce cosa" segundo Ucello, um encantamento, as imprevisíveis possibilidades de jogos com as linhas do horizonte, os pontos de fuga, as projeções ortogonais e os focos de luz única

(lembremo-nos de uma das inúmeras gravuras de Dürer sobre a pesquisa referida: o artista, vestido como um burguês, desenha o corpo da modelo nu, que aparece além do vidro - o desejo espelhado e integralmente domesticado

Primeira conseqüência inevitável: pintura e suas irmãs de leite, gravura, desenho, aquarela, água-forte

todas passam a ser igualmente concebidas como formas de antiescritas. Outra seqüela previsível: o discurso linear é razão, logos, análise, ordenamento de idéias, encadeamento conceptual; em contrapartida, as constelações figurais são as residências do passional, os lugares de eleição dos afetos e das vivências mais irracionais.

4. Apontamento à margem da margem. No contexto da divisão social do trabalho, a especialização (particularização, compartimentação, especificação) afetando inclusive as operações do imaginário

A rigor, aqui se comprova também que o fundamento da necessidade econômica, em última instância, sempre acaba por preponderar. Vale a pena estar sempre repetindo : "Marx e Engels negam apenas que seja possível compreender o desenvolvimento das ciências ou da arte com base exclusivamente, ou precipuamente, nas conexões imanentes. Tais conexões imanentes existem, sem dúvida, na realidade objetiva, mas só como momentos da tessitura histórica, como momentos do conjunto do desenvolvimento histórico, no interior do qual, através do intrincado complexo das interações , o fato econômico (ou seja, o desenvolvimento das forças sociais produtivas) assume o papel principal". Lukács .

5. O olhar analfabetizado - O obstáculo maior sendo, então, a obrigação de transpor para as duas únicas dimensões da superfície plana os múltiplos dados de um universo sabidamente tridimensional.

a conquista da realidade

a visão purificada

contudo, a linguagem no exílio

ou, no caso, mais precisamente / a escrita / os caracteres gráficos da escrita, os (até então) onipresentes grafemas , incorporados aos afrescos medievais, vitrais, livros de horas, manuscritos iluminados, tapeçarias, evangeliários

uma cimentada e já longa tradição:

em Simone Martini, entre a boca do anjo da Anunciação e o rosto da Virgem recatada: Ave Maria, gratia plena (1.333)

no filactério da xilogravura dita Tábua de Protat, subitamente o centurião romano se ilumina e aponta o Salvador crucificado, a fim de proclamar: Vere Filius Dei (mais ou menos 1.370)

na Tapeçaria da Rainha Matilde, em legendas bordadas que percorrem mais de 60 episódios, as crônicas que vão narrando a expedição de Guilherme, o Normando, conquistador da Inglaterra (circa 1.070)

em centenas e centenas de páginas, cuidadosamente ilustradas, programadas com o intuito de levar, ao mesmo tempo, a uma visualização e a um bom entendimento da Palavra - Manuscrito de São Severo (entre 1028 e 1072), Evangeliário de Otton ( circa 1.000), Evangeliário de Medardo de Soissons (início do IX) , tantos e tantos ars moriendi ou sermões em imagens que nem vale a pena designar somente este ou aquele

algo familiar e cotidiano

uma prática significante normal, institucionalizada, funcionando perfeitamente a contento, palavras e imagens em fusão, inextrincavelmente enlaçadas

e apesar desses títulos de glória

expulsa-se a indesejável

sim, o olhar se liberta - mas escolhendo o analfabetismo. Pelo menos em certos momentos do dia ( ou do ano, ou da semana, ou do mês)

quando

na atividade de contemplação das "obras de arte", o grande burguês proprietário

deseja-se em liberdade condicional, fora das prisões lingüísticas,

longe das homogêneas e monótonas cadeias do veículo scriptural,

que, no entanto, assegura-lhe o Poder e o Saber, a Lei e a Contabilidade, o Testamento e as Regras de Conduta

em troca, como prenda mágica, talismã

a admiração daqueles gratificantes objetos de onde as letras foram expurgadas

o prazer sensual e sensorial enfim redescoberto

erotismos consentidos, viagens mentais, posses fantasmáticas, brisas e perfumes exóticos. O que, de resto, provocaria muitas vezes a indignação dos moralistas. Pensemos logo em Blaise Pascal, para não perdermos tempo com os savanarolas de menor gênio: que vaidade a pintura, capaz de provocar admiração pela semelhança com entes cujos originais não admiramos !

6. Os escritemas censurados. Evidentemente, uma tão enraizada tradição, como o processo medieval de transmitir mensagens com a inclusão de letras nas figurações (ou vice-versa)

não iria desaparecer de chofre, assim do dia para a noite, sem mais sem menos

Ao contrário , resistiu e permaneceu durante esse longo período histórico de ostracismo, como um veio subterrâneo, sempre à espera de ser reativado. Por isso, em muitos quadros da época que circunscrevemos, "quantas palavras aguardam nossa pronunciação", exclama Michel Butor, que reuniu e comentou um bom punhado deles, em As Palavras na Pintura.

* Podem ser vistas aí algumas obras muito reveladoras, telas de Holbein, Brueghel, Delacroix, Giorgione, David e outros. Elas vêm mostrar como o "sistema da figura" apresentava também as suas fissuras, das quais se aproveitaram os pintores para trazer os grafemas à luz, sempre que possível. No ensaio de Butor, duas ausências a lastimar: o Et in Arcádia ego de Poussin e o Doutor Fausto, água-forte de Rembrandt. Respectivamente, a morte simbolizada por meio de uma sentença escrita, no âmago da vida idílica; e o texto imagifiçado, com a promessa cristã de redenção na eternidade, círculo de luz irradiante no obscuro recesso do laboratório mítico.

Porém, que todas essas exceções não nos enganem. De qualquer modo, não vão além de afloramentos Isolados, por mais sintomáticos que sejam. Aparecem a fim de desaparecer logo em seguida, sem nenhuma garantia de continuidade. Pois as normas oficiais são rígidas. O enlace é às vezes tolerado (sofrido) pelo culto ao parafotográfico, mas perdeu sua hegemonia.

Logo, o material escrito só aparece sem causar desconforto quando, acidentalmente , faz parte integrante do conjunto a ser representado -

nomes próprios , inscrições em bandeiras, tabuletas, rótulos, páginas de livros ou cartas

isto é, sempre anedoticamente, por força das circunstâncias, e não como gerador ativo, essencial às significações que se pretende comunicar. Há um outro sistema majoritário, que assegura uma convincente realização dos efeitos plásticos.

Era o que pretendíamos assinalar, provisoriamente.

7. Apresentação dos materiais. Em artigo de 1968, Michel Foucault já se referia a essa viciosa separação - essencial ao "realismo óptico" - como sendo um dos princípios que havia reinado sobre a pintura ocidental depois do Renascimento

"separa a representação plástica (que implica a semelhança) e a representação lingüística (que a exclui)"

Em seguida, aponta Klee como responsável pela abolição desta soberania, ao forçar , num espaço incerto e reversível

"a justaposição das figuras e a sintaxe dos signos"

os dois sistemas de novo mesclados no

"entrecruzamento de um mesmo tecido"

Com efeito, basta folhear um álbum com reproduções de seus trabalhos. Na impossibilidade de (re) visitar a Tate ou o Kunst-museum de Berna, qualquer museu imaginário para uso didático, doméstico, provinciano e subdesenvolvido, oferece-nos um panorama (in)satisfatório. Se não , vejamos:

caracteres tipográficos

letras fixadas com moldes

ou pintadas irregularmente

títulos incorporados às superfícies com figuras

sílabas ou palavras dos códigos lingüísticos em vigor

poemas em alemão

grafemas isolados

pontos de exclamação ou de interrogação

indefinidos traços caligráficos

abecedarios extintos ou ainda em estado de germinação

criptogramas

palimpsestos

sistemas imaginários de sinais aparentados com a escrita

ideogramas ficticios

estilizadas páginas de livros

enfim, todas as linhas de demarcação abolidas em definitivo,

o escriturai e o figurai se interligando em múltiplas e complexas formas. Os escritemas ressurgem e

"Nenhum artista fará um uso tão abundante e tão exaustivo quanto Klee: pela primeira vez... textos inteiros reconciliam a retórica e a imagem, invadem a tela. Klee reserva às vezes às letras, às vezes às sílabas, outras vezes às palavras, espaços de cor modulada; estas imagens-letras, estas palavras desenhadas, estendendo-se planamente como na tapeçaria e no desenho infantil, às quais o humor e a coloração poética dão um sabor muito pessoal, compõem poemas-aquarelas, patchworks de palavras onde o discurso obtém sua figuração e a palavra escrita sua dinâmica". Massin, em A Letra e a imagem

& ainda os sinais cabalísticos, mandalas, signos solares, pictogramas, notações musicais, senhas mágicas e alquímicas, símbolos matemáticos, números e algorítmos

8. A grande viragem da escrita. Julgamos bem oportuno inserir aqui, neste passo, uma nota de cautela. Tanto Massin quanto Foucault sublinham o mérito de Klee, na promoção desse retorno da escrita. Há realmente um ponto de verdade nessas afirmações. Porém, o artista não se encontra isolado nessa pesquisa; a rigor, talvez nem seja mesmo o precursor dela. Observe-se, antes, que em Paul Klee nem sempre encontramos a fórmula inédita, embora jamais deixemos de localizar o processo levado às suas últimas conseqüências, a solução formal plenamente ex plorada. Parece-nos tratar-se disso, precisamente, no caso em questão.

Os repertórios das escritas começam a ser explorados logo de pois do impressionismo:

Gauguin e a incorporação de expressões indígenas; Van Gogh e as copias dos ideogramas japoneses; o enredamento de motivos florais, arabescos e grafias estilizadas nos trabalhos do "modern styl".

Mas pensemos acima de tudo no cubismo, com os seus "rébus ex quis", para lançarmos mão outra vez de uma sutil percepção de Cocteau. A partir da década de dez, Picasso e Gris, Braque e Léger começam a manipular os elementos da escrita, pintando-os a óleo com o auxílio de moldes ou colando sobre telas os recor tes de jornais.

Além disso, dois mestres no emprego dessa técnica precisam ser destacados - Kurt Schwitters e René Magritte;

os Merz, repletos de palavras encontradas-escritas, que se tornavam parte deles "por uma espécie de unanimidade"

e no pintor belga:

A traição das imagens, A chave dos sonhos, A arte da conversacão, inumeráveis trabalhos onde a inscrição nega, confirma, desdobra, inverte, ilumina, obscurece, desafia -

a imagem, pseudo-ilusão naturalista

irônica fotografia pintada à mão

De um modo geral, nenhum movimento posterior ao cubismo negligenciou os signos da escrita:

o futurismo -

Marinetti e o dinamismo das palavras em liberdade, a fim de melhor "exprimir nossa turbilhonante vida de aço, de orgulho, de febre e de liberdade"; Manifestação Intervencionista de Carra, estilhaços de palavras coladas em círculos concêntricos; sílabas e letras nos quadros de Severini, em Hieróglifo dinâmico do Bal Tabarin, por exemplo, dançando junto com a multidão frenética

e o dadaísmo -

os ideogramas assemânticos de Arp, os títulos devastadores de Picabia, o sintagma "Fonte" associado ao urinol de Mutt/Duchamp, pastiches de frases e ícones nas fotomontagens de Hausman e Hannach Hoch.

e o surrealismo dos poemas-objetos, dos quadros-poemas de Miró. André Bretón: ". . .combinar os recursos da poesia e da plástica, e especular sobre o seu poder de exaltação recíproca"

Klee, em 1925, expõe juntamente com os surrealistas, em Paris

a vanguarda russa: Malevitch de Um Inglês em Moscou, digamos; sem dúvida um dos clássicos do gênero, merecendo análise em particular; Larionov, nas tentativas de apreender as cenas da vida popular ou no retrato de Tatlin

Klee recebia informações através de Kandinsky, seu amigo e colega na Bauhaus

e ainda as capas do De Stijl, com as suas letras geometrizadas

lembrar os polêmicos contactos de Van Doesburg com a vanguarda alemã, Gropius, Klee, Moholy-Nagy, Feinninger

Sem dúvida, Klee está no epicentro destes renovadores furacões. Recebendo e devolvendo influências. Muito consciente e vigilante: "Escrever e desenhar são idênticos no fundo"

em Das Bildnerische Denken

Não nos esqueçamos,

solidária e congenialmente o poema se espacializa, começa a explorar a fundo as dimensões visuais da escrita, as energias ópticas latentes nas palavras e frases. Mallarmé, o Lance de Dados, segundo Valéry "um belo álbum de imagerie abstrata" , um "espetáculo ideográfico". E os Caligramas de Apollinaire: "com esta produção não há mais dúvida que certas escritas modernas tendem a ingressar na ideografía . O acontecimento é curioso. É uma revolução, com toda a força da palavra. Mas esta revolução se encontra apenas em seu início". Sob o pseudônimo de Gabriel Arboin, em 1914, no Soirées de Paris . E Blaise Cendrars, Tzara, Huidobro, Ball. Tantos e tantos. Em Paris , década de 20 , inclusive Oswald de Andrade - a física do poema... e os desenhos de Tarsila

Klee foi também poeta. Voltaremos a isso mais adiante.

Em definitivo, um pioneiro bem acompanhado, um desbravador com os flancos muito guarnecidos. Abrindo trilhas que logo serão palmilhadas pelos alfabetos brancos de Tobey, os pop-escritos de Rauschenberg, os painéis da arte conceitual

principalmente, todas as invenções em perfeita sintonia com a cultura de massa em período de emergência e definição. Pois a cultura de massa faz render - no duplo sentido - essa prática semiótica, transformando a espacialização dos recursos escriturais numa de suas linguagens mais características e fecundas : revistas, jornais, cartazes publicitários , histórias em quadrinhos, livros didáticos, panfletos, capas de discos, anúncios luminosos, gráficos e estatísticas

Nenhuma ilusão quanto aos ateliês de Paul Klee: suas paredes não eram de marfim.

Uma nova espécie de caracteres tipográficos foi projetada na Bauhaus , sendo conhecida pelo nome da escola, onde Klee lecionou durante dez anos, o período mais brilhante de sua carreira, 1921 a 1931 . O funcionalismo de Gropius. A produção em série.

"Os artistas são as antenas da raça"

Ezra Pound

, e os liames dialéticos entre o mercado e

o museu...

9. Non multa sed multum. Como é sabido, Klee nos legou mais de nove mil obras, espalhadas por centenas de museus, galerias e coleções particulares. Para vê-las na totalidade, o sujeito precisaria ser, no mínimo, um personagem de Borges, que tivesse um Aleph privativo, no fundo do porão de sua casa. Já demandaria um trabalho de equipe a simples organização de um catálogo de peças nas quais os elementos escritos fossem básicos. Vimos, até hoje , poucas dessas obras, por exame direto ou em reproduções. Assim, restou-nos apenas uma solução: afastarmos logo de início qualquer aspiração ao fechado e integral; ao contrário, instalamo-nos voluntariamente no lacunar, provisório e parcelar. Curados da nostalgia de completude , ao escolhermos tal objeto de reflexão, sabíamo-nos de antemão condenados ao essencial.

O essencial: a partir de um número relativamente pequeno de composições

detectar pelo menos

alguns dos principais gêneros de soluções, as fórmulas, processos, esquemas praticados

preferidos

melhor ainda: o essencial,

ler pelo menos uma obra de cada tipo, da melhor forma possível, cuidando de vislumbrar nela as operações subjacentes, certos modelos geradores,

as significações visadas pelo artista

10. Aceno ao Cubismo. Em 1912, viagem de Klee a Paris. Vê quadros de Picasso e Braque. Sobretudo, visita Delaunay e entra em contacto com a construção do espaço exclusivamente por meio da cor. Em 1914, pinta Homenagem a Picasso , quadrados justapostos no interior de um contorno oval, dinamismo de pequenas superfícies quadriculadas e multicoloridas. Em 1914, Cúpula Vermelha e Branca , quadrados rítmicos. Ainda em 1914, Composição, mesmo esquema, com insinuações de uma paisagem na zona inferior do quadro.

Tudo levava a crer que o pintor se ajustaria ao movimento de origem francesa, mesmo que fosse para renová-lo. Depois, há uma guinada: Viagens à Africa do Norte, serviço militar, morte de amigos como Mare e Macke na frente de batalha , os alunos, os cursos. Novos desafios e respostas

muito respeito pelo "pensamento formal" dos cubistas, porém -

"Pintura e sonho ao mesmo tempo, e para

completar o trio , meu ego"

As dimensões que se originam no inconsciente: "ser abstrato mas com recordações": mitos, sonhos, arquétipos, paisagens fantásticas, jardins de contos de fadas, pássaros e estrelas, sugestões eróticas e os hinos à noite

1920 - publicação de Schöpferische Konfession, pronta há alguns anos

1921 - integrando a equipe da Bauhaus, em Weimar

1924 - über die moderne Kunst, dita Conferência de Iena

1925 - com a Bauhaus , transferida para Dessau

Contudo, em 1928, um toque cubista reaparece , surpreendentemente. Em Refeição Desordenada, óleo e aquarela sobre cartão. Descrevamos um pouco. Objetos heteróclitos, representados como se estivessem sobre uma mesa de cerimônia mágica , bem nítidos e isolados uns dos outros - cálices, garfos, compoteira, um manequim aparentado com os de Chirico, bandeirolas, pratos, ovos. E lá embaixo, no ângulo direito da composição, uma garrafa vista frontalmente, com seu rótulo -Cognac- em letras de fôrma, imitando aquelas pintadas com auxílio de moldes. É uma tematização quase sem importância , a nosso ver apenas uma circunstancial e tardia alusão ao cubismo e à sua freqüente assimilação de nomes de bebidas (ginger, conhaque, rum, café

Mais do que uma alusão: comovida recordação, citação de Picasso ou Braque, estilema que ressurge, agora transformado em clichê visual da época pós-cubista

" A cada dimensão que se apaga no tempo, deveríamos dizer - Estás em fase de virar passado, mas pode acontecer que nos reencontremos num ponto crítico, e talvez propício, da nova dimensão que te devolverá ao presente"

11. A pressa muito sossegadinha. Um aceno à distância, aventamos, mas já de muito longe, frisamos agora, pois são ainda mais insólitos e radicais os empregos que faz Klee da linguagem transformada em elemento plástico,

um deles: espacializar determinada palavra de um sistema lingüístico em uso (o alemão sobretudo) transpor a unidade completa

legendum claramente disposto sobre a tela, inteligível até mesmo a uma simples e furtiva espiada

fixemo-nos, por exemplo, em Pressa, Eue, de 1938

com fragmentos de papel-jornal, empastamentos de cores, traços que procuram (e conseguem) significar confusão e agitamento desordenado, azáfama que leva os bastões, negros e largos, a chocarem-se entre si, no centro do campo visual, entre choque de energias que percorrem integralmente uma das diagonais estilhaços de todos os lados)

e a palavra no meio dessa celeuma toda,

ocupando outro ponto estratégico do campo visual -

vejamos bem o escritema "o olho segue os caminhos que lhe foram preparados na obra"

Eile cria uma estranha zona de tensão, é um enclave com grande força de atração para o olhar, tem suficiente unidade e autonomia para isolar-se do restante, uma forma simples (à primeira vista), corriqueira ao menos para o fruidor de língua alemã, público do artista, em primeira instância, entrega-se (em parte) ao olhar mais apressado e descompromissado. o convencional eixo de leitura está (aparentemente) conservado: apreende-se da esquerda para a direita, segundo as normas em voga no ocidente.

Mas, então, qual o papel de tal corpo estranho, aninhado no interior da pintura?

Resposta - detém o nosso olhar

ajuda a retê-lo, mais precisamente

obriga-nos a espiar com maior cautela, impõe ao sujeito que o contempla um ritmo específico, seu próprio ritmo, o do tempo-espaço simultâneos, ali onde tem vigência o sutil deslocamento entre o B maiúsculo e a homogênea cadeia formada pelas três minúsculas

E

ile

o E maiúsculo sendo espelhado pelo e minúsculo , na terminal da palavra, ou vice-versa, oscilemos um pouco também nós, miremos de novo, sem urgência quando se trata de pressa tão paradoxal ;

o i e o l centrais parecem correr um perigo iminente, o de serem absorvidos pela mancha negra, ameaçador retângulo de irregular formação, que os espreita logo abaixo ;

mancha negra ? ou i ampliado, ou l de proporções agigantadas, ou mais plausivelmente uma outra letra qualquer, que se constitui lenta e hesitantemente

por mais pressa que tenhamos, nunca saberemos responder em definitivo, não há mais chance de pacificação para o nosso espírito, retido para todo o sempre nestas escadas , serpentinas, hastes de letras, inusitados espacejamentos

uma vez que os grafemas perderam sua neutralidade, viraram também desenhos, cores, volumes espessuras

elementos plásticos como as retas, os ângulos e as texturas

a palavra não duplica o significado expresso através das figuras, não serve de ancoradouro para a idéia que se comunica, não vem suprir uma ocasional lacuna imagética. Ao contrário, amalgamando-se com os demais recursos, tornando-se igualmente ícone , contribui de modo essencial para o próprio engendramento da significação.

Eile , no caso , deixa de ser uma parcela no interior de uma soma de elementos , a fim de metamorfosear-se numa figura integrada às demais figuras, ao nível de uma síntese complexa, de uma nova totalidade significante

portanto -

aqui nos defrontamos com uma pressa que acaba por nos levar, na realidade, a uma vagarosa aprendizagem: o olhar deve circular pachorrentamente, mesmo a leitura deve ser lenta e ritmada, pois os caracteres da escrita têm figuralidades latentes, e as figuras, por sua vez, entram em conexão com as letras

Enfim, o "natural" (espontâneo e rápido

é posto em xeque-mate pelo ver-ler

o dinamismo do ler-ver

"Um quadro nasce por acaso de uma só vez? Jamais! Ele se constrói peça a peça, não diferentemente de uma casa."

e o espectador? - interroga Klee

Este, sim, freqüentemente contorna o quadro a todo vapor, a toque de caixa, afligido. Eis então uma solução didática - problematizar o mais familiar, a escrita usual. A pressão que vai prender o aflito na rede dos seus misteriosos garranchos.

12. Escritítulos.

Uma instituição já veterana - nos catálogos ou em cartões, serenissimamente, os títulos

sábios ou poéticos, de bom ou mau gosto, precisos ou não mas sempre do exterior voz off

os quadros com figuras nos observam, diz o pintor; pois bem, assim tão desafiadores e inquisitoriais, que outra defesa nos restaria senão classificá-los entre os seres que julgamos conhecer e dominar

(denominar)

o imperialismo do logos, triunfante em nossa cultura

Klee subverte o hábito e a instituição -

acrescentando a titulagem às demais formas/ figuras/ imagens da própria obra; interiorizando-a, por assim dizer

- mais um índice da crise do sistema tradicional de representação

letras miúdas, manuais, em cadeias lineares,

na margem inferior do quadro, como se estivesse acabando de entrar ou já fossem partir de novo junto com datas e números usados na catalogação pessoal que o artista organizava meticulosamente

em geral, sobre linhas retas, de absoluta regularidade, paralelamente ao limite inferior, riscadas de extremo a extremo

em geral, como se traçadas por um escolar muito aplicado, e ainda não à vontade com o poderoso instrumento que acaba de reinventar

quais as funções?

Um tanto simplista, a solução de Merleau-Ponty: "... confiando ao título o cuidado de designar pelo seu nome prosaico o ser assim constituído, para deixar a pintura funcionar mais puramente como pintura..."

Sugerimos, em contrapartida:

A- institue-se um processo de contínuo reenvio de signos, do digital ao analógico, do convencional ao parcialmente motivado

B- os caracteres da escrita somam-se às figuras e produzem assim uma só conotação, irredutível a qualquer dos sistemas particulares

C-o resultado é portanto indecomponível, obtido graças a um específico trabalho semiótico, onde letras e ícones perderam suas autonomias, passando agora a atuar num contexto sui generis

contentemo-nos com o exame de um caso particular, o País Devastado, Zerstörtes Land, de 1934

losango de damasco/ sobre quadrilátero de algodão/ sobre quadrilátero de seda/ sobre cartão/ manchas/ e desenhos/ a óleo/ aquarela e pastel

Em 1933 o governo nazi fecha a Bauhaus. Klee, desde 1931, era professor na Escola de Belas-Artes de Dusseldorf. Também é despedido em 1933. Em seguida, começarão as queimas públicas de livros e obras de arte. Centenas de trabalhos de Klee serão incendiados. O artista se refugia na Suiça natal, em Berna. "A nova ordem política da Alemanha repercutiu também nas belas-artes, impedindo não só minha liberdade de ensino oomo o livre exercício da minha capacidade criadora". Esboço Autobiográfico, de 1940.

País Devastado, a própria metáfora da destruição: um quadro a fim de simbolizar uma região determinada

mas também quadros mutilados, pois a devastação não poupa sequer o mais intransferivelmente pessoal - os lugares de eleição, as moradas filosofais, o país da imaginação

(o contra-sonho começou)

escombros, rasgões, despedaçamentos, manchas de sangue; alguns melancólicos resíduos de verde, de habitações e de perdido céu azul

panos rasgados, esgarçados, esfiapados

sob o impacto do nazismo, Dada é revisitado pelo "mestre de formas"

a denúncia

a profecia

assim deveriam ficar os quadros de "arte degenerada", ao saírem das fogueiras; porém, neste caso, mensagem elaborada pela mão e sobretudo pela inteligência de Klee, ou seja, antecipando e preparando Burri, Tapiès, Dubuffet, toda a arte bruta, a arte pobre, os affiches descolados, as combustões de Klein

emblemas de uma civilização

Importava-nos somente ressaltar o papel dos títulos, dos grafemas que se juntam aos demais recursos. A significação nasce precisamente desse encontro, que produz uma circuito significante. Sem os dizeres, sem a escrititulagem, veríamos apenas um muro envelhecido, repleto de graffitis; ou um trapo de limpar as mãos e os pincéis; ou então uma plancha de Rorschach, convidando-nos para as mais fantasmáticas projeções. De qualquer modo, nada de tão localizado e datado politicamente.

Moral da historia: quem sabe incorporar um título deveria estar liberado de outros títulos pouco gloriosos. Tais como - pintor hermético, cerebrino, romântico, místico, voltado exclusivamente para o subconsciente, e assim por diante, ad nauseam.

Conferência de Iena, 1924:

"Encontramos as partes , mas não ainda o conjunto.

Carecemos desta última força. Por falta de um povo que nos conduza.

Buscamos este apoio popular; começamos, na Bauhaus, uma comunidade à qual demos tudo o que tínhamos.

Não podemos fazer mais."

13. R

ébus outro processo:

a inserção de letras isoladas

descoberto por Klee desde o início da carreira e depois incessantemente praticado. Por "letras" , aqui, desejamos referir-nos, bem limitadamente, aos caracteres do código fonético. Exemplo: Vila R, de 1919

o enorme R verde, superposto ao esquema da cidade, do bosque e do caminho vermelho, como se fixado por meio de uma fôrma usada para traçar as maiúsculas

o efeito de distanciamento é mais completo ainda

ostranénie

"a automatização engole os objetos, os hábitos, os móveis, a mulher e o medo da guerra", escreveu Chlovski

a finalidade da arte, em oposição

"consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção"

estranheza que nos causa a extrema proximidade , o mútuo enfrentamento de ambos os sistemas , reduzidos às suas menores unidades: esboços umários de casas, plantas, paisagens

e o grafema solto

elo que parece ter-se desprendido de sua cadeia significante.

O resultado é fantasmagórico, infinitamente mais ambíguo do que certo surrealismo para consumo do burguês

* incômodo, desconforto, inquietante estranheza Unheimliche

obriga-nos, por conseqüência, a esquadrinhar todo o conjunto. Mais ainda do que a visão de uma palavra intacta ou do que a simples incorporação de um título. Pois começamos a buscar outras unidades que lhe dêem um sentido qualquer , outros fios do (eventual) colar de grafemas.

R

seria então o membro explícito de um sintagma compreensível (legível), cuja continuidade ou preparação estariam em outros lugares do quadro ? Em outras superfícies, anteriores ou posteriores, mas no momento ocultas ? A tela seria uma adivinha ? Setor ampliado de uma carta enigmática ? De fato, há um pouco de tudo isso no trabalho:

rébus

Rébus , s.m. jogo que consiste em adivinhar palavras, idéias, conceitos que se figuraram em desenhos de objetos. Verbete do Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, Caldas Aulete, v. 4 , S. Paulo, Delta, 1958

esquadrinhemos a tela, à procura de outras letras, e obteremos nessa tentativa exploratória um surpreendente número de outros caracteres da escrita fonética, ali figurados:

A. um pequeno X vermelho, na diagonal onde se encontra também o R em questão ( ou será uma bandeirinha?)

B. ainda nessa linha ideal, um imenso C , igualmente verde ( ou será um astro, em fase crescente ?)

C. com decisivo peso visual neste contexto, no ângulo superior direito , um O amarelo (sol? lua?)

D. o pequeno O vermelho, no topo de uma das casas - a menos que o telhado da casa seja, por sua vez, uma junção de L branco e V preto, aliás duplicado à direita, imbricado pelo vértice no W vermelho ( e note-se a faixa preta que os liga : V começando a deitar-se , V deitado e incrustado no W à sua direita )

E poderíamos continuar por aí adiante , num fascinante exercício , praticado necessariamente sob o signo da inevitável suspicacia , pois as letras são formas fortes, devido aos nossos hábitos culturais; e além disso o

R

ostensivo

nos influencia

- mais os demônios da interpretação figurativa, e também porque, como acentua o próprio artista, "não se reconhece senão os objetos de suas próprias paixões".

Exercício instrutivo e salutar , porém

outras letras, ou promessas de letras

quantas ainda conseguiríamos obter, com maior paciência ?

qual a fronteira entre elas e os tradicionais meios das artes visuais ?

problemas, enigmas

Em todo caso, um primeiro benefício: ficamos certos de que o

R

marca uma ruptura, pela simples força de presença. Já não confiamos tão ingenuamente no realismo óptico, nas ilusões de uma analogia simples, no vidro transparente e fiel, na janela aberta sobre o espetáculo. A cena, agora , diante de nossos olhos e de nosso espírito alertados pelo/ R / , ameaça desagregar-se; a articulação em blocos geométricos está na iminência de transmutar-se em página, em lousa , em tablete para inscrições.

O R (como pronunciar tal conXsoante ?)

cinde a representação, mina-a internamente,

Tal o poder subversivo do inabitual contacto, da condensação escrita-figura em um só objeto, oportuna modalidade de

Rébus,

escrita figurada,

figuras inscritas Resolução: pintura e escrita = inscrições

" A pintura é uma escrita. Não foi jamais outra coisa, mas ela nem sempre se lembrou disso, freqüentemente escondeu a sua origem". Daniel-Henri Kahnweiller, marchand de Klee, depois que o nazismo impediu Flechtheiri de continuar negociando

14. Iluminar o cinza do poema - Entre 1916 e 1918 - época que podemos considerar de encerramento da sua longa preparação - Klee produziu algumas aquarelas onde breves poesias eram transformadas em texturas multicoloridas

as letras, espaços, linhas e entrelinhas ganhando cores feéricas o conjunto assim resultante

muito semelhante aos mosaicos, caligramas e manuscritos com iluminuras

através desse expediente

- outro meio de operar com o material da escrita -

"as palavras afloram à consciência lentissimamente" -

como percebeu Bruno Munari

lentissimamente ,

e inclusive já com outra natureza específica,

numa só unidade plástico-verbal, fazendo esquecer a homogeneidade do alfabeto, explicitando as virtualidades das letras como fontes de valores plásticos

a mais célebre dessas composições é Einst dem Grau der Nacht enttaucht, de 1918 . Comumente as reproduções só divulgam as regiões coloridas, em duas partes distintas, separadas por uma larga faixa esverdeada. No entanto, a operação semiótica foi mais complexa e o artista fez questão de patenteá-la:

de início,

o poema está reproduzido na íntegra, um bloco que encima o trabalho, seqüência linear de

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grafemas miúdos e regulares, as linhas organizadas em colunas, como se verifica usualmente em qualquer página impressa ou caligrafada, na cultura ocidental. Por nossa vez, não vamos furtar-nos ao prazer de copiá-lo, repetindo assim o gesto de Klee:

Einst dem Grau der Nacht enttaucht

Dann schwer un teuer

und stark vom Feuer

Abends voll von Gott un gebeugt

Nun ätherlings vom Blau umschawert

Zu Klugen Gestirnen

para logo em seguida, abaixo, produzir com o auxílio de recursos plásticos a metamorfose do cinzento em esplendorosas combinações de luzes, desenhos, atrações entre as regiões de cor, deslocamentos de palavras e versos no espaço, cruzamentos e separações de linhas

assim, criam-se ritmos no âmago da poesia

há uma transmutação (visual) do cinzento da noite para o brilho (agora físico) dos astros sábios.

A leitura usual é bloqueada -

o olhar tateia os signos, a meio caminho entre o máximo teor de informação e o ruído ameaçador; o olho necessariamente escolhe e descarta, solda e distingue, enxerga ou adivinha as sucessões e simultaneidades,

neste labirinto fabricado com resíduos de palavras, sílabas, caracteres da escrita -

(em estado de figuração) do monótono, repetitivo, redundante, abstrato, padronizado, ao zigue-zague

vai-e-vem

texto que se trans/figura

ícone de uma estrutura, ou, melhor dizendo, de uma certa mutação estrutural: do cinza ao cintilante

* Registra o criador da gramatologia, Gelb: "Na escrita hieroglífica egípcia, os signos particulares são muitas vezes distinguidos por uma coloração diferente, e as vogais são em cores nos antigos manuscritos do Corão, bem como os signos de pontuação, tais como as marcas de separação entre palavras ou frases nas antigas escritas etíopes". Ora, lembre-se da importância decisiva que teve para Klee a sua primeira viagem à Africa do Norte, em 1914 (Egito e Tunísia). Lá ocorre a plena intuição do papel da cor: "É o sentido do instante feliz - a cor e eu formamos uma unidade.

Eu sou pintor"

E são incontáveis as pesquisas com temas e reminiscências do oriente-próximo. Segundo familiares e amigos, o pintor teria inclusive um ar de beduíno, que, aliás, procurava até mesmo cultivar um pouco. Identificando-se (em imaginação) com o luar da região, por exemplo: "Muitas vezes, o reflexo atenuado da loura lua setentrional que se levanta me chama docemente, chama-me ainda. Ela será minha noiva, meu outro eu. Um impulso para me encontrar . Mas eu mesmo, eu sou a lua meridional que se levanta". Em 1928, às vésperas de completar 50 anos, oferece-se um presente: nova estadia no Egito. Sem dúvida, rastrear-se-ia aqui uma das matrizes que deram origem às produções artísticas que cuidamos de examinar. Will Grohmann, seu biógrafo e confidente, observou também, juntamente com os caracters árabes, marcantes influências do ideogramas e poemas chineses, caligramas e iluminuras medievais . Mas por que não fez a menor referência aos cartazes publicitários? Por mais vinculado que estivesse ao universo do oriente, Klee vivia, afinal de contas, num dos pontos nucleares da tecnologia ocidental, a Alemanha da primeira metade do século. Talvez pudesse sentir-se um chinês ou um escriba, mas só fantasmaticamente; o vigilante princípio da realidade, contudo, deveria carimbá-lo todos os dias com o espetáculo da grande cidade industrial moderna, com seus onipresentes cartazes e anúncios. A palavra imagifiçada não ilumina as ruas, tão-somente; excita também a fantasia dos poetas e pintores. Outra pista a ser considerada.

15. Alumbramento. Em 1937, já muito doente, Klee dá início à última fase de sua produção

seu estilo final, marcado pelos vários prenúncios da morte que se aproxima: anjos, vitrais, temas demoníacos, clima de ansiedade e temores primitivos.

Tecnicamente, passa a utilizar sobretudo os traços negros, muito pesados e grossos

faixas ou serpentinas

executadas por meio de tinta à óleo, sobre humildes materiais - juta, papel-jornal, papelão. "Naturalmente, não é por acaso que eu tomo a via trágica; muitas de minhas obras me fazem sinal e dizem: O momento chegou"

[Deixam transparecer claramente a própria atividade de pintar, as sinergias, impulsos e autocontroles que os gestos do artista revelam. A action painting já aponta no horizonte da cultura ocidental. Mesmo do estrito ponto de vista cronológico, os grandes abstratos norte-americanos não tardarão a afirmar-se publicamente . Há, portanto, um fio condutor que nos parece evidente. Entre a disciplina e a reflexão de Paul Klee, no término de sua carreira, e a explosão de Jackson Pollock , nenhuma solução de continuidade. Apenas uma condução do processo às suas últimas e inevitáveis conseqüências. Afirmação que não deixa de ser um aparente paradoxo , voluntariamente assumido por nós]

A rigor, a intenção do pintor não se alterou nestes derradeiros trabalhos. Cuida sempre de apreender o movimento, o dinamismo, a pluralidade de tempos/ acontecimentos/ dimensões o "mundo multiforme", segundo sua expressão

Mas o fará mediante a redução da pintura a uma série de jogos e modulações da escrita,

meio de expressão elementar

- contudo suficiente

Nenhum compromisso com o vidro transparente, o cubo cenográfico, os espetáculos privilegiados. Somente alguns caracteres, de talhes bem simples, que se enlaçam e desenlaçam

Klee despojou-se de vez

despojando também, no mesmo movimento, as "artes de superfície" de qualquer ilusão de mimesis, Cada superfície: espaço bidimensional

tablete de cera

folha de um livro inacabável

bloco mágico

onde se organiza uma mixagem de todas as espécies de signos da escrita, tanto os codificados e já usados por comunidades históricas quanto os ainda virtuais

(embora muito plausíveis, a serem testados um dia, ou de emprego cursivo num lugar qualquer do cosmos, pois o criador não está preso às formas cristalizadas,

"a natureza naturante importa-lhe mais que a natureza naturada"

Deixemo-nos iluminar um pouco, então, pela Fonte de Fogo, de 1939. Seu fundo de vermelho fosforescente permite que se destaquem melhor as figurações em preto,

numa dança febril

que é ao mesmo tempo germinação, efervescência, como se todas as escritas ali se interpenetrassem, nas malhas do saco de estopa de formato oblongo

o clarão do incêndio imaginário

definindo e circunscrevendo os nítidos ou emaranhados contornos dos símbolos - pintura/escrita, escrita/pintura

globalizadora amostragem de caracteres fonéticos, ideogramas, hieróglifos, pictogramas, mitogramas, fórmulas e sinais, pro/gramas de inscrições futuras, pré/gramas

esta fonte de fogo ilumina a própria gênese das marcas, a comunicação gráfica em estado de nascimento, no instante mesmo de sua constituição

"Onde o espírito é mais puro? No começo."

Tragebücher, 1914

Esta certeza, desde o seu próprio começo, norteando-lhe ainda as atividades nos primeiros meses da década de quarenta

quando sobrevêm

16. A escrita da morte. Segundo Giulia Veronesi, as obras de Klee constituem "um universo rarefeito e quintessenciado", "no qual a morte é luminosa."

In cui la morte é luminosa - nem poderia ser diferente, no trabalho de um artista para o qual os entes já cristalizados não representam a essência da força criadora da natureza

em cuja visão teórica - cada desenho de Klee é um pensamento, diz Herbert Read -

o nosso mundo perceptível e histórico, "sob esta forma recebida, não é o único possível", uma vez que a gênese , a "criação como gênese", tende ao alargamento contínuo dos processos, além do finito e do acidentalmente real no espaçotempo. Assim, para Klee, a morte só poderia mesmo ser abertura para um devenir, uma serena passagem para aquele País do Melhor Conhecimento, fabulado na Confissão Criadora

Nos últimos anos de vida, a representação simbólica da morte é um tema constante - Grohmann afirma, em várias passagens de suas análises sobre o pintor, que este cuidava de organizar seu próprio réquiem - como o fizera Mozart, compositor predileto de Klee

em 1940, desenganado pelos médicos, ciente de que executaria seus derradeiros trabalhos

(apesar do desespero da guerra já instalada ) -

ainda tem energias para A morte e o morto , onde a técnica de espacialização do material escrito recebe sua máxima decantação , talvez a obra-prima neste tipo de experiências

radicalmente - as próprias figuras da morte e do morto estão compostas com as letras de Tod

os mesmos traços negros das pesquisas finais, ainda uma vez sobre estopa grosseira

Tod - formando a boca, o nariz, os olhos do ser lívido, luminosamente branco, entre o zombeteiro e o cruel

Tod - os braços, a cabeça, o tronco da vítima, um pouco atrás, rudimentar garatuja

Tod - à esquerda, o grande O amarelecido, sobre o travessão do T , prestes a desabar sobre o D que centraliza o campo visual

Tod - sugestões esparsas, distribuídas por toda a superfície, reforçando a idéia central, quase no limite da redundância, portanto, nenhuma dúvida pode subsistir:

é o hieróglifo da morte,

mas um hieróglifo, ocidentalizado

que absorve também a escrita fonética. Pois o discurso ocidental, ao se imagificar, como no sonho ou nas histórias em quadrinhos - explica-nos Jacques Derrida -

"muda de função e de dignidade"

espacejamentos
ritmos
arabescos
espessuras
intervalos
gamas de cores
simultaneidades
encadeamentos
desarticulações
reestruturações aparecem
reaparecem
transparecem

a mão esquerda pinta / redige / inscreve seu testamento: uma ilustração da plenitude da escrita

- o exercício levou-a à sabedoria máxima, à completa identificação entre pintura e escrita. Melhor ainda: entre a pintura e as escritas que convoca e entretece, distribui e configura no espaço bidimensional , impelindo os grafemas a patentearem suas visualidades

* Tod é uma verdadeira promessa de ressurreição das escritas . 1940. A dura provação da guerra. Logo depois: uma descendência . Os herdeiros - Hartung, Kline, definições de Kossüth, assinaturas de Mathieu, Capogrossi, Twombly e seus alfabetos "menos-doque-nada". Inclusive , entre nós, já uma lista de experimentadores : Osmar Dillon, Gerchmann, Mira Schendel, outros mais. No que diz respeito ao processo estético em questão, a Morte conseguiu sair vitoriosa, pois eleva à perfeição essa nova prática significante,

original modo de apreensão da

Totalidade

único ponto de onde Klee aceitaria mover a mão espiritualizada, hábil para fazer com que os hieróglifos nasçam e renasçam ininterruptamente.

17. Questão de método - Limitamo-nos, nesta reflexão, a seguir ao pé da letra uma indicação do próprio Klee: "Gênese de um trabalho./I). Desenhar rigorosamente 'd'aprés nature', eventualmente com o auxílio de uma luneta /2) inverter o desenho (n.º 1), ressaltar de acordo com os caprichos do sentimento as linhas principais./3) Restabelecer a folha na posição normal e harmonizar 1= natureza, com 2= quadro".

Procedemos conforme a sugestão, o mais fielmente possível. Nas obras selecionadas, de ponta-cabeça ou bastante inclinadas, fomos ressaltando os elementos escriturais; depois retornamos à posição inicial, tida por correta, e observamos ou pelo menos nos esforçamos por observar - algumas das conexões entre os escritemas e as demais configurações. Todo esse processo de heurística e hermenêutica desenrolando-se, está claro, in mente.

18. índice - Uma resenha das principais interações que localizamos:

a. palavra legível, item 11

b. títulos assimilados, item 12

c. grafemas isolados, item 13

d. poema iluminado, item 14

e. escritas imaginárias, item 15

f. hieróglifo ocidental, item 16

19. Ponto Final - Tratando especialmente das últimas pesquisas de Klee, Jean Cassou observou com precisão: "A escrita, ou as escritas, essas escritas que, cada vez mais, aparecem na obra de Klee, e que, por fim, se tornarão grossos traços fortemente marcados sobre um fundo de policromia cintilante, são imaginárias. Ordinariamente, as escritas empregam-se para fins de comunicações precisas, mas aqui têm de ser imaginárias, isto é, empregadas para fins de comunicações mais íntimas que comunicações precisas, mais íntimas e mais largas, abrangendo toda a extensão dos poderes da linguagem que são os mesmos que os poderes da vida universal".

Não conseguiríamos imaginar um encerramento mais feliz.

20. Erudição passada a limpo - Auxiliaram-nos no desenho deste breve ensaio :

seção (1) a frase de Klee está citada em Will Grohmann, Paul Klee, Paris, Éditions Cercle d'Art, 1968, p. 70.

(2) as frases encontram-se às páginas 38 e 43 do catálogo referido no corpo do trabalho.

(3) foram importantes as leituras de : Pierre Francastel, Peinture et Société, Paris, Gallimard, 1965, reedição em livro de bolso; Ernest Gombrich, Art and Illusion, Nova Iorque, Panthéon Books, 1960; Nathan Knobler, The Visual Dialogue, Nova Iorque, Holt-Rinehartand Winston Inc., 1969; André Malraux, Le Musée Imaginaire, Paris, Gallimard, 1965, reedição em livro de bolso.

O texto de Descartes está na Dioptrique, in Oeuvres et Lettres, Paris, Gallimard, 1953, p. 204.

(4) Georg Lukacs, Ensaios sobre Literatura, tradução de Leandro Konder, Rio, Civilização Brasileira, 1968, p. 15.

(5) A frase de Pascal em Pensées, n. 137.

(6) Michel Butor, Les Mots dans la Peinture, Genebra, Skira, 1969.

(7) O artigo de Michel Foucault foi publicado na revista Les Cahiers du Chemim, n. 2, janeiro de 1968, p. 79 - 105. Quanto à citação de Massin, trata-se de La Lettre et l'Image, Paris, Gallimard, 1970, p. 251.

(8) Impossível reconstituir aqui todas as fontes consultadas, o que implicaria uma bibliografia concernente aos movimentos e artistas da primeira metade do século. Amplo material iconográfico em Massin e Butor, já referidos.

A frase de Cocteau, sobre o cubismo, vem citada por Maurice Serrulaz, Le Cubisme, Paris, PUF, 1967 p. 18; A de André Breton em Le Surréalisme et la Peinture, Paris, Gallimard, 1965, p. 59; as de Paul Valéry em Écrits Divers sur Stéphane Mallarmé, Paris, Gallimard, 1960, p. 19; a de Guillaume Apollinaire foi mencionada por André Billy, em Apollinaire par lui même, Paris, Seuil, 1954, p. 176; a de Ezra Pound encontra-se em ABC da Literatura, trad. José Paulo Paes e Augusto de Campos, S. Paulo, Cultrix, 1970, p. 77.

Todas as citações de Paul Klee, salvo indicação expressa de nossa parte, podem ser lidas em Théorie de VArt Moderne, Genebra, Denoel/Gonthier, s/d, Bibliothèque Médiations. São alguns textos, conferências e escritos didáticos do pintor, traduzidos por Pierre Henri Gonthier, inclusive a Conferência de Iena, (p. 15-33), e a Confissão Criadora, (p. 34-42).

(10) Reprodução do quadro e m Will Grohmann, já citado, p. 25.

(11) Idem, p. 36.

(12) A afirmação de Maurice Merleau-Ponty em L'Oeil etl'Esprit, Paris, Gallimard, 1964, p. 75. O quadro também pode ser visto em Grohmann, p. 131.

(13) As teses de Victor Chlovski, sobre a arte como desautomatização, no ensaio "A Arte como Procedimento", in Théorie de la Littérature, Textos dos farmalistas russos, reunidos, traduzidos e apresentados por Tzvetan Todorov, Paris, Du Seuil, 1965, p. 83. As de Daniel-Henri Kahnweiler, sobre escrita e pintura, no seu texto "Mallarmé et la peinture", in Confessions Esthétiques, Paris, Gallimard, 1963, p. 128; e também em Juan Gris, sa Vie, son Oeuvre, ses Écrits, Paris, Gallimard, 1946, sobretudo às p. 66-68.

Excelente reprodução do quadro em Maurice Raynal, Peinture Moderne, Genebra, Skira, 1953, p. 235.

(14) A citação de Bruno Munari em El Arte como Ofício, trad. Juan-Eduardo Cirlot, Barcelona, Labor, 1968, p. 54. Trecho de I. J. Gelb em A Study of Writing, Chicago, University of Chicago Press, 1952, p. 25.

A poética frase de Klee sobre o luar árabe, em Grohmann, já citado, p. 78; sobre a revelação da cor, idem, p. 17. Mas as opiniões de Grohmann sobre as influências recebidas por Klee, em sua obra Paul Klee, tradução de Jean Descoullages e Jean Philippon, Paris, Flinker, 1954, p. 144-145. Trata-se, a nosso ver, do melhor escrito biográfico e crítico sobre o artista suiço-alemão. Além disso, apresenta um grande número de ilustrações a cores, o que a torna de consulta indispensável.

Uma boa reprodução do quadro-poema, em Norbert Lynton, Klee, Londres, Spring Booys, 1964, plancha 10.

(15) Uma fotografia do quadro pode ser contemplada em Will Grohmann, Paul Klee, tradução de R. S. Torroella, Barcelona, Editorial Timum, 1962, Lâmina 24. Quanto à passagem do Tragebûcher, traduzimos da versão francesa, de Pierre Klossowski, sob o título de Journal, Paris, Grasset, 1959, p. 299. Os diários de Klee foram redigidos de 1898 a 1918, e editados originalmente pelo seu filho, Félix Klee, em 1956, com o título que se tornou célebre, pela editora Dumont-Schauberg, de Colônia.

(16) A idéia de Giulia Veronesi em "Paul Klee e la sua influenza", in L'Arte Moderna, n.º 53, volume VI, Milão, Fratelli Fabbri, 1967, p. 301. A observação de Herbert Read em Histoire de la Peinture Moderne, trad. Yves Rivière, Paris, Aimery Somorgy, 1960, p. 242.

Sobre Klee e o requiem final, ver por exemplo, na primeira obra citada de Grohmann, p. 44. A passagem de Jacques Derrida à quai nos referimos se encontra em "La Scène de L'écriture", in L'Écriture et la Différence, Paris, Du Seuil, 1967, p. 322.

(17) Journal, op. cit., p. 24.

(19) Jean Cassou, trad. José Saramago, Panorama das Artes Plásticas Contemporâneas, Estudos Cor, Lisboa, 1962, p. 330.

( ) Foram-nos ainda de grande valia, embora por acaso não diretamente referidos no texto: Jean François Lyotard, Discours, Figure, Paris, Klincksieck, 1971; Giorgio de San Lazzaro, Klee la vie e Voeuvre, Paris Hazan, 1957.

21. Dedicatória - Ao menino David, cinco anos e meio, canhoto. Numa tarde de maio, diante de reproduções de quadros de Klee, afirmou-nos com toda convicção: "São egípcios". O que nos serviu de inspiração para tratar de compreender porque, afinal de contas, a mão que desenha hieróglifos é assim tão privilegiada.

"Existem ainda começos primitivos da arte e encontramolos nas coleções etnográficas ou em nossa própria casa, no quarto dos nossos filhos. Não ria, leitor! As crianças têm esse poder e é uma lição de sageza que elas o possuam também." Tragebücher, 1912.

Wilcon Pereira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2011
  • Data do Fascículo
    1974
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