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Ordem e perigo: superfícies do corpo político

Order and Danger: Surfaces of the Body Politic

Resumo:

Este ensaio desenvolve uma reflexão sobre a noção de ordem pública, do ponto de vista da biopolítica. Com esse objetivo, analisa-se a resposta autoritária aos protestos contra o ordenamento moral do espaço público, tomando como exemplo o caso do movimento 15-M, na Espanha. Explora-se, então, a noção de ordem pública no seu caráter de dispositivo, no sentido dado por Foucault a esse termo. Na sequência, faz-se uma breve aproximação genealógica às relações existentes entre a ordem pública e o ordenamento sexual e racial do espaço público. Por fim, explora-se, em diálogo com Sarah Ahmed e Mary Douglas, o lugar que as biopolíticas da ordem pública ocupam na constituição e policiamento das fronteiras físicas e morais, internas e externas, que defendem ao corpo político das diversas figuras da alteridade, da abjeção e da contaminação.

Palavras-chave:
Ordem pública; Biopolítica; Ativismos queer; Movimento 15-M; Políticas da rua

Abstract::

This essay addresses the notion of public order from the point of view of biopolitics. With that aim, it relates the authoritarian response to social protest with the moral ordering of public space, using the case of the 15-M movement in Spain. Then, it reads the notion of public order as a dispositive, in the Foucauldian sense of the term. Departing from there, it presents a brief genealogical approach to the relations among sexual and racial ordering o public space. Finally, in dialogue with Sarah Ahmed and Mary Douglas, it explores the role of the biopolitics of public order in the constitution and policing of the moral and physical, internal and external borders separating the political community from its various others.

Keywords:
Biopolitics; Public order; Queer activism; 15-M movement; Street politics

A assembleia dos corpos não precisa estar organizada a partir do alto (a presunção leninista), nem transmitir uma mensagem única (o conceito logocêntrico) para exercer uma determinada força performativa no domínio público.

(Judith Butler)2 2 Precarity Talk. A Virtual Roundtable with Lauren Berlant, Judith Butler, Bojana Cvejic, Isabell Lorey, Jasbir Puar, and Ana Vujanovic (2012, tradução minha).

Uma vez que o Estado assume a função do biopoder, só o racismo pode explicar a função criminal do Estado.

(Michel Foucault)3 3 Aula de 17 de março de 1976 (2000).

Introdução

Um dos elementos por meio dos quais se podia reconhecer a presença da Assembleia Transmaricabollo de Sol4 4 Assembleia ativista originada como grupo de trabalho do movimento 15-M de Madri (http://asambleatransmaricabollodesol.blogspot.com/). pelas ruas de Madri eram as bandeiras que seus membros portavam em quase toda ocasião, das assembleias nas praças às manifestações, performances e ações diretas. As bandeiras dessa assembleia do Movimento 15-M5 5 Também conhecido como movimento “dos indignados”. Foi o primeiro eco da Primavera Árabe, na Europa, tendo ocupado um lugar estratégico na onda global de “contágios” entre os movimentos de protesto que fizeram das assembleias públicas e da ocupação das praças centrais das grandes cidades alguns dos seus signos distintivos. Como em outros lugares, o 15-M foi um movimento de resposta às políticas de austeridade e à perda de legitimidade das narrativas oficiais sobre a crise econômica iniciada em 2007 (NOFRE, 2013). , que sucedeu à Primavera Árabe e precedeu a resistência da praça Syntagma, na Grécia, do movimento Occupy Wall Street e de suas posteriores mutações, eram bandeiras do arco-íris que, para serem diferenciadas das que poderiam ser encontradas em qualquer vitrine de qualquer McDonald’s nos dias da celebração do “Orgulho gay”, tinham franjas coloridas, como amostra de uma variedade de mensagens escritas apressadamente com spray. O resultado tinha a forma de uma apropriação queer ou transviada da poética low-cost que caracterizou o 15-M, pelo menos desde que a modelo do imenso anúncio da L’Oréal, a qual olhava impassível o caótico acampamento levantado na praça do Sol, se convertesse, por obra da ressignificação publicitária, em porta-voz da demanda coletiva por uma democracia real.

Em sua própria e mais reduzida escala, as bandeiras da assembleia continham, com obsessiva persistência ao longo dos anos, reivindicações contra as políticas de austeridade, pela despatologização dos corpos e identidades trans6 6 A lei estatal de identidade de gênero do Estado espanhol continua, oito anos depois e apesar das mudanças no DSM-5 e na CID-11 da Organização Mundial da Saúde, exigindo o diagnóstico médico como requisito para a mudança do nome próprio e da marca do “sexo” legal nos documentos de identificação. Sobre o movimento transnacional pela despatologização, consultar http://stp2012.info , contra os despejos ilegais7 7 O Tribunal de Justiça da União Europeia declarou ilegal, em 2013, a lei espanhola de despejos e, em 2018, a doutrina do Tribunal Supremo da Espanha sobre os despejos, ambas fortemente criticadas pela Plataforma de Afetados pela Hipoteca (https://afectadosporlahipoteca.com/). , pelos direitos laborais das trabalhadoras do sexo8 8 Em coligação com grupos de defesa dos direitos laborais e sociais das trabalhadoras do sexo que estiveram presentes no Movimento 15-M e nas mobilizações posteriores, pelas mãos do recentemente desaparecido Coletivo Hetaira (https://colectivohetaira.org/), com mais de 20 anos de militância feminista na rua. ou contra o apartheid sanitário9 9 A exclusão sanitária de imigrantes em situação irregular foi só parcialmente resolvida em 2015, com grandes diferenças entre as regiões autônomas (informação atualizada na plataforma http://yosisanidaduniversal.net/). , entre outras muitas questões. Sem dúvida, se tivesse que escolher só uma entre a variedade de bandeiras que sujamos naqueles anos de efervescência política, seria aquela em que se podiam ler, com grandes letras garrafais, as palavras “desordem púbica”. Talvez porque o naïf deslizamento semântico parecia ter a lúdica capacidade de questionar a rigidez da distinção entre a ordem cotidiana da circulação dos corpos e mercadorias pela cidade, por vezes referida como ordem pública da polícia (ECHANDIA, 1946ECHANDIA, H. Evolucion de la noción de orden publico. Revista de La Universidad Nacional (1944-1992), Bogotá, v. 6, p. 251-262, 1946.), e uma desordem, em aparência ao menos, completamente diferente, aludida pela desordem moral associada à região púbica; ou porque, por outro lado, parecia combinar a chamada à resistência à repressão do protesto com aquela do desprezo histórico com as políticas sexuais e de gênero no seio dos movimentos sociais de classe. Seja como for, parece-me uma boa síntese do impulso que nos levava a participar daquela dissonante reunião de corpos e dissidências que era a própria assembleia, um piscar de olho para a sua forma de contribuir para a queerificação dos espaços de protesto.

O que se apresenta a seguir constitui, justamente, uma tentativa de levar a sério esse piscar de olho para pensar o lugar que o impulso por perturbar a distribuição e hierarquização das legitimidades de acesso de diferentes corpos ao espaço público ocupa, nos projetos de resistência e sobrevivência coletivas.

Com esse intuito, este artigo propõe uma leitura, em quatro tempos, da dimensão biopolítica da noção de ordem pública. Analisa-se, em primeiro lugar, a dimensão sexual, de gênero e, em sentido amplo, moral inscrita na resposta autoritária a determinadas formas de protesto urbano, a partir da experiência do Movimento 15-M. Tomando como referência essa dimensão implícita nas políticas de segurança pública, explora-se, então, o caráter de dispositivo da ordem pública, no sentido dado por Foucault a esse termo, levando em conta a disseminação dos seus sentidos na prática jurídica. Na sequência, faz-se uma breve aproximação genealógica com os vínculos existentes entre a vertente da segurança pública e o ordenamento de gênero, sexual e também racial do espaço público. Finalmente, aborda-se, em diálogo com Sarah Ahmed e Mary Douglas, o lugar que as biopolíticas da ordem pública ocupam no policiamento e delimitação das fronteiras físicas e morais, internas e externas, que separam a comunidade política das diferentes figuras da alteridade, da abjeção e da contaminação.

1 Ativismo e desordem púbica

Se as palavras “desordem púbica” guardam para mim uma significação especial, é, provavelmente, porque foram escritas em um momento de recrudescimento da repressão ao protesto urbano. Ou, pelo menos, de institucionalização legal dessa repressão. Desde os acampamentos iniciais do Movimento 15-M, em Barcelona e Madri, em maio de 2011, as manifestantes estavam acostumadas a ser atacadas em resposta às formas de resistência pacífica e a correr para se refugiar das bombas de gás lacrimogêneo e dos disparos com balas de borracha.10 10 Apenas na Catalunha, sete pessoas perderam um olho, como resultado dos disparos de balas de borracha entre 2009 e 2012 (http://stopbalesdegoma.org/). A irradiação do movimento pelas áreas centrais das cidades, em todo o Estado, foi contestada com a brutalidade policial necessária para que os principais meios de comunicação pudessem mostrar que participar dos protestos constituía um esporte de risco. Essa repressão foi especialmente intensa também sob a forma de sanções administrativas distribuídas de maneira arbitrária e indiscriminada. De fato, grande parte delas foi mais tarde anulada por juízes, em nome dos direitos fundamentais de reunião, manifestação e liberdade de expressão.

O que estava mudando no momento em que foi escrita essa bandeira era, justamente, o marco legal que permitia fazer prevalecer esses direitos sobre as práticas repressivas das forças e corpos de segurança do Estado. A repressão do protesto cristalizou-se numa série de reformas legislativas para criminalizar determinados usos do espaço público, como resposta à capacidade demonstrada pelo Movimento 15-M e suas mutações posteriores, na hora de fazer frente às políticas de austeridade e também “[...] para contestar as narrativas de culpabilização das suas vítimas na Europa do Sul.” (OIKONOMAKIS, 2016OIKONOMAKIS, L. A Global Movement for Real Democracy? The Resonance of Anti-Austerity Protest from Spain and Greece to Occupy Wall Street. In: ANCELOVICI, M.; DUFOUR, P.; NEZ, H. (ed.). Street Politics in the Age of Austerity: from the Indignados to Occupy. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2016. p. 227-253.). Entre essas reformas, destaca-se a aprovação da chamada lei da mordaça11 11 Isto é, a Lei Orgânica de Proteção e Seguridade Cidadã, de 2015. , apontada pela Human Rights Watch e Anistia Internacional como uma grave ameaça ao exercício de direitos fundamentais e descrita pelo New York Times como um “[...] perturbador regresso aos dias escuros do regime do ditador Franco.” (BOARD, 2015BOARD. Spain’s Ominous Gag Law. The New York Times, 2015. Disponível em: Disponível em: https://www.nytimes.com/2015/04/23/opinion/spains-ominous-gag-law.html . Acesso em: 29 abr. 2020.
https://www.nytimes.com/2015/04/23/opini...
).

Essa última menção poderia resultar, à primeira vista, exagerada. No entanto, um rápido exercício comparativo possibilita conferir que a lei da mordaça veio reprimir um catálogo tão amplo de “atos contrários à ordem pública” (ESPANHA, 1959ESPANHA. Ley 45/1959, de 30 de julio, de Orden Público. Boletín Oficial del Estado, 10365-10370, 1959.), na linguagem da ditadura, e de “certas alterações da ordem pública” (ESPANHA, 2015ESPANHA, Ley Orgánica 4/2015, de 30 de marzo, de protección de la seguridad ciudadana. Boletín Oficial del Estado, 2015.), no discurso da democracia, que teria despertado facilmente a inveja dos redatores da lei de ordem pública franquista, da qual é, pela via de sucessivas reformas, descendente direta.12 12 Com a que está de fato relacionada à Lei de Seguridade Cidadã, de 1992, que derrogou a lei de Ordem Pública e precedeu a atual lei da mordaça enquanto tal. No momento de revisão deste artigo, essa lei continua vigente e sendo aplicada durante a crise sanitária da Covid-19. Porém, seguindo o impulso hermenêutico do referido lema, será que existia de fato, nessa fase repressiva, algum tipo de tendência ou determinação por ligar de fato a “pacificação” do espaço urbano e o disciplinamento moral do corpo?

Essa relação fica evidente no caso do período ditatorial, cuja noção de “ordem pública” combinava tanto a ausência de distúrbios como o respeito aos valores da moral nacional-católica. Assim, põe-se em evidência, em particular, o tandem jurídico formado pela Lei de Ordem Pública e uma Lei de Vadios e Malfeitores13 13 Explicitamente referida no seu interior como lei aplicável para quem fosse conceituado como “perigoso para a ordem pública” ou que, pela sua conduta, “[...] supunha uma ameaça para a convivência social.” (ESPANHA, 1959, artigo 23). (referida explicitamente na redação da primeira), o qual se converteria no principal instrumento para a defesa da ordem heterossexual da sociedade franquista.

No caso da reação autoritária ao protesto social dos últimos anos, por sua vez, essa relação pode não resultar tão evidente. De fato, poderia parecer que a chamada à desordem púbica assinalava a justaposição das preocupações de uma pequena assembleia, concernida só conjunturalmente às políticas da dissidência sexual e de gênero e, ao mesmo tempo, com a coligação com outros movimentos para reprimir o protesto urbano. Frente a essa interpretação, convém ter em conta que essa soma de preocupações caracterizaria um espectro de ativismo bastante amplo. De fato, essa combinação se revela idiossincrática quanto à atividade política da pluralidade de grupos queer, que, em continuidade genealógica com coletivos como os Pink Blocs do movimento alter-globalização, teriam aberto espaços de resistência queer e transfeministas, em diferentes cenários de protesto.

Sirvam como exemplo os protestos contra a “cura gay” nas Jornadas de Junho e os casos da irrupção das múltiplas assembleias queer do movimento Occupy14 14 Como o movimento Occupride, em Occupy Wall Street, as assembleias Occupy the Rainbow, em Toronto, Queer People of Color, em Oakland, Occupy Baltimore, em Mortville, entre outros. , do LGBT Block, na resistência do parque Gezi ou da Act Up Paris, nas atuais mobilizações dos gilets jaunes, entre outras perturbações coletivas da ordem pública, em contextos recentes. Apesar das diferenças entre esses grupos, coletivos e movimentos, todos participariam da tendência a confundir qualquer distinção operativa entre diferentes ordens da desordem, revelando o impacto que a relação entre o disciplinamento do corpo e o policiamento do espaço urbano tem, na configuração da distinção público-privado.

Isso fica especialmente evidente, inclusive, quando pensamos nas relações dessas formas de ativismo com a polissêmica noção de ordem pública. Para começar, porque as forças da ordem pública (sejam policiais, sejam judiciárias ou paraestatais) não se limitam a atuar num espaço previamente definido como público, por cuja ordem teriam que velar. Bem ao contrário, como mostra eloquentemente Judith Butler, em Corpos em aliança e a política das ruas (2018), as restrições ao acesso ao espaço de aparição do movimento social constituem uma parte fundamental da constituição do que conta, em primeiro lugar, como espaço público. Nesse sentido, o espaço público seria também produzido mediante a determinação do que se considera uma perturbação inadmissível da ordem pública, pronta para ser confinada na prisão ou, no caso, no espaço doméstico. Dito de outra forma, a produção do que chamamos espaço público depende da definição prévia do que conta, e do que não conta, como um corpo apto para a coabitação.

Tendo isso em vista, caberia perguntar: como as diversas mudanças históricas da noção de ordem pública participam na determinação do que pode um corpo, tanto em público como no privado? Dito de outra forma, qual papel o Estado representa na produção de um regime de inteligibilidade do corpo enquanto tal? Por outro lado, levando em conta que o policiamento do espaço da coabitação repousa sobre a definição das ameaças internas e externas à ordem pública, podemos entender o sentido biopolítico dessa ordem à margem dos processos históricos de delimitação das margens e fronteiras, físicas e simbólicas, do corpo político?

2 A ordem pública como dispositivo

Mais do que uma série de respostas que se sucederiam, aquelas perguntas assinalam um campo de crítica e de pesquisa possível. Como aproximação, cabe destacar que o vínculo entre o tipo de perturbação da “paz social”, no qual “[...] o mesmo caráter público do espaço está sendo disputado ou pelo qual inclusive luta-se quando a multidão se reúne” (BUTLER, 2015BUTLER, J. Corpos em aliança e a política das ruas. Notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015., p. 82), e a desordem sexo/genêro enquanto tal parece ser uma preocupação habitual na repressão do protesto urbano. Noutros termos, a restauração da ordem pública em cenários de protesto costuma ser defendida como a restauração da ordem moral do espaço público. Assim, no caso do Movimento 15-M, que continuarei tomando aqui como exemplo, tornou-se uma prática comum da classe média conservadora acusar o Acampamento Sol de ter-se degenerado num espaço com “[...] problemas de higiene, convivência, segurança e imagem pública” (LA NACIÓN, 2011LA NACIÓN. Continúa la protesta en la Puerta del Sol. La Nación, 30 maio 2011. Disponível em: Disponível em: https://www.lanacion.com.ar/el-mundo/continua-la-protesta-en-la-puerta-del-sol-nid1377314 . Acesso em: 29 abr. 2020.
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), ao tempo em que se usavam as demandas da Assembleia Transmaricabollo para anunciar a dissolução do movimento numa “[...] balbúrdia [pot-pourri] sexual” (LA GACETA, 2011LA GACETA. Acampada Sol se disuelve reclamando popurrí sexual. La Gaceta, 9 jun. 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.intereconomia.com/noticias-gaceta/sociedad/acampada-sol-se-disuelve-reclamando-popurri-sexual-20110608 . Acesso em: 29 abr. 2020.
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).15 15 Inspirados talvez pela ameaça da “balbúrdia” de gênero, que, para a feminista ilustrada Celia Amorós (2005), representa a teoria da performatividade de gênero de Judith Butler. A mesma relação pode ser identificada nas formas de violência sexual exercida contra mulheres e gays por parte da polícia, nos protestos de 2019, em lugares como Chile, Bolívia ou Hong Kong, na medida em que fazem parte da tentativa de restituir a ordem masculinizada e heterossexual do espaço público.

Igualmente ilustrativa resultou a reação do poder legislativo na forma da referida lei da mordaça, a qual incluiu uma intensa e minuciosa tipificação punitiva de um amplo espectro de usos do espaço público, dos acampamentos à convocação de manifestações próximas a edifícios governamentais, passando por múltiplas maneiras de resistência pacífica, obviamente direcionadas para dar resposta às formas emergentes de protesto urbano. Ao mesmo tempo, a reação penal ao Movimento 15-M incluiu uma higienização moral do espaço público, que encontrou nas trabalhadoras do sexo o seu ponto de aplicação. Assim, junto aos usos do espaço público associados ao protesto, a lei da mordaça incluiria a criminalização da solicitação ou oferecimento de serviços sexuais numa série de espaços definidos de maneira suficientemente imprecisa como para permitir a perseguição arbitrária das trabalhadoras do sexo, muitas delas migrantes em situação administrativa irregular, na forma de multas por resistência à autoridade acompanhadas, com frequência, por “[...] insultos machistas, homofóbicos, transfóbicos, xenófobos, vexações, ameaças, agressões físicas.” (LA VANGUARDIA, 2016LA VANGUARDIA. Ley Seguridad Ciudadana ha empeorado derechos de prostitutas, según Hetaira. La Vanguardia, 29 nov. 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.lavanguardia.com/vida/20161129/412260006538/ley-seguridad-ciudadana-ha-empeorado-derechos-de-prostitutas-segun-hetaira.html . Acesso em: 29 abr. 2020.
https://www.lavanguardia.com/vida/201611...
, grifo meu). Sem esquecer, claro, o efeito da lei da mordaça sobre garotos de programa que encontravam na praça do Sol, antes dos protestos, um ponto habitual de reunião, tal como se sucedia nas praças emblemáticas de outros cenários de protesto, como a praça Tahrir, no Egito, ou o parque Gezi, na Turquia. Nisto, ao menos, acertava a imprensa conservadora: as praças centrais das grandes cidades costumam oferecer possibilidades para a sobrevivência nas margens sexuais e também raciais da cidade neoliberal.

Essas relações da noção jurídica de ordem pública com os ordenamentos de gênero, sexual e racial da cidade não se limitam, de todo modo, ao âmbito do discurso de quaisquer meios de comunicação, nem ao exercício da violência jurídica e policial sobre determinados coletivos, nem às reformas neoliberais do espaço urbano. Não, ao menos, se as consideramos separadamente. Pelo contrário, as técnicas de haussmanização moral adquirem a forma proliferante de um dispositivo, à condição de entender, isso sim, que a descrição da ordem pública como dispositivo manteria relação ambivalente com a forma como Michel Foucault emprega essa noção.

Efetivamente, se, por um lado, a disseminação histórica dos usos da noção de ordem pública resulta fiel à heterogeneidade irredutível, marcadamente extrajurídica, do dispositivo foucaultiano, por outro lado, sua relação intrínseca com as estruturas jurídicas a coloca em posição antagônica a essas estruturas. Lembremos que, para Foucault, dispositivos tão dificilmente sistematizáveis, como o da sexualidade, assim como outros tão hierarquizados, como o exército ou a prisão, não constituem unidades estruturais externas aos seus objetos de aplicação dedicadas à tarefa de ordenar a matéria informe dos corpos até, ao normalizá-los, torná-los inteligíveis. Foucault opõe a noção de dispositivo como superação ao modelo jurídico-discursivo do poder, em referência à configuração histórico-discursiva de uma heterogeneidade de instâncias regulatórias cuja dispersão no corpo social frustra qualquer tentativa final de distinção entre o dispositivo e o espaço material da sua aplicação.

Assim, na entrevista “Sobre a história da sexualidade”, descrevia a noção de dispositivo como

[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos. Um discurso que pode aparecer como programa de uma instituição ou, ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda; pode ainda funcionar como reinterpretação desta prática, dando-lhe acesso a um novo campo de racionalidade […] um tipo de formação que, em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência histórica. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante. (FOUCAULT, 1996FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1996., p. 244).

Entender a ordem pública como dispositivo num sentido nomeadamente jurídico entraria, portanto, em contradição com a dispersão de sentidos característica do dispositivo foucaultiano. No entanto, dificilmente poderíamos compreender a forma de operar da ordem pública, sem assinalar o caráter de rede com que ela se estende inclusive no interior do âmbito jurídico, isto é, sem levar em conta sua irrestrita plurivocidade, nos diferentes ramos do Direito. Efetivamente, como realçam os mais diversos tratados jurídicos, existe uma profunda vaguidade e uma intratável polissemia na noção de ordem pública que se prolonga de suas aparições no texto da lei até as sentenças penais ou as práticas administrativas fundamentadas em seu nome, as quais mostram, junto com as invocações policiais aos imperativos da manutenção da ordem pública, o lugar que o dispositivo de ordem pública ocupa na distribuição microfísica do poder do Estado.16 16 De maneira especialmente intensa, nas regulações estatais do campo reprodutivo, da identidade de gênero e do parentesco, que conformam o regime cisheteromonormativo (PÉREZ NAVARRO, 2018b).

Não surpreende, portanto, ao menos quando consideramos o alcance regulatório da ordem pública enquanto dispositivo, que a indeterminação quase omnívora do sentido jurídico da noção tenha sido motivo de inquietação para juristas e filósofos do Direito,17 17 “O pior defeito que se pode atribuir ao conceito, pretensamente jurídico, de ordem pública […] é o seu caráter vago e a imprecisão, admitida até pelos juristas partidários da sua manutenção.” (NOVOA, 1976, p. 134, tradução e grifo meus.). pelos riscos autoritários que o nível de arbitrariedade associado a qualquer uso da ordem pública inevitavelmente entranha. Para entender o alcance da expansão semântica desse “[...] arquétipo limitador dos direitos fundamentais em geral e do direito à livre circulação em particular” (MARTÍNEZ, 2014MARTÍNEZ, M. Límites a la libre circulación de personas en la UE por razones de orden público, seguridad o salud pública en tiempos de crisis: una revaluación a la luz de la jurisprudencia del TJUE. Revista de Derecho Comunitario Europeo, Madrid, v. 49, p. 767-804, 2014., p. 769, grifo meu), e levando em conta que não existe um marco transnacional fixo para a definição dessa noção, tomamos como exemplo a definição oferecida pelo Tribunal Supremo da Espanha, segundo a qual a ordem pública seria constituída pelo “[...] conjunto dos princípios jurídicos, públicos e privados, políticos, morais e econômicos absolutamente obrigatórios para a conservação da ordem social de um povo em uma época determinada.” (STS, de 5 de fevereiro de 2002).

Dessa maneira, o Tribunal recuperava uma definição concebida pelos tribunais da ditadura franquista,18 18 Concretamente, aquela estabelecida em uma sentença do mesmo Tribunal Supremo, em 1966 (ACEDO PENCO, 1997, p. 342). sublinhando que o dispositivo de ordem pública constitui um vínculo especialmente substancial entre a temporalidade dos regimes autoritários e a democracia, similar ao que Giorgio Agamben atribui à figura do estado de exceção. A dispersão dos sentidos constitui um dos fatores que explicam essa ambivalência jurídica do termo, assim como o seu potencial autoritário. Para entender ambos, seria um erro, porém, não levar em conta a profundidade jurídica e biopolítica do vínculo genealógico comum subjacente.

3 Biopolíticas da ordem pública

De Nietzsche a Foucault, a noção de genealogia contrapõe-se à noção de origem única, assinalando a multiplicidade de trajetórias históricas pelas quais o dispositivo (e não só) chega a adquirir uma configuração histórica. Isso é, sem dúvida, válido também para a noção de ordem pública, cujos usos e significados têm raízes na filosofia política anterior à Revolução Francesa. Torna-se, porém, ineludível esclarecer o que representou a inclusão da expressão “ordem pública e bons costumes”, no artigo sexto do Código Napoleônico de 1804, para a configuração moderna desse dispositivo.

O sentido biopolítico desse acontecimento teria, ao menos, um caráter duplo. Em primeiro lugar, o mencionado artigo é inseparável de um intuito disciplinador da emergente instituição do matrimônio civil; portanto, de uma concepção binária e complementar de gênero, na linha do que Gayle Rubin nomeou como “sistema sexo-gênero” e Judith Butler como “matriz heterossexual”, para me referir apenas a duas perspectivas feministas sobre o caráter político do casal monogâmico e heterossexual implicado, de maneira tautológica, no contrato matrimonial. Isso evidenciaria, em particular, a única referência à ordem pública inserida na apresentação do Código Napoleônico, no qual a noção de ordem pública seria introduzida pela primeira vez no direito moderno ocidental: “O legislador pode, no interesse da ordem pública, estabelecer tantos impedimentos [ao matrimônio] quantos encontre apropriados.” (PORTALIS, 2016PORTALIS, J. É. M. Preliminary Address on the First Draft of the Civil Code (1801). Bordeaux: Université de Bordeaux, 2016., p. 17).

Em segundo lugar, a ordem pública foi concebida como escudo frente à ameaça de contaminação ligada a determinada ordem racial, relacionada com a desordem genérica e sexual que parte do pensamento iluminista europeu associava aos espaços coloniais, em geral, e aos do mundo islâmico, em particular.19 19 Nesse sentido, a ordem pública ocuparia um lugar crucial na constituição das linhas abissais, na terminologia de Sousa Santos, entre a metrópole e o mundo islâmico (PÉREZ NAVARRO, 2018b). Esse vínculo se evidencia, de fato, no mesmo texto de apresentação do Code, rico em referências às virtudes da monogamia cristã em face dos perigos que teriam as relações não monogâmicas para a biopolítica finalidade da “propagação da espécie” pelas condições climatológicas do continente europeu (PORTALIS, 2016PORTALIS, J. É. M. Preliminary Address on the First Draft of the Civil Code (1801). Bordeaux: Université de Bordeaux, 2016., p. 18), entre outros motivos.

Por conseguinte, ambas as dimensões - a que se dedica ao ordenamento do campo sexual e reprodutivo e a da defesa da comunidade, quanto à ameaça de contaminação externa - dão conta do lugar que a ordem pública ocupa, na gestão biopolítica da população, no sentido dado por Foucault a esse termo. Como é sabido, Foucault associou a biopolítica à transição entre duas técnicas ou racionalidades governamentais, nem sempre facilmente distinguíveis entre si. A primeira seria própria do poder soberano para decidir sobre a vida e a morte dos súditos, no Antigo Regime, enquanto a segunda dependeria das técnicas governamentais para o governo da população, incluindo as práticas administrativas, burocráticas e demográficas, as quais receberam, até os tempos da Revolução Francesa, o nome de policiei. Ao contrário do que ocorria com a espetacularização dos suplícios, no Antigo Regime, o próprio da biopolítica seria considerar o indivíduo enquanto membro de um conjunto de seres vivos, isto é, de um conjunto populacional. Daí a forma como Foucault ressaltou, em suas aulas do Collège de France: o dispositivo da sexualidade teria, pela sua conexão com o problema da reprodução, um profundo caráter biopolítico.

Sem dúvida, a sexualidade tem sido, junto com a prisão, um dos dispositivos biopolíticos mais discutidos em relação à obra de Foucault. Porém, existe outro que resulta igualmente crucial para a compreensão do lugar que o dispositivo de ordem pública ocupa na produção dos diferentes regimes de permeabilidade das superfícies da comunidade política. Refiro-me ao modo como o racismo de Estado foi abordado, em seu curso de 1976, concebido como o dispositivo que permite “[...] matar gente, matar populações, matar civilizações”, sob o signo da biopolítica (FOUCAULT, 2005FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2000., p. 307). A relação assim estabelecida entre racismo, função de matar e biopolítica teria um caráter estrutural até o ponto em que surgiriam dúvidas, se a noção de necropolítica, de Achille Mbembe, assinalaria uma racionalidade governamental diferente da biopolítica enquanto tal ou, talvez, outra forma complementar de olhar um problema necessariamente ambivalente - posição pela qual, segundo entendo, optaria Berenice Bento (2018BENTO, B. Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação? Cadernos Pagu, Campinas, v. 53, jun. 2018.), quando propõe a noção de necrobiopoder para pensar o Estado racista em contextos neocoloniais.

Para além de sua relação com uma ameaça que se apresenta como externa à comunidade, o racismo é sublinhado por Foucault como modelo para uma extensão interna da função de matar, simbólica ou literal, todo tipo de ameaças ao “corpo vivente da sociedade”, sem relação direta com a questão racial. Noutros termos, essa leitura biopolítica do racismo o converteria no paradigma da construção de regimes letais de (in)inteligibilidade da alteridade20 20 Como explica Hannah Arendt, o racismo contra os judeus enquanto grupo conduziria à observação obsessiva do corpo individual, para encontrar, seja a traição aos ideais nazistas, seja o traço da contaminação étnica na própria árvore genealógica. Tal escrutínio substituiria, segundo Arendt, a análise crítica do racismo enquanto tal, convertendo-se na consequência “interna” da construção do judeu como ameaça externa. sob o signo da biopolítica, na forma de “[...] um racismo que a sociedade vai exercer sobre si mesma, sobre os seus próprios elementos, sobre os seus próprios produtos: um racismo interno, o da purificação permanente, que será uma das dimensões fundamentais da normalização social.” (FOUCAULT, 2005FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2000., p. 73, grifos meus). Esse tipo de ação normalizadora, na qual se confundem as superfícies interna e externa do corpo político, seria, justamente, a ambivalência topológica própria da biopolítica da ordem pública. Efetivamente, o dispositivo de ordem pública combina a vigilância das fronteiras “externas” da nação com o policiamento da ordem “interna” dos espaços de coabitação, de tal sorte que torna muitas vezes impossível dissociar a dimensão racista da propriamente moral.

Neste ponto, pode ser estabelecido um contraste entre a biopolítica do estado de exceção, que encontraria para Giorgio Agamben a sua forma de expressão mais caraterística, no bem delimitado espaço do campo de refugiados, e algumas biopolíticas da ordem pública que estenderiam o seu âmbito próprio de ação pelo conjunto do espaço da coabitação. Seria justamente nesse nível que atuam certas espécies de protesto, como os acampamentos urbanos, desafiando os mandatos da ordem pública, ao abrir um contraespaço ou, se quisermos, uma contracidade (PÉREZ NAVARRO, 2018aPÉREZ NAVARRO, P. Where Is My Tribe? Queer Activism in the Occupy Movements. Interalia. A Journal of Queer Studies. Warsaw, n. 13, p. 90-101, 2018a.) capaz de constituir a sua própria (des)ordem pública. Porém, existe também uma clara relação de complementaridade entre o estado de exceção e o dispositivo de ordem pública. Assim, evidencia-se a declaração do estado de exceção como resposta ao comprometimento sério da ordem pública, tal e como sucede nos estados de alarme declarados para a prevenção de ameaças terroristas.

4 Rituais de purificação

O dispositivo de ordem pública ocupa um lugar central na vigilância das fronteiras culturais, que, na exclusão de determinados corpos e práticas, produzem performativamente uma ilusão de pertença e homogeneidade interna. Este seria o caso dos impedimentos da mobilidade produzidos pelos usos jurídicos, em âmbitos tais como a regulação estatal das relações de parentesco, do campo reprodutivo e da identidade de gênero, entre outras áreas do direito internacional privado. Provavelmente, uma das dimensões do governo que melhor exemplifica o sentido biopolítico do dispositivo de ordem pública seja o ordenamento monogâmico das relações de parentesco, nomeadamente pelo lugar que este ocupa na hora de delimitar diferenças entre a Europa e o mundo islâmico. É interessante levar em conta, nesse sentido, como mostra Brigitte Vasallo, que inclusive as comunidades poliamorosas ocidentais apresentam uma marcada tendência a se identificar enquanto tais em aberto contraste com a poligamia islâmica. De fato, quando levamos em consideração a resposta legislativa às relações não monogâmicas, encontramos, de um lado, uma surpreendente escassez de demandas relacionadas com essas comunidades poliamorosas; por outro, uma notável hostilidade jurídica dirigida às relações poligâmicas.

Assim, no contexto europeu, esses desafios ao caráter monogâmico da “ordem pública familiar” (GARCÍA PRESAS, 2010GARCÍA PRESAS, I. El derecho de familia en España desde las últimas reformas del código civil. In: CONGRESO IBERO-ASIÁTICO DE HISPANISTAS SIGLO DE ORO E HISPANISMO GENERAL, I., 2020 Pamplona. Actas […]. Pamplona: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Navarra, 2010, p. 237-265., p. 241; NORIEGA, 2007NORIEGA, E. El orden público en el derecho privado. 2007. Mestrado (Magíster en Derecho com Mención en Derecho Civil) - Pontificia Universidad Católica del Perú, Lima, Perú, 2007., p. 120) guardam nomeadamente relação com a proteção de vínculos de parentesco preexistentes, na forma de petições de reunificação familiar, pensões de viuvez e também autorizações de residência por parte de migrantes polígamos. Com escassas exceções, essas demandas são rejeitadas por parte dos tribunais, em nome da defesa do caráter monogâmico da ordem pública. Em outro artigo, discuti sobre a circularidade do discurso jurídico, que invoca uma noção cujo conteúdo varia com o tempo e o lugar, conforme reconhecem tanto juristas clássicos quanto contemporâneos, ao mesmo tempo em que se usa a configuração monogâmica do parentesco, num contexto social determinado como medida dos limites de qualquer possível transformação (PÉREZ NAVARRO, 2017PÉREZ NAVARRO, P. Beyond Inclusion: Non-monogamies and the Borders of Citizenship. Sexuality and Culture, New Orleans, v. 2, n. 21, p. 441-458, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1007/s12119-016-9398-2. Acesso em: 29 abr. 2020.
https://doi.org/https://doi.org/10.1007/...
).

Em relação mais direta com os regimes de permeabilidade do espaço de coabitação, gostaria de chamar a atenção para a fórmula, repetida nos tribunais, como se de uma expressão ritual se tratasse, de que a poligamia repugna a ordem pública.21 21 Castellanos Ruiz (2018, p. 117al no cumplir con el requisito del “suficientemente grado de integración en la sociedad española” (art. 22.3 CC) faz uma relação histórica dessas sentenças. A ideia de que determinadas práticas ou instituições possam repugnar a ordem pública resulta ainda hoje comum, de facto, nas sentenças dos tribunais europeus, mas remonta, ao menos, à cultura jurídica da França de meados do século XVIII. Pode ser suficiente conferir, nesse sentido, a acusação dirigida contra os institutos jesuítas na Compte rendu des Constitutions des Sois-Disant Jésuites (BERTRAND, 1762BERTRAND, M. Comptes rendus des constitutions et de la doctrine des sois-disans jésuites, Metz: Parlement de Metz, 24-24 maio 1762., p. 5), os quais incluem uma acusação de existir neles “[...] qualquer coisa que repugna a ordem pública” que se apresenta, a seguir, com uma ameaça para os interesses da personne sacrée do soberano. Isto é, para a continuidade simbólica estabelecida entre o Rei, o Estado e o Legislador.

Essa proximidade retórica facilitaria justamente, no texto pré-revolucionário, a atribuição da reação visceral de repugnância ao dispositivo de ordem pública, como se da repugnância experimentada pelo corpo vivente do soberano se tratasse; e como se o problema subjacente envolvesse, mais do que um cálculo jurídico enquanto tal, uma reação atávica frente aos perigos do contato com dejetos, fluidos, excreções e outras substâncias portadoras de enfermidades.

Pode-se falar, por conseguinte, de uma notável profundidade histórica da relação existente entre a retórica da repugnância e a acusação de desordem pública, desde os textos jurídicos do Antigo Regime até os seus usos contemporâneos. Esta atravessa diferentes concepções históricas da soberania e da sua relação com o direito, sem dúvida, contudo, serve também para estabelecer, ao mesmo tempo, pontes quase-jurídicas entre as mesmas. Nesse sentido, a associação define um modus operandi ou, se quisermos, uma performatividade jurídico-policial envolvida na impermeabilização das fronteiras da nação e do seu espaço público em face de diversas figuras da alteridade.

Embora longe do problema do tratamento legal da monogamia e da retórica jurídica em geral, Sarah Ahmed (2014AHMED, S. The Cultural Politics of Emotion. New York: Routledge, 2014.) tem assinalado o impacto político que as retóricas da repugnância têm ocupado, na restrição de movimentos do corpo islâmico, após os atentados de 11 de setembro, nos Estados Unidos, de uma forma que resulta, também, esclarecedora para entender a performatividade envolvida na constituição das superfícies do corpo político. Em sua discussão sobre a performatividade da repugnância, Ahmed toma como ponto de partida a anedota referida por Charles Darwin, em que tanto ele como um nativo da Terra do Fogo reagem com repugnância ante um contato fortuito entre a mão do nativo e a comida de Darwin. A reflexão sobre a reação apresentada pelo próprio Darwin teria, argumenta Ahmed (2014AHMED, S. The Cultural Politics of Emotion. New York: Routledge, 2014., p. 83), a limitação de não levar em conta o efeito que, na sua construção cultural, ocupa a história da mobilidade dos corpos brancos europeus no espaço colonial e, em decorrência disso, a “[...] transformação dos corpos nativos em conhecimento, propriedade, mercadoria.”

Por sua vez, a retórica da repugnância experimentada pela ordem pública seria difícil, senão impossível, de se dissociar do passado colonial. Em particular, as sentenças para as quais o casamento poligâmico é suficiente para justificar medidas como a deportação seriam só muito parcialmente legíveis, sem levar em conta a história do colonialismo, do racismo e da escravidão22 22 Até o ponto em que, como argumenta Vasallo (2019, p. 5), “[...] pensar na monogamia em termos numéricos como algo completamente diferente das formas polígamas é uma construção colonial e racista.” - uma história cujas assimetrias axiológicas dependem de uma territorialização ou, se quisermos, uma topologia da ofensa moral:

A repugnância depende claramente do contato: implica uma relação de contato e proximidade entre as superfícies dos corpos e dos objetos. Esse contato se sente como uma intensidade desagradável: não se trata de que o objeto, separado do corpo, tenha a qualidade de “ser ofensivo”, mas de que a proximidade do objeto ao corpo seja sentida como ofensiva. (AHMED, 2014AHMED, S. The Cultural Politics of Emotion. New York: Routledge, 2014., p. 85, grifo meu).

De maneira similar, o dispositivo da ordem pública estaria igualmente envolvido na constituição dos regimes de proximidade, distanciamento e permeabilidade das superfícies de contato entre corpos e práticas sexuais, reprodutivas ou relacionais. Nesse sentido, a dimensão performativa da ordem pública poderia ser lida à luz dos rituais de purificação descritos por Mary Douglas (2002DOUGLAS, M. Purity and danger. An analysis of concept of pollution and taboo. New York: Routledge , 2002., p. 5), no seu tratado clássico sobre a antropologia da sujidade, pelos quais se cria uma aparência de ordem, mediante “[...] a exageração da diferença entre dentro e fora, entre acima e abaixo, homem e mulher.” Como observa a antropóloga estadunidense, o fascínio da antropologia estruturalista pelos rituais de purificação das culturas “exóticas” estaria igualmente envolvido numa epistemologia racista, entre outras coisas, pela maneira como permanece cego diante da ubiquidade dessa dimensão ritual na própria cultura.

Levando isso em conta, seria possível entender que o dispositivo de ordem pública, introduzido num contexto de expansionismo imperial e colonial, tomaria parte nos rituais de purificação que regulam as políticas de acesso ao território da metrópole, à ordem dos espaços de coabitação e à organização geral do campo da cidadania. Revela-se ilustrativa, nesse sentido, a forma como Douglas (2002DOUGLAS, M. Purity and danger. An analysis of concept of pollution and taboo. New York: Routledge , 2002., p. 4, tradução e grifo meus) destaca a dimensão moral envolvida nesses rituais de purificação:

As leis da natureza são arrastadas até sustentar o código moral: esse tipo de enfermidade é provocado pelo adultério, aquele pelo incesto; este desastre meteorológico é o efeito da deslealdade política, aquele é efeito da impiedade. O universo completo está relacionado aos intentos dos homens por forçar uns aos outros na boa cidadania.

Porém, se atendermos à topologia política resultante do dispositivo de ordem pública, percebemos que esta não se reduz à noção de “boa cidadania”, isto é, à relação entre um nós e um eles. Como assinala Mary Douglas, a experiência da repugnância depende da existência de uma dobra na superfície, uma viscosidade que confunde a separação entre o exterior e o interior do corpo. Nesse sentido, o corpo estranho repugnaria, na medida em que subverte a distinção entre o interior e o exterior do corpo político. No exemplo anterior, a rejeição da poligamia “externa” dependeria estruturalmente da estigmatização das inúmeras não-monogamias que coabitam no interior23 23 Desde as comunidades poliafetivas, as práticas poliparentais e, também, as poligâmicas, para dar apenas alguns exemplos. de uma ordem relacional que nunca foi monogâmica, senão num sentido estritamente parcial. Desse modo, os rituais de purificação combinariam a violência nua do fechamento de fronteiras, da deportação e das restrições à mobilidade em geral com a violência quotidiana, domesticada só até certo ponto, inscrita na tolerância com a diferença “interna”.

Considerações finais

O caso do Movimento 15-M e da reação autoritária posterior, desde o discurso midiático até a lei da mordaça, constitui um exemplo paradigmático da tendência a relacionar a desordem pública, provocada pela reunião dos corpos em assembleias, protestos, no limite não sempre claro entre o exercício dos direitos fundamentais de reunião e manifestação e a desobediência civil, com a ordem da desordem moral, incluindo as desordens de gênero e sexual. Especialmente nos contextos em que esses protestos agregam à luta contra a desigualdade econômica outros tipos de iniquidade, como ocorre de forma evidente, quando o movimento feminista ou os ativismos queer ocupam o seu lugar no seio de movimentos mais amplos do protesto urbano.

Como fica evidente, cabem e resultam úteis as leituras sociológicas e das ciências políticas, para explicar a forma como as respostas de segurança nos cenários de protesto urbano geram confusão entre as duas ordens da desordem aqui identificadas, de maneira alegórica, pela expressão “desordem púbica”. Sem dúvida, essas leituras se tornam pertinentes e até urgentes, especialmente quando se leva em conta o enérgico avanço de uma extrema-direita global que mistura, no discurso e na prática, a repressão do protesto urbano com o combate à chamada “ideologia de gênero”.

De modo complementar, a aproximação genealógica permitiria identificar outros tipos de relações entre os usos jurídicos, administrativos e também parajurídicos da noção de ordem pública e a organização moral do corpo político. Em primeiro lugar, porque a vertente jurídica dessa genealogia possibilita identificar uma proximidade que não é simplesmente simbólica ou metafórica - pelo contrário, explícita e literal - entre a noção de ordem pública e a ordenação dos laços de gênero e sexuais, no direito moderno, imediatamente após a Revolução Francesa. Seria, isso sim, um erro identificar essa proximidade semântica como uma inscrição, ex-nihilo, desse sentido moral na noção de ordem pública na irrupção da expressão “ordem pública”, no direito moderno, em geral, e no código napoleônico, em particular.

De Nietzsche a Foucault, o termo “genealogia” não refere um método para identificar a origem histórica de qualquer conjunto de problemas do presente. Ao contrário, seria uma forma de esclarecer a complexidade de qualquer conjunto de configurações discursivas e políticas do presente em relação a uma constelação de trajetórias históricas desses problemas, entre outras igualmente possíveis. Nesse sentido, a irrupção da ordem pública no direito deve ser lida, ela própria, como uma inscrição, no texto da lei, de uma preocupação pela ordem pública que precedia o processo revolucionário enquanto tal.

Em segundo lugar, e para além do problema genealógico, os usos da noção de ordem pública teriam derivado numa disseminação de sentidos cuja inter-relação pode, não obstante, ser lida ou, inclusive, reunificada sob o signo do dispositivo, tanto no interior como nas margens do discurso jurídico. Isto é, nos lugares onde a lei excede a sua concreção positiva para capilarizar seus efeitos sobre o conjunto do corpo social. Nessa distribuição microfísica, a biopolítica da ordem pública participa da antropologia da poluição e do contágio, bem como da performatividade da repugnância exploradas por Mary Douglas e Sarah Ahmed, respectivamente, revelando a dinâmica moral envolvida na produção jurídica e policial das superfícies do corpo político.

Nesse sentido, os regimes de permeabilidade de tais superfícies, ou, noutros termos, as biopolíticas da ordem pública produzem uma ilusão de coesão interna, mediante a expulsão simbólica ou literal de corpos e práticas relacionais representadas como imorais, desordenadas, impróprias, irresponsáveis ou até ameaçadoras, nas infinitas formas e variações do policiamento moral dos espaços de coabitação.

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  • 2
    Precarity Talk. A Virtual Roundtable with Lauren Berlant, Judith Butler, Bojana Cvejic, Isabell Lorey, Jasbir Puar, and Ana Vujanovic (2012BUTLER, J. et al. Precarity Talk. A Virtual Roundtable with Lauren Berlant, Judith Butler, Bojana Cvejic, Isabell Lorey, Jasbir Puar, and Ana Vujanovic. TDR: The Drama Review, v. 56, n. 4, p. 163-177, dez. 2012., tradução minha).
  • 3
    Aula de 17 de março de 1976 (2000).
  • 4
    Assembleia ativista originada como grupo de trabalho do movimento 15-M de Madri (http://asambleatransmaricabollodesol.blogspot.com/).
  • 5
    Também conhecido como movimento “dos indignados”. Foi o primeiro eco da Primavera Árabe, na Europa, tendo ocupado um lugar estratégico na onda global de “contágios” entre os movimentos de protesto que fizeram das assembleias públicas e da ocupação das praças centrais das grandes cidades alguns dos seus signos distintivos. Como em outros lugares, o 15-M foi um movimento de resposta às políticas de austeridade e à perda de legitimidade das narrativas oficiais sobre a crise econômica iniciada em 2007 (NOFRE, 2013NOFRE, J. Cartografias de la Indignación. Ar@cne, Revista electrónica de recursos en internet sobre geografía y ciencias sociales, Barcelona, v. 169, 2013.).
  • 6
    A lei estatal de identidade de gênero do Estado espanhol continua, oito anos depois e apesar das mudanças no DSM-5 e na CID-11 da Organização Mundial da Saúde, exigindo o diagnóstico médico como requisito para a mudança do nome próprio e da marca do “sexo” legal nos documentos de identificação. Sobre o movimento transnacional pela despatologização, consultar http://stp2012.info
  • 7
    O Tribunal de Justiça da União Europeia declarou ilegal, em 2013, a lei espanhola de despejos e, em 2018, a doutrina do Tribunal Supremo da Espanha sobre os despejos, ambas fortemente criticadas pela Plataforma de Afetados pela Hipoteca (https://afectadosporlahipoteca.com/).
  • 8
    Em coligação com grupos de defesa dos direitos laborais e sociais das trabalhadoras do sexo que estiveram presentes no Movimento 15-M e nas mobilizações posteriores, pelas mãos do recentemente desaparecido Coletivo Hetaira (https://colectivohetaira.org/), com mais de 20 anos de militância feminista na rua.
  • 9
    A exclusão sanitária de imigrantes em situação irregular foi só parcialmente resolvida em 2015, com grandes diferenças entre as regiões autônomas (informação atualizada na plataforma http://yosisanidaduniversal.net/).
  • 10
    Apenas na Catalunha, sete pessoas perderam um olho, como resultado dos disparos de balas de borracha entre 2009 e 2012 (http://stopbalesdegoma.org/).
  • 11
    Isto é, a Lei Orgânica de Proteção e Seguridade Cidadã, de 2015.
  • 12
    Com a que está de fato relacionada à Lei de Seguridade Cidadã, de 1992, que derrogou a lei de Ordem Pública e precedeu a atual lei da mordaça enquanto tal. No momento de revisão deste artigo, essa lei continua vigente e sendo aplicada durante a crise sanitária da Covid-19.
  • 13
    Explicitamente referida no seu interior como lei aplicável para quem fosse conceituado como “perigoso para a ordem pública” ou que, pela sua conduta, “[...] supunha uma ameaça para a convivência social.” (ESPANHA, 1959ESPANHA. Ley 45/1959, de 30 de julio, de Orden Público. Boletín Oficial del Estado, 10365-10370, 1959., artigo 23).
  • 14
    Como o movimento Occupride, em Occupy Wall Street, as assembleias Occupy the Rainbow, em Toronto, Queer People of Color, em Oakland, Occupy Baltimore, em Mortville, entre outros.
  • 15
    Inspirados talvez pela ameaça da “balbúrdia” de gênero, que, para a feminista ilustrada Celia Amorós (2005AMORÓS, C. La gran diferencia y sus pequenas consecuencias… para la lucha de las mujeres. Madrid: Cátedra, 2005.), representa a teoria da performatividade de gênero de Judith Butler.
  • 16
    De maneira especialmente intensa, nas regulações estatais do campo reprodutivo, da identidade de gênero e do parentesco, que conformam o regime cisheteromonormativo (PÉREZ NAVARRO, 2018bPÉREZ NAVARRO, P. Biocriminality and the Borders of Public Order. In: JUSTO, J. M. LIMA, P. A.; SILVA, F. M. F. (ed.). Questioning the Oneness of Philosophy. Lisbon: Centre for Philosophy University of Lisbon, 2018b. p. 203-215.).
  • 17
    “O pior defeito que se pode atribuir ao conceito, pretensamente jurídico, de ordem pública […] é o seu caráter vago e a imprecisão, admitida até pelos juristas partidários da sua manutenção.” (NOVOA, 1976NOVOA, E. Defensa de las nacionalizaciones ante tribunales extranjeros. Cidade de México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1976., p. 134, tradução e grifo meus.).
  • 18
    Concretamente, aquela estabelecida em uma sentença do mesmo Tribunal Supremo, em 1966 (ACEDO PENCO, 1997ACEDO PENCO, Á. El orden público atual como límite a la autonomía de la voluntad en la doctrina y la jurisprudencia. Anuario de La Facultad de Derecho, Cáceres, v. 14-15, p. 323-392, 1997., p. 342).
  • 19
    Nesse sentido, a ordem pública ocuparia um lugar crucial na constituição das linhas abissais, na terminologia de Sousa Santos, entre a metrópole e o mundo islâmico (PÉREZ NAVARRO, 2018bPÉREZ NAVARRO, P. Biocriminality and the Borders of Public Order. In: JUSTO, J. M. LIMA, P. A.; SILVA, F. M. F. (ed.). Questioning the Oneness of Philosophy. Lisbon: Centre for Philosophy University of Lisbon, 2018b. p. 203-215.).
  • 20
    Como explica Hannah Arendt, o racismo contra os judeus enquanto grupo conduziria à observação obsessiva do corpo individual, para encontrar, seja a traição aos ideais nazistas, seja o traço da contaminação étnica na própria árvore genealógica. Tal escrutínio substituiria, segundo Arendt, a análise crítica do racismo enquanto tal, convertendo-se na consequência “interna” da construção do judeu como ameaça externa.
  • 21
    Castellanos Ruiz (2018CASTELLANOS RUIZ, M. J. Denegación de la nacionalidad española por poligamia: análisis jurisprudencial. Cuadernos de Derecho Transnacional, v. 10, n. 1, p. 94-126, mar. 2018., p. 117al no cumplir con el requisito del “suficientemente grado de integración en la sociedad española” (art. 22.3 CC) faz uma relação histórica dessas sentenças.
  • 22
    Até o ponto em que, como argumenta Vasallo (2019VASALLO, B. Monogamous Mind, Polyamorous Terror. Sociological Research Online, Surrey, v. 24, n. 4, p. 680-690, 2019., p. 5), “[...] pensar na monogamia em termos numéricos como algo completamente diferente das formas polígamas é uma construção colonial e racista.”
  • 23
    Desde as comunidades poliafetivas, as práticas poliparentais e, também, as poligâmicas, para dar apenas alguns exemplos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    08 Jun 2020
  • Aceito
    19 Jul 2020
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