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João Duns Scotus sobre a escravidão

Resumo:

As contribuições dos pensadores medievais para o debate em torno da escravidão ainda são pouco conhecidas em seus detalhes. Junto com as abordagens na filosofia antiga, na patrística, no direito romano e no direito canônico, elas formam um corpo de textos e de ideias fundamental para se compreender o tratamento da escravidão do século XVI ao século XIX. Neste artigo, busca-se expor e analisar a abordagem que João Duns Scotus dá ao tema, contrastando-a com as visões de Aristóteles e de Tomás de Aquino. As posições de Scotus dependem de seus pareceres sobre a liberdade, a propriedade e a lei positiva, bem como sobre o significado do livre-arbítrio como condição prático-racional de todos os seres humanos. Na base dessas ideias, Scotus restringe de forma severa as condições de lei positiva segundo as quais a servidão pode ser introduzida com justiça e o escopo de perda de liberdade que pode ser aceito no contrato da escravidão.

Palavras-chave:
Escravidão; Liberdade; Aristóteles; Tomás de Aquino; João Duns Scotus

Abstract:

The contributions by medieval thinkers to the debate on slavery are still little known in their details. Together with the approaches in ancient philosophy, patristics, Roman law, and Canon law, they constitute a body of texts and ideas that are fundamental to understanding the treatment of slavery from the 16th to the 19th centuries. In this article, we examine John Duns Scotus’ account of the theme, contrasting it with the views of Aristotle and Thomas Aquinas. The position of Scotus depends on his views about freedom, property, and positive law, as well on the meaning of free will as a practical-rational condition of all human beings. Based on these ideas, Scotus severely restricts the conditions of positive law according to which servitude can be justly introduced, and the scope of the loss of freedom that can be accepted in the contract of slavery.

Keywords:
Slavery; Freedom; Aristotle; Thomas Aquinas; John Duns Scotus

Introdução

Em um estudo importante sobre o tema da escravidão na filosofia medieval, Luis A. De Boni enfatizou, de início, dificuldades de fundo para uma pesquisa bem-sucedida. Por um lado, em um corte sincrônico, carece-se a cada vez de unidade sobre a organização do trabalho e, nisso, sobre a “utilização do trabalho humano” na Idade Média; por outro, em sentido diacrônico, na longa Idade Média da historiografia, a instituição da “servidão” ou da “escravidão” passa por muitas e profundas transformações. O servus (“servo”) da língua latina e tematizado no direito romano como alguém sem direitos e mera propriedade alheia, em algum momento, já no período medieval, liga-se ao “eslavo” - e, daí, “escravo” - da Europa Oriental que os ocidentais pilhavam, vendendo depois os cativos aos compradores árabes. Em outro aspecto, os medievais também reservam para “servus” o sentido mais tênue de “trabalhador” ou “serviçal”, que, porém, como pessoa individual tinha direitos (DE BONI, 2003DE BONI, L. A. Propriedade e poder: aspectos do pensamento político da Escola Franciscana. In: DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. p. 195-213., p. 317-318). O termo “servus”, portanto, contém margens de ambiguidade.

Já a problematização ético-política da escravidão na Idade Média, assim segue De Boni, vincula-se (a) à “mudança da noção de propriedade” e (b) à “influência do cristianismo” (DE BONI, 2003DE BONI, L. A. Propriedade e poder: aspectos do pensamento político da Escola Franciscana. In: DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. p. 195-213., p. 318). No Império Romano, a mão-de-obra escrava, cuja renovação sempre de novo exigia a expansão de fronteiras, sustentava a produção em latifúndios. Aqui, a escravidão se associou fortemente à ideia da propriedade no direito privado, em que cabia ao proprietário individual “ter o direito de uso, de colher os frutos e, acima de tudo, de dispor livremente do objeto”. Passando, ao final, por modelos de arrendamento de terras, para fins de cultivo, legalmente protegidos e com a assimilação de aspectos da propriedade coletiva do mundo germânico, em que a ênfase residia no usufruto, no período pós-romano se instaura o feudalismo. Aqui, tem-se no suserano o proprietário da terra e no vassalo o que cultiva e usufrui, recompensando com produtos ou impostos o primeiro (DE BONI, 2003DE BONI, L. A. Propriedade e poder: aspectos do pensamento político da Escola Franciscana. In: DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. p. 195-213., p. 319). Nos feudos e subfeudos, o vassalo trabalhador era portador de direitos e difere do servo-escravo do período romano clássico. Não possuía a terra e estava preso a ela para fins de cultivo, mas tinha o direito de usufruir dela e nela ficar - leal ao suserano e protegido por ele. Nesses vínculos, misturam-se“o domínio sobre coisas” e o “sobre pessoas”, e isso sob a forma de vínculos contratuais. O poder político se nota, aqui, bastante fragmentado e local, e a lei vigente é, sobretudo, a “dos costumes” (DE BONI, 2003DE BONI, L. A. Propriedade e poder: aspectos do pensamento político da Escola Franciscana. In: DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. p. 195-213., 320). Esse amálgama de propriedade particular e usufruto é endossado pelos pensadores medievais:

Sobre o alicerce do direito romano, dos costumes germânicos, da tradição patrística e do pensamento aristotélico, os filósofos e teólogos medievais acabarão defendendo a noção de propriedade particular e uso comum. Com isto, relativiza-se a noção de propriedade, que está sempre em função de um bem maior - a necessidade do indivíduo -, [...]. Ora, uma noção relativizada da propriedade, como a medieval, não poderia jamais servir de suporte ideológico para formas de escravatura como a romana. (DE BONI, 2003DE BONI, L. A. Propriedade e poder: aspectos do pensamento político da Escola Franciscana. In: DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. p. 195-213., p. 320-321).

Os pensadores cristãos tinham diante de si, desde o começo e por toda parte, a instituição da escravidão2 2 Cf., por exemplo, (WALLON, 1847; SCHLAIFER, 1960; DAVIS, 1966; GÜLZOW, 1969; ALBERT HARRILL, 1995). . Não houve de início nem recomendação nem prática de supressão da mesma, predominando um conservadorismo no tempo vivido e uma expectativa escatológica no tocante à justiça renovada e explícita entre todos. Há, porém, pareceres críticos e a percepção de que a escravidão não é boa - uma “consciência infeliz”, como expressa De Boni (2003, p. 321)DE BONI, L. A. Propriedade e poder: aspectos do pensamento político da Escola Franciscana. In: DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. p. 195-213.. Em um sentido mais interno e espiritual, o cristianismo enfatizou uma igualdade de todos os cristãos em todos os estamentos - todos feitos cristãos pelo batismo - enquanto filhos de Deus e, pois, irmãos em Cristo: tanto o mestre quanto o escravo (1Cor 12,12-14; Gl 3,26-28; Cl 3,22-24; 1 Pe 2,18). A instituição da escravidão - a condição sócio-política dos escravos - não foi, com efeito, modificada (VOS, 2006VOS, A. The philosophy of John Duns Scotus. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2006., p. 449). A partir da igualdade de todos diante de Deus, sem nenhuma base antropológica como a de Platão3 3 Platon, Gesetze, VI, 773e, p. 204-205; XII, 966b, p. 515-517; Platon, Der Staat, IV, 433e, p. 154. Cf. também Schütrumpf (1993). ou a de Aristóteles4 4 O tratamento clássico aparece in: Aristoteles, Politik, übers. von Eckart Schütrumpf, 2012, I 4-13, p. 8-32. Cf. também (SCHOFIELD, 1990; SMITH, 1991; PELLEGRIN, 2013). para a escravidão - por natureza -, sugerem-se “direitos” para todas as pessoas humanas. Se há, com efeito, senhores e servos, há também direitos iguais (DE BONI, 2003DE BONI, L. A. Propriedade e poder: aspectos do pensamento político da Escola Franciscana. In: DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. p. 195-213., p. 322) anteriores ao estado não natural da escravidão - ideia na qual os cristãos e os estoicos convergiam. Legislações em favor dos escravos - resultando também em abrandamentos das desvantagens de seu estado e processos facilitadores de libertação - surgem desde os primeiros imperadores cristãos, ratificam-se fortemente no Codex Iustiniani, incluindo já desde cedo o tema da vida religiosa e do matrimônio. Leis e práticas da Igreja (Ocidental, em especial) incentivaram e acompanharam, em maior ou menor medida, essas tendências. Contudo, nem no âmbito civil (do Império Romano e da cristandade) nem no eclesiástico foi proposta a direta supressão da escravidão (DE BONI, 2003DE BONI, L. A. Propriedade e poder: aspectos do pensamento político da Escola Franciscana. In: DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. p. 195-213., p. 323-324). Essas tendências são visíveis nos autores escolásticos que escreveram sobre a escravidão, ainda que nunca em “tratados” específicos sobre o assunto - o que, de fato, veio a ser feito somente pelos escolásticos ibéricos dos séculos XVI-XVII (DE BONI, 2003DE BONI, L. A. Propriedade e poder: aspectos do pensamento político da Escola Franciscana. In: DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. p. 195-213., p. 324-325)5 5 Sobre pensadores dos séculos XVI-XVII que escreveram sobre a escravidão negra, cf. (PICH; CULLETON; STORCK, 2015). . Pensadores escolásticos, dos séculos XI-XIV, vivem em uma sociedade que aceita a escravidão, ainda que ela existisse, sobretudo na Europa Ocidental (feudal), em uma escala amplamente menor do que na Grécia Antiga ou no Império Romano (VOS, 2006VOS, A. The philosophy of John Duns Scotus. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2006., p. 449).

Não cabe, aqui, a tentativa de escrever um sumário das abordagens dos autores medievais sobre a escravidão - características centrais da posição de Tomás de Aquino serão recuperadas ao longo deste estudo, quando de uma remissão explícita de Scotus a elas. De toda maneira, é importante ressaltar algumas ideias de fundo que são partilhadas. (i) Em primeiro lugar, como legado patrístico-agostiniano, a escravidão, como forma de domínio de um ser humano sobre o outro (mesmo ali onde esse domínio, ainda que não seja natural, seria alegadamente justificável), só existe por causa do pecado6 6 Seja na perspectiva, pois, de que um ser humano, por sua malícia, tiraniza outros, escravizando-os, seja na perspectiva da escravidão como pena justificável diante de crimes proporcionalmente graves. Cf. Agostinho, A cidade de Deus contra os pagãos (De civitate Dei), 1990. Parte II, XIX, 15-16, p. 405-407. Cf. (SAINTE-CROIX, 1975; GARNSEY 1996, especialmente, p. 206-219). Para referências acerca de Agostinho e concepções patrísticas sobre a escravidão, cf. (FLAIG, 1995; KLEIN, 2000). . Justamente esse domínio, que não existirá no paraíso, é debatido, em contextos muito diferentes (DE BONI, 2003DE BONI, L. A. Propriedade e poder: aspectos do pensamento político da Escola Franciscana. In: DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. p. 195-213., p. 325-326). (ii) Em segundo lugar, a escravidão foi debatida tendo como pano de fundo concepções bem articuladas sobre a lei natural, a lei positiva e, ainda, o direito dos povos. Em particular, se destacam debates sobre o jusnaturalismo ou o juspositivismo do âmbito político e o status jurídico-normativo da propriedade e dos contratos envolvendo propriedades. Em seus diferentes tipos e acentos, a servitus - com efeito, relativa à ampla gama de serviços ou de “artes manuais” nas casas e nas terras em distinção às “artes liberais” das pessoas livres, mas distinta da douleia aristotélica, sobre a qual as leituras dos escolásticos foram, por vezes, confusas - foi em regra tida como uma instituição humana e justificável só no âmbito do direito positivo (DE BONI, 2003DE BONI, L. A. Propriedade e poder: aspectos do pensamento político da Escola Franciscana. In: DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. p. 195-213., p. 326-329).

Que para João Duns Scotus a problemática da liberdade de decisão e da vontade ocupa lugar central, isso é conhecido de sua metafísica e de sua teoria da ação. Em sua defesa do poder (racional) da vontade de autodeterminar-se e agir (realizar atos volitivos) sob a estrutura de uma contingência sincrônica7 7 Uma exposição dessas discussões pode ser encontrada in: (PICH, 2004, 2014). A exposição fundamental da contingência sincrônica como condição metafísica dos atos da vontade como potência racional e livre foi feita por Knuuttila (1981). - em sua proposta, pois, de um libertarismo forte -, Scotus afirma a vontade como livre e fonte de toda liberdade no mundo8 8 Cf., por exemplo, Honnefelder (1991). . A nota ora feita se refere, é verdade, à esfera da decisão, isto é, à liberdade interna das decisões e do que elas, a partir de dentro, podem desencadear. Com efeito, a posse da vontade como a verdadeira potência racional - que implica um poder para representar o bem a ser feito e decidir (autodeterminar-se) sob a estrutura da contingência sincrônica - e que, assim, diz a natureza do ser humano e aponta para a liberdade (da vontade) como a essência do ser pessoal é exaltada por Scotus (DE BONI, 2003DE BONI, L. A. Propriedade e poder: aspectos do pensamento político da Escola Franciscana. In: DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. p. 195-213., p. 331). Ao menos indiretamente, Scotus tomou em consideração a liberdade externa, no caso, política, com efeito, no contexto do seu tratamento do exato oposto dessa liberdade: o estado de servidão. No estudo que segue, busca-se descrever e analisar a contribuição crítica e deveras original de Scotus ao debate sobre a servidão no pensamento medieval. No mesmo passo, o estudo indicará justamente a explícita e singular atribuição de valor e de direito à liberdade externa - na lei natural lato sensu - que a exposição do pensador franciscano contém.

1. Sobre o status da escravidão

Scotus aborda o tema da escravidão exclusivamente em seu tratamento de impedimentos teóricos ao sacramento do casamento, na maneira como esses eram problematizados, em seu tempo, pelos canonistas. A elaboração textual é tardia, por certo do período de Scotus na Universidade de Paris, na primeira metade de 1303 (VOS, 2006VOS, A. The philosophy of John Duns Scotus. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2006., p. 446-447). Em Ordinatio IV d. 36 q. 1 (SCOTUS, 2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., n. 1-40, p. 465-475), assim reza o questionamento relevante para o debate em torno da escravidão: “[Pergunta-se] se a escravidão impede o matrimônio.”9 9 A Distinção 36 de Ordinatio IV apresenta duas questões; a segunda também discute um impedimento para o matrimônio, a saber, da parte da pessoa; cf. Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 2, n. 42-50, p. 475-477): “Se a idade infantil pode impedir o matrimônio.” O suporte histórico-conceitual mais importante - ao menos o mais direto - para esse debate específico se achava nas Decretais de Gregório IX, cujo pontificado se estendeu de 1227 a 1241. As Decretales ou o Liber Extra, ou seja, uma compilação de direito canônico, em cinco livros, publicada em 1234 - por solicitação do Papa Gregório IX e com redação do dominicano Raimundo de Peñafort (c. 1175-1275) -, continha uma seção com o seguinte título: “Sobre o casamento dos servos”, sinalizando, pois, o envolvimento dos Papas com o tema e com uma instituição social e economicamente aceita (WOLTER, 1986WOLTER, A. B. Introduction. In: JOHN DUNS SCOTUS. Duns Scotus on the will and morality. Selected and translated with an introduction by Allan B. Wolter, O.F.M. Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1986. p. 1-123., p. 120). Scotus busca orientação nela para negar a questão em debate10 10 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 5, p. 465): “Oppositum: Extra, ‘De coniugio servorum’, cap. 1 [Gregorius IX, Decretales IV tit. 9 c. 1 (CIC II 692)].” - de fato, ao desdobrar os seus pontos de vista, permanece fiel às determinações do texto jurídico-canônico11 11 Em outros aspectos nada elogiáveis Scotus também reverberará a Nova compilatio decretalium de Gregório IX, a saber, na posição favorável à conversão forçada dos judeus (PICH, 2012). Gregório IX dera peso jurídico-canônico, nas Decretais de 1234, à doutrina da perpetua servitus iudaeorum – “servidão [política] perpétua dos judeus”, seguidores do Talmude, até o dia do Juízo Final. Essa mesma doutrina teria espaço na concepção da servitus camerae imperialis, “a servidão sujeita imediatamente à autoridade imperial”, promulgada por Frederico II. Em estados cristãos, os judeus foram impedidos de qualquer papel ou influência em processos políticos até o século XIX. Cf. também Dilcher (1985, p. 153-154). . Cabe lembrar, ademais, que o especialista em direito canônico e instituidor da Inquisição Papal, Gregório IX, fora apontado em 1220, por Honório III, o Cardeal Protetor da Ordem dos Franciscanos e, em 1228, havia canonizado Francisco de Assis. Essencialmente, tratava-se, naquela seção do Livro IV das Decretais, do direito dos servos - garantido por lei - de contrair o matrimônio sacramental (segundo o rito e a doutrina da Igreja) mesmo naqueles casos em que os seus senhores se opunham a ele. Há, pois, uma situação de conflito de direitos: (a) de propriedade ou de ser dono do escravo, (b) de firmar contrato de matrimônio e até mesmo (c) de fazer a profissão religiosa. No tocante ao conflito entre os direitos (a) e (b), A. B. Wolter comparou, em dimensão social, a condição dos servos e o caso em questão, à época, à condição de duas pessoas que, atualmente, estariam comprometidas por promessa ou noivado, que teriam o plano de contrair matrimônio e, contudo, devido a circunstâncias, como, por exemplo, os fatos concretos das ofertas existentes no mercado de trabalho, precisariam da concordância de seus empregadores - teriam, ao menos, de fazer acordos com eles - para que o casamento pudesse ser conduzido em condições favoráveis (WOLTER, 1986WOLTER, A. B. Introduction. In: JOHN DUNS SCOTUS. Duns Scotus on the will and morality. Selected and translated with an introduction by Allan B. Wolter, O.F.M. Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1986. p. 1-123., p 121-122). O mesmo autor sugeriu que, para a Igreja Católica, tais casos concretos de conflitos de reivindicações eram justamente as situações com base nas quais se abriam possibilidades para tornar mais humana a instituição da escravidão, a saber, pela proposição de dispositivos legais ou do direito que fossem favoráveis à pessoa escravizada (WOLTER, 1986WOLTER, A. B. Introduction. In: JOHN DUNS SCOTUS. Duns Scotus on the will and morality. Selected and translated with an introduction by Allan B. Wolter, O.F.M. Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1986. p. 1-123., p. 114, 121-122). Sob esse pano de fundo, Duns Scotus, em sua breve exposição no já referido texto, faz uma crítica à instituição da escravidão. De fato, o Doutor Sutil restringiu as condições normativas segundo as quais a escravidão institucional e o status de escravo poderiam ser vistos como lícitos.

Seja como for, sendo a escravidão abordada no contexto da análise de condições de impedimentos ao matrimônio - assunto em regra tratado por Pedro Lombardo e os doutores escolásticos na Distinção 34 do Livro IV das Sentenças e dos Comentários -, cumpre perguntar: o que são esses impedimentos? Scotus afirma que há impedimentos ao matrimônio (a) “a partir da natureza do contrato”, (b) “a partir da pessoa que firma contrato [de matrimônio]” e (c) “a partir do estatuto da Igreja”. Nos casos (a) e (b), os impedimentos tratam “das condições do contrato” e “das condições das pessoas que firmam contrato”, respectivamente (SCOTUS, 2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 6, p. 465-466). No contexto do tratamento do casamento dos servos, são esses dois últimos tipos de condições que são destacadas por Scotus. (b’) As condições das pessoas contratantes são, em geral, duas, ou seja, “a impotência absolutamente” e o “laço” com outra pessoa “por vínculo matrimonial” (SCOTUS, 2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 7, p. 466). No que diz respeito (a’) às condições do contrato, os impedimentos são de diversos tipos. Scotus afirma, ao final, que são oito os impedimentos, com respeito aos pontos (a) e (b): ao que tudo indica, dois impedimentos “da parte dos que firmam contrato [de matrimônio]” e seis “da parte do contrato” (SCOTUS, 2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 13, p. 467)12 12 “A partir do estatuto da Igreja”, os impedimentos ao matrimônio são de três gêneros; cf. Scotus, (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 14-17, p. 467). . Um dos impedimentos ao matrimônio a partir do contrato é o “erro” (error), e esse mesmo tipo de impedimento se subdivide em três categorias. A segunda delas, a do “erro na condição da pessoa”, tem como exemplo justamente alguém que “tem a pretensão de dar o seu corpo a uma [pessoa] livre e, contudo, é servo ou serva”. Uma vez que um servo “não pode dar um dom igual ao livre, assim como conversamente, porque ele não tem o poder do seu corpo, mas ele é do seu senhor”, parece haver impedimento, para o servo, para que firme “o contrato do matrimônio” (SCOTUS, 2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 10, p. 467; IV d. 36, q. 1, n. 1, p. 465).

Com respeito à pergunta central13 13 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 2, p. 465): “Circa istam distinctionem trigesimam sextam quaero utrum servitus impediat matrimonium.” , Scotus já resume, nos argumentos a favor, elementos teóricos fundamentais para o debate em torno da escravidão. (A) Assim, por exemplo, alguém pode dizer que “ninguém deve dar o alheio” - em se pressupondo que uma pessoa, no matrimônio, dá para a outra o seu corpo. O corpo do servo pertence, porém, “totalmente” ao senhor - como se pode ler em determinada passagem da Política de Aristóteles14 14 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 3, p. 465): “Nullus debet dare alienum; sed corpus servi est domini ipsius, secundum Philosophum I Politicorum 3 [Politica I c. 4, 1254a12-13].” . A conclusão seria, então, que um servo, sem a permissão do senhor, a quem ele pertence de todo, não pode contrair matrimônio, no qual o seu corpo seria dado para outra pessoa. (B) Um segundo argumento tem a mesma conclusão em vista: a profissão religiosa deve ser mais ainda favorecida do que o matrimônio carnal, e justamente, a profissão religiosa, um escravo não pode fazer sem a permissão, portanto, sem a vontade do seu senhor. Se esse é o caso, um escravo ceteris paribus também não pode contrair nenhum casamento eclesiástico sem o aval explícito do seu senhor15 15 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 4, p. 465): “Item, favorabilior est professio Religionis quam matrimonium carnale; sed servus non potest profiteri Religionem sine voluntate domini; ergo nec contrahere matrimonium.” . Na réplica ao argumento, cujo tema não está no centro de minha análise, Scotus recusará a analogia entre estado matrimonial e estado religioso, justamente porque, de antemão, sabe-se que apenas na profissão religiosa o envolvido ficaria sujeito à total obediência do seu superior, não podendo por definição, se fosse escravo, prestar serviços costumeiros a um senhor. Nesse caso, a servidão seria um impedimento (contratual) explícito para a profissão religiosa, sendo necessária, ao servo, a permissão do senhor (SCOTUS, 2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 40, p. 475).

Para responder à pergunta, se a servidão é um impedimento ao matrimônio, cabe explanar o status de escravo ou a instituição da servidão. Scotus o faz, mais exatamente, discorrendo sobre a introdução da servidão no mundo e, em seguida - ou, antes, concomitantemente -, sobre a justiça dessa introdução16 16 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 18, p. 467): “Hic duo sunt videnda: primo, unde inducta est servitus et si iuste inducta; secundo ad propositum.” . De modo mais ou menos explícito, a condição de servidão é sempre tratada como o oposto de um tipo - ou de tipos - de liberdade. Por isso mesmo, também será conveniente apontar para a origem da liberdade humana. Scotus começa justamente alegando duas teses importantes sobre estados humanos no mundo e na sociedade - dos seres humanos entre si - que podem ser vistos como normativos. As duas afirmações pertencem à lei da natureza, isto é, elas são leis que têm a sua validade ainda antes ou pelo menos formalmente de modo independente do político, em que o político, para Scotus, não é nenhum estado original do ser humano, mas uma entidade social criada, que pressupõe a decisão livre e supostamente racional e sábia dos seres humanos envolvidos, diante de circunstâncias determinantes, embora não necessárias, para viver sob uma autoridade extrafamiliar17 17 Sobre isso, cf. Pich (2019). .

Scotus afirma, pois, que, segundo a lei da natureza, (i) todos os seres humanos nascem livres18 18 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 19, p. 467): “De primo dicitur quod de lege naturae omnes nascuntur liberi.” . Essa é uma afirmação sobre o estado de liberdade. Não é dito que os seres humanos são livres por natureza, mas sim que são nascidos livres: tal como uma norma racional válida para a realidade contingente da vida humana, que, ao que tudo indica, encontra-se em consonância forte com os princípios da lei natural stricto sensu - aqueles que enunciam, em princípios necessários e auto-evidentes, o bem a ser feito com respeito a Deus19 19 Cf. Scotus (2007, Ordinatio III d. 37, q. un., n. 19-20, 32, p. 280-281, 286). Sobre isso, cf. as notas 41-42, abaixo. -, o princípio segundo o qual todos os seres humanos são livres por nascimento só pode ser uma norma de lei natural lato sensu20 20 Sobre a lei natural lato sensu e a sua consonância com a lei natural stricto sensu, cf., por exemplo, (SCOTUS, 2011, Ordinatio IV d. 17, q. un., n. 19, p. 162; SCOTUS, 2007, Ordinatio III d. 37, q. un., n. 25-26, p. 283). Cf. também Honnefelder (1994, p. 210-211). . Com efeito, não é totalmente claro se todos os seres humanos nascem livres ou para a liberdade, na medida em que todos os seres humanos nascem como crianças pequenas, e crianças pequenas ainda não são livres ou, como logo se verá, ainda não estão sem a sujeição aos pais, mas são, de todo modo e em princípio, levadas por eles à liberdade. Como já dito acima, com liberdade, aqui, por certo não se quer dizer liberdade metafísica e de teoria da ação21 21 Sobre essa liberdade em Scotus, cf. as notas 7-8, acima. . A liberdade posta em questão tampouco já é uma liberdade política; afinal, foi justamente indicado que o princípio de liberdade, de lei natural lato sensu, ganha o seu status anterior e independentemente do político - que, por certo, deve protegê-lo22 22 Sobre o sentido prudencial segundo o qual o domínio do político, das leis positivas, tem a função de resguardar a lei natural stricto e lato sensu, cf. Scotus (2011, Ordinatio IV d. 15, q. 2, n. 92, 98, p. 81, 82). . Essa liberdade original significa, aparentemente, um tipo de senhorio ou domínio de si sobre si mesmo, sobre o próprio corpo, o próprio movimento e uma ampla gama de ações exteriores relativas ao corpo, à vida e aos outros seres humanos. Definida negativamente, a liberdade é a condição de que o livre ou o nascido livre não vive e não age sob o domínio de outro, portanto, não está sob outro - pelo menos, sob outro fora do círculo da família. Chamo esse status normativo de “liberdade jusnatural original”.

Mas, segundo a lei da natureza, há também uma servidão original. (ii) Todos os seres humanos, à medida que são crianças nascidas de outros seres humanos - os seus pais -, nascem, sob certo aspecto, não livres, portanto, servos ou em servidão23 23 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 19, p. 467-468): “Tamen servitus, vel magis proprie subiectio filialis ad patrem, est magis de lege naturae, puta obedientia filialis pertinens ad disciplinationem, quia, secundum Philosophum VIII Ethicorum, ‘filius habet a patre esse et disciplinam’.” . Essa é uma afirmação sobre o estado de servidão. A sujeição da criança ao pai pertence à lei natural. Ela denota a obediência natural da criança ao pai e, por conseguinte, vincula-se de modo natural com a educação ou a formação através da autoridade do pai. Ainda que deva ser o caso que Scotus encontra essa “sujeição filial” original na segunda tábua dos Dez Mandamentos, ele se apoia em Aristóteles, na Ethica Nicomachea VIII 14 (1161b27-30; 1162a4-7)24 24 Aristoteles, Nikomachische Ethik, übers. von Eugen Rolfes, 1933, VIII 14, p. 179-180. , para afirmar que “o filho tem do pai o existir e a disciplina”. Para os propósitos deste estudo, isso serve para mostrar que Scotus confirma, sim, um tipo de servidão natural aristotélica, a qual, como em Aristóteles, dá-se no contexto da família, ainda que Scotus não se apoie, interessantemente, em passagens de Política I (ARISTOTELES, Politik I 3, 12-13, p. 7-8, 27-32.). Também essa servitus com base na lei natural - que eu chamarei de “servidão jusnatural filial” - é válida anterior e independentemente do político, e o político não a extingue.

Nenhuma das duas teses acima detalhadas é vista como problemática por Scotus. O tipo de servidão que precisa ser discutido no contexto da pergunta pela licitude jurídico-canônica, se seres humanos escravizados sob a autoridade de seus senhores podem contrair matrimônio, é, com efeito, de outra natureza. Scotus afirma que a servitus implícita no debate é a servidão do Livro I da Política de Aristóteles. A remissão, aqui, ao texto de Aristóteles - e a consequente alegação de que a escravidão a ser discutida é aquela da filosofia política de Aristóteles - tem alguns contornos peculiares. Afinal, no Livro I da Política Aristóteles aborda a instituição da escravidão na perspectiva de que ela se funda na natureza, ou seja, na base de toda escravidão há de haver escravos por natureza (ARISTOTELES, Politik I 4-7, p. 8-16; I 5, 1254a21-24, p. 10)25 25 Para Aristóteles, uma forma legal-civil de escravidão seria moralmente equivocada; cf (ARISTOTELES, Politik I 6; VII 3; VII 10). ou seres humanos cuja medida de participação na razão é defeituosa de modo permanente, tal que, carentes de “faculdade deliberativa” e impossibilitados de atingir de si a vida virtuosa (ARISTOTELES, Politik I 13, 1260a12, p. 29-30), e aptos, antes, aos serviços que implicam o uso da força corpórea e a mera obediência, é devido - é normativamente correto - que esses seres humanos sejam escravizados e vivam como escravos. Scotus não faz uso da expressão “por natureza” ao falar da escravidão e dos escravos em sentido aristotélico, tampouco ele se remete diretamente à tese aristotélica de que há seres humanos com participação permanentemente insuficiente na razão - esses discursos e debates ficam apenas implícitos no texto scotista. O Doutor Sutil está interessado, sim, em debater com Aristóteles as razões pelas quais alguém se torna escravo, surgindo assim a escravidão no mundo, mas ele sobremaneira se interessa pela consequência de tais razões, isto é, que os seres humanos escravizados se tornam propriedade de seus senhores: as razões a serem discutidas são aquelas que justificam esse status de um ser humano, a saber, o de ser propriedade de outrem, porque essa é a essência da escravidão como estado - e segundo ela “o senhor pode vender o seu servo assim como uma cabeça de gado”26 26 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 19, p. 468): “Ista servitus, de qua hic loquimur, secundum quam dominus potest vendere servum suum sicut pecundem, est de qua loquitur Aristoteles I Politicorum.” . Nessa primeira remissão à Política de Aristóteles, Scotus vê a relação senhor (proprietário) e servo (propriedade) de tal maneira que, ao final, ela está fundada em uma diferença - ao que tudo indica natural - entre ambos, no sentido de “capaz da vida virtuosa” e “incapaz da vida virtuosa”27 27 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 19, p. 468): “Quia servus non potest exercere actum virtutis.” . Seres humanos escravizados - e, antes disso, escravizáveis - são aqueles que não podem realizar ações virtuosas, devendo eles, então, desempenhar, segundo o comando dos senhores, “atos servis” (actus serviles)28 28 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 19, p. 468): “Pro eo quod oportet eum ad praeceptum domini exercere actus serviles; et haec servitus est ut aliquis sit totaliter alterius iuris, – et hoc non est ad bonum servi, sed ad malum; et ista servitus est de qua dicit Aristoteles quod ‘servus est sicut instrumentum inanimatum’, nec potest esse bonus et virtuosus. Unde illa servitus non est ad bonum servi sed malum, ut dictum est.” . A consequência de ser incapaz de virtude e, pois, de bondade - de ser um ser humano bom - é, então, tornar-se “totalmente do direito de outro [ou: da posse de outro]”. Para Scotus, dessa servidão Aristóteles fala como sendo aquela na qual “o servo é assim como um instrumento inanimado”29 29 Na Editio Vaticana, as passagens de Aristóteles em questão seriam Politica I 13, 1259b–1260b7 e I 4, 1253b32. Nessa última passagem, na versão latina, Aristóteles diria que “o servo [é] uma coisa possuída animada”. , que pode, assim - eis a ênfase! - ser entendido e tratado como uma mercadoria. É perceptível, pois, que (a) Scotus lê o texto aristotélico de tal forma que o status do escravo não responde à metáfora orgânica, segundo a qual ele é como um membro animado do corpo do senhor e, assim, junto (e somente junto) com ele, pode ser encaminhado à virtude. O escravo, dado que é propriedade e mercadoria, é antes instrumento inanimado, de uso e comutação. Esse entendimento de Scotus encaminha a sua percepção, inteiramente não aristotélica e mesmo antagônica ao texto aristotélico na Política30 30 Aristoteles, Politik I 4, 1254a14, p. 9; I 6, 1255b11-12, p. 14; I 13, 1260a33-36, p. 30-31; I 13, 1260b5-7, p. 31. Cf. (HÖFFE, 2006, p. 255-257; BRUGNERA 1998, p. 79-83). , de que - (a) sendo propriedade de outro e (b) instrumento inanimado de uso para atos servis e venda31 31 A soma de (a) e (b) parece ser, com efeito, uma mera soma de desvantagens. - a servidão não é complementarmente vantajosa, mas, antes, é vantajosa somente para o senhor, ao passo que para o escravizado é um mal: “Não é para o bem do servo, mas para o mal.”32 32 Cf. a nota 28, acima. De todo modo, Scotus não discute, ainda, a tese de que há ou não seres humanos que de si não podem chegar à vida virtuosa - e cuja vida jamais se tornará estritamente um bios politikos -, tampouco a tese de que, se sim, seria vantajoso para esses o estado servil.

Ao final de Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 19, Scotus se remete ao apóstolo Paulo (Gl 4,31 - 5,1.13; Rm 6,22) aparentemente para endossar o seu princípio de liberdade jusnatural original - “fostes feitos livres” - de todos os seres humanos33 33 Cabe dizer que a liberdade da qual o apóstolo Paulo fala em Gl 4,31 - 5,1 é aquela da Jerusalém celestial, concedida por Cristo, na nova aliança no seu sangue. Seja como for, isso parece indicar a percepção de Scotus de que a liberdade cristã se liga à ideia de que o ser humano é nascido para a liberdade. e deixa implícita uma crítica a Aristóteles, cujas teses não são ainda discutidas em detalhes, a saber, a de que a escravidão em sua essência, a de ser a condição de quem perdeu o domínio de si e se tornou propriedade de outrem, não tem base na lei natural, mas, como de resto toda forma de propriedade privada, na lei positiva34 34 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 19, p. 468): “Ideo dicit Apostolus: ‘liberi facti estis, nolite servitute esse subditi’ etc. Ista autem non est inducta nisi a lege positiva.” Cf. Scotus (2011, Ordinatio IV d. 15, q. 2, n. 89-90, p. 80-81). Cf. também De Boni (2003, p. 198-199, 202-203, 205-206). . Tem-se aqui uma tese central da doutrina scotista da escravidão: a sua introdução, em sentido normativo, só é plausível segundo a lei positiva. Essa fundamentação juspositiva precisa ainda ser esmiuçada35 35 Cf. abaixo a subdivisão 2. .

O contraste com a fundamentação aristotélica já se faz visível, mas os seus detalhes ainda permanecem obscuros. Em verdade, tem de acentuar-se que Scotus lê o texto aristotélico sobre o tema da escravidão, a partir de Política I, de um modo bastante singular. Como se pode ler em Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 2436 36 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 24, p. 469): “Si arguatur contra primum membrum, scilicet quod servitus non est contra legem naturae, quia, secundum Philosophum I Politicorum, ‘pollens mente debet praesidere, pollens viribus debet servire’, aliqui autem sunt naturaliter pollentes mente et aliqui minus prudentes mente et magis robusti corpore, ergo aliqui sunt naturaliter apti ad dominium, et aliqui naturaliter apti ut sint servi, ergo debent naturaliter esse servi (ad hoc potest esse exemplum in membris corporis humani, ubi quidam naturaliter serviunt parti principali), – respondeo: haec instantia est notabilis; istud enim non est intelligendum de ista servitute extrema, de qua modo loquimur, sed tantum de servitute politica.” , em que Scotus retoma o tema da fundamentação da origem da escravidão, anunciado e explorado em Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 18-19, e reage à crítica segundo a qual “a servidão não é contra a lei da natureza”, o Doutor Sutil encontra no texto aristotélico dois tipos de servidão: a “servidão extrema” (servitus extrema) e a “servidão política” (servitus politica), em que a “servidão extrema” não é exatamente a escravidão natural classicamente atribuída a Aristóteles, mas sim a escravidão segundo a qual um ser humano, como um instrumento inanimado, perde a posse de si e se torna a propriedade de outro ser humano - exposta em Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 19. Essa servidão extrema - criadora do ser humano propriedade e mercadoria - só existe na lei positiva. Chamarei a mesma de servidão juspositiva extrema. O que Scotus chama de “servidão política”, com base no texto de Aristóteles (Politik I 2, 1252a31-35, p. 4), é uma servidão que indica uma determinada estrutura fundamental nas sociedades humanas segundo capacidades e inclinações dadas naturalmente. Com efeito, Scotus confirma em Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 24 a tese segundo a qual a escravidão chamada aqui de “política” não é contrária à lei natural - antes, ela parece ser até mesmo “natural” -, independentemente de que, para Scotus, relações políticas stricto sensu (existentes em entidades políticas dadas, como repúblicas, cidades-estado, estados, etc.) são positivas. Ora, a “escravidão política”, que não é contrária à lei natural, significa para Scotus a relação hierárquica segundo a qual os superiores regem os inferiores - essa é uma estrutura e uma norma sócio-política que Scotus aceita. Essa é uma servidão “política”, e não “extrema”, porque, apesar da hierarquia “natural”, os inferiores ou submissos, aqui, não são tratados como meros instrumentos. Trata-se de uma estrutura e de uma norma da convivência humana: menos capacitados ou talentosos - “de mente”, como síntese, pode-se pensar, do intelecto teórico e do prático - recebem de modo apropriado a ordem adequada dos mais capacitados ou talentosos37 37 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 24, p. 469): “Sed tantum de servitute politica, quo inferior disponitur a superiore, non tamen sicut inanimatum, sed sicut minus vigens mente ordinatur per illum qui magis pollet mente.” . Capacidade menor ou maior para reger e ser regido são tendências naturais do ser humano, as quais existem simplesmente e têm de ser tomadas em consideração na criação da ordem sócio-política. Chamo essa servidão de “servidão jusnatural política”.

Se a minha leitura do texto scotista é correta, tem de chegar-se à conclusão de que Scotus vê no texto aristotélico uma servidão política com fundamentação natural, a qual nem é uma escravidão natural que justificaria por natureza a perda do domínio de si e o tornar-se propriedade, nem uma escravidão política que poderia ser justificada com a perda do domínio de si e o tornar-se propriedade só através da lei humana. Scotus vê no texto aristotélico uma terceira servidão, política, ou uma servidão com consequência para a ordem política em cidades, repúblicas e estados - sendo a “escravidão natural” extrema (aristotélica clássica) a primeira e a escravidão com base na lei positiva (cf. abaixo) a segunda38 38 Encontrar-se-iam em Aristóteles, na leitura de Scotus, os tipos primeiro e terceiro. -, a qual, porém, é parcialmente servidão natural. Afinal, o significado fundamental dela reside em que, do fato de que alguns são mentalmente vigorosos (mais capazes) e outros são mentalmente fracos (menos capazes) - e, fisicamente, mais robustos -, resulta que, por aptidão natural, alguns regem e outros servem. Alguns são por natureza hábeis e virtuosos de mente, outros são menos virtuosos e hábeis de mente, e talvez, ainda, hábeis no desempenho corpóreo. Esses são fatos humanos. De liberdade e não liberdade não se fala aqui, mas sim de comandar e servir ou obedecer, reger e ser regido, os quais caracterizam as ações dos seres humanos segundo as suas aptidões. A partir dessa base, pode-se dizer que alguns são “naturalmente” (naturaliter) capazes de domínio e outros são também “naturalmente” (naturaliter) capazes de serviço. A separação natural de pessoas, na sociedade, segundo as capacidades dadas, parece ser uma separação baseada em função ou desempenho, não, em princípio, uma divisão entre livres e não livres. O que é acentuado no texto aristotélico, por parte de Scotus, não é apenas ou justamente não é tanto a hierarquia social, mas a analogia orgânica ou a imagem com respeito a órgãos portadores de função no corpo humano: no corpo, há muitos diferentes membros que têm distintas funções e, de certo modo, influenciam-se em mútua e assimétrica dependência, expressando uma “relação simbiótica” (WOLTER, 1986WOLTER, A. B. Introduction. In: JOHN DUNS SCOTUS. Duns Scotus on the will and morality. Selected and translated with an introduction by Allan B. Wolter, O.F.M. Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1986. p. 1-123., p. 115). Alguns membros servem ao membro principal (isto é, à cabeça)39 39 Cf. as notas 36 e 37 acima. . Ainda que essa possa não ser uma leitura estritamente correta do texto aristotélico no tocante à ideia geral de servidão natural, mas, antes, caridosa, ela aponta para a posição scotista de acordo com a qual, segundo a natureza, dá-se, no político, uma estrutura hierárquica fundamental, a qual pode justificar um tipo especial de servidão: aquela que tem a ver com capacidades de desempenho. Essa submissão servil não tem de necessariamente significar perda de direitos e tornar-se propriedade40 40 Cf. também De Boni (2003, p. 331). .

2. A base jurídico-positiva da servidão

A liberdade exterior de cada ser humano é de lei natural lato sensu. A perda dessa mesma liberdade como domínio de si (do corpo e do seu uso) e o ser propriedade de outrem - em uma palavra, a escravidão - não pertencem à lei natural, mas à lei positiva.

Se já ficou entendido, pela discussão acima conduzida, que a lei natural stricto sensu, para Scotus, se funda em proposições práticas que dizem verdades necessárias e auto-evidentes, cuja negação equivale a um absurdo - contradizê-las é logicamente impossível -, havendo, pois, obrigação absoluta de comando e/ou proibição somente com respeito a Deus, o bem absoluto, sobre o qual se evidencia a alegação de que “o que é melhor deve ser amado acima de todas as coisas” (SCOTUS, 2007IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia X: Ordinatio III. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2007., Ordinatio III d. 27, q. un., n. 14, p. 52; CEZAR, 2009, p. 61ss), é compreensível que, para Scotus, as regras práticas universais não dedutíveis a partir daquele princípio sejam válidas - junto com e para além do critério da sua consonantia com princípios morais estritos de lei natural41 41 Cf., por exemplo, Scotus (2007, Ordinatio III d. 37, q. un., n. 25-28, p. 283-284). Cf. também (MÖHLE, 1995, p 348-360; MÖHLE, 2003, p. 316-317). - somente através da sua instituição pela sabedoria divina e, em realidade, em sentido efetivo e último, pela “vontade divina”. Essas são relativas à realidade contingente no mundo, com respeito à qual qualquer bem prático - qualquer coisa que deve ser normativamente - pode ser revogado, de um ponto de vista lógico-metafísico ou por um poder lógico-metafísico absoluto42 42 Sobre isso, cf. Pich (2010, p. 141-162). , mesmo quando é muito consonante à lei natural stricto sensu e é ou foi manifestamente querido por Deus43 43 Cf. as referências nas notas 19-22, acima. . Regras práticas que enunciam comandos ou proibições referentes a bens contingentes nesse último nível estão, com efeito, no domínio da lei natural lato sensu. O Doutor Sutil inclui aqui, de forma central, os conteúdos da segunda tábua do Decálogo, bem como os comandos bíblicos que resumem esses últimos (como, por exemplo, o segundo grande mandamento) (SCOTUS, 1950, Ordinatio prol. p. 2, q. un., n. 108, p. 70-71). Assim, pois, um amplo domínio normativo vigente sobre as relações humanas, que tange dimensões da família, da sociedade, da economia, da república, do estado, etc., corresponde à lei e ao direito natural somente em sentido lato.

O que significa, aqui, uma lei positiva? Dito de maneira geral, e no caso específico de leis positivas humanas, essa é uma lei - e, então, uma norma - que é dada e tornada válida através da vontade de uma autoridade política constituída, seja ela individual ou coletiva, com poder de legislação. Em regra, ela pressupõe que a dimensão do político já existe, por um tipo de contrato e, portanto, pela concordância das verdades envolvidas44 44 Cf. referências na nota 22, acima, e, como um todo, o estudo introdutório e a edição bilíngue de Ordinatio IV d. 15 in: WOLTER, 2001, p. 1-21). Cf. também (LAMBERTINI, 2000, p. 152-161; DE BONI, 2008, p. 306ss). . O político tem forma em um determinado tipo de governo, através de uma autoridade elegida e segundo leis correspondentes, as quais se relacionam com a vida concreta, daí, histórica das pessoas: as leis positivas. É, naturalmente, uma pergunta diferente se essas leis dadas dessa maneira são justas. Como critério fundamental para a licitude ou a legitimidade normativa de uma lex positiva exige-se que ela, conforme a razão, seja “consonante” com as leis naturais, daí, esteja em concordância com elas, mas as normas opostas (contraditórias) não necessariamente estão em dissonância com as mesmas leis naturais: normas positivas contraditórias, que, através de autoridade e vontade, segundo a razão, estão em concordância com as leis da natureza, podem, sim, ser correspondentemente justas. Está-se no caminho da atribuição de consonância a leis positivas quando essas, pelas autoridades legisladoras legítimas, protegem e promovem a lei natural - protegem e promovem, por exemplo, a comunidade humana “segundo a reta razão prática”45 45 Cf. acima a nota 22. -, indicando a prudência daquelas. De fato, no caso da autoridade divina, Scotus chega a sustentar a posição de que comandos positivos são bons somente porque são ordenados por Deus; por sua vez, no domínio da autoridade humana, pressuposto no debate acerca da servidão, um comando positivo é bom já a partir da simples condição de não ser contra a lei natural em sentido estrito e em sentido lato46 46 In: Scotus (2011, Ordinatio IV, d. 33, q. 3, n. 89, p. 447), consta que a lei humana é injusta se é contrária à (ou, então, inconsonante com a) lei natural. .

Pressuposto que a escravidão é introduzida por direito positivo e admitido que toda escravidão implica a perda de domínio sobre si e o tornar-se propriedade de outro, ela cai na doutrina jurídico-positiva geral da justiça da propriedade ou da posse de coisas, inclusive de seres humanos. Quando Scotus coloca a pergunta, se a escravidão pode ser justa, ele remete o tema ao debate em torno da posse justa de coisas, o qual, anteriormente, tinha sido conduzido em Ordinatio IV d. 15 (SCOTUS, 2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 15, q. 2, n. 93-110, p. 81-85). O direito de propriedade e as leis sobre a propriedade são uma parte do direito positivo - e ali, por óbvio, tem também de ser discutida a pergunta pela justiça da propriedade. Explicitamente, Scotus chama a escravidão de “baixa” ou “vil” (vilis servitus), porque ela, em si, contradiz a lei da natureza. Há, porém, dois modos normativos aceitáveis, de acordo com os quais a escravidão pode ser vista como uma instituição justa, daí como justa relação47 47 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 20, p. 468): “Sed qualiter est iusta? Respondeo: sicut dictum est distinctione 15, quomodo primo inceperunt dominia esse iusta, ita dico quod ista vilis servitus non potest esse iuste inducta, nisi dupliciter.” .

(1) Em primeiro lugar, a escravidão é justa, se alguém se submete “voluntariamente” (voluntarie) a tal status, daí, ao domínio de alguém outro. Fortes razões para esse ato não são dadas, poder-se-ia, porém, imaginar que Scotus tem em vista motivos tradicionalmente aventados, como radicais necessidades de vida, tais como fome e miséria extremas e dívidas48 48 Também Wolter (1986, p. 118) sugere que as razões de fundo para a autoescravização são, por certo, “econômicas.” . Sejam quais fossem os motivos e seja o quanto fossem forçosos, Scotus não os situaria no âmbito da coação ou de causas para ações coagidas. Independentemente dessas hipóteses, e apesar da clara postulação daquilo que chamarei de escravidão juspositiva voluntária, Scotus mostra duas hesitações com respeito ao assumido: (i) tal sujeição é “tola” (fatua) (não há nada de convincente em tal decisão)49 49 De fato, a expressão “fatua” é deveras depreciativa: se trata de uma sujeição “estúpida”, “imbecil”, “idiota”. E, por certo, seria tolo autoescravizar-se perpetuamente ou por um longo tempo. Esse sentido depreciativo poderia dar a entender que alguém estaria se escravizando por um motivo fútil, mas, se assim o fosse, seria de esperar-se que Scotus claramente dissesse que isso seria não consonante com a lei natural. A ideia parece ser, mais simplesmente, que há sempre uma opção melhor quanto ao que fazer com a sua liberdade do que abrir mão dela. Na base de outras circunstâncias e de outros valores seria, contudo, o ato de abrir mão da liberdade em função do voto de obediência e da consequente sujeição em prol da vida religiosa. ; (ii) essa sujeição, via voluntária abdicação da liberdade, “talvez” esteja em choque com a lei natural. Em resumo, para Scotus a justiça da autoescravidão não é conclusiva. Ele afirma, porém, que, caso alguém tenha se sujeitado a outro ser humano por autoescravidão voluntária, é justo que esse mesmo observe a sua decisão e honre a nova relação humana - nesse caso, essa nova relação de dependência se torna, em adição, uma questão de manutenção de promessa ou pacto estabelecido entre seres humanos50 50 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 21, p. 468): “Uno modo, quia talis voluntarie subiecit se tali servituti; sed talis subiectio est fatua, immo forte contra legem naturae est quod homo libertatem suam a se abdicet; postquam tamen facta est, necesse est servare, quia haec est iustitia.” Wolter (1986, p. 118) fala, quanto à nova relação então estabelecida e ao seu teor vinculante, de algo similar a um “voto de obediência” ou de “fidelidade” (em sentido não religioso). .

(2) Em segundo lugar, a escravidão é justa quando seres humanos, devido aos seus atos criminosos, são condenados de maneira justa, pelo governo ou pela autoridade na comunidade, e penalizados com a escravidão. Pressupõe-se que os seus crimes são tão graves ou sérios que a sua liberdade de algum modo e em algum momento seria de prejuízo tanto para si como também para outros seres humanos - “para a república”. A servidão é aqui um tipo de punição, e a sua causa é uma má ação grave, daí, um pecado grave - tal como, desde Agostinho, já se reconhece como causa fundamental da servidão no mundo51 51 Cf. a nota 6, acima. . Segundo a lei humana, autoridades podem punir seres humanos, com justiça, com a servidão, e a proporção da gravidade de crimes que mereceriam a servidão é encontrada em especial se, ali, as mesmas autoridades poderiam condená-los, tendo em vista o “bem [comum] da república”, também com a pena de morte. Manifestamente, Scotus encontra nessa segunda razão - que se fixa nos debates dos séculos XVI-XVII sobre a escravidão como justificação inequívoca, do direito positivo dos povos52 52 Cf., por exemplo, Luis de Molina, De iustitia et iure, ed. Marci Michaelis Bousquet, Coloniae Allobrogum, 1738 (1611), I, tract. II, disp. XXXIII, n. 4-13, p. 88-89. Dos outros dois motivos alegados por Molina, resumindo, ao que tudo indica, a tradição do direito romano, a saber, (iii) a escravização devido a casos gravíssimos ou situações in extremis (morte iminente), em que a venda de si ou – no caso do pai – dos dependentes é a alternativa para conservar a vida física, e (iv) a lei segundo a qual de mães escravas (ex matre ancilla) nascem filhos escravos, o último não têm nenhum lugar direta ou indiretamente aparente no texto de Scotus. Cf. Luis de Molina, De iustitia et iure I, tract. II, disp. XXXIII, n. 14-31, p. 89-91; I, tract. II, disp. XXXIII, n. 32, p. 91. Cf. Kaufmann (2014, p. 198). - um argumento aceitável segundo o qual seres humanos podem se tornar escravos: a pena de morte pode ser comutada ou transformada no status da escravidão53 53 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 22, p. 468): “Alio modo, si quis dominans communitati, videns aliquos ita vitiosos quod libertas eorum et nocet eis et reipublicae, potest iuste punire eos poena servitutis, sicut et posset iuste eos occidere in certis casibus propter bonum reipublicae.” Vos (2006, p. 451) enfatiza que, nesse caso, a escravidão na sociedade antiga aparece como contraparte difundida e costumeira às alternativas, na sociedade moderna, da prisão ou da pena de morte por causa de crimes graves (embora prisão e pena de morte também existissem, é claro, na Antiguidade e na Idade Média). .

(3) Em um passo que pode parecer surpreendente, uma terceira razão, bastante difundida54 54 Wolter (1986, p. 119) lembra que, à época de Scotus, sob a alegação de guerras justas e conseguinte justiça corretiva da parte ofendida e vencedora, muitos cristãos escravizavam mouros, e muitos mouros escravizavam cristãos. , para justificar o status da escravidão Scotus não aceita: a de que capturados de guerra que, vivos ainda, depois de uma alegada guerra justa, vencida pelo lado ofendido, poderiam em princípio receber a pena de morte são “salvos” ou “preservados” da morte pela troca da morte pela servidão55 55 Pensadores críticos sobre a escravidão, do século XVII, como Epifanio de Moirans O. F. M. Cap. (1644–1689), anotariam que, nesse contexto de direito postivo das gentes, a escravidão como morte civil segue a justiça da morte física, assim como a liberdade civil segue a vida física como justa condição. Cf., por exemplo, Epifanio de Moirans (2007, p. 68-69). - em que “preservar” é um significado possível do verbo “servare”, em latim, de cujo particípio “servatus” a palavra “servus” (“servo” ou “escravo”) foi etimologicamente derivada56 56 Também Luis de Molina oferece uma explicação etimológica para a palavra latina “servus” (a partir de “servando”), a saber, ao lembrar a tradição de que “imperadores” como mais elevados comandantes militares – juízes marciais – poderiam “preservar / salvar” a vida de alguém, ao comutar a sua morte pela servidão. Cf. Luis de Molina, De iustitia et iure I, tract. II, disp. XXXII, p. 86. Por semelhante modo, a expressão latina “mancipium” (“posse” ou “propriedade escrava”) é derivada de “manucapta”, isto é, “mãos presas [acorrentadas]”, significando que uma vida em servidão é melhor do que a morte. . A ideia é que a pena de morte de um ser humano é transformada na escravização desse mesmo ser humano aprisionado em guerra e, então, também preservado. Em seguida, a sua pena se torna servir outros seres humanos57 57 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 23, p. 468-469): “Si dicas quod est etiam tertia causa servitutis, utpote si captus in bello servetur, et sic, servatus a morte, fiat servus deputatus ad serviendum, – de hoc dubio, nisi dicatur servus ibi servatus.” . Pode bem ser que o “servo” (servus) é o “preservado” (servatus), em tal situação, mas isso não altera o fato de que, para Scotus, aqui não se tem uma justificação válida para a escravização58 58 É interessante notar que um crítico tão influente da teoria da escravidão natural como Francisco de Vitoria O. P. (1483–1546) pôde, como em regra todos os escolásticos pré-modernos, aceitar formas civil-legais de escravidão, dentre as quais figura com destaque a escravidão como consequência da justiça corretiva após uma guerra travada na base de justas causas pelo lado ofendido. (FRANCISCO DE VITORIA, 1960, § 38-43, p. 843-847). . Com o jogo de palavras, ganha-se, talvez, uma explicação para a expressão latina “servus”, mas é dubitável que se obtenha um argumento válido e claramente fundado na justiça para o surgimento de escravos.

Scotus admite que o aprisionador, depois da guerra justa, pode em princípio - de acordo com o direito dos povos, assim se presumiria - “com justiça” (iuste) matar o prisioneiro inimigo. Lê-se também no texto, implicitamente, a acepção de que uma guerra justa é uma guerra defensiva de início, não uma guerra agressiva, e só depois ofensiva ou de invasão, em que, contra o lado que se defende é feita uma “injúria” (iniuria)59 59 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 23, p. 469): “Nec apparet hic manifeste iustitia, quia etsi forte captor potuisset iuste occidere captum, si habuit bellum iustum, defendendo se, sed non invadindo.” . Scotus constrói uma determinada situação que se liga à atitude do prisioneiro de guerra como soldado, que na guerra combateu em favor do lado injusto e agressor. Agora que ele se encontra na prisão, por que deve ele ser morto por uma justiça punitiva, daí, corretiva, ou então, como alternativa, ser escravizado? (a) Matar e escravizar seria, talvez, uma medida justa, caso o prisioneiro de guerra permanecesse em sua “pertinácia”60 60 As expressões “pertinacia” e “pertinax” também podem ser traduzidas por “obstinação” e “obstinado” em uma determinada causa. Talvez elas justamente denunciem o contexto da época de grande número de conflitos bélicos e escravizações entre cristãos e muçulmanos. de guerrear contra os que se defenderam com justiça61 61 Nesse contexto, é interessante lembrar que os freis mercedários (da Ordem dos Mercedários ou Ordem [de Nossa Senhora] das Mercês, fundada em 1218, por Pedro Nolasco), por exemplo, especializaram-se no trabalho com escravos, chegando a adicionar um quarto voto, além dos três usuais – pobreza, castidade e obediência –, a saber, o de agir como cativos, se necessário, para libertar escravos cristãos dos mouros, cuja fé estivesse ameaçada. (VOS, 2006, p. 449). . (b) Mas, se o prisioneiro de guerra abrir mão de sua pertinácia - e assim ele pode fazer, porque essa atitude se encontra justamente na vontade do prisioneiro de guerra ou, dito de forma breve, o prisioneiro de guerra pode sempre modificar a sua opinião e a sua atitude agressiva62 62 Parece implícito, ademais, que a sua personalidade, com isso, não estava resumida e reduzida à personalidade estatal da autoridade culpada. -, nesse caso parece ser “desumano” infligir àquele “uma pena contra a lei da natureza”63 63 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 23, p. 469): “Et hoc stante pertinacia ipsius contrabellantis, tamen ex quo desinit esse pertinax, quia est in voluntate ipsius iam captus, inhumanum videtur sibi infligere poenam contra legem naturae.” . Scotus não vê no prisioneiro de guerra nenhuma simetria imediata com o criminoso perigoso que ele esboça no segundo e mais promissor argumento em prol da legitimidade da escravidão. Prisioneiros de guerra não são imediatamente criminosos perigosos - aliás, a única figura no contexto de guerra que Scotus sequer discute são, ao que tudo indica, “soldados” agressores, de modo algum inocentes ou não militantes da parte ofensora. Pode ser o caso que o prisioneiro de guerra “não permanecesse rebelde”, pode ser que não “abusasse da sua liberdade” original recuperada, pode ser o caso que ele, depois da guerra e do aprisionamento, respeitasse a autoridade do lado vencedor e, desse modo, também adequadamente fizesse uso, dali em diante, da sua liberdade então restituída64 64 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 23, p. 469): “Non enim est hic ratio quae in secundo casu, quia forte non permaneret iste rebellis nec abuteretur sua libertate, sed forte fieret obediens et libertate sibi donata bene uteretur.” . Com isso, o aprisionado em nada se assemelha à pessoa do caso (2), isto é, de alguém cuja liberdade é obviamente nociva para os outros e o estado. De fato, o juízo que Scotus constrói se assemelha à busca de justiça concreta: equidade.

Em Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 25, Scotus problematiza de modo particularmente instigante a tese por ele mesmo desdobrada de que, na base da lei positiva, há maneiras justas pelas quais a servidão foi introduzida no mundo. O pano de fundo do argumento crítico é a percepção de que justamente o maior fator gerador de escravos na história do mundo teria sido até então a alegada justiça punitiva de guerra que comutava a morte de aprisionados pela sua escravização65 65 Como muito bem expressa L. A. De Boni, Ética e escravidão na Idade Média, p. 332, na história da humanidade a máquina sócio-política de gerar escravos sempre fora “a rapina, a violência, a guerra, isto é, a causa principal foi o azar de ser mais fraco; e o preço da derrota foi a perda da liberdade.” (VOS, 2006, p. 450) fala da guerra como a matriz do comércio de escravos. . A ideia de que escravizações perfaziam um resultado de determinadas medidas de justiça corretiva, depois de uma guerra justa, era, afinal de contas, uma convicção difundida a partir do ius gentium66 66 Cf., por exemplo, Wieling (1999, p. 1-17, 33-40); neste último caso, passagens de Gaio sobre a escravidão no direito dos povos e no direito civil (século II d.C.). . Tendo em vista que Scotus se expressou contra a justiça desse tipo de escravização e mostrou hesitações com respeito à licitude normativa da autoescravização voluntária, é compreensível que uma objeção pragmática fosse erguida contra as suas tomadas de posição: não fosse o terceiro tipo de argumentação em favor da escravidão normativamente conclusivo, ter-se-ia de dizer que, na prática, todas as escravidões então existentes seriam injustas. Isso alguém poderia concluir primeiramente porque tal tipo de escravização é “contra a lei da natureza”. O arguidor poderia amplificar o princípio de que qualquer coisa - qualquer lei positiva - que é contra a lei da natureza é injusta invocando o princípio normativo segundo o qual aquilo que é contra a lei da natureza jamais pode se tornar justo: uma vez injusto como contrariedade à lei da natureza, sempre injusto. A “antiguidade” de um erro, sancionado por lei positiva injusta, não modifica o seu status normativo, antes, assim é afirmado, “mais [o] condena”. A antiguidade de um crime fortalece a ideia de que ele deve ser condenado67 67 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 25, p. 469-470): “Si arguas contra secundum, quia sic omnes servitutes, quae modo sunt, essent iniustae, quia illud quod est contra legem naturae numquam potest fieri iustum, quia antiquitas temporis non ratificat crimina, sed magis condemnat.” . O arguidor poderia estar articulando a ideia de que, seja por quanto tempo um costume normativo tenha se preservado, seria sempre ainda injusto, porque contra a lei da natureza, que um senhor mantivesse o seu domínio sobre servos, se a justificação para tanto não fosse nenhuma das rationes primeira e segunda. Mostrar-se-ia, pois, que a escravização costumeira de prisioneiros após uma guerra alegadamente justa - a sua transformação em propriedade -, provada injusta por Scotus, deixaria como único recurso disponível ao defensor da manutenção da absoluta maioria dos escravos no mundo o recurso à prescrição legal de um malfeito, a saber, a posse indevida de um bem alheio. Seria essa manutenção de propriedade - a posse da liberdade alheia - por prescrição de malfeito, ao final, algo lícito?68 68 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 25, p. 470): “Servitus omnis alia ab his duobus casibus, est iniusta et contra legem naturae; ergo per nullam longinquitatem temporis videtur iustum quod dominus iuste dominetur talibus servis.” Poderia, então, prescrever o direito à liberdade daqueles que foram assim escravizados lá atrás?

Aqui é discutido por Scotus o direito, respectivamente, o justo em situações limite. Em princípio, Scotus aceita o princípio segundo o qual um “direito” (ius) - ou um domínio - pode ser adquirido por “prescrição” (praescriptio). Esse é um tema que Scotus tratara também já anteriormente, em Ordinatio IV d. 15. Três são as condições que têm de dar-se e então concluem (novos) direitos, ou seja, para que se adquira através de prescrição um direito para domínio e, pois, posse de coisas: (i) a coisa é adquirida originalmente por “justo título” ou “justa alegação de direito”; (ii) o possuidor é ou foi, originalmente, ao adquirir, “de boa fé”; (iii) o possuidor esteve em posse da coisa adquirida sem qualquer “interrupção de tempo determinada por lei” ou em função da qual a sua alegação de posse da coisa pudesse ser posta em questão69 69 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 25, p. 470): “Respondeo: tactum est supra, distinctione 15, quomodo per praescriptionem potest ius acquiri, si concurrant aliae condiciones quas iura determinant, scilicet quod iusto titulo acquirat et quod sit bonae fidei possessor et quod possideat sine interruptione temporis a lege determinati.” . Contudo, embora Scotus assuma o princípio de prescrição no que diz respeito à aquisição de novos direitos de propriedade, ele afirma explicitamente que uma coisa é a utilização desse princípio com respeito a bens materiais e à propriedade material, outra coisa, porém, é a utilização dele com respeito à servidão. A servidão significa domínio sobre seres humanos e também a posse de seres humanos. No que diz respeito à lei da natureza, daí, também no que diz respeito à consonância com a lei da natureza, a razão de posse ou a razão de possuir coisas é completamente diferente quando se trata de ouro e de escravos70 70 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 25, p. 470: “Sed illud extendit se ad possessiones, non autem ad servitutem, quia non est eadem ratio possidendi aurum et servum, quantum ad legem naturae.” Cf. também De Boni (2003, p. 332-333). . Claramente, Scotus não encontra nenhuma base normativa racional, daí, nenhuma justiça na acepção de que, com base no princípio de prescrição, um senhor possa seguir possuindo escravos, quando for sabido que aqueles seres humanos originalmente foram escravizados depois de uma alegada guerra justa conforme o direito dos povos costumeiro. Escravos que já depois de um longo tempo foram mantidos poderiam permanecer assim com justiça somente se fosse assumido que eles se encontrassem originalmente nesse estado ou por causa de autoescravização voluntária ou por causa de escravização como justa punição alternativa em lugar da morte por crimes graves.71 71 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 25, p. 470): “Et difficile esset per praescriptionem salvare iustitiam detinentium tales servos nisi praesumatur quod altero duorum modorum fuerint facti servi a princípio.” .

Se a minha leitura do texto difícil de Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 25 é correta, Scotus concorda com a conclusão do argumento do arguidor não nomeado. Nesse ponto, tem-se naturalmente de pôr a pergunta sobre quais seriam as consequências concretas desse ponto de vista crítico de Scotus para avaliar a maneira costumeira de como a escravidão, até o seu tempo e também no seu tempo, foi constituída e existia. Deveria então essa instituição, na maioria dos casos, ser abolida e deveriam os escravos remanescentes ser libertados? De um ponto de vista formal, é coerente dizer que a resposta seria positiva.

Há uma última objeção em Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 26 que, no seu teor, ratifica a interpretação que desdobrei acima e segue problematizando a ideia de que, no âmbito de leis positivas, pode haver justiça na escravização de pessoas. A objeção pressupõe o cenário argumentativo que Scotus montou em Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 25: ao final, sendo a maioria das escravizações no mundo gerada por guerras e aprisionados feitos escravos, sendo esse um motivo injustificável e não havendo aquisição do direito à liberdade de pessoas (de posse de servos) por prescrição, caberia findar essa instituição. Escravos assim produzidos seguem, contudo, existindo. E o objetor, pressupondo que assim existem escravos no mundo, questiona as razões do apóstolo Paulo, em suas afirmações conservadoras sobre a instituição da escravidão, em diversas passagens bíblicas, como Ef 6,5-8 e Cl 3,2272 72 Sobre Paulo e a escravidão, cf. referências bibliográficas nas notas 2 e 6, acima. Sobre a escravidão na ética paulina da administração da casa, cf. (WENDLAND, 1981, p. 81-83, 99-100; SCHRAGE, 1994, p. 184-190, 199-203, 237-243). . Também aqueles escravos foram injustamente gerados, mas Paulo dá a instrução de que os servos devem seguir obedecendo aos seus senhores. Essa autoridade não iria em direção oposta ao que tinha sido estabelecido?

A resposta de Scotus guarda certa ambiguidade. Por um lado, ele trabalha com o que eu chamaria de princípio conservador da escravidão, que entendo como segue: novas obrigações legítimas assumidas não perdem a sua validade normativa, daí o seu sentido de obrigação, por causa da constatação de antigas obrigações ilegítimas ou injustas que se encontram no contexto de fundo das novas. Possivelmente, o estado de escravidão que foi causado por autoridades competentes como medida de justiça corretiva segundo uma guerra justa é um tipo de obrigação injusta. Agora, porém, tal obligatio questionavelmente causada existe, e com isso existe também uma promessa e um contrato vinculante (comprometedor) entre senhores e escravos que cabe ser observado73 73 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 26, p. 470): “Si obicias ‘quare igitur Apostolus praecipit tales servos obedire dominis?’, – respondeo: multae obligationes sunt iniustae ex parte illorum quibus fiunt, et tamen postquam factae fuerint, servandae sunt.” . É questionável o quanto Scotus considera essa determinação à objeção uma conclusão argumentativa forte. Ele parece ver nessa solução conservadora o espírito das recomendações de Paulo, que, ao final, justificariam por que não se recomenda radical alteração na instituição da escravidão do mundo74 74 Por certo, em casos de “escravidão simbiótica” ou escravidões próximas a ela, na forma de serviços. . Mas, a ambiguidade da posição de Scotus se verifica tanto mais se atenta para a sequência de sua nova remissão ao apóstolo, em 1Cor 7,21. Paulo teria mostrado que “a servidão não é segundo si louvável, e muito menos a detenção de alguém na servidão” - especialmente se for lembrado que se tem a dita forma injustificável, juspositiva, mas contrária à lei natural, de geração de escravos como pano de fundo -, e a partir disso, aparentemente respeitando a combinação de dilemas, a saber, (i) haver instituição injustamente gerada e (ii) haver obrigações firmadas entre senhores e servos, o mesmo Paulo faz uma afirmação tanto conservadora quanto libertária: “Se foste chamado [sendo] servo, não te preocupes com isso; mas, se puderes te fazer livre, mais faze isso.”75 75 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 26, p. 470): “Unde Apostolus, ostendens servitutem non esse secundum se laudabilem, nec multo magis detentionem alicuius in servitute, ait: Si servus vocatus es, non sit tibi curae; sed si potes liber fieri, magis utere.” Invoca-se, aqui, com efeito, o princípio conservador de que obrigações ou contratos existentes entre seres humanos (dependendo dos casos) devem ser mantidos, mesmo se eles originalmente encerram uma injustiça e se eles, porém, aparentemente, até certo ponto, promovem o bem dos seres humanos envolvidos. É arguível que esse princípio alternativo é utilizado por Scotus como possibilidade normativa, daí, como instrumento normativo possível. Mas, a passagem e o sentido de seu uso, por Scotus, claramente obrigam o leitor a entender que o mesmo princípio conservador alegado, exatamente para o julgamento de tais situações em sociedades baseadas em escravos, não é forçosamente válido. Dever-se-ia dizer que, quando naquelas mesmas situações de manutenção da escravidão instituída, a liberdade é uma possibilidade, a qual, como visto em Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 25, seria a solução justa em sentido estrito, ela deve ser preferida pelos agentes envolvidos - “se puderes te fazer livre, mais faze isso”! Normativamente, a libertação dos escravos segue sendo a melhor opção, mas o princípio conservador, que apela ao horizonte de obrigações existentes, parece combinar-se, ao final, também com um princípio de possibilidade histórica: “se puderes...” Esse mesmo princípio é coerente com o bom senso de seguir, no domínio concreto dos fatos e das ações - das escravidões históricas -, o curso de ação que implica um mal ou um dano menor para o agente (ou a melhor proporção entre bem alcançado e mal sofrido)76 76 Cf. também Wolter (1986, p. 120). .

3. Domínio e propriedade de seres humanos

Pressuposto que, segundo determinadas leis positivas, um ser humano como escravizado será, de forma justa, feito propriedade de outro ser humano, é possível encontrar mais estritamente, no texto scotista, o significado e a extensão desse dominium proprietatis (expressão minha)? Certamente, o dono de escravos possui, em certo sentido e medida, o corpo e a extensão de atos corpóreos exteriores do escravo: o senhor pode fazer uso do corpo do escravo, para que esse trabalhe para si e lhe sirva com a força e as capacidades ativas do corpo. Com isso, o senhor controla, segundo o conteúdo de um contrato de propriedade, parcialmente os movimentos do corpo do escravo no espaço e no tempo e a utilização de poderes, forças e capacidades corpóreas do escravo, as quais são necessárias ao seu desempenho de serviço correspondente. No texto scotista, o servus é desenhado, sobretudo, como um trabalhador braçal e serviçal, alguém, porém, que o senhor de escravos também possui como mercadoria. Com isso, o escravo pode também ser vendido, e com a venda o senhor pode obter ganho financeiro.

O servo, contudo, não pertence ao senhor incondicionalmente. Scotus se expressa contrariamente àquilo que ele mencionara no início da questão em debate como tese aristotélica, isto é, que o servo pertence “totalmente” ao seu dono (WOLTER, 1986WOLTER, A. B. Introduction. In: JOHN DUNS SCOTUS. Duns Scotus on the will and morality. Selected and translated with an introduction by Allan B. Wolter, O.F.M. Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1986. p. 1-123., p. 122). O servo não pertence ao dono em todos os sentidos ou “com respeito a todas as coisas”77 77 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 38, p. 474): “Ad primum argumentum, secundum istam rationem ultimam patet quod servus non est domini quantum ad omnia.” . A defesa scotista do adequado escopo de propriedade do servo pelo dono desempenha um papel central na problemática debatida: especificam-se direitos envolvidos nas duas partes, independentes da e inseridos na relação servo-e-senhor, e acham-se soluções sobre impedimentos que a servidão traz ou não ao matrimônio na base de conflitos de direitos e em respeito a uma hierarquia de leis - natural e positiva. De um ponto de vista filosófico, é essencial perceber que o servo não pode ser propriedade total do senhor porque ele permanece o seu próprio mestre - dono de si - “para comer, beber e dormir, e de forma breve quanto àqueles atos quaisquer a serem exercidos pelos quais não são subtraídos do senhor os serviços devidos”78 78 Scotus, (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 38, p. 474-475): “Quia sui iuris est ad comedendum et bibendum et dormiendum, et breviter ad quoscumque actus exercendos quibus non subtrahuntur domino debita servitia.” . Alguns desses atos são, portanto, simplesmente fundamentais e necessários à manutenção da vida, e o segundo (e amplo) tipo de atos designa todos aqueles atos que não conflitam com nem prejudicam os serviços devidos segundo a natureza do contrato de propriedade escrava. No primeiro lado, se poderia encontrar, implícita, a posse de alguns direitos básicos - de direito natural lato sensu - que o servo como todo ser humano possui; no segundo lado, poder-e-ia ler, implícita, a posse de uma liberdade residual, não apagada no contrato de propriedade escrava, e o direito de preservá-la. Essencialmente, cabe notar que a discussão normativa sobre a escravidão, com isso, precisa ser dividida entre o debate sobre o domínio de propriedade e o debate sobre o contrato de propriedade. São os termos desse último, na moldura da restrição do status de propriedade e de certos direitos implícitos, incluindo o residual de liberdade, que explicam ao final por que a servidão não impede o matrimônio e por que, além disso, cabe ao servo o direito de casar-se - tanto no sentido sacramental quanto no sentido civil, poder-se-ia afirmar, garantido por lei (WOLTER, 1986WOLTER, A. B. Introduction. In: JOHN DUNS SCOTUS. Duns Scotus on the will and morality. Selected and translated with an introduction by Allan B. Wolter, O.F.M. Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1986. p. 1-123., p. 122). Tendo a posse de si quanto ao segundo tipo de ato especificado, o servo, cumpridas as obrigações de serviço, pode realizar o intercurso sexual, dando à cônjuge aquilo que se supõe que dê, justamente porque se supõe que o tem para dar79 79 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 38, p. 474-475): “Ergo cum pro tunc posset aliquoties uti actu carnali, potest ad illum se obligare quantum sui iuris est.” .

É claro que o servo é propriedade - mesmo que não “total” - do seu senhor. O senhor controla em ampla medida o seu corpo e os seus atos exteriores, restringindo decisões do servo que teriam impacto no mundo e com relação a outros, como o próprio casamento. Nesse sentido, instituído aquele contrato, é claro que o servo pode contrair matrimônio se essa é a vontade do dono. Ele tem de cumprir as obrigações do contrato de propriedade escrava, a saber, a prestação de serviços. Mas, é razoável com respeito ao novo contrato - de matrimônio - que se liga ao anterior, o de propriedade escrava, pensar que, em havendo dificuldades de cumprir o último, mas tendo havido a concordância do dono com o primeiro, o dono pode relaxar exigências de serviços. Se o senhor posteriormente revogasse a concessão ao matrimônio, criando situações ao servo - viagens para longe e excesso de trabalho - que o impedissem de dar ao cônjuge o que se supõe dar, o dono pecaria “mortalmente” e seria passível de correção pela Igreja (SCOTUS, 2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 32, p. 472).

De todo modo, as ideias de restringir o status de propriedade do escravo - portanto, a extensão da perda de sua liberdade - e de detalhar os termos do contrato de lei positiva em questão são tão centrais na análise que Scotus afirma que o servo pode firmar contrato de matrimônio mesmo “contrariamente à vontade do senhor, na medida em que tem algo de [seu] direito no próprio corpo”80 80 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 33, p. 473): “Potest etiam contrahere domino invito, pro quanto habet aliquid iuris in corpore proprio.” A expressão “aliquid iuris” poderia ser traduzida também como “algo de si próprio”, “algo de sua posse”, “algo de seu controle”. . Com segue tendo domínio de esferas de seu corpo e de seus atos, ele segue tendo “liberdade” para atos com o corpo: há uma medida em que o corpo segue sendo seu, e na quantidade dessa o servo “pode comutá-lo por outro”81 81 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 33, p. 473): “Non enim privavit se quacumque libertate ad quoscumque actus; et pro quanto corpus eius est suum, potest commutare pro alio.” . Quem faz isso, no matrimônio - uma comutação -, seja servo ou livre, diminui a sua liberdade como posse do corpo, mas, como tem algo para dar (de todo se é livre e o bastante se é servo), pode contrair o matrimônio e contentar-se “com aquela módica liberdade ou poder para módico uso [do corpo]”82 82 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 33, p. 473): “Quod si alius, sive servus sive liber, velit esse contentus illa modica libertate sive potestate ad modicum usum, quam scit eum posse dare, potest bene sibi ipsi praeiudicare, et stat commutatio.” . Lê-se, implicitamente, a ideia de que a liberdade exterior ou de posse e uso do corpo vem em graus, seja ao livre ou ao servo. Para o servo, o seu poder de posse e uso do corpo - a sua liberdade exterior - é proporcional àquela medida em que não está ocupado com serviços ao dono. Esse poder e essa liberdade exterior diminuem ainda mais com o matrimônio, mas a extensão em que os cônjuges, então, estão mutuamente obrigados à mútua doação dos corpos é proporcional à preservação da justiça que devem ao senhor de escravos83 83 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 33, p. 473): “Habet autem tantum potestatem corporis sui quando non occupatur in servitio domini, si eo invito contrahat; et tunc inter tales non est obligatio nisi ad quantum possunt dare corpora sua, salva iustitia domini.” . Em fidelidade ao já aludido capítulo do Liber Extra de Gregório IX, Scotus endossa a ideia de que o servo que contrai matrimônio contra a vontade do dono segue tendo uma parcela - obviamente, não absoluta - de posse de seu corpo e de seus atos, e essa ele pode dar depois de subtraída a parcela que não está em seu poder, mas no do senhor84 84 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 33, p. 473): “Unde illud capitulum […], hoc quod habebat dedit, et tenetur solvere servitia domino, quia non potuit dare alteri nisi quod in potestate sua habuit; sed non habuit simpliciter potestatem corporis sui; ergo etc.” . Casado, resta-lhe, com efeito, cada vez menos liberdade de posse e de uso do corpo!

No restante da sua “solução própria” ao problema, “se a servidão impede o matrimônio”, Scotus basicamente articulará ideias sobre casos (SCOTUS, 2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 34-37, p. 473-474), a partir da estrutura de assunções desenvolvida: a extensão em que o servo perde a sua liberdade, os termos do contrato de propriedade e trabalho escravo, o direito ao matrimônio e os termos de sua possibilidade (dar mutuamente o que se possui suficientemente, mesmo que modicamente, a saber, o corpo e atos do corpo). Com consentimento explícito e livre, um servo pode desposar uma mulher livre (SCOTUS, 2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 34, p. 473); nos termos de uma troca ou mútua concessão em equilíbrio de poder sobre si, ele pode, é claro, desposar uma serva, em se mantendo o dever de justiça de não ficarem impedidos dos “serviços habituais” (SCOTUS, 2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 34, p. 473). Caso por caso, poder-se-ia ainda trazer o seguinte exemplo: um matrimônio de servos “sem a vontade do senhor” poderia enfrentar a situação de risco de que os senhores enviassem os sujeitados para tarefas em diferentes partes do mundo, até mesmo decidissem vender um deles ou os dois: o direito estaria com os donos dos escravos, pensado esse direito, em seu escopo, a partir da restrição de liberdades que havia anteriormente ao casamento não consentido, ainda que Scotus diga que “a causa do matrimônio” é “favorável”, isto é, deva receber a indução tanto da lei quanto da Igreja, para o favor dos senhores (SCOTUS, 2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 35-36, p. 474; WOLTER, 1986WOLTER, A. B. Introduction. In: JOHN DUNS SCOTUS. Duns Scotus on the will and morality. Selected and translated with an introduction by Allan B. Wolter, O.F.M. Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1986. p. 1-123., p. 121-122).

Em Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 39, a reflexão crítica de Scotus sobre a extensão da liberdade que é perdida na servidão chega ao seu ápice. Aristóteles é de novo debatido, em linhas que podem ser lidas como caridosas - porque restringem a um ponto razoável o que Aristóteles pode ter querido dizer - e refutantes ao mesmo tempo, porque introduzem convicções não aristotélicas sobre o status do escravizado, que, por sua vez, destruiriam por definitivo a doutrina da escravidão natural ou pela condição a-lógica do escravizado. Ora, Scotus vê na “maldita servidão” aristotélica (Política I), na qual “o servo é assim como uma cabeça de gado [pecus]”, a condição de alguém que é, para o seu dono, uma mera “posse” (possessio) ou um mero “bem pecuniário” (pecunia)85 85 Scotus (2011Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 39, p. 475): “Et quod Philosophus dicit de servitute illa maledicta qua servus est sicut pecus, intelligi potest quod sit domini sui sicut possessio vel pecunia.” A expressão “pecunia” pode também ser traduzida como “propriedade”, “posses” ou “riqueza em bens.” - um “bem”, uma “propriedade”, que tem valor como mercadoria ou bem de mercado. É justo dizer que se configura, nesse ponto, uma acusação de Scotus à escravidão “parasitária”, na qual o dono explora o trabalho de sua posse - o escravizado - e tolhe por inteiro, eventualmente com a proteção institucional, os seus “direitos civis” (como o de casar) (WOLTER, 1986WOLTER, A. B. Introduction. In: JOHN DUNS SCOTUS. Duns Scotus on the will and morality. Selected and translated with an introduction by Allan B. Wolter, O.F.M. Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1986. p. 1-123., p. 115-116). Sem dizer que isso obviamente se liga à tese aristotélica do escravo como um bruto com insuficiente participação na razão, que, apesar da suposta metáfora orgânica adotada por Aristóteles, não difere, para Scotus, como bem ou mercadoria, de um “instrumento inanimado” (expressão que Scotus utilizara em Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 19), o Doutor Sutil atinge o cume de sua crítica a Aristóteles ao afirmar que do escravo-mercadoria não se pode dizer que não esteja de posse dos seus atos: afinal, não é verdade que “nos seus atos [o servo] tão somente seja conduzido, e não conduza, porque, seja o quanto for servo, é, contudo, homem, e dessa maneira [alguém] de livre-arbítrio”86 86 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 39, p. 475): “Non autem quod in actibus suis tantummodo ducatur, et non ducat, quia quantumcumque sit servus, tamen homo est, et ita liberi arbitrii.” . Essa é uma afirmação sobre o ser humano em seu ser ou, por que não o dizer, em sua natureza: sobre todo ser humano, sobre livres, escravos, sobre quem conduz e comanda e sobre quem é conduzido e comandado. Com essa afirmação do livre-arbítrio no mais fragilizado dos seres humanos em sua liberdade, o escravizado-mercadoria que é conduzido e comandado - uma tese, pois, de antropologia filosófica -, Scotus se aparta em definitivo da teoria aristotélica da escravidão natural. Admitida essa tese antropológico-filosófica, que, de forma interessante, mostra que Scotus deixa sem menção, no auge de sua crítica a Aristóteles, a tese de que há seres humanos com insuficiente parte na razão, ela deveria minar justamente a ideia aristotélica que é a consequência de sua tese da existência de seres humanos a-lógicos: a de que eles, para a virtude e a vida feliz, só podem ser conduzidos e comandados. Por que a posição do livre-arbítrio mina - ou: é suficiente para minar - tanto a tese quanto a sua consequência? Como passagens já analisadas acima mostraram - sobre a “servidão política” -, Scotus não nega que seja verdade que, por aptidão dada, alguns conduzem e outros são conduzidos: mas, dado que mesmo o conduzido tem livre-arbítrio, não será - nunca será - o caso que ele será pura e simplesmente conduzido: ele também conduz. O que isso quer dizer? Que há certas ações que são suas, mesmo que em outras ele seja só conduzido? O sentido não parece ser esse. A ideia parece ser a de que quem é conduzido sempre conduz porque livremente decide se deixar conduzir - por quem, por exemplo, pode fazer o melhor para ele. Mesmo o de si incapaz à excelente condução de vida, na forma da ação virtuosa e nos termos dos bens humanos (perspectiva aristotélica), dispõe de seu liberum arbitrium ou de sua capacidade de livre decisão. Se todo conduzido e apto a ser conduzido só é ou só pode ser conduzido porque concorda em ser conduzido, e assim conduz que seja conduzido, mostra-se que não se segue, da incapacidade “natural” de um ser humano em levar com excelência a sua própria vida para a obtenção do bem humano, que ele é não livre e pode ou deve ser escravizado.

Quando Scotus, finalmente, diz que se manifesta “a grande crueldade [magna crudelitas] na primeira introdução da servidão”, ele se dirige especificamente à doutrina antropológica e, sim, psicologicamente mal fundada de Aristóteles, em cuja forma clássica o bruto, para o fim da vida virtuosa, só pode ser conduzido e lhe resta, como melhor consolo, o bem prático que o senhor lhe pode fazer. O ser humano em qualquer condição e diferença, “livre por arbítrio e senhor dos seus atos para agir virtuosamente”, é transformado em “um bruto, por assim dizer um que não faz uso do livre-arbítrio e um que nem pode agir virtuosamente”87 87 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 39, p. 475): “Ex quo apparet magna crudelitas in prima inductione servitutis, quia hominem, liberum arbitrio et dominum actuum suorum ad virtuose agendum, facit quasi brutum, quasi libero arbtrio non utentem, nec potentem virtuose agere.” . Que o livre-arbítrio, do qual o ser humano sempre pode fazer uso, faz do ser humano sempre um agente minimamente conducente de si, já fora exposto. Diferente é, nesse último parágrafo central de sua exposição sobre a escravidão, a ênfase de Scotus em ser todo ser humano, mesmo o apto a ser conduzido, “senhor dos seus atos” para a ação virtuosa e capaz de agir virtuosamente. Afinal, agir livre como capacidade fundamental está ainda muito distante de poder ativo para a ação excelente. Cabe de novo lembrar que Scotus nada diz sobre a limitação intelectual ou não do ser humano apto a ser conduzido: ele apenas enfatiza o seu livre-arbítrio e poder para o agir virtuoso, como de resto parece relacionar esses poderes a todas as diferentes pessoas. Pode-se supor que Scotus tenha em vista a ideia de que sempre é o caso, na ação em perspectiva prática ou relativa ao bem a ser feito, que qualquer agente, mesmo o apto-à-condução, faz ou pode fazer uso da sua capacidade de livre decisão e, concomitantemente, pode reconhecer o bem de si ou com a decisiva ajuda de outros. Nesse caso, está ou parte dele, minimamente, a condução virtuosa, prudencial, da vida.

Seja como for, é justo afirmar que a ação virtuosa realizada e mesmo a virtude adquirida pelo escravo com livre-arbítrio concebidas por Scotus difeririam em muito do panorama oferecido por Aristóteles88 88 Sobre a teoria scotista da virtude, que também apresenta críticas significativas à doutrina de Agostinho, cf. Kent (2003, p. 352-376, especialmente p. 352-368). . Ao mesmo tempo, porém, o caso acima problematizado de um ser humano dotado de livre-arbítrio, mas apto-à-condução, e que pode, não obstante isso, realizar atos virtuosos parece ser coerente com as ideias centrais de Scotus sobre a virtude como disposição e a pessoa virtuosa (específica ou amplamente prudente) como aquela que adquire, sim, uma causa secundária do agir (que opera a modo de causa natural), junto com o poder livre da vontade como causa primária, formando um quadro de (mais intensa) perfeição moral (KENT, 2003KENT, B. Rethinking moral dispositions: Scotus on virtues. In: WILLIAMS, T. (ed.). The Cambridge Companion to Duns Scotus. Cambridge: Cambridge University Press , 2003. p. 352-376., p. 355-360, 366-368, 369-374)89 89 Sobre a virtude ou o hábito adquirido como disposição e o seu papel na ação, cf. Scotus (Opera omnia V, Ordinatio I d. 17, n. 69-70, p. 170-171). . Não cabe problematizar, aqui, a central distinção que Scotus estabelece, em teoria moral, entre a virtude que aperfeiçoa o seu possuidor e aquilo que torna a ação de alguém moralmente boa. Com efeito, o Doutor Sutil endossa a primeira tese, mas não adota a segunda tese, isto é, que é a virtude que torna a ação moralmente boa e, ainda, que ela seja condição suficiente e mesmo necessária para a ação moralmente boa, a qual, ao final, é uma ação feita a partir de um poder livre (no sentido forte de causalidade contingente e de liberdade já mencionado) que reconhece e decide em favor do bem ou do justo intrínseco e objetivo ditado pela razão90 90 A virtude, para Scotus, tem o bonum honestum ou o bonum iustitiae como o seu objeto próprio. Objeto próprio da vontade é o bem (SCOTUS, 2007, Ordinatio III d. 33, q. un., n. 8, p. 143). Cf. ainda Müller (2009, p. 649-659). . A definição de virtude moral assim reza: “O mais próprio hábito eletivo [da vontade ou do apetite racional, que] inclina para agir assim como é gerado por eleições retas.” (SCOTUS, 2007IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia X: Ordinatio III. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2007., Ordinatio III d. 33, q. un., n. 44, p. 162. Cf. KENT, 2003KENT, B. Rethinking moral dispositions: Scotus on virtues. In: WILLIAMS, T. (ed.). The Cambridge Companion to Duns Scotus. Cambridge: Cambridge University Press , 2003. p. 352-376., p. 355-360; MÜLLER, 2010MÜLLER, Jörn. Das Ende der aristotelischen Tugendethik. In: HONNEFELDER, L.; MÖHLE, H.; SPEER, A.; KOBUSCH, T.; DEL BARRIO, S. B. (eds.). Johannes Duns Scotus 1308 - 2008: Die philosophischen Perspektiven seines Werkes / Investigations into His Philosophy. In: CONGRESS ON JOHN DUNS SCOTUS. ARCHA VERBI / YEARBOOK FOR THE STUDY OF MEDIEVAL PHILOSOPHY, SUBSIDIA 5. 4th. 2010. Proceedings... Münster; St. Bonaventure, NY: Aschendorff Verlag; Franciscan Institute Publications, 2010. p. 421-439., p. 422-431). Todas essas disposições, desde as ações concomitantes geradoras, pertencem à vontade (SCOTUS, 2007IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia X: Ordinatio III. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2007., Ordinatio III d. 33, q. un., n. 43-45, p. 161-163; n. 49-60, p. 164-169)91 91 O papel da vontade na teoria scotista da virtude, é amplamente enfatizado por Vos (2006, p. 457ss). .

4. Um debate sobre fundamentação normativa: crítica a Tomás de Aquino

Com efeito, a resolução de Scotus sobre o sentido do não impedimento de um servo contrair matrimônio, seja com o consentimento ou sem - e mesmo contra - a vontade de seu senhor, a partir de seus critérios já destacados, só aparece no texto de Ordinatio IV d. 36, q. 1, após terem sido feitos contrastes com a posição de Tomás de Aquino, expressa em seu Comentário às Sentenças IV d. 36, q. 1 (a. 2, arg. 2 in opp.). Scotus destaca, primeiramente, que Tomás de Aquino se expressara a favor de o servo contrair matrimônio “em sendo isso contra a vontade do seu senhor” em função de um princípio de leis vigentes e, pode-se dizer, de direitos e deveres contemplados por elas: “o matrimônio é de lei de natureza”, mas a servidão é antes “contra a lei da natureza” - é de lei positiva. Aquilo que pertence à última não tolhe aquilo que pertence à primeira92 92 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 27, p. 470-471): “Dicunt aliqui quod servus potest contrahere matrimonium invito domino suo, – et hoc ex articulo praecedente, quia matrimonium est de lege naturae, servitus non, sed magis contra legem naturae; quod autem est de lege naturae, non tollitur propter aliquid quod est tantum de lege positiva.” .

Como segundo argumento associado a Tomás de Aquino (Comentário às Sentenças IV d. 36, q. 1, a. 2) - e também a Ricardo de Mediavilla (Comentário às Sentenças IV d. 36, princ. 4, q. 1) - tem-se uma tese sobre restrição do status de propriedade, por parte do servo, em função da reserva de atos que estão em seu poder: o servo não é do senhor ao ponto de não ser o dono de seus “atos naturais pertinentes à conservação do indivíduo” - necessários para manter a sua vida corpórea, como comer, beber e dormir. Sendo dono de seu corpo nessa esfera de atos - de uso do corpo -, o “servo pode fazer uso das coisas necessárias para a vida”. Esse domínio de posse do corpo, de seu uso e, pois, dos atos necessários à vida do indivíduo tem no domínio de posse do corpo, de seu uso e, pois, dos “atos pertinentes à conservação da espécie” um análogo - em que, no texto de Ricardo de Mediavilla, via-se a finalidade natural, no matrimônio, como sendo a conservação da espécie. Scotus atribui a Tomás de Aquino tanto a ideia de que a vida individual é um bem natural, em favor de cuja conservação é vigente a lei natural, quanto a ideia de que a conservação da espécie é um bem natural ainda maior, para cuja conservação vige ainda mais a lei natural93 93 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 28, p. 471): “Alia ponitur ratio, quia servus non est ita domini, quin sit sui iuris quantum ad actus naturales pertinentes ad conservationem individui: patet enim quod potest uti necessariis ad vitam; ergo a simili, quantum ad actus pertinentes ad conservationem speciei. – Consequentia probatur, quia conservatio speciei, cum sit maius bonum naturale, magis est de lege naturae.” . Seja o quanto se possa racionalmente defender que escravos são útes para a ordem da casa ou da cidade, jamais será um ditame da razão natural que alguns sejam escravos ou servos - isto é, sem liberdade - quanto ao necessário para a conservação do indivíduo ou da espécie.

Esse segundo argumento tomasiano ganha um reforço, sem nomeação de autor. Começa-se dizendo que “o servo não pode ser um bruto” - como um animal selvagem, irracional. Afinal, todo ser humano é seu dono “quanto a alguns atos”, tal que não “pode se fazer servo quanto àqueles atos” - eles estão, por natureza, em sua esfera de posse e liberdade: sobre eles “a natureza o faria tão livre que não pode se fazer servo”. Não é surpreendente que sejam mencionados os “atos naturais” para a “conservação do indivíduo” e os para “para a conservação da espécie”. Sobre esses, do indivíduo por natureza e, então, na sua esfera de posse ou liberdade, um servo ou uma pessoa qualquer “não pode se obrigar a algum senhor” - é contra a lei natural que o faça. A obrigação por alguém a outro - na dimensão da servidão - pode ser quanto “a atos posteriores”94 94 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 29, p. 471): “Vel sic: servus non potest esse brutum; unde omnis homo – quantum ad aliquos actus – est sui iuris, nec potest se facere servum quantum ad illos actus, immo natura faceret eum ita liberum quod non potest facere se servum; et huiusmodi sunt actus naturales, qui sunt ad conservationem individui, et etiam ad conservationem speciei, contra quos non potest se obligare domino alicui; sed sic obligare se potest ut teneatur domino quantum ad actus posteriores.” .

Scotus expressa discordâncias com os dois argumentos tomasianos. Com respeito à primeira ratio, ele dirá que “‘uma obrigação que não é de lei da natureza’” pode, sim, “impedir alguma liberdade que compete a alguém de lei da natureza”. Não parece surpreendente que esse seja o ponto sobre a escravidão legítima. Nem parece claro o quanto isso se opõe ao que Tomás de Aquino efetivamente disse. Scotus tem em vista contratos que os seres humanos fazem entre si e que limitam a sua liberdade - sendo que, de si, a liberdade em toda a sua extensão pertence a cada um segundo a natureza. Pode bem ser que esses contratos e promessas têm vez, por exemplo, na criação da entidade política: há uma restrição de liberdade, impondo uma obrigação de lei positiva. Scotus simplesmente dá como exemplo um voto de obediência ou uma promessa comprometedora: “‘De lei da natureza eu nada devo a ti, contudo se eu prometo [solenemente] a ti obediência, estou obrigado a te obedecer’.” Até aqui, com efeito, não parece que se precisa assumir uma discordância entre Scotus e Tomás de Aquino. O ponto de discordância com Tomás de Aquino parece ser de natureza teórica: afinal, para Scotus, justamente o matrimônio como forma específica de organização familiar - como no caso do casamento monogâmico - não pertence à lei da natureza senão secundariamente95 95 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 30, p. 471-472): “Primo, quia ‘obligatio quae non est de lege naturae’ bene potest impedire libertatem aliquam, quae competit alicui de lege naturae, – et ita sic. Exemplum: ‘de lege naturae nihil tibi debeo, tamen si voveo tibi obedientiam, teneor tibi obedire’. Matrimonium autem non est de lege naturae nisi secundario, ut dictum supra.” Cf. também Scotus (2011, Ordinatio IV d. 33, q. 1, n. 15-16, p. 426; IV d. 33, q. 1, n. 18, p. 427). . De fato, Tomás de Aquino combina a convicção de que o princípio formal geral da razão prática, a saber, “o bem há de ser feito e buscado, o mal há de ser evitado” (Suma de teologia Ia IIae, q. 94, a. 2), ganha conteúdo à medida que a razão encontra o bem devido na dimensão das inclinações naturais do ser humano - no caso, com os demais seres vivos -, enunciando em consequência disso princípios de racionalidade prática, que são de lei natural e necessários96 96 Sobre a lei natural segundo Tomás de Aquino, cf. (MCINERNY, 1988, p. 19-22; SIGMUND, 1993, p. 223-224; HONNEFELDER, 2010, p. 324–337). : exemplo disso seria a inclinação ao bem de preservar e perpetuar a vida individual e a espécie, e nesse último caso se encontra o matrimônio. Mais interessante, contudo, é que Scotus formula o princípio de lei natural de que cabe que se devolva a “cada um o que é seu”. Curiosamente, Scotus afirma que esse princípio é “igualmente” de lei natural”, e parece sê-lo, antes, “em sentido primário”. Quer ele dizer que é de lei natural stricto sensu, como uma espécie de princípio de justiça? Quer ele dizer que se trata de uma lei de natureza secundária, mais anterior ou mais primária e fundamental do que o matrimônio? A primeira leitura está mais próxima do texto, a segunda sugeriria que, entre os princípios de lei natural secundários, há hierarquia de consonância com a lei natural stricto sensu. Seja como for, esse princípio de justiça é normativamente mais forte. E ele ajuda a entender a dialética de princípios vigentes na condição de escravidão: nela, alguém por obrigação legítima é feito servo de outro, e nos termos desse contrato tem de devolver ao senhor o que é do senhor, a saber, a extensão de posse de corpo e de seu uso que equivale à extensão da liberdade do servo que é possuída pelo senhor; aquilo que impede essa devolução obrigatória tem de ser evitado - mesmo que esse impeditivo ao serviço esperado, não estivesse o servo obrigado [por lei positiva da propriedade adquirida ou servidão], competiria a ele de lei natural secundária (o matrimônio)97 97 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1 n. 30, p. 472): “Et aeque videtur esse de lege naturae reddere unicuique quod suum est, immo primario; ergo ex quo per obligationem servus fecit se domini, tenetur reddere ei suum, et abstineri ab illo quod impedit talem redditionem, licet illud aliud impediens competeret sibi non obligato secundario secundum legem naturae.” . Foi feita, pois, uma articulação de princípios de lei natural em meio a uma obrigação justa de lei positiva.

Sobre o segundo argumento de Tomás de Aquino, Scotus diz que “não é conclusivo”. O motivo é que não é o caso que “todo o que está obrigado a conservar o indivíduo”, a saber, a própria vida individual, “está [também] obrigado a multiplicar a espécie”. Claramente, Scotus está dizendo que não se pode universalizar, quanto a um ser humano, a obrigação de multiplicar a espécie, mas, ao que tudo indica, somente para aqueles que contraem o matrimônio. Multiplicar a espécie não é obrigação individual.

Alguém diria: “‘ao menos é permitido, naquela maneira em que aquilo que lhe é permitido não pode ser tolhido pelo homem’.” Scotus concorda parcialmente: seria proibido tirar do indivíduo esse direito - de multiplicar a espécie - “em caso de necessidade”, a saber, “em que a conservação da espécie dependeria do seu ato”. Scotus, porém, lembra que existem em regra muitos livres, não servos, e que farão o direito e o dever da multiplicação ou, antes, da “conservação da espécie” - ela não cai sobre um servo individual qualquer. Por uma obrigação concorrente, pois, não é errado que o servo seja impedido do casamento e, derivativamente, da função e do direito de multiplicar a espécie98 98 Scotus 2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 31, p. 472): “Et si dicas ‘saltem licet, ita quod illud sibi licere non potest tolli per hominem’, – verum est in casu necessitatis, in quo conservatio speciei ab actu eius dependeret. Sed quia multi non servi intendunt generationi etiam in Lege Christiana, ideo non est necessarius ad conservationem speciei actus istius pertinens ad hoc, et ideo potest per aliquam obligationem hoc sibi praecludere.” . Scotus parece dizer que a preservação qua multiplicação (ou perpetuação) da espécie é um direito natural lato para a espécie, não para o indivíduo.

Imaginando, então, que uma “obrigação a atos posteriores” - de lei positiva - seja impeditivo para “atos anteriores” - de lei natural lato sensu, para a espécie -, em que esses atos anteriores não são “absolutamente necessários para a procriação da prole”, isto é, da prole humana em geral, “não parece” que pelos atos anteriores não necessários no nível individual os atos posteriores de lei positiva ou os serviços obrigatórios ao senhor devam ser deixados de lado. De novo: “a procriação da prole por aquele [servo individual específico] não parece ser um ato absolutamente necessário”, afinal outros seres humanos podem cumprir a multiplicação do “gênero humano” e procriar proles99 99 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 31, p. 472): “Unde si obligatio ad actus posteriores impediat actus priores qui non sunt simpliciter necessarii ad procreationem prolis, tunc non videtur quod propter tales actus non necessarios et priores debeat dimittere actus posteriores qui sunt domini, nam procreatio prolis per illum non videtur esse actus necessarius simpliciter, quia per alios potest genus humanum multiplicari et proles procreari.” .

Acima de tudo, Scotus se mantém fiel à seguinte linha de raciocínio: obrigações justamente assumidas, mesmo no domínio da lei positiva, podem impedir direitos no âmbito da lei natural. Podem impedir outros atos que, de resto, sem aquelas obrigações, seriam lícitos e mesmo devidos: mas, há lícitos e devidos que são suspensos e mesmo revogados, perdidos. Scotus chega a “formalizar” essa ideia: se “antes do matrimônio” uma pessoa está obrigada, por exemplo, aos atos A, B e C, e contrair matrimônio a obrigará a algo impossível diante das obrigações anteriores, não podendo fazer B e C, a nova obrigação não pode ser assumida diante da anterior, ao menos não “com justiça”; a nova obrigação tolheria o direito alheio anteriormente estabelecido de forma justa100 100 Scotus (2011, Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 31, p. 472): “Confirmatur, quia ante matrimonium tenetur ad certos actus, puta ad a, b, c; si contrahat matrimonium, obligatio illa erit ad aliquid impossibile ipsi b vel c; ergo illa obligatio non potest iuste fieri, quia in ea tollitur alienum, post illam obligationem factam.” .

Percebe-se, na argumentação de Scotus, o cuidado em justificar tomadas de posição quando “direitos” existentes ou alegáveis se acham em conflito, não podendo todos, ao mesmo tempo, ser reivindicados e reconhecidos. A ideia de respeito aos contratos, mesmo positivos, enquanto esses não ferem atos e posses inalienáveis, portanto, “direitos inalienáveis” (expressão minha), tem papel chave para seguir o raciocínio de Scotus. Dado que a esfera de direitos naturais necessariamente vinculantes tem dimensão e fundamentação distintas em Tomás de Aquino, e em função disso o direito de contrair matrimônio não poderia ser vulnerado pelo direito de fazer uso devido da propriedade escrava, pode-se pensar que, em Scotus, casos de conflito são solucionáveis em função de um critério de maior flexibilização na revogação ou suspensão de posses e direitos, que, por sua vez, depende, sem dúvida, de uma hierarquia de posses e direitos.

Considerações finais

Scotus restringe amplamente o escopo de aceitabilidade da escravidão. Com efeito, mesmo o legado patrístico-agostiniano se acha presente de forma mais velada, ou seja, ali onde a escravidão pode ser uma punição, em uma sociedade normativa, para crimes ou criminosos - em função de “pecado” - cuja convivência com os outros não pode ser aceita. De outra parte, por mera escolha voluntária ou devido à condição de ser prisioneiro de guerra, a escravização consequente talvez seja ou é um pecado (WOLTER , 1986WOLTER, A. B. Introduction. In: JOHN DUNS SCOTUS. Duns Scotus on the will and morality. Selected and translated with an introduction by Allan B. Wolter, O.F.M. Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1986. p. 1-123., p. 122). A sua crítica aos tradicionais mecanismos de geração de escravos indica que, para Scotus, a servidão no mundo decaído poderia praticamente terminar ou diminuir amplamente (DE BONI, 2003DE BONI, L. A. Propriedade e poder: aspectos do pensamento político da Escola Franciscana. In: DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. p. 195-213., p. 331-332).

Ao colocar o espaço de justificação normativa da escravidão no âmbito do direito positivo, e ao rejeitar a justiça corretiva pós-guerra justa como motivo quase automaticamente correto para escravizar, Scotus também torna estreita qualquer justificação da escravidão com base no ius gentium - no qual, desde os séculos II-III d.C., a licitude da escravidão tinha sido posta, em especial por Ulpiano (150-223), para quem, também, os seres humanos eram por natureza livres, podendo cair na perda da liberdade somente por instituição humana aceita em comum entre os povos (WOLTER , 1986WOLTER, A. B. Introduction. In: JOHN DUNS SCOTUS. Duns Scotus on the will and morality. Selected and translated with an introduction by Allan B. Wolter, O.F.M. Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1986. p. 1-123., p. 116-117). Pode-se especular que Scotus situaria no direito positivo dos povos a licitude de punir com a escravidão prisioneiros de guerra obstinados - ainda que ele, efetivamente, não faça menção ao espaço da servitus no ius gentium positivo, diferentemente de Tomás de Aquino, que ali discute o mais das vezes o tema (FINNIS, 1998FINNIS, J. Aquinas: moral, political, and legal theory. Oxford: Oxford University Press, 1998. (reimpr. 2004)., p. 184-185, nota 1). Seja como for, parece haver um exagero interpretativo, quando Vos (2006, p. 451)VOS, A. The philosophy of John Duns Scotus. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2006. afirma: “Na ética de Duns [Scotus], não há nenhum espaço para um ius gentium.” Naturalmente, nos debates dos séculos XVI-XVII, o ius gentium será o terreno no qual a justificação da escravidão poderá achar solo fértil (KAUFMANN, 2014KAUFMANN, M. Slavery between law, morality, and economy. In: KAUFMANN, M.; AICHELE, A. (ed.). A Companion to Luis de Molina. Leiden; Boston: E. J. Brill, 2014. p. 183-225., p. 195-196). Na - possível e, diante das circunstâncias, desejada - “simbiose” que haveria de estabelecer-se entre senhor e servo, a partir de uma situação que com justiça levou alguém à escravidão, a preocupação de Scotus é definir (a) o escopo de perda e de manutenção da liberdade do escravo ou, dito negativamente, de perda da liberdade ou de escravidão, e nisso daquilo ao que o escravo tem direito, bem como (b) o escopo de propriedade e de direitos que competem aos senhores. Pressuposto que, no caso concreto de “ética aplicada” (expressão minha) analisado, tratava-se do servo trabalhador como propriedade, discute-se, por assim dizer, a justiça e os direitos de ambas as partes em meio a um contrato de trabalho (WOLTER , 1986WOLTER, A. B. Introduction. In: JOHN DUNS SCOTUS. Duns Scotus on the will and morality. Selected and translated with an introduction by Allan B. Wolter, O.F.M. Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1986. p. 1-123., p. 121-122). Nesses termos, pode-se concordar com Luis A. De Boni, quando afirma que, por todas as restrições normativas feitas, a servidão para Scotus, como já o fora para Tomás de Aquino, “estaria mais próxima do trabalho assalariado dos tempos modernos que da escravidão do mundo antigo” (DE BONI, 2003DE BONI, L. A. Propriedade e poder: aspectos do pensamento político da Escola Franciscana. In: DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. p. 195-213., p. 333). Seja como for, no caso estudado e debatido, Scotus se preocupa em especial e permanentemente em proteger a liberdade em suas dimensões exteriores.

  • Doutor em Filosofia pela Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn, Alemanha. O presente estudo é fruto de um período de atividades acadêmicas na Universidade de Bonn, como primeiro detentor da Cátedra CAPES – Universidade de Bonn. Expresso, aqui, o meu agradecimento ao inestimável apoio dessas duas instituições.
  • 2
    Cf., por exemplo, (WALLON, 1847WALLON, H. Histoire de l’esclavage dans l’antique. Paris: L’Imprimerie Royale, 1847. 3v.; SCHLAIFER, 1960SCHLAIFER, R. Greek theories of slavery from Homer to Aristotle. In: FINLEY, M. I. (ed.). Slavery in Classical Antiquity. Cambridge: William Helfer & Sons, 1960. p. 165-204.; DAVIS, 1966DAVIS, D. B. The problem of slavery in Western Culture. Ithaca (N.Y.): Cornell University Press, 1966.; GÜLZOW, 1969GÜLZOW, H. Christentum und Sklaverei in der ersten drei Jahrhunderten. Bonn: Rudolf Habelt Verlag, 1969.; ALBERT HARRILL, 1995ALBERT HARRILL, J. The manumission of slaves in Early Christianity. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1995.).
  • 3
    Platon, Gesetze, VI, 773e, p. 204-205; XII, 966b, p. 515-517; Platon, Der Staat, IV, 433e, p. 154. Cf. também Schütrumpf (1993)SCHÜTRUMPF, E. Aristotle’s theory of slavery: a platonic dilemma. Ancient Philosophy, v. 13, n.1, p. 111-123, 1993..
  • 4
    O tratamento clássico aparece in: Aristoteles, Politik, übers. von Eckart Schütrumpf, 2012, I 4-13, p. 8-32. Cf. também (SCHOFIELD, 1990SCHOFIELD, M. Ideology and philosophy in Aristotle’s theory of slavery. In: PATZIG, G. (Hrsg.). Politik. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1990. p. 1-27.; SMITH, 1991SMITH, N. D. Aristotle’s theory of natural slavery. In: KEYT, D.; MILLER JR., F. D. (ed.). A Companion to Aristotle’s Politics. Oxford: Blackwell , 1991. p. 142-155.; PELLEGRIN, 2013PELLEGRIN, P. Natural salvery. Translated by e. Zoli Filotas. In: DESLAURIERS, M.; DESTRÉE, P. (ed.). The Cambridge Companion to Aristotle’s Politics. Cambridge: Cambridge University Press , 2013. p. 92-116.).
  • 5
    Sobre pensadores dos séculos XVI-XVII que escreveram sobre a escravidão negra, cf. (PICH; CULLETON; STORCK, 2015PICH, R. H.; CULLETON, A. S.; STORCK, A. C. Second Scholasticism and black slavery: some philosophical assessments. Patristica et Mediaevalia, v. 36, p. 3-13, 2015.).
  • 6
    Seja na perspectiva, pois, de que um ser humano, por sua malícia, tiraniza outros, escravizando-os, seja na perspectiva da escravidão como pena justificável diante de crimes proporcionalmente graves. Cf. Agostinho, A cidade de Deus contra os pagãos (De civitate Dei), 1990. Parte II, XIX, 15-16, p. 405-407. Cf. (SAINTE-CROIX, 1975SAINTE-CROIX, G. E. M. Early christian attitudes to property and slavery. In: BAKER, D. (ed.). Studies in Church History. Oxford: Blackwell, 1975. p. 1-38.; GARNSEY 1996GARNSEY, P. Ideas of slavery from Aristotle to Augustine. Cambridge: Cambridge University Press, 1996., especialmente, p. 206-219). Para referências acerca de Agostinho e concepções patrísticas sobre a escravidão, cf. (FLAIG, 1995FLAIG, E. Sklaverei. In: RITTER, J. und GRÜNDER, K. (Hrsg.). Historisches Wörterbuch der Philosophie. Basel: Schwabe & Co. AG Verlag, Band 9, 1995. col. 976-985.; KLEIN, 2000KLEIN, R. Sklaverei IV: Alte Kirche und Mittelalter. In: Theologische Realenzyklöpedie. Berlin: Walter de Gruyter, 2000. p. 379-383. Band 31.).
  • 7
    Uma exposição dessas discussões pode ser encontrada in: (PICH, 2004PICH, R. H. Vontade livre e contingência: sobre a análise scotista do ato volitivo. In: DE BONI, L. A.; COSTA, M. R. N. (orgs.). A ética medieval face aos desafios da contemporaneidade. Porto Alegre: Edipucrs , 2004. p. 407-451., 2014PICH, R. H. Scotus on freedom and indetermination: a model of libertarian incompatibilism. In: GONZÁLEZ-AYESTA, C.; LECÓN, M. (ed.). Causalidad, determinismo y libertad: de Duns Escoto a la Escolástica Barroca. Pamplona: EUNSA, 2014. p. 17-42.). A exposição fundamental da contingência sincrônica como condição metafísica dos atos da vontade como potência racional e livre foi feita por Knuuttila (1981)KNUUTTILA, S. Time and modality in Scholasticism. In: KNUUTTILA, S. (ed.). Reforging the Great Chain of Being: studies of the history of modal theories. Dordrecht: D. Reidel Publishing Company, 1981. p. 163-257..
  • 8
    Cf., por exemplo, Honnefelder (1991)HONNEFELDER, L. Die Kritik des Johannes Duns Scotus am kosmologischen Nezessitarismus der Araber: Ansätze zu einem neuen Freiheitsbegriff. In: FRIED, J. (Hrsg.). Die Abendländische Freiheit vom 10. zum 14 Jahrhundert. Der Wirkungszusammenhang von Idee und Wirklichkeit im europäischen Vergleich. Sigmaringen: Jan Thorbecke Verlag, 1991. p. 249-263..
  • 9
    A Distinção 36 de Ordinatio IV apresenta duas questões; a segunda também discute um impedimento para o matrimônio, a saber, da parte da pessoa; cf. Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 2, n. 42-50, p. 475-477): “Se a idade infantil pode impedir o matrimônio.”
  • 10
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 5, p. 465): “Oppositum: Extra, ‘De coniugio servorum’, cap. 1 [Gregorius IX, Decretales IV tit. 9 c. 1 (CIC II 692)].”
  • 11
    Em outros aspectos nada elogiáveis Scotus também reverberará a Nova compilatio decretalium de Gregório IX, a saber, na posição favorável à conversão forçada dos judeus (PICH, 2012PICH, R. H. Scotus sobre a autoridade política e a conversão forçada dos judeus: exposição do problema e notas sobre a recepção do argumento scotista em Francisco de Vitoria. In: RIVAS, R. P. (ed.). Tolerancia: teoría y práctica en la Edad Media. Porto: FIDEM; Brepols, 2012. p. 135-162.). Gregório IX dera peso jurídico-canônico, nas Decretais de 1234, à doutrina da perpetua servitus iudaeorum – “servidão [política] perpétua dos judeus”, seguidores do Talmude, até o dia do Juízo Final. Essa mesma doutrina teria espaço na concepção da servitus camerae imperialis, “a servidão sujeita imediatamente à autoridade imperial”, promulgada por Frederico II. Em estados cristãos, os judeus foram impedidos de qualquer papel ou influência em processos políticos até o século XIX. Cf. também Dilcher (1985, p. 153-154).
  • 12
    “A partir do estatuto da Igreja”, os impedimentos ao matrimônio são de três gêneros; cf. Scotus, (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 14-17, p. 467).
  • 13
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 2, p. 465): “Circa istam distinctionem trigesimam sextam quaero utrum servitus impediat matrimonium.”
  • 14
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 3, p. 465): “Nullus debet dare alienum; sed corpus servi est domini ipsius, secundum Philosophum I Politicorum 3 [Politica I c. 4, 1254a12-13].”
  • 15
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 4, p. 465): “Item, favorabilior est professio Religionis quam matrimonium carnale; sed servus non potest profiteri Religionem sine voluntate domini; ergo nec contrahere matrimonium.”
  • 16
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 18, p. 467): “Hic duo sunt videnda: primo, unde inducta est servitus et si iuste inducta; secundo ad propositum.”
  • 17
    Sobre isso, cf. Pich (2019)PICH, R. H. Scotus sobre a origem e a natureza do político. Revista Portuguesa de Filosofia: Teorias Políticas Medievais / Political Medieval Theories. Editado por José Maria Silva Rosa e Álvaro Balsas, v. 75, n. 3, p. 1643-1682, 2019..
  • 18
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 19, p. 467): “De primo dicitur quod de lege naturae omnes nascuntur liberi.”
  • 19
    Cf. Scotus (2007IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia X: Ordinatio III. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2007., Ordinatio III d. 37, q. un., n. 19-20, 32, p. 280-281, 286). Sobre isso, cf. as notas 41-42, abaixo.
  • 20
    Sobre a lei natural lato sensu e a sua consonância com a lei natural stricto sensu, cf., por exemplo, (SCOTUS, 2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 17, q. un., n. 19, p. 162; SCOTUS, 2007IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia X: Ordinatio III. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2007., Ordinatio III d. 37, q. un., n. 25-26, p. 283). Cf. também Honnefelder (1994, p. 210-211)HONNEFELDER, L. Naturrecht und Normwandel bei Thomas von Aquin und Johannes Duns Scotus. In: Miethke, Jürgen und Schreiner, Klaus (Hrsg.). Sozialer Wandel im Mittelalter. Wahrnemungsformen, Erklärungsmuster, Regelungsmechanismen. Sigmaringen: Jan Thorbecke, 1994. p. 197-213..
  • 21
    Sobre essa liberdade em Scotus, cf. as notas 7-8, acima.
  • 22
    Sobre o sentido prudencial segundo o qual o domínio do político, das leis positivas, tem a função de resguardar a lei natural stricto e lato sensu, cf. Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 15, q. 2, n. 92, 98, p. 81, 82).
  • 23
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 19, p. 467-468): “Tamen servitus, vel magis proprie subiectio filialis ad patrem, est magis de lege naturae, puta obedientia filialis pertinens ad disciplinationem, quia, secundum Philosophum VIII Ethicorum, ‘filius habet a patre esse et disciplinam’.”
  • 24
    Aristoteles, Nikomachische Ethik, übers. von Eugen Rolfes, 1933ARISTOTELES. Nikomachische Ethik. Übersetzt und mit einer Einleitung und erklärenden Anmerkungen versehen von Eugen Rolfes. Leipzig: Verlag von Felix Meiner, 1933., VIII 14, p. 179-180.
  • 25
    Para Aristóteles, uma forma legal-civil de escravidão seria moralmente equivocada; cf (ARISTOTELES, Politik I 6; VII 3; VII 10).
  • 26
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 19, p. 468): “Ista servitus, de qua hic loquimur, secundum quam dominus potest vendere servum suum sicut pecundem, est de qua loquitur Aristoteles I Politicorum.”
  • 27
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 19, p. 468): “Quia servus non potest exercere actum virtutis.”
  • 28
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 19, p. 468): “Pro eo quod oportet eum ad praeceptum domini exercere actus serviles; et haec servitus est ut aliquis sit totaliter alterius iuris, – et hoc non est ad bonum servi, sed ad malum; et ista servitus est de qua dicit Aristoteles quod ‘servus est sicut instrumentum inanimatum’, nec potest esse bonus et virtuosus. Unde illa servitus non est ad bonum servi sed malum, ut dictum est.”
  • 29
    Na Editio Vaticana, as passagens de Aristóteles em questão seriam Politica I 13, 1259b–1260b7 e I 4, 1253b32. Nessa última passagem, na versão latina, Aristóteles diria que “o servo [é] uma coisa possuída animada”.
  • 30
    Aristoteles, Politik I 4, 1254a14, p. 9; I 6, 1255b11-12, p. 14; I 13, 1260a33-36, p. 30-31; I 13, 1260b5-7, p. 31. Cf. (HÖFFE, 2006, p. 255-257; BRUGNERA 1998, p. 79-83).
  • 31
    A soma de (a) e (b) parece ser, com efeito, uma mera soma de desvantagens.
  • 32
    Cf. a nota 28, acima.
  • 33
    Cabe dizer que a liberdade da qual o apóstolo Paulo fala em Gl 4,31 - 5,1 é aquela da Jerusalém celestial, concedida por Cristo, na nova aliança no seu sangue. Seja como for, isso parece indicar a percepção de Scotus de que a liberdade cristã se liga à ideia de que o ser humano é nascido para a liberdade.
  • 34
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 19, p. 468): “Ideo dicit Apostolus: ‘liberi facti estis, nolite servitute esse subditi’ etc. Ista autem non est inducta nisi a lege positiva.” Cf. Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 15, q. 2, n. 89-90, p. 80-81). Cf. também De Boni (2003, p. 198-199, 202-203, 205-206)DE BONI, L. A. Propriedade e poder: aspectos do pensamento político da Escola Franciscana. In: DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. p. 195-213..
  • 35
    Cf. abaixo a subdivisão 2.
  • 36
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 24, p. 469): “Si arguatur contra primum membrum, scilicet quod servitus non est contra legem naturae, quia, secundum Philosophum I Politicorum, ‘pollens mente debet praesidere, pollens viribus debet servire’, aliqui autem sunt naturaliter pollentes mente et aliqui minus prudentes mente et magis robusti corpore, ergo aliqui sunt naturaliter apti ad dominium, et aliqui naturaliter apti ut sint servi, ergo debent naturaliter esse servi (ad hoc potest esse exemplum in membris corporis humani, ubi quidam naturaliter serviunt parti principali), – respondeo: haec instantia est notabilis; istud enim non est intelligendum de ista servitute extrema, de qua modo loquimur, sed tantum de servitute politica.”
  • 37
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 24, p. 469): “Sed tantum de servitute politica, quo inferior disponitur a superiore, non tamen sicut inanimatum, sed sicut minus vigens mente ordinatur per illum qui magis pollet mente.”
  • 38
    Encontrar-se-iam em Aristóteles, na leitura de Scotus, os tipos primeiro e terceiro.
  • 39
    Cf. as notas 36 e 37 acima.
  • 40
    Cf. também De Boni (2003, p. 331)DE BONI, L. A. Propriedade e poder: aspectos do pensamento político da Escola Franciscana. In: DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. p. 195-213..
  • 41
    Cf., por exemplo, Scotus (2007IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia X: Ordinatio III. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2007., Ordinatio III d. 37, q. un., n. 25-28, p. 283-284). Cf. também (MÖHLE, 1995MÖHLE, H. Ethik als scientia practica nach Johannes Duns Scotus: Eine philosophische Grundlegung. Münster: Aschendorff, 1995., p 348-360; MÖHLE, 2003MÖHLE, H. Scotus’s theory of natural law. In: WILLIAMS, T. (ed.). The Cambridge Companion to Duns Scotus. Cambridge: Cambridge University Press , 2003. p. 312-331., p. 316-317).
  • 42
    Sobre isso, cf. Pich (2010, p. 141-162)PICH, R. H. Poder absoluto e conhecimento moral. Filosofia-Unisinos, v. 11, n.1, p. 141-162, 2010..
  • 43
    Cf. as referências nas notas 19-22, acima.
  • 44
    Cf. referências na nota 22, acima, e, como um todo, o estudo introdutório e a edição bilíngue de Ordinatio IV d. 15 in: WOLTER, 2001WOLTER, A. B. Introduction. In: JOHN DUNS SCOTUS. Duns Scotus’ political and economic philosophy. Latin Edition and English. Translation, with an introduction and notes by Allan B. Wolter. St. Bonaventure, N.Y.: The Franciscan Institute, 2001. p. 1-21., p. 1-21). Cf. também (LAMBERTINI, 2000LAMBERTINI, R. Il consenso delle volontà: Filippo, Bonifacio ed il pensiero politico del Dottor Sottile. In: LAMBERTINI, R. La povertà pensata. Evoluzione storica della definizione dell’identità minoritica da Bonaventura ad Ockham. Modena: Mucchi Editore, 2000., p. 152-161; DE BONI, 2008DE BONI, L. A. Duns Scotus sobre a política. In: DE BONI, L. A. et al. (orgs.). João Duns Scotus (1308-2008): homenagem de scotistas lusófonos. Porto Alegre; Bragança Paulista: Edipucrs; EST Edições; Edusf, 2008. p. 298-313., p. 306ss).
  • 45
    Cf. acima a nota 22.
  • 46
    In: Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV, d. 33, q. 3, n. 89, p. 447), consta que a lei humana é injusta se é contrária à (ou, então, inconsonante com a) lei natural.
  • 47
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 20, p. 468): “Sed qualiter est iusta? Respondeo: sicut dictum est distinctione 15, quomodo primo inceperunt dominia esse iusta, ita dico quod ista vilis servitus non potest esse iuste inducta, nisi dupliciter.”
  • 48
    Também Wolter (1986, p. 118)WOLTER, A. B. Introduction. In: JOHN DUNS SCOTUS. Duns Scotus on the will and morality. Selected and translated with an introduction by Allan B. Wolter, O.F.M. Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1986. p. 1-123. sugere que as razões de fundo para a autoescravização são, por certo, “econômicas.”
  • 49
    De fato, a expressão “fatua” é deveras depreciativa: se trata de uma sujeição “estúpida”, “imbecil”, “idiota”. E, por certo, seria tolo autoescravizar-se perpetuamente ou por um longo tempo. Esse sentido depreciativo poderia dar a entender que alguém estaria se escravizando por um motivo fútil, mas, se assim o fosse, seria de esperar-se que Scotus claramente dissesse que isso seria não consonante com a lei natural. A ideia parece ser, mais simplesmente, que há sempre uma opção melhor quanto ao que fazer com a sua liberdade do que abrir mão dela. Na base de outras circunstâncias e de outros valores seria, contudo, o ato de abrir mão da liberdade em função do voto de obediência e da consequente sujeição em prol da vida religiosa.
  • 50
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 21, p. 468): “Uno modo, quia talis voluntarie subiecit se tali servituti; sed talis subiectio est fatua, immo forte contra legem naturae est quod homo libertatem suam a se abdicet; postquam tamen facta est, necesse est servare, quia haec est iustitia.” Wolter (1986, p. 118)WOLTER, A. B. Introduction. In: JOHN DUNS SCOTUS. Duns Scotus on the will and morality. Selected and translated with an introduction by Allan B. Wolter, O.F.M. Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1986. p. 1-123. fala, quanto à nova relação então estabelecida e ao seu teor vinculante, de algo similar a um “voto de obediência” ou de “fidelidade” (em sentido não religioso).
  • 51
    Cf. a nota 6, acima.
  • 52
    Cf., por exemplo, Luis de Molina, De iustitia et iure, ed. Marci Michaelis Bousquet, Coloniae Allobrogum, 1738 (1611), I, tract. II, disp. XXXIII, n. 4-13, p. 88-89. Dos outros dois motivos alegados por Molina, resumindo, ao que tudo indica, a tradição do direito romano, a saber, (iii) a escravização devido a casos gravíssimos ou situações in extremis (morte iminente), em que a venda de si ou – no caso do pai – dos dependentes é a alternativa para conservar a vida física, e (iv) a lei segundo a qual de mães escravas (ex matre ancilla) nascem filhos escravos, o último não têm nenhum lugar direta ou indiretamente aparente no texto de Scotus. Cf. Luis de Molina, De iustitia et iure I, tract. II, disp. XXXIII, n. 14-31, p. 89-91; I, tract. II, disp. XXXIII, n. 32, p. 91. Cf. Kaufmann (2014, p. 198)KAUFMANN, M. Slavery between law, morality, and economy. In: KAUFMANN, M.; AICHELE, A. (ed.). A Companion to Luis de Molina. Leiden; Boston: E. J. Brill, 2014. p. 183-225..
  • 53
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 22, p. 468): “Alio modo, si quis dominans communitati, videns aliquos ita vitiosos quod libertas eorum et nocet eis et reipublicae, potest iuste punire eos poena servitutis, sicut et posset iuste eos occidere in certis casibus propter bonum reipublicae.” Vos (2006, p. 451)VOS, A. The philosophy of John Duns Scotus. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2006. enfatiza que, nesse caso, a escravidão na sociedade antiga aparece como contraparte difundida e costumeira às alternativas, na sociedade moderna, da prisão ou da pena de morte por causa de crimes graves (embora prisão e pena de morte também existissem, é claro, na Antiguidade e na Idade Média).
  • 54
    Wolter (1986, p. 119)WOLTER, A. B. Introduction. In: JOHN DUNS SCOTUS. Duns Scotus on the will and morality. Selected and translated with an introduction by Allan B. Wolter, O.F.M. Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1986. p. 1-123. lembra que, à época de Scotus, sob a alegação de guerras justas e conseguinte justiça corretiva da parte ofendida e vencedora, muitos cristãos escravizavam mouros, e muitos mouros escravizavam cristãos.
  • 55
    Pensadores críticos sobre a escravidão, do século XVII, como Epifanio de Moirans O. F. M. Cap. (1644–1689), anotariam que, nesse contexto de direito postivo das gentes, a escravidão como morte civil segue a justiça da morte física, assim como a liberdade civil segue a vida física como justa condição. Cf., por exemplo, Epifanio de Moirans (2007, p. 68-69)EPIFANIO DE MOIRANS. Servi liberi seu naturalis mancipiorum libertatis iusta defensio / Siervos libres: una propuesta antiesclavista a finales del siglo XVII. Edición crítica por M.A. Pena González. Madrid: CSIC, 2007..
  • 56
    Também Luis de Molina oferece uma explicação etimológica para a palavra latina “servus” (a partir de “servando”), a saber, ao lembrar a tradição de que “imperadores” como mais elevados comandantes militares – juízes marciais – poderiam “preservar / salvar” a vida de alguém, ao comutar a sua morte pela servidão. Cf. Luis de Molina, De iustitia et iure I, tract. II, disp. XXXII, p. 86. Por semelhante modo, a expressão latina “mancipium” (“posse” ou “propriedade escrava”) é derivada de “manucapta”, isto é, “mãos presas [acorrentadas]”, significando que uma vida em servidão é melhor do que a morte.
  • 57
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 23, p. 468-469): “Si dicas quod est etiam tertia causa servitutis, utpote si captus in bello servetur, et sic, servatus a morte, fiat servus deputatus ad serviendum, – de hoc dubio, nisi dicatur servus ibi servatus.”
  • 58
    É interessante notar que um crítico tão influente da teoria da escravidão natural como Francisco de Vitoria O. P. (1483–1546) pôde, como em regra todos os escolásticos pré-modernos, aceitar formas civil-legais de escravidão, dentre as quais figura com destaque a escravidão como consequência da justiça corretiva após uma guerra travada na base de justas causas pelo lado ofendido. (FRANCISCO DE VITORIA, 1960FRANCISCO DE VITORIA. De los índios, o del derecho de guerra de los españoles sobre los bárbaros (relección segunda) - De indis, sive de iure belli hispanorum in barbaros, relectio posterior. In: Obras de Francisco de Vitoria: relecciones teologicas. Editado por T. Urdánoz. Madrid: BAC, 1960. p. 811-858., § 38-43, p. 843-847).
  • 59
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 23, p. 469): “Nec apparet hic manifeste iustitia, quia etsi forte captor potuisset iuste occidere captum, si habuit bellum iustum, defendendo se, sed non invadindo.”
  • 60
    As expressões “pertinacia” e “pertinax” também podem ser traduzidas por “obstinação” e “obstinado” em uma determinada causa. Talvez elas justamente denunciem o contexto da época de grande número de conflitos bélicos e escravizações entre cristãos e muçulmanos.
  • 61
    Nesse contexto, é interessante lembrar que os freis mercedários (da Ordem dos Mercedários ou Ordem [de Nossa Senhora] das Mercês, fundada em 1218, por Pedro Nolasco), por exemplo, especializaram-se no trabalho com escravos, chegando a adicionar um quarto voto, além dos três usuais – pobreza, castidade e obediência –, a saber, o de agir como cativos, se necessário, para libertar escravos cristãos dos mouros, cuja fé estivesse ameaçada. (VOS, 2006VOS, A. The philosophy of John Duns Scotus. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2006., p. 449).
  • 62
    Parece implícito, ademais, que a sua personalidade, com isso, não estava resumida e reduzida à personalidade estatal da autoridade culpada.
  • 63
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 23, p. 469): “Et hoc stante pertinacia ipsius contrabellantis, tamen ex quo desinit esse pertinax, quia est in voluntate ipsius iam captus, inhumanum videtur sibi infligere poenam contra legem naturae.”
  • 64
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 23, p. 469): “Non enim est hic ratio quae in secundo casu, quia forte non permaneret iste rebellis nec abuteretur sua libertate, sed forte fieret obediens et libertate sibi donata bene uteretur.”
  • 65
    Como muito bem expressa L. A. De Boni, Ética e escravidão na Idade Média, p. 332, na história da humanidade a máquina sócio-política de gerar escravos sempre fora “a rapina, a violência, a guerra, isto é, a causa principal foi o azar de ser mais fraco; e o preço da derrota foi a perda da liberdade.” (VOS, 2006VOS, A. The philosophy of John Duns Scotus. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2006., p. 450) fala da guerra como a matriz do comércio de escravos.
  • 66
    Cf., por exemplo, Wieling (1999, p. 1-17, 33-40)WIELING, H. Corpus der Römischen Rechtsquellen zur Antiken Sklaverei .Teil I: Die Begründung des Sklavenstatus nach ius gentium und ius civile. Herausgegeben von J. Michael Rainer. Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 1999.; neste último caso, passagens de Gaio sobre a escravidão no direito dos povos e no direito civil (século II d.C.).
  • 67
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 25, p. 469-470): “Si arguas contra secundum, quia sic omnes servitutes, quae modo sunt, essent iniustae, quia illud quod est contra legem naturae numquam potest fieri iustum, quia antiquitas temporis non ratificat crimina, sed magis condemnat.”
  • 68
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 25, p. 470): “Servitus omnis alia ab his duobus casibus, est iniusta et contra legem naturae; ergo per nullam longinquitatem temporis videtur iustum quod dominus iuste dominetur talibus servis.”
  • 69
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 25, p. 470): “Respondeo: tactum est supra, distinctione 15, quomodo per praescriptionem potest ius acquiri, si concurrant aliae condiciones quas iura determinant, scilicet quod iusto titulo acquirat et quod sit bonae fidei possessor et quod possideat sine interruptione temporis a lege determinati.”
  • 70
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 25, p. 470: “Sed illud extendit se ad possessiones, non autem ad servitutem, quia non est eadem ratio possidendi aurum et servum, quantum ad legem naturae.” Cf. também De Boni (2003, p. 332-333)DE BONI, L. A. Propriedade e poder: aspectos do pensamento político da Escola Franciscana. In: DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. p. 195-213..
  • 71
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 25, p. 470): “Et difficile esset per praescriptionem salvare iustitiam detinentium tales servos nisi praesumatur quod altero duorum modorum fuerint facti servi a princípio.”
  • 72
    Sobre Paulo e a escravidão, cf. referências bibliográficas nas notas 2 e 6, acima. Sobre a escravidão na ética paulina da administração da casa, cf. (WENDLAND, 1981WENDLAND, H.-D. Ética do Novo Testamento. Tradução: Werner Fuchs. São Leopoldo: Editora Sinodal, 21981., p. 81-83, 99-100; SCHRAGE, 1994SCHRAGE, W. Ética do Novo Testamento. Tradução: Hans A. Trein. São Leopoldo: IEPG; Editora Sinodal, 1994., p. 184-190, 199-203, 237-243).
  • 73
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 26, p. 470): “Si obicias ‘quare igitur Apostolus praecipit tales servos obedire dominis?’, – respondeo: multae obligationes sunt iniustae ex parte illorum quibus fiunt, et tamen postquam factae fuerint, servandae sunt.”
  • 74
    Por certo, em casos de “escravidão simbiótica” ou escravidões próximas a ela, na forma de serviços.
  • 75
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 26, p. 470): “Unde Apostolus, ostendens servitutem non esse secundum se laudabilem, nec multo magis detentionem alicuius in servitute, ait: Si servus vocatus es, non sit tibi curae; sed si potes liber fieri, magis utere.”
  • 76
    Cf. também Wolter (1986, p. 120)WOLTER, A. B. Introduction. In: JOHN DUNS SCOTUS. Duns Scotus on the will and morality. Selected and translated with an introduction by Allan B. Wolter, O.F.M. Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1986. p. 1-123..
  • 77
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 38, p. 474): “Ad primum argumentum, secundum istam rationem ultimam patet quod servus non est domini quantum ad omnia.”
  • 78
    Scotus, (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 38, p. 474-475): “Quia sui iuris est ad comedendum et bibendum et dormiendum, et breviter ad quoscumque actus exercendos quibus non subtrahuntur domino debita servitia.”
  • 79
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 38, p. 474-475): “Ergo cum pro tunc posset aliquoties uti actu carnali, potest ad illum se obligare quantum sui iuris est.”
  • 80
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 33, p. 473): “Potest etiam contrahere domino invito, pro quanto habet aliquid iuris in corpore proprio.” A expressão “aliquid iuris” poderia ser traduzida também como “algo de si próprio”, “algo de sua posse”, “algo de seu controle”.
  • 81
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 33, p. 473): “Non enim privavit se quacumque libertate ad quoscumque actus; et pro quanto corpus eius est suum, potest commutare pro alio.”
  • 82
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 33, p. 473): “Quod si alius, sive servus sive liber, velit esse contentus illa modica libertate sive potestate ad modicum usum, quam scit eum posse dare, potest bene sibi ipsi praeiudicare, et stat commutatio.”
  • 83
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 33, p. 473): “Habet autem tantum potestatem corporis sui quando non occupatur in servitio domini, si eo invito contrahat; et tunc inter tales non est obligatio nisi ad quantum possunt dare corpora sua, salva iustitia domini.”
  • 84
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 33, p. 473): “Unde illud capitulum […], hoc quod habebat dedit, et tenetur solvere servitia domino, quia non potuit dare alteri nisi quod in potestate sua habuit; sed non habuit simpliciter potestatem corporis sui; ergo etc.”
  • 85
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011.Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 39, p. 475): “Et quod Philosophus dicit de servitute illa maledicta qua servus est sicut pecus, intelligi potest quod sit domini sui sicut possessio vel pecunia.” A expressão “pecunia” pode também ser traduzida como “propriedade”, “posses” ou “riqueza em bens.”
  • 86
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 39, p. 475): “Non autem quod in actibus suis tantummodo ducatur, et non ducat, quia quantumcumque sit servus, tamen homo est, et ita liberi arbitrii.”
  • 87
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 39, p. 475): “Ex quo apparet magna crudelitas in prima inductione servitutis, quia hominem, liberum arbitrio et dominum actuum suorum ad virtuose agendum, facit quasi brutum, quasi libero arbtrio non utentem, nec potentem virtuose agere.”
  • 88
    Sobre a teoria scotista da virtude, que também apresenta críticas significativas à doutrina de Agostinho, cf. Kent (2003KENT, B. Rethinking moral dispositions: Scotus on virtues. In: WILLIAMS, T. (ed.). The Cambridge Companion to Duns Scotus. Cambridge: Cambridge University Press , 2003. p. 352-376., p. 352-376, especialmente p. 352-368).
  • 89
    Sobre a virtude ou o hábito adquirido como disposição e o seu papel na ação, cf. Scotus (Opera omnia V, Ordinatio I d. 17, n. 69-70, p. 170-171).
  • 90
    A virtude, para Scotus, tem o bonum honestum ou o bonum iustitiae como o seu objeto próprio. Objeto próprio da vontade é o bem (SCOTUS, 2007IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia X: Ordinatio III. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2007., Ordinatio III d. 33, q. un., n. 8, p. 143). Cf. ainda Müller (2009, p. 649-659)MÜLLER, J. Willensschwäche in Antike und Mittelalter: Eine problemgeschichte von Sokrates bis Johannes Duns Scotus. Leuven: Leuven University Press, 2009..
  • 91
    O papel da vontade na teoria scotista da virtude, é amplamente enfatizado por Vos (2006, p. 457ss)VOS, A. The philosophy of John Duns Scotus. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2006..
  • 92
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 27, p. 470-471): “Dicunt aliqui quod servus potest contrahere matrimonium invito domino suo, – et hoc ex articulo praecedente, quia matrimonium est de lege naturae, servitus non, sed magis contra legem naturae; quod autem est de lege naturae, non tollitur propter aliquid quod est tantum de lege positiva.”
  • 93
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 28, p. 471): “Alia ponitur ratio, quia servus non est ita domini, quin sit sui iuris quantum ad actus naturales pertinentes ad conservationem individui: patet enim quod potest uti necessariis ad vitam; ergo a simili, quantum ad actus pertinentes ad conservationem speciei. – Consequentia probatur, quia conservatio speciei, cum sit maius bonum naturale, magis est de lege naturae.”
  • 94
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 29, p. 471): “Vel sic: servus non potest esse brutum; unde omnis homo – quantum ad aliquos actus – est sui iuris, nec potest se facere servum quantum ad illos actus, immo natura faceret eum ita liberum quod non potest facere se servum; et huiusmodi sunt actus naturales, qui sunt ad conservationem individui, et etiam ad conservationem speciei, contra quos non potest se obligare domino alicui; sed sic obligare se potest ut teneatur domino quantum ad actus posteriores.”
  • 95
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 30, p. 471-472): “Primo, quia ‘obligatio quae non est de lege naturae’ bene potest impedire libertatem aliquam, quae competit alicui de lege naturae, – et ita sic. Exemplum: ‘de lege naturae nihil tibi debeo, tamen si voveo tibi obedientiam, teneor tibi obedire’. Matrimonium autem non est de lege naturae nisi secundario, ut dictum supra.” Cf. também Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 33, q. 1, n. 15-16, p. 426; IV d. 33, q. 1, n. 18, p. 427).
  • 96
    Sobre a lei natural segundo Tomás de Aquino, cf. (MCINERNY, 1988MCINERNY, R. Action theory in St. Thomas Aquinas. In: ZIMMERMANN, A. (Hrsg.). Miscellanea Mediaevalia 19: Thomas von Aquin - Werk und Wirkung im Licht neuerer Forschungen. Berlin; New York: Walter de Gruyter , 1988. p. 13-22., p. 19-22; SIGMUND, 1993SIGMUND, P. E. Law and politics. In: KRETZMANN, N.; STUMP, E. (ed.). The Cambridge Companion to Aquinas. Cambridge: Cambridge University Press , 1993. p. 217-231. (2008, 14. printing)., p. 223-224; HONNEFELDER, 2010HONNEFELDER, L. A lei natural de Tomás de Aquino como princípio da razão prática e a Segunda Escolástica. Teocomunicação, v. 40, n. 3, p. 324-337, 2010., p. 324–337).
  • 97
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1 n. 30, p. 472): “Et aeque videtur esse de lege naturae reddere unicuique quod suum est, immo primario; ergo ex quo per obligationem servus fecit se domini, tenetur reddere ei suum, et abstineri ab illo quod impedit talem redditionem, licet illud aliud impediens competeret sibi non obligato secundario secundum legem naturae.”
  • 98
    Scotus 2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 31, p. 472): “Et si dicas ‘saltem licet, ita quod illud sibi licere non potest tolli per hominem’, – verum est in casu necessitatis, in quo conservatio speciei ab actu eius dependeret. Sed quia multi non servi intendunt generationi etiam in Lege Christiana, ideo non est necessarius ad conservationem speciei actus istius pertinens ad hoc, et ideo potest per aliquam obligationem hoc sibi praecludere.”
  • 99
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 31, p. 472): “Unde si obligatio ad actus posteriores impediat actus priores qui non sunt simpliciter necessarii ad procreationem prolis, tunc non videtur quod propter tales actus non necessarios et priores debeat dimittere actus posteriores qui sunt domini, nam procreatio prolis per illum non videtur esse actus necessarius simpliciter, quia per alios potest genus humanum multiplicari et proles procreari.”
  • 100
    Scotus (2011IOANNES DUNS SCOTUS. Opera omnia XIII: Ordinatio IV. Civitas Vaticana: Typis Vaticanis, 2011., Ordinatio IV d. 36, q. 1, n. 31, p. 472): “Confirmatur, quia ante matrimonium tenetur ad certos actus, puta ad a, b, c; si contrahat matrimonium, obligatio illa erit ad aliquid impossibile ipsi b vel c; ergo illa obligatio non potest iuste fieri, quia in ea tollitur alienum, post illam obligationem factam.”

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    30 Dez 2019
  • Aceito
    30 Dez 2019
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