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Comentário ao artigo O conatus imaginativo em Espinosa: a produção da contingência e da ideia de finalidade

Já houve o predomínio, especialmente na Europa, de leituras espinosanas que viam na racionalidade o ponto a ser demonstrado e divulgado, a expressão máxima da necessidade na vida humana. A partir dessa leitura - que nos traz, sem dúvida, contribuições imensuráveis -, era um caminho quase natural tomar Espinosa como mais um de uma longa tradição filosófica que dizia ser a racionalidade o nosso diferencial e a escapatória deste mundo. Essa tradição prolonga-se de modos variados, ainda que outras determinações tenham sido incorporadas à racionalidade - as “descobertas” sobre a linguagem não passariam em branco, tampouco o materialismo histórico e a psicanálise. Se me atenho, como convém aqui, às interpretações de Espinosa, é seguro que hoje o escritor holandês foi afastado consideravelmente dessa tradição (embora permaneça em constante comunicação com ela), e muito de sua potência atual se deve exatamente a posições sobre nossa relação com a sensibilidade e com o mundo material.

Claro, um conjunto de circunstâncias históricas alimenta esse apelo contemporâneo à filosofia de Espinosa em busca de perspectivas libertadoras. O conceito de liberdade espinosano requer que adentremos na complexidade de nossas relações imaginativas para que sua compreensão não seja vazia - e para que, consequentemente, a filosofia em que se insere não seja apenas mais uma de uma tradição que nunca deixará de ter seus comentadores, ainda que suas perspectivas pareçam descartar a própria realidade como aquilo que interessa. Isso está longe de significar que não seja frutífero falar da razão: ao contrário, ao perder toda sua substancialidade e envolver-se diretamente com o que há de necessário nas relações que se travam às nossas “vistas”, a razão - melhor, o conhecimento adequado se vincula às nossas paixões como poucas vezes a história da filosofia no Ocidente se permitiu pensar.

Esse leve preâmbulo localiza a relevância do texto aqui comentado. Ainda assim, sabemos, a medida de sua utilidade cabe a cada leitora e leitor dar conta, conforme seus momentos. Entretanto, é esse contexto que me permite perspectivar melhor como são nossas paixões - individuais e coletivas - a principal preocupação do espinosismo contemporâneo (tomo a liberdade de fingir um espinosismo e uma contemporaneidade). O autor do artigo opta por repor os elementos, digamos assim, dessa preocupação; e o faz de forma clara, quase sem me dar chance de pedir mais explicações ou esclarecimentos - é um texto a ser indicado, por isso mesmo, a quem está na lida de tentar compreender a teoria das paixões espinosana, especialmente a terceira parte da Ética.

Não é por isso que não trarei algumas questões. É interessante que Juarez tenha indicado, em uma das primeiras notas, que tratar do conatus em suas expressões imaginativas é uma escolha de recorte, já que os três gêneros de conhecimento podem agir simultaneamente, no indivíduo, segundo a filosofia de Espinosa. Não há separação real dessas operações cognitivas na mente humana - são maneiras com as quais nos relacionamos com as coisas e que compõem a produção de ideias; fato é que uma essência singular existente em ato é uma atividade plural (isso é o conatus), e Juarez foca em conexões basilares que formam, em cada singularidade, afetos que surgem de não podermos compreender adequadamente quase nada do que nos cerca. Em poucas palavras, a ética espinosana assenta a maior parte de nossa existência na nossa potência imaginativa.

A complexidade é tal que a flutuação de ânimo, um dos eixos da exposição de Juarez, é uma situação que pode enlanguescer nossa atividade, mas que apenas é possível porque nosso corpo, como é, é potência imensa de imaginação. Amor e ódio cohabitam o mesmo sujeito em relação ao mesmo objeto, e o campo de disputa é a duração das singularidades - e, não menos, como lidamos com essas durações, o que faz do tempo conceito extremamente importante para a discussão. Finalidade e contingência, dois “produtos” de nossas errâncias passionais, não completamente controláveis, são explicadas, então, a partir dessas disputas que nada menos são do que determinantes para nossas operações. Mais uma vez, as explicações das gêneses dessas duas modalidades são trabalhadas claramente por Juarez; alguns itens da exposição, porém, chamaram-me a atenção.

Em algumas ocasiões, acredito que seguir uma exposição rente ao que o filósofo mesmo fez pode recalcar os desenvolvimentos e as dinâmicas que caracterizam uma forte interpretação - e isso ocorre nesse artigo de Juarez, em minha leitura, obviamente. É preciso imprimir um movimento que, inclusive, ponha à frente da leitora e do leitor que a consciência não progride saltando pontos - se é que ela progride; por exemplo, Rodrigues (2021RODRIGUES, J. L. O conatus imaginativo em Espinosa: a produção da contingência e da ideia de finalidade. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 44, n. 1, p. 205-224, 2021., p. 210), após citar as definições de alegria e tristeza (no corpo do texto), afirma:

Assim entendidas, alegria e tristeza são paixões que representam um progresso de consciência sobre os estados diferenciados do próprio corpo. Observamos justamente que, nos corpos mais complexos, são orientações que conduzem os conatus dos indivíduos a uma sobrevivência mais consciente sobre o seu instinto de conservação. O conatus, em seu esforço de atualização e perseverança na existência, conduzirá o indivíduo a prolongar toda excitação alegre e a evitar toda excitação triste, ou seja, ele buscará o prazer e fugirá da dor. No entanto, o amor (amor) e o ódio (odium) correspondem a uma nova etapa, pois pressupõem uma nova diferenciação corporal e um novo progresso da consciência.

A passagem sintetiza algo que corre o texto inteiro; e, mesmo que isso não impeça a correta interpretação do que é exposto por Espinosa (já que a leitura não está incorreta), o autor deixa de aprofundar o que significa dizer que o afeto ele mesmo é uma passagem, um movimento, cuja ideia é, conforme as leis de seu atributo, também passagem, uma que não é progresso de consciência, mas complexificação das circunstâncias. Para Rodrigues (2021RODRIGUES, J. L. O conatus imaginativo em Espinosa: a produção da contingência e da ideia de finalidade. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 44, n. 1, p. 205-224, 2021.), apesar disso, o amor e o ódio representariam um novo “progresso”, Corpos mais complexos têm relações mais complexas, certamente - mas há um progresso da consciência de um ponto a outro dessa “escala” (ou de um ponto a outro no mesmo indivíduo)? Há alguma “escala” que não seja imaginativa? São, de fato, perguntas - nada retóricas, são coisas que me vieram em função do texto.

Como a sequência do artigo de Juarez me parece ressaltar, o termo crucial dessa complexidade não é a consciência em seu “progresso” (proporcional à complexidade do corpo), mas o corpo mesmo e como nele é constituída a memória - ao fim, nossa peculiar complexidade física é melhor vislumbrada por aí, pela memória como potência do corpo de retenção e transformação e de como isso constitui, na mente, o imaginar. Essa complexidade - e isto, confesso, senti como uma carência no texto, mas exigiria provavelmente que o autor adentrasse em questões que o fariam fugir de seu tema - é o fundamento de resistências “existenciais” que nos levam à vida em sociedade; medo e esperança, móbiles maiores de nossas flutuações nos cotidianos, dão vida à complexidade formal da finalidade e da contingência analisadas aqui cuidadosamente pelo autor.

O que significam meus comentários? Que faltou algo ao texto de Juarez? Não, seu recorte e o tratamento dados são ótimos; suas escolhas seguiram seus “planos”: é um texto, sem a mínima dúvida, esclarecedor. Os comentários significam que, diante da oportunidade de participar da publicação desse artigo - o que agradeço muito -, escolhi provocá-lo a partir de minhas próprias perspectivas (como seria diferente?); desafiá-lo, assim, a dar mais um passo em direção à cultura, à sociedade, à política (o resistir comum que segue disso tudo trabalhado no artigo). Um desafio, enfim, a incorporar mais os debates latino-americanos (e italianos) na interpretação da sempre instigante - para nós - teoria das paixões de Espinosa.

Referência

  • RODRIGUES, J. L. O conatus imaginativo em Espinosa: a produção da contingência e da ideia de finalidade. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 44, n. 1, p. 205-224, 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2020
  • Aceito
    26 Out 2020
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