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Open-access Comentário a “A investigação arqueológica como diagnóstico do presente: uma crítica ao pensamento antropológico”

Deve-se compreender que a arqueologia se apresenta como uma investigação que se opõe a uma história das ideias. Assim, objetivando investigar as diferentes configurações dos saberes clássicos e modernos, e a eventual ruptura entre esses saberes, quando do surgimento do homem, enquanto objeto de saber, a partir principalmente do século XIX, Michel Foucault empreende o processo de análise arqueológica, enfatizando as diversas mudanças no espaço desses saberes e passando a inferir com referência ao aparecimento de modos inéditos de racionalidade. Foucault trabalha arqueologicamente com a noção de episteme, destacando que os saberes modernos e clássicos configuraram-se sob epistemes diferentes, enfocando que o saber clássico localizava-se e se caracterizava pela representação. Por sua vez, a episteme sob a qual os saberes modernos se embasavam, denotam uma característica nova e própria: a condição do homem enquanto sujeito e objeto do saber.

A episteme também define o campo de análise da arqueologia. Apresenta uma determinação tanto geográfica quanto temporal. Não por acaso, as epistemes são classificadas como episteme do renascimento, episteme clássica e episteme moderna. O próprio Foucault, em as Palavras e as Coisas, a descreve como uma espécie de região intermediária entre os códigos fundamentais de uma cultura, os quais regem sua linguagem, seus intercâmbios e esquemas perceptivos, além de seus valores técnicas, a hierarquia de suas práticas, as teorias científicas e filosóficas, que explicam todos esses modos da ordem (FOUCAULT,1999). Deve-se apontar que a episteme não se refere aos conhecimentos ou pontos de vistas de sua forma racional, mas sim às condições de possibilidade dos saberes. Trata-se de se buscar descrever os tipos de relações que existiram em determinada época, entre as diferentes formas de saber e a homogeneidade da forma de construção dos seus discursos.

Dessa maneira, a episteme representa, por um lado, “os códigos fundamentais de uma cultura”, ocupando um espaço intermediário entre as palavras e as coisas e expressando o modo em que se fala delas e como são pensadas, e, por outro, a forma como são percebidas e se encontram dispostas entre si. Edgardo Castro afirma que é a episteme que se apresenta enquanto região intermediária, que se dirige à arqueologia, visando a encontrar nesta o a priori histórico, a saber, as condições de possibilidade dos saberes de cada época (CASTRO, 2014).

Segundo Esther Díaz (2012), a partir da arqueologia, Foucault assinala diferentes formações históricas que possuem sua gênese, mas que não exibem qualquer tipo de substancialidade, como, por exemplo, o sexo ou a loucura. Seus elementos podem ser idênticos, porém, cada episteme remonta ao ritmo de avatares históricos que se reacomodam de modo diferente. Obviamente, podem ser encontradas conexões entre uma época e outra, o que não significa que as “camadas de uma época” denotem progresso ou aperfeiçoamento das anteriores. Norteando-se pelas práticas discursivas e não discursivas, pode-se compor estratos que a arqueologia consegue objetivar, em sua pluralidade multifacetada. Ainda, de acordo com Esther Díaz, a espessura das práticas discursivas permite desvelar sistemas estabelecidos por enunciados, os quais, por sua vez, moldam acontecimentos e objetos.

Partindo da investigação de uma arqueologia do saber, interpretada por muitos como a primeira etapa da sua reflexão, sendo logo precedida pela genealogia e pela ético-política, Michel Foucault compõe uma ontologia histórica da atualidade: compreendida enquanto Ontologia, por tratar dos entes e da sua realidade; histórica, porque trabalha os acontecimentos, sua relação com os assim denominados “dados empíricos”, além de pesquisar os “documentos empoeirados.” Destaque-se que essa ontologia histórica de nós mesmos almeja analisar e vislumbrar os processos de constituição do sujeito, segundo as diferentes etapas da reflexão foucaultiana. Tece-se uma ontologia histórica concernente à verdade de acordo com a qual nos constituímos em sujeitos e objetos de conhecimento. Como analisado no artigo “A investigação arqueológica como diagnóstico do presente: uma crítica ao pensamento antropológico”, a arqueologia exerce um trabalho de diagnosticar a atualidade ou o presente, criticando a noção antropológica do homem, sob um viés de inspiração nietzschiana, criticando os humanismos que embasavam a reflexão filosófica; e, ao mesmo tempo, o artigo demonstra como a ontologia do presente recusa tanto o essencialismo quanto o subjetivismo antropológicos, rejeitando a noção de qualquer forma de instância fundadora de cunho progressista e continuidade evolutiva de um sujeito que faz seu próprio futuro enquanto substância fundadora.

Todos esses aspectos anteriormente apontados, que caracterizam a investigação arqueológica como diagnóstico do presente e crítica à antropologia, são muito bem apontados e analisados por Fernanda Gomes da Silva, a qual apresenta, de modo claro e direto, a ruptura entre a antropologia e a filosofia da história. É uma ruptura que, ao criticar as faces do humanismo, como discutido no artigo, revela que a investigação arqueológica do saber não recorre mais a um sujeito da consciência, da razão, da humanidade ou do conhecimento, enquanto embasamento para uma história contínua ou para a reflexão filosófica.

Um ponto essencial no artigo de Silva (2022) refere-se à influência de Nietzsche na investigação arqueológica de Foucault. Indubitavelmente, o pensador francês reconhece, em as Palavras e as Coisas, que partiu de Nietzsche o esforço inicial para desenraizar o pensamento da antropologia, visando assim a despertar o pensamento de sua ilusão antropológica. Citando Foucault: “Nietzsche encontrou o ponto em que o homem e Deus se pertencem mutuamente, em que a morte do segundo é sinônimo do desaparecimento do primeiro, e onde a promessa do super-homem significa, primeiramente e antes de tudo, a iminência da morte do homem.” (FOUCAULT, 1999).

Em Arqueologia do Saber, Fernanda analisa a formação discursiva enquanto representação de um sistema de regularidade que um discurso constrói, abrindo a possibilidade para nova constituição dos sujeitos. Essa noção foucaultiana do saber, como fica bem claro na discussão proposta, identifica-se com a investigação de diferentes práticas discursivas, indagando-se sobre as condições de existência de construção de um enunciado e como se constituem enquanto condição de discursos. Percebe-se que Foucault não foca na análise do conhecimento, estabelecendo determinadas descontinuidades, significando que a unidade do discurso não se localiza em seus objetos, mas na sua formação discursiva. Gomes ressalta o objetivo de Foucault em buscar a unidade do discurso, como que garantindo a existência de um tipo de sujeito do conhecimento específico, que passa a ser definido pelo próprio discurso.

Silva (2022) enfoca como, para Foucault, o esforço de Nietzsche para matar Deus ocasiona a descentralização do sujeito, rejeitando-se simultaneamente as diferentes formas de humanismo. Fernanda Gomes demonstra a ressonância da crítica de Nietzsche ao pensamento antropológico e aos humanismos, que se encontra com a empreitada de Foucault, em suas críticas às filosofias do sujeito, como o existencialismo, a fenomenologia e o marxismo humanista. Trata-se de uma crítica descrita e analisada no artigo, a qual abre espaço para uma ontologia crítica de nós mesmos ou da atualidade, na condição de um trabalho de nós mesmos sobre nós mesmos enquanto sujeitos livres, fazendo referência a prova histórico-prática dos limites que podemos ultrapassar. Esse aspecto foi totalmente abordado no ensaio construído por Silva (2022).

Referências

  • CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Tradução de Beatriz de Almeida Magalhães. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
  • DÍAZ, Esther. A Filosofia de Michel Foucault. Tradução de Cesar Candiotto. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
  • FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 8.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
  • SILVA, Fernanda Gomes da. A investigação arqueológica como diagnóstico do presente: uma crítica ao pensamento antropológico. Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 4, p. 65-84, 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2022
  • Aceito
    25 Jul 2022
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