Distingo dois aspectos fundamentais da situação em que me encontro, ao tecer meus comentários ao artigo de Mauricio Mancilla. Sim, concordo, a intepretação implica um compromisso ético de quem interpreta com quem está sendo interpretado. Por exemplo, na tradução, um caso paradigmático de interpretação, é necessário “respeito pelo alheio” (MANCILLA, 2022). Todavia, além de respeito, eu acrescento, quem interpreta precisa ser fundamentalmente justo com quem ele/a está interpretando.2 Pois a justiça, já ensinava Aristóteles (2001, p. 93, 1130a), é “o bem dos outros”, mais precisamente, um bem devido a alguém. Logo, ela exige de quem pretende praticá-la a virtude excepcional de discernir o que cabe a alguém. No caso da intepretação, a justiça resume sua tarefa: atribuir a alguém o que, de fato, ele/a pensa.
Uma vez explicitado o primeiro aspecto da situação em que desenvolvo meus comentários, passo ao segundo aspecto fundamental. Para ser justo com Mancilla, preciso lhe expor uma pressuposição, com base na qual interpreto não só seu artigo como também qualquer texto. O título de um livro, ensaio ou artigo visa a apresentar aos seus intérpretes uma síntese do assunto tratado, do problema desenvolvido. Então, a partir do título, é possível ao intérprete antecipar uma ideia geral que cada parte do texto deve desenvolver e aprofundar. Assim, cada seção de um artigo, por exemplo, não deveria perder de vista o que anuncia o título e, gradativamente, aprofundar o intérprete no problema. Enfim, refiro-me, claro, ao princípio hermenêutico do círculo entre todo e partes, do qual, a propósito, Mancilla (2022) trata em seu artigo.
Gostaria de desenvolver minimamente, em meus comentários, duas críticas inter-relacionadas. Vejam bem, disposição para ser justo com quem está sendo interpretado não implica necessariamente concordância. É perfeitamente possível ser justo e, ainda assim, crítico. O título do artigo de Mancilla me parece muito claro: ética, mais especificamente, ética dialética da interpretação. E o subtítulo complementa: “a hermenêutica romântica de Friedrich Schleiermacher”. Por conseguinte, o que eu ou qualquer outro intérprete poderia esperar do artigo? Ora, a apresentação de uma ética da interpretação, cujo caráter seria dialético, segundo a hermenêutica romântica de Schleiermacher; mais especificamente, conforme ele promete em seu resumo, uma relação “orgânica”, palavra de Mancilla, entre ética, dialética e hermenêutica.
Sem dúvida, é um artigo bastante instrutivo, para quem deseja conhecer a hermenêutica em geral e, mais especificamente, a hermenêutica de Schleiermacher. Porém, o que seria realmente original em seu artigo, a ética dialética da interpretação, infelizmente acaba sendo mal desenvolvido, eis minha crítica. Na introdução de três páginas, Mancilla instrui - com bastante competência, reconheço - sobre a história da hermenêutica e, em particular, a edição dos textos de Schleiermacher. No primeiro tópico, cerca de quatro páginas, ele discorre sobre o lugar de Schleiermacher no Romantismo e já apresenta os aspectos fundamentais de sua hermenêutica. No segundo tópico, mais cinco páginas, ele detalha não só os aspectos gramatical e psicológico da interpretação, como também os métodos comparativo e divinatório da hermenêutica.
Enfim, no terceiro tópico, a ética dialética da interpretação. Todavia, aí se concentra a minha frustração. Em quatro páginas incompletas, Mancilla infelizmente dedica apenas cinco parágrafos para tratar daquele que deveria ter sido seu problema fundamental. Digno de nota é o fato de, nas considerações finais, mais duas páginas, ele não mencionar a palavra ética. Inclusive, nas dezoito páginas do artigo, sem incluir a lista de referências bibliográficas, a palavra ética ocorre no título, no resumo e nos cinco parágrafos mencionados. Sim, alguém poderia questionar: “Você não estaria fazendo críticas meramente formais? Não há nada sobre a exposição do artigo.” Decerto, tais críticas ainda são formais. - ainda, eu disse. Pois elas apontam para e, sobretudo, preparam minhas críticas à insuficiência do desenvolvimento conceitual.
Para Schleiermacher, ética significa um “processo de alcançar a razão em sua totalidade.” Sinceramente, não compreendo como algo tão abrangente pode definir a ética - uma investigação prática, dedicada à ação. Quanto à ética da interpretação, não encontro relação com aquela definição vaga de ética. Ela seria, como já frisei, o “respeito pelo alheio”, a “orientação original para o acolhimento do outro”. Aí, sim, reconheço o que poderia ser considerado ética. Porém, como respeitar, acolher o outro? Mancilla não responde. Na determinação da dialética, talvez encontre uma resposta. Todavia, enredo-me em mais questões. Ela seria a “arte de resolver desacordos através da conversa.” Mas como resolvê-los? Enfim, qual é a relação “orgânica” entre ética, dialética e hermenêutica? Distingo, no máximo, algumas sugestões.
Relacionado ao primeiro, apresento outro comentário crítico. Mancilla se queixa de a interpretação da obra de Schleiermacher sofrer influência “acrítica” da “leitura dominante” de Gadamer. Ele não esclarece qual seria tal “leitura”. Provavelmente se trata de uma crítica bem conhecida. Para Gadamer, interpretar não é reconstruir, ao contrário do que supõe Schleiermacher (2000, p. 55), “o processo psíquico original” de quem está sendo interpretado. Se o interpreto bem, para Mancilla, tal crítica não passa de uma “falsa consideração” do aspecto psicológico da intepretação, “em termos de psicologismo”. Não sei o que Mancilla compreende por psicologismo. Entretanto, se ele julga como “falsa consideração” a crítica de Gadamer a Schleiermacher, Mancilla deveria ter desenvolvido algum argumento.3 Infelizmente, não é o que ocorre.
Gadamer, por sua vez, argumenta. Considere seu exemplo, aliás, evocado também no artigo de Mancilla: a leitura de uma carta (GADAMER, 2003, p. 66). A que viso, quando a leio? Ora, nenhuma outra resposta me parece mais plausível: os acontecimentos narrados; o que se passou com quem me escreveu; as coisas e as pessoas com as quais ele/a precisou lidar. Não reconstruo em mim o “processo psíquico” de quem me escreveu. Mesmo quando descreve como se sente, seu estado psicológico se manifesta para mim como uma, dentre outras coisas narradas. Posso até me compadecer ou, inclusive, sofrer com seu sofrimento. Mas o que acontece aí não é a reconstrução do processo psíquico de quem me escreveu. Eu apenas sofro ao constatar algo. O quê? O sofrimento de alguém, manifesto para mim dentre outras coisas na carta.
É o que Gadamer critica em Schleiermacher - e com razão, creio. Contudo, encontro aí outro aspecto graças ao qual é possível relacionar meus dois comentários. A crítica de Gadamer aponta para a necessidade de discutir a coisa em questão no texto interpretado. É o que deve impulsionar um filósofo. Heidegger já alertava em O que é isto - a filosofia: “Uma coisa é verificar opiniões dos filósofos e descrevê-las. Outra coisa bem diferente é debater com eles aquilo que dizem [...]” (HEIDEGGER, 1999, p. 35). Talvez Mancilla considere importante conhecer a biografia e o contexto histórico de um filósofo, pois entende assim sua tarefa como filósofo: interpretar um “corpus teórico”. Para saber o que é a ética dialética da interpretação, talvez ele precisasse debater com Schleiermacher a coisa mesma. Porém, ele não soube como fazê-lo.
Um dia, eu acredito, nós, latino-americanos, abandonaremos a condição de hermeneutas clássicos para assumirmos a tarefa propriamente filosófica da interpretação. Então, tenho certeza, quando um filósofo europeu não desenvolvesse bem um problema, ousaríamos pensar, em nossos artigos, o que restou para ser pensado. Mas, para tanto, é necessário não só compreender como também assumir a atitude implícita na diferença entre hermenêutica clássica e hermenêutica filosófica. Assim, além de precisarmos ser justos com eles, enquanto intérpretes, também precisamos ser justos conosco, enquanto pensadores.
Para concluir, seria um prazer me deparar com um artigo de Mancilla em que ele próprio desenvolvesse o que é, afinal, uma ética dialética da interpretação; e seria um prazer ainda maior debater com ele suas ideias.
Referências
- ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 4. ed. Brasília, DF: Editora UnB, 2001.
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BACK, Rainri. A reconstituição de perspectivas como momento fundamental da experiência hermenêutica. Índice. Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 01-12, jan./jun. 2010. Disponível em: Disponível em: https://www.yumpu.com/pt/document/view/12456692/a-reconstituicao-de-perspectivas-como-momento-revista-indice Acesso em: 10 jan. 2022.
» https://www.yumpu.com/pt/document/view/12456692/a-reconstituicao-de-perspectivas-como-momento-revista-indice - BACK, Rainri. Distanciamento teórico e engajamento prático: acerca da unidade entre atitude teórica e atitude prática a partir de um problema oriundo da hermenêutica filosófica. 2013, 290 f. Tese (Doutorado em Filosofia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
- GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. 2. ed. Rio de Janeiro: FVG, 2003.
- HEIDEGGER, Martin. Heidegger: escritos e conferências filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
- MANCILLA, Mauricio. Ética dialética da interpretação: a hermenêutica romântica de Friedrich Schleiermacher. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 3, p. 179-200, 2022.
- SCHLEIERMACHER, Friedrich. Hermenêutica: arte e técnica de interpretação. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
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2
Sobre a determinação prática do pensamento em geral, cf. BACK, 2013.
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3
Para uma intepretação argumentativa da crítica de Gadamer a Schleiermacher, cf. BACK (2010).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
18 Jul 2022 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2022
Histórico
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Recebido
21 Mar 2022 -
Aceito
12 Abr 2022