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Open-access Comentário a “O externalismo semiótico ativo de C. S. Peirce e a cantoria de viola como signo em ação”: em busca de uma ontologia para o paradigma 4e

No artigo “O externalismo semiótico ativo de C. S. Peirce e a cantoria de viola como signo em ação”, Atã e Queiroz (2021) almejam “[...] fornecer uma ontologia semiótica para o externalismo cognitivo ativo, como desenvolvido recentemente pelo paradigma 4E.” Neste comentário, oferecemos uma caracterização sucinta do campo das abordagens ontológicas da cognição e apresentamos considerações que ajudam a situar a posição de Atã e Queiroz (2021), nesse campo.

A primeira frase do artigo de Atã e Queiroz (2021), na qual eles anunciam o propósito de fornecer uma ontologia para o paradigma 4E, tem certamente o mérito de chamar a atenção de leitores que se dedicam sistematicamente à filosofia. A hipótese de trabalho deles, “[...] que o componente explanatório que falta ao externalismo cognitivo não centrado no indivíduo é a noção pragmatista de semiose (ação de signos) de Peirce” (ATÃ; QUEIROZ, 2021, p. 181), também desperta interesse.

O presente comentário tem dois objetivos: caracterizar sucintamente o campo das abordagens ontológicas da cognição e oferecer elementos que ajudem a situar a posição de Atã e Queiroz (2021), nesse campo.

Barry Smith, professor na State University of New York at Buffalo, é um dos filósofos contemporâneos mais importantes no que tange à ontologia e à ontologia da cognição.3 Nas palavras dele, ontologia é “[...] a ciência do que é, dos tipos e estruturas de objetos, propriedades, eventos, processos e relações em cada área da realidade.”4 (SMITH, 2004, p. 155). Dessa definição geral, a qual posiciona a ontologia como um ramo da filosofia, derivamos que a ontologia da cognição é a ciência dos tipos e estruturas de objetos, propriedades, eventos, processos e relações que há em uma área da realidade, a cognição.

Nas últimas décadas, em parte devido ao surgimento e aperfeiçoamento de técnicas de neuroimagem, o interesse pela ontologia da cognição se disseminou em diversas áreas, tais como a neurologia (PRICE; FRISTON, 2005; FRISTON; PRICE, 2011; BATRANCOURT et al., 2015), a psiquiatria (BLUHM, 2017), a psicologia (POLDRACK; YARKONI, 2016; GADSBY, 2019), a neurociência cognitiva (LENARTOWICZ et al., 2010) e obviamente a filosofia (FIGDOR, 2011; FUMAGALLI, 2016; HUTTO; PEETERS; SEGUNDO-ORTIN, 2017; DEWHURST, 2021).

Uma consequência dessa disseminação é que a expressão “ontologia cognitiva” (ou sua variante “ontologia da cognição”) já não guarda significado unívoco. Jansen, Kein e Slors (2017) fizeram um levantamento e constataram que a expressão vem sendo usada de três maneiras diferentes, na literatura contemporânea: (i) para referir uma nomenclatura, isto é, “[...] um conjunto de termos padronizados que pesquisadores pretendem usar de forma sistemática a fim de promover o entendimento mútuo” (JANSEN; KEIN; SLORS, 2017, p. 124); (ii) para designar um domínio, isto é, “[...] o conjunto de entidades referidas por uma teoria cognitiva” (JANSEN; KEIN; SLORS, 2017, p. 124); (iii) como um conjunto de categorias metafísicas básicas a partir das quais o domínio cognitivo pode ser demarcado e estruturado (e.g. mecanismos, processos, conceitos clínicos etc.).

Jansen, Klein e Slors (2017) também constataram que as contemporâneas abordagens ontológicas da cognição têm foco em três conjuntos interconectados de questões: (a) questões acerca do escopo do explanandum e dos níveis nos quais ele pode ser analisado; (b) questões concernentes à adoção de uma perspectiva realista, ou não, em relação às categorias de certa ontologia; e (c) questões a propósito da manutenção, ou não, de categorias psicológicas em face dos avanços das neurociências.

Essas constatações de Jansen, Klein e Slors (2017) podem ajudar a situar a posição de Atã e Queiroz (2021), no campo dos estudos da ontologia da cognição. Vejamos.

a) Escopo do explanandum. Atã e Queiroz (2021) são liberais: assumem que sistemas cognitivos podem ser distribuídos, isto é, que a cognição não se limita ao cérebro e nem mesmo ao corpo biológico do agente, mas inclui também artefatos e aspectos do ambiente. A cantoria de viola - concebida como algo que abrange a improvisação dos versos, a viola (instrumento), as toadas, os motes, as deixas, os repentistas, os curadores, os apologistas, a audiência etc. - é descrita como um sistema cognitivo distribuído.

Posições liberais em relação ao escopo da cognição são conhecidas e já foram intensamente debatidas, na comunidade filosófica (CLARK; CHALMERS, 1998; CLARK, 2003; MENARY, 2010). Uma questão difícil, para quem é liberal, diz respeito à individuação de sistemas cognitivos de modo a acomodar tanto a consciência individual quanto a cognição grupal. Uma teoria geral da individuação de sistemas cognitivos ainda não foi estabelecida (RUPERT, 2019a; 2019b).

b) Adoção ou não de uma perspectiva realista. Atã e Queiroz (2021) são peircianos: professam um credo que dificilmente pode ser caracterizado como realista. Ajuizamos isso com base em Burch (2021), que identifica quatro componentes do idealismo hegeliano em Peirce: a tese de que o mundo das aparências é constituído inteiramente de signos, a tese de que o signo é um elemento de uma relação triádica indissoluvelmente conectada, a tese de que o interpretante de um signo é ele mesmo um signo e a tese de que o sistema todo evolui. Em atenção a esses componentes, Burch (2021, s/p) conclui que

[...] temos em Peirce uma teoria essencialmente idealista que é semelhante ao idealismo que Hegel apresenta na Fenomenologia do Espírito. Além disso, tanto Hegel quanto Peirce fazem toda a interpretação evolucionária do faneron em evolução ser um processo que se diz lógico, a “ação” da própria lógica.

O próprio Peirce registrou certa vez que “[...] a única teoria inteligível do universo é a do idealismo objetivo.” (PEIRCE, 1891, p. 171). Por que uma ontologia idealista seria desejável para o paradigma 4E? Um ponto difícil que surge aqui é se uma ontologia idealista pode suportar uma explicação naturalizada da cognição.

c) Manutenção ou não de categorias psicológicas diante de avanços nas neurociências. É importante saber se a ontologia semiótica que Atã e Queiroz (2021) recomendam ao paradigma 4E é de algum modo sensível ou informada por achados das neurociências. Ao nosso modo de pensar, esta pergunta é crucial: pode algum avanço nas ciências empíricas da cognição motivar uma atualização na ontologia semiótica? Se sim, qual aspecto ou elemento dessa ontologia é passível de revisão, à luz de novas evidências neurocientíficas?

Este comentário procurou caracterizar sucintamente o campo das abordagens ontológicas da cognição e oferecer elementos que ajudem a situar a posição de Atã e Queiroz, nesse campo. As perguntas que apresentamos são expressão do nosso interesse na colaboração interdisciplinar e no avanço do conhecimento. As respostas que Atã e Queiroz eventualmente apresentarem vão nos ajudar a discernir se o artigo em comento usa o termo “ontologia” para referir uma nomenclatura, um domínio de entidades ou categorias metafísicas básicas. Isso, por sua vez, vai informar mais detalhes acerca de como eles compreendem a interface do paradigma 4E com as ciências empíricas da cognição, especialmente as neurociências.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Set 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2021
  • Aceito
    03 Abr 2021
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