Resumo:
Este artigo discute gênero, sexualidade e raça, com base na análise da personagem Ann Walker, do seriado Gentleman Jack (2019). Objetiva, a partir do encontro e do desejo latente entre Ann e a protagonista da série, operar sobre as tensões e pactos aí estabelecidos com os limites da feminilidade, da heterossexualidade e da branquitude, a partir de um olhar elisivo às “estratégias paranoicas” de que trata Sedgwick (2003). Consequentemente, desejo emerge como uma categoria teórico-analítica, a partir de Deleuze e Guattari (1995, 1997) e de Deleuze e Parnet (1998). No sentido de operar com uma discussão racialmente localizada, a teoria de Lugones (1994, 2007, 2014) sobre colonialidade de gênero, pureza e criatividade é acionada. O artigo, assim, foi organizado de modo a dar contorno ao que se nomeou aqui “pacto com a demônia”, nos termos deleuzo-guattarianos, e que posteriormente culmina na expropriação de si e, ambivalentemente, na produção de um outro si, refratário às expectativas de gênero e sexualidade, porém, sustentado pelos limites e possibilidades da branquitude.
Keywords:
Lesbianidade; Feminilidade; Branquitude; Serialidades Audiovisuais
Abstract:
This paper discusses gender, sexuality and race through the analysis of Ann Walker, who is a character in the Tv show Gentleman Jack (2019). It aims to focus on the encounter and on the latent desire between Ann and the series’ protagonist to then explore the tensions and established pacts within the limits of femininity, heterossexuality and whiteness, through an elusive gaze to the paranoid reading. Therefore, desire emerges as a theoretical-analytical category by the writings of Deleuze and Guattari (1997; 1995) and Deleuze and Parnet (1998). Lugones’ theory (2014; 2007; 1994) on the coloniality of gender, purity and creativity also contributes to operating a racially aware analysis. Through her desire for the protagonist, Ann constitutes a pact with the demon, in Deleuzo-Gauttarian terms, which ambivalently culminates in the expropriation of herself and in the production of another self, elusive to the expectations of gender and sexuality, however sustained by the limits and possibilities of whiteness.
Key-words:
Lesbianism; Femininity; Whiteness; Tv shows
Introdução
Assumindo que o que está na imagem é (e produz) realidade (Fischer, 2001; Fischer Marcello, 2011; Esquenazi, 2011), de modo a impactar a produção política e social, volto meu olhar, neste artigo, para Gentleman Jack, uma série televisiva que se tornou sucesso de crítica e de público (Mangan, 2019; Ryan, 2019), com uma audiência estimada em 6 milhões de espectadoras/es por semana. Seu êxito se deu sobretudo por relatar, tal qual documentado, a vida de Lister, uma mulher branca, lésbica e aristocrata, a qual fez história e, por sorte, narrou suas jornadas em um diário codificado, que apenas recentemente foi completamente traduzido.
Aqui, no entanto, o enfoque é sobre Ann Walker, par romântico de Lister. Uma mulher jovem, branca, aristocrata e enferma, que vê sua vida mudar substancialmente, diante do interesse romântico pela protagonista. O objetivo é, através do encontro e do desejo latente entre as duas personagens, operar sobre as tensões e pactos aí estabelecidos com os limites da feminilidade, da heterossexualidade e da branquitude.
Desejo, a partir do marco teórico com o qual opero, não se resume a sua definição usual, mas é ancorado na teoria deleuzo-guattariana e deleuzo-parnetiana. Para além do desejo enquanto conceito, valho-me dos escritos decoloniais de María Lugones sobre a colonialidade de gênero e de sexualidade, e de suas noções de puro/impuro, controle/criatividade (Lugones, 1994, 2007). Tais conceitos vão ao encontro de uma busca por olhar para as imagens a partir do que escapa às amarras do chamado “olhar paranoico” (Sedgwick, 2003), de modo a exceder possíveis prescrições.
É pela relação operada entre tais autoras/es, conceitos e algumas cenas de Gentleman Jack, protagonizadas pela personagem Ann, que a constituição teórico-metodológica deste artigo se dá. O texto foi organizado de maneira a, primeiramente, apresentar a personagem, a série e reflexões sobre o trabalho com imagens, para então se desdobrar em três eixos analíticos. Por último, as considerações finais retomam o objetivo deste texto e resgatam as principais reflexões.
1 Imagens e a recusa à denúncia
Parece óbvio que imagens são, sobretudo, elementos interpretativos. O ato de interpretar, portanto, cabe aqui mais do que nunca; aliado a ele, está a carga ética que pavimenta o estreito caminho entre interpretar e definir. Quando se aliam à imagem questões de gênero e sexualidade, interpretar torna-se ainda mais perigoso. Entre uma série de possibilidades, existe o olhar fetichista, como o male gaze (Mulvey, 2001) e também o olhar pedagógico, aquele preocupado com os ensinamentos, com os processos educativos da imagem, mas que, no limite, pode acabar compondo a própria pedagogia da imagem. “O que o conhecimento faz?2”, nos pergunta Sedgwick (2003, p. 124, tradução minha), numa visível provocação. Para a autora, o conhecimento é performativo, cabendo a nós o difícil ato de lidar com seus efeitos. A estratégia paranoica, de que a referida autora trata, compõe esse esforço profético, antecipador dos sentidos que, reduzidos, resumem-se à denúncia, à revolta. A estratégia paranoica é tida por Sedgwick como uma “[...] teoria forte dos afetos” (Sedgwick, 2023, p. 120), uma vez que sua força reside sobretudo no seu potencial de dominação interpretativa. Ela assume possibilidades, mas, para deslegitimá-las, para sobrepor-se, fazendo-se soberana.
Como efeito, assumo uma postura paranoica à estratégia paranoica. Priorizo movimentos, possibilidades, a partir do olhar de um pesquisador também em movimento, o qual iniciou este trabalho enquanto mulher lésbica, e o termina como pessoa transmasculina não binária. Um olhar, portanto, mais interessado em processos, em continuums que multiplicam, interrompem, reajustam e desajustam. Se, para a estratégia paranoica, “[...] não deve haver más surpresas3” (Sedgwick, 2003, p. 130, tradução minha), ou melhor, nenhuma surpresa, aposto aqui, justamente, na possibilidade de ser surpreendido. De, diante do poder do gênero, da sexualidade e da raça, encontrar, talvez, o imprevisto - ou não. Tal busca se dá porque estou interessado, efetivamente, naquilo que se apresenta como desafio ao olhar paranoico, naquilo que escapa à prescrição, às previsões teóricas. Um movimento, de fato, paradoxal, na medida em que me valho de teorias para discutir as imagens. No entanto, acredito, um paradoxo necessário.
Porque assumo uma perspectiva teórico-metodológica, entendo que conceitos permeiam os modos de olhar para a imagem. Nesse sentido, desejo é um conceito-chave. Enquanto elemento desterritorializante, isto é, enquanto emergência que desaloja o ser de seu território, de seu lugar, de seus referentes, desejo, na teoria deleuzo-parnetiana, implica uma expropriação de si (Deleuze; Parnet, 1998). Esse si, por sua vez, é aqui forjado sobretudo em relação com intersecções de gênero, sexualidade e raça. Como efeito, o desejo se faz motriz às investidas, tensões e acordos que operam no âmbito dessas três dimensões.
No mesmo sentido, Lugones (2014) e seu perspicaz clamor de que é preciso racializar a opressão de gênero e generificar a opressão racial também compõe os modos de olhar para as imagens. A autora lança luz sobre a racialização enquanto operação que atravessa todos os corpos, ainda que se torne exposta apenas naqueles não brancos, tendo em vista que sobre esses produz efeito de exotização e, no limite, de abjeção. É nessa linha que a personagem, aqui discutida enquanto mulher branca, é racializada de modo a produzir a invisibilização de sua raça. Tal racialização que acoberta sua própria operação se relaciona diretamente com o gênero e a sexualidade de Ann, pois, para “[...] ver o mundo se multiplicar através de um lócus fraturado na diferença colonial” - isto é, para perceber a diferença colonial e seus efeitos sobre a racialização e sobre a generificação de corpos -, é imprescindível não assumir o discurso moderno e capitalista do gênero como algo passível de ser pensado e analisado separadamente da raça e da sexualidade (Lugones, 2014, p. 944).
No que diz respeito às imagens utilizadas, todas compõem a primeira temporada, única disponível até o final deste trabalho. Gentleman Jack foi uma série britânica cuja estreia se deu em 2019. Composta de duas temporadas, era dirigida por Sally Wainwright, Sarah Harding e Jennifer Perrott, e produzida e exibida pela BBC e HBO. Anne Lister, protagonista da narrativa inspirada na história real da pessoa homônima, é uma aventureira que, em meados do século XIX, retorna à sua cidade de origem, no interior da Inglaterra, decidida a interromper seu estilo de vida hedonístico e a administrar os negócios da família - ignorando os limites de gênero impostos às mulheres, em sua época. É, de fato, uma figura que causa fascínio e estranhamento, chamando a atenção de todos/as nos lugares que frequenta, pois, desde muito nova, fez-se refratária à feminilidade da época. Os oito episódios da primeira temporada focalizam sobretudo a busca de Lister por uma esposa, enfastiada, que estava, da condição de amante em que repetidamente se encontrava. É então que Ann, uma jovem abastada, branca, de vinte e nove anos, que sofre de dores físicas e distúrbios psicológicos, entra em cena.
Ainda que Lister seja uma figura profícua para este estudo, Ann Walker, a jovem por quem Lister se apaixona, é a personagem que possibilita as elaborações teórico-empíricas deste artigo. Ann, em Gentleman Jack, vive o intenso dilema de assumir para si uma paixão proibida. No curso de desejar, entender sua sexualidade e viver um intenso amor, Ann é marcada por expectativas de sexualidade e gênero.
O processo de constituição de sua sexualidade e as tensões que estabelece com os limites do gênero feminino, na série, são elementos que tornam essa personagem mais profícua para as discussões aqui empenhadas. No entanto, por ser personagem secundária na trama, Ann teve sua performance invariavelmente atrelada à de seu par romântico e protagonista da série, o que limitou as tessituras teórico-analíticas às interações românticas.
Daqui em diante, o texto encontra-se organizado em três eixos. O primeiro diz respeito a um fenômeno que nomeei, aqui, inspirado pela teoria de Deleuze, de pacto com a demônia, o qual enseja as condições para a manifestação do desejo e uma consequente expropriação de si; o segundo, o efeito de uma tensão que se instaura a partir desejo sobre a constituição de um “si” expropriado em Ann; o terceiro compõe uma ambivalência: da expropriação à produção de um “si” outro, sem linearidades ou sequencialidades, apenas uma simbiose contínua, sem começo, meio ou fim.
2 Desejar para com a demônia compactuar
Não é novidade alguma que a teoria deleuziana estabelece uma espécie de cadeia conceitual: devir, multiplicidade, rizoma, entre outros, somam-se, compõem-se, de forma que constitui certo desafio tratar de um, sem citar o outro. Dessa maneira, desejo acaba por evocar diversos outros conceitos, como o de devir. Mais precisamente, Deleuze e Guattari (1997, p. 64) assumem o devir como, ele próprio, “[...] o processo do desejo”. Do modo como entendo, assumir tal relação acarreta compreender que o desejo, enquanto processo, implica devir e tudo o que a partir dele é acionado, incluindo, assim, o pacto com o demônio, condição imprescindível para devir. E no que consistiria compactuar com o demônio? Os autores o qualificam do seguinte modo:
Não basta parecer um lobo ou viver como um lobo para produzir lobisomens em sua própria família: é preciso que o pacto com diabo acompanhe de uma aliança com uma outra família, e é o retorno dessa aliança na primeira família, a reação dessa aliança sobre a primeira família, que produz os lobisomens como efeito de feedback (Deleuze e Guattari, 1997, p. 28-29).
Pactuar com o diabo, para além de um esoterismo, parece configurar sobretudo a aproximação, ou melhor, a filiação a uma outra possibilidade de existência - e, talvez, de resistência. Os “lobos”, as “bestas”, os elementos necessários para formar um híbrido (no caso, o lobisomem), formam o processo de afluência com o impensado, com o inesperado, com aquilo de que, via de regra, não devemos nos aproximar. Porque esse híbrido não compõe quaisquer “fusões”, mas uma espécie de monstruosidade, de anomalia. E o que é anomalia, senão efeito de um ponto de vista, de uma comparação e de uma relação localizadas num tempo e espaço específicos?
O encontro entre Ann e Lister parece pressupor, justamente, a formação de um pacto “com a demônia4”. Uma associação mais óbvia envolve o seu teor escandaloso e “anormal” para a época (século XIX). No entanto, os movimentos em cena oferecem mais ao olhar afeito às surpresas. A primeira visita de Lister a Ann ocorre logo no início do segundo episódio da primeira temporada e opera com diversos elementos importantes, na trajetória de desejo de Ann. A jovem mostra-se entusiasmada com a inesperada visita de Lister e resolve revelar o deslumbre que sentiu, na primeira vez que a viu. Uma conversa intensa, interrompida por Ann, ao comentar sobre os filhos de sua irmã. Subitamente, a empolgação se esvai, e ambas parecem desconcertadas com o assunto. “Maternidade, que maravilha!”, expressa Lister, séria, como se falasse o que dela é esperado, mas não aquilo que sente. Logo, Ann interrompe o silêncio, confessando: “[...] sou muito fã de crianças, mas não tenho certeza se quero...”; finaliza a frase, sussurrando: “[...] ter filhos”. Lister também confessa, desanimada, jamais ter sentido essa inclinação, todavia, recupera o ânimo, ao comentar: “Já dissequei um bebê uma vez”. Ao notar o espanto de Ann, Lister explica que o bebê estava morto e que a atividade foi em decorrência de seu aprendizado em medicina, efetuado clandestinamente - uma vez que era uma prática proibida às mulheres.
A continuação da conversa5 permite que Ann confesse a Lister seu desconforto com o médico da família, que recentemente a assediou (ainda que ela não revele este fato), e explique que uma simples mudança de planos - como a de consultar com outro médico - causaria alvoroço entre seus parentes. Ann indica que sua família é grande e abastada, por ser adepta de casamentos estratégicos, e que ela sente que os desaponta, por não se ajustar a essa lógica. Lister a interrompe, oferecendo uma série de elogios, mas Ann continua: “[...] quando você é uma inválida, ou vista como uma por toda a família e por tanto tempo, é difícil tirar da cabeça de algumas pessoas que elas têm o direito de interferir na sua vida”. A confissão de Ann ocorre de forma bastante íntima, em close-up. Lister pergunta: “Inválida? Como? Você não parece inválida para mim”, e, por alguns segundos, as duas se olham, enquanto a música de um violino se intensifica a cada segundo.
Na cena descrita, Ann revela-se profundamente - tendo em vista os costumes polidos da época -, seja na sua fala, seja na forma como a cena é capturada, embora revele a Lister nada demasiadamente íntimo. Expõe seus desejos: deslumbra-se com a protagonista, confessa não estar certa de um destino tão irrevogável às mulheres (a maternidade), mostra-se desconfortável com a ideia de casamentos estratégicos e, ainda que se denomine inválida, ela o faz ao mesmo tempo que denuncia os controles de sua família. Ou seja, tal reconhecimento de si como inválida parece perturbá-la severamente. Tais observações expõem a relação de tensão que Ann trava com expectativas de gênero e sexualidade: “mulheridade”, maternidade, heterossexualidade e branquitude operam de forma entremeada, estabelecendo os limites que Ann não deveria ultrapassar, principalmente por ser uma mulher branca e rica, da qual certos destinos (como o casamento estratégico) eram, à época, irremediavelmente esperados.
Tais limites compõem justamente a intersecção entre gênero, sexualidade e raça, na medida em que gênero é um marcador social moderno que não inclui, em muitos sentidos, a mulher negra - sobretudo aquela que foi escravizada -, pois assujeitar corpos ao processo de colonização é, também, destituí-los de sua humanidade (Lugones, 2014). Enquanto mulher branca, Ann deveria fazer-se mulher-mãe, casada e heterossexual. Entretanto, também é sua condição de mulher abastada e branca que permite que Ann desfrute de um momento de intimidade com Lister, alguém que (ainda) pouco conhece, em um espaço seguro e sobre o qual tem o controle - no caso, sua própria casa.
É provavelmente por isso que Ann se relaciona com esses temas de forma tão peculiar. Fala da possível recusa à maternidade sussurrando, como se fosse um segredo a ser guardado. Do mesmo modo, escolhe Lister para compartilhar tais incômodos, uma escolha interessada. Se ambas se revelam afinadas em relação a visões de mundo, a Figura 1 permite vislumbrar contrastes importantes entre as personagens, a partir de suas vestimentas. Lister, somente em vestir preto, já se põe refratária aos costumes da época, compondo aquilo que Jack Halberstam (1998) convencionou nomear de “masculinidade vitoriana”. A mesma figura, contudo, diz de um encontro de personagens distintas, mas equivalentes. Ann e Lister estão frente a frente, enquanto nós, espectadores, vislumbramos a cena através de uma perspectiva de equidistância.
A protagonista, desde sua figura anômala, convida Ann a estabelecer uma forma de pacto em um processo de despossessão de valores, crenças, referentes. Ann, por sua vez, pactua com Lister, porque esta se faz “demônia” diante de Ann, oferecendo uma outra possibilidade de “filiação” (Deleuze; Guattari, 1997), que não percebe em Ann uma enferma, porém, parte de sua “matilha”, com quem pode estabelecer uma aliança. No entanto, Ann pactua sussurrando, hesitante, embora se movimentando. Ann vive, nesse encontro, um momento de respiro: pela primeira vez, verbaliza seus desconfortos.
E é nesse sentido que falar de si como “inválida”, mesmo que de forma conflituosa, produz um lugar de constituição de si muito peculiar. E, de fato, Ann é constantemente colocada nesse lugar, por sua família. Ao mesmo tempo que desenvolve uma relação com Lister, vive o desespero de receber uma proposta de casamento de um abusador - situação à qual voltarei, adiante -, aliado ao drama de ter uma parente próxima que a pressiona a casar-se e morar longe de Halifax, justamente por saber do teor de sua relação com Lister. Nesse emaranhado de situações, Ann passa a ser assombrada por pesadelos horríveis, nos quais se vê condenada à forca pelo ato de “pederastia”6, e por vozes em sua cabeça, que a perturbam constantemente. Do mesmo modo, quando se distancia de Lister, passa a sentir dores intensas, físicas e psicológicas, sendo levada, em um momento de crise nervosa, a cortar o próprio pulso7.
Sedgwick (1990, tradução minha) alude justamente ao “corpo encenado8”, o qual, no ato mesmo da cena, é capaz de expressar toda a potência da ambivalência. Ann vive, seja psicologicamente, seja corporalmente, os efeitos de uma paranoia, efeito de um reconhecimento “homossexual-homofóbico9” (tradução minha), isto é, de uma apropriação de si que demanda agnição de seu lugar social no mundo, aliada ao contraste do si com o próprio mundo. Assim, experiencia física e mentalmente o profundo conflito a que é exposta: pressionada a viver como as herdeiras de sua época, a personagem, por tensionar tais expectativas, entra em conflito com assujeitamentos de diversas ordens. O pacto que forja com Lister a convida a produzir-se, a partir de uma ausência de referentes: uma expropriação, efeito do desejo. Porque desejar, por si só, “[...] é não querer ser oprimido, explorado, subjugado, sujeitado” (Deleuze; Parnet, 1998, p. 112), ou seja, desejar é colocar-se à mercê de um retorno a si, com ele compactuar. Despir-se de valores, expectativas e fazer-se em desejo.
O efeito desse conflito, para Ann, é uma guerra, uma batalha com as vozes que ecoam em sua cabeça, com os pesadelos, as dores físicas e o sofrimento emocional, e tal batalha não implica apenas um jogo de perdas e ganhos, entretanto, sobretudo - e em termos deleuzo-guattarianos (1994) - de velocidades, intensidades, lentidões. Tal processo também não implica a busca por um “eu verdadeiro” ou por uma “pureza do ser”: pelo contrário, Ann, ao desejar (estar com Lister e rechaçar as expectativas impostas sobre sua vida), faz-se processo e habitante de tantos territórios conflitantes quantos possíveis, inevitavelmente se contaminando, fazendo-se híbrida. Uma Ann pura, sem malícia, embranquecida (não apenas por sua condição de mulher branca, mas na sua própria constituição estética, a partir de vestimentas tom-pastel e/ou rosadas), é confrontada com uma Ann outra: pactuar com a demônia resulta em fazer-se demônia, e é nesse ponto que expropriar-se de si é condição para o desejo deleuzo-parnetiano, como veremos adiante.
3 Desejar para do si se expropriar
De fato, a palavra “desejo” evoca uma série de sentidos que se relacionam com afeto, sexo, vontade. No entanto, o “desejo” qualificado pelo marco teórico proposto não se resume a sexo ou a impulsos sexuais; ao mesmo tempo, também não se limita a uma questão de vontade ou aspiração. Esse conceito concerne, a um só tempo, ao abandono e ao retorno a si:
Longe de supor um sujeito, o desejo só pode ser atingido no ponto onde alguém é privado do poder de dizer Eu. Longe de tender para um objeto, o desejo só pode ser atingido no ponto em que alguém já não procura ou já não apreende um objeto e tampouco se apreende como sujeito (Deleuze; Parnet, 1998, p. 105).
Ser privada ou privar-se do eu, expropriar-se ou ser expropriada de si: essas são as condições para o desejo. É nesse sentido que estar sujeita é constituir-se em relação com algo. Sujeitar-se às expectativas de gênero, raciais ou sexuais, compor-se a partir de uma relação mais ou menos harmoniosa com essas. O convite a expropriar-se, portanto, compõe o processo do desejo: é preciso vontade, é preciso impulso, é preciso movimento.
“Você já beijou alguém?”10 É assim que Lister surpreende a Ann, em um de seus encontros, novamente na casa da personagem, antes mesmo de Ann dar-se conta do teor da afeição que vinha sentindo pela “amiga”. Lister, sem tirar os olhos de Ann, e bastante próxima do rosto de sua amada, confessa desejar beijá-la “[...] sempre que venho aqui”. O espanto de Ann é intensificado pelo close-up e pelo silêncio que acompanham a investida de Lister. A personagem parece, por alguns segundos, não saber o que falar, até encontrar as palavras: “Como assim?” Lister toca o rosto de sua amada, enquanto afirma que Ann sabe do que ela está falando e que, aparentemente, o desejo é recíproco. Ann sussurra, quase sem ar: “O quê?”, enquanto Lister oferece uma outra interpretação à admiração de Ann: “[...] eu acho que você está um pouco apaixonada por mim”.
A jovem desvia o olhar e parece perdida. Seus olhos se movimentam freneticamente, como se procurasse por alguma coisa, um referente. Lister afasta-se e pergunta se a constrangeu. Ann afirma que não, todavia, seus olhos ainda parecem perdidos. A jovem, então, confessa ter sentimentos por Lister, mas diz não saber o porquê, e exclama: “Meu Deus!” A protagonista encerra a conversa, declarando: “Você não precisa ter medo”, gesto que põe Ann a sorrir, ainda que timidamente.
Ann, na cena descrita, é convocada a entender seu apreço por Lister de uma outra forma. De uma provável relação impossível, a jovem vê seu desejo revelado por aquela que deseja, e é precisamente ao ter sua vontade exposta que percebe o sentido do deslumbramento. Embora certamente tenha vivido esse desejo solitariamente, pouco sentido parecia colocar nele, dado o espanto que a revelação causa em Ann - como se fosse Lister, na verdade, quem revelasse as vontades de Ann para ela mesma. Provocada, Ann vê-se obrigada a encarar seus sentimentos de uma outra maneira. Perde as palavras, e seus olhos também parecem perdidos. Ainda que íntimo, o teor do desconcerto está explícito: como é possível desejar uma mulher? Como pode uma paixão encontrar lugar naquela com quem compartilha a mesma condição de gênero? É, portanto, como se uma possibilidade de existência tomasse forma diante da jovem, uma existência-demônia.
Uma vertigem é o efeito dessa tensão que extrapola os limites dos sentimentos para adentrar o mundo físico. Ann, assim, entra em devir. A cena, lenta, silenciosa, vertiginosamente focada em Ann, expressa sua relação de movimento com o desejo: Ann está a cambalear, mas a movimentar-se. Esse é precisamente o efeito de uma tensão de desejo, agonística que implica devir.
Ann, ao movimentar-se, é sujeita de uma negociação entre o que pode e o que deseja. Sem um referente e convocada por uma outra inteligibilidade à sua frente, a personagem vê-se em face da possibilidade de expropriar-se de si. O si, nesse caso, compõe aquilo que Ann entende como o destino de uma mulher, aquilo que uma mulher pode (e, também, aquilo que não pode) e que é, consequentemente, o que Ann concebe como parte de sua própria constituição. O impacto das expectativas de ordem social adentra a constituição do si, e é por isso que relacionar-se com Lister convoca a uma expropriação. O desejo homossexual, aqui, opera como elemento desterritorializante, visto que tal desejo não encontra referente estável nas lógicas heterocentradas que emergem como referente para toda a pessoa socializada como mulher, branca e aristocrata, à época.
De fato, o processo de expropriação toma forma em diversos momentos da narrativa, estabelecendo relações de lentidão e rapidez, mais do que de repressão ou transgressão. Quando Lister e Ann tentam transar pela primeira vez,11 Ann interrompe abruptamente o início da relação, assumindo que o ato em si implicaria ultrapassar um limite até então intransponível. Os beijos já não a incomodavam, entretanto, sua moral a impedia de avançar na relação, sobretudo considerando que, minutos antes, Ann havia recebido uma proposta de casamento de Lister.12 Tal diálogo que precede a relação sexual confere certa concretude ao que significaria, àquela época, envolver-se em um relacionamento homossexual. Dois pilares constitutivos do gênero feminino: o marido e as/os filhas/os, os quais concediam à mulher, sobretudo branca, certo status social relativo à pureza e aos bons costumes, precisariam ser abdicados. Para Lugones (1994, p.460), pureza e impureza são as motrizes do ato de controlar. Controla-se em busca da pureza. “Controle ao invés de criatividade”, denuncia a autora. Por isso, Ann precisa ser controlada: aos 29 anos, não ter contraído matrimônio ou haver demonstrado interesse em destinar sua vida à maternidade a tornam um corpo demasiadamente criativo, ou seja, impuro aos olhos sociais da época. Enquanto mulher branca, Ann precisa zelar por uma pureza própria, não apenas da raça que a interpela, mas do gênero que a convoca.
Provavelmente é por isso que Ann, apesar de reafirmar que casamento não compõe sua lista de desejos e, diante da revelada falta de inclinação à maternidade, pondera, dessa vez, que não está preparada para desistir definitivamente da ideia de ser mãe. A personagem, pois, negocia: pede seis meses para responder ao pedido de casamento de Lister. A agonística que se produz entre desejo/impureza e poder/controle, entre expropriar-se de si e fazer-se sujeita de uma lógica que lhe proporcionaria status social, até então não a havia impedido de movimentar-se em sua relação com Lister. É, no entanto, logo após esse diálogo, no qual as duas direcionam seus afetos para o sexo, que Ann paralisa.
A jornada de Ann é exaustiva. Ao entregar-se ao desejo, vê-se constantemente sem referentes. Desapropria-se de si e, com isso, desterritorializa-se. Explora outros territórios, contudo, parece estar caminhando à noite com uma lanterna de luz muito branda, pois, a cada novo aspecto de sua relação, a cada novo território, precisa vagarosamente negociar limites. Até onde pode ir, sem abrir mão de sua pureza feminina, de sua ascensão social, das expectativas e privilégios de seu corpo branco e abastado, de sua castidade? Agarrar-se à maternidade, nesse jogo de negociações, mantém Ann comprometida com parte das expectativas constitutivas de uma aristocrata. Ainda que ser mãe pressupunha, nesses termos, compor uma relação heterossexual, Ann logra, por meio dela, forjar também um escape: casar-se, não por desejar um homem, mas por desejar, talvez em alguma medida, ser mãe. Ann já não se engana, já não tenta encontrar formas de amar que não sejam direcionadas àquela que deseja.
É por isso que Deleuze e Guattari (1995) são tão críticos aos modos dicotômicos do olhar. Principalmente quando o enfoque é direcionado para as microfísicas, concebê-las como produto de um processo que não é apenas sócio-histórico-cultural, mas também de movimento, de re/desterritorializações, enseja uma compreensão mais complexa de tais relações, assim como revela que viver e relacionar-se é estar, invariavelmente, a perigo de devir e, simultaneamente, de organizar-se; é estar a perigo de constituir-se de forma harmônica e, ao mesmo tempo, refratária às expectativas sociais.
No caso da proposta de casamento, a possibilidade de um relacionamento homossexual promove a desestruturação de uma importante inteligibilidade. No entanto, a condição racial e econômica de ambas possibilita a ousadia de estabelecer uma outra união: morarem juntas, compondo uma família secreta e que, aos olhos dos outros, ganhará inteligibilidades outras: irmãs, amigas, companheiras. Jamais cônjuges (talvez amantes), jamais dignas dessa inteligibilidade, porém, juntas. Esses são os arranjos-efeito das negociações entre desejo e expectativas de gênero, sexualidade, classe social e raça. Pureza e impureza, controle e criatividade, em constante tensão.
4 Desejar como condição para a formação do si
Poderia expropriar-se de si compor a constituição de uma subjetividade outra? Tendo esse questionamento como motriz, evoco dois momentos da narrativa na qual Ann divide com Lister situações de abuso a que aquela é exposta, relacionadas diretamente com as cenas anteriormente analisadas. Uma delas, já mencionada neste texto, ocorre quando Ann interage com o médico da família. A outra, descrevo a seguir.
Dentro do marco linear da narrativa, o segundo episódio de abuso - que, na história da trama, é anterior ao seu início - é relembrado após o pedido de casamento de Lister. A protagonista, ao visitar sua amada, depara-se com Ann agachada em um canto da sala, aos prantos.13 Lister pergunta, preocupada, o que houve. Ann exclama: “Depois de ontem à noite pensei que você não iria voltar [...] depois de ontem à noite, porque eu não lhe dei o que você queria”. Na noite anterior, Ann decidira que não estava pronta para transar com Lister, e as duas imediatamente interromperam o ato. No entanto, no dia seguinte, Ann compreende sua hesitação às investidas de Lister como motivo suficiente para a protagonista desistir dela. Não parece capaz de perceber o lugar que ocupa e o poder que suas vontades e limites possuem, nesse arranjo romântico - e os motivos tornam-se mais nítidos, a partir do momento em que recebe uma outra proposta de casamento, dessa vez de um homem.
Mais precisamente, a personagem recebe uma carta de Thomas Ainsworth, um aspirante a reverendo, cuja esposa, amiga de Ann, havia falecido recentemente14. Ann explica a Lister que, na carta, estão explícitas as intenções matrimoniais de Thomas. Lister, consternada, pondera que o pedido de casamento de um reverendo não é qualquer coisa. Ann a interrompe, exclamando: “Eu não quero casar com ele! Eu quero ficar com você”, mas, quando Lister pergunta: “Então?”, Ann paralisa, olha para os lados, como se não conseguisse falar. Lister, mais uma vez, pondera, dizendo que Ann tem a chance de ser esposa de um reverendo, mãe e avó, e completa, com desespero, tristeza e sarcasmo na voz: “E, então, você terá cumprido seu destino no planeta como mulher”.
Nesse momento, o encontro entre Lister e Ann expõe parte importante da tensão que se estabelece entre paixão e expectativas de gênero, sexualidade, raça e classe social. Lister evidencia tudo a que Ann terá acesso, caso se conforme com um casamento heterossexual; Ann, por sua vez, qualifica sua aliança com Lister, ao anunciar que sua paixão é suficiente para colocá-la em relação de tensão com tais expectativas. Ann anuncia que, ao desejar Lister, deseja a própria expropriação de si: mais do que nunca, não lhe basta o “destino” feminino, heterossexual e materno; mais do que nunca, não está disposta a assujeitar-se a tais limitações que, via de regra, compõem a própria inteligibilidade de uma mulher branca e aristocrata, no século referido. Entretanto, como veremos, desejar estar com Lister não é o único elemento que opera aqui o processo do desejo.
Ao ser confrontada por Lister, Ann revela uma parte da história que havia escondido de sua amada.15 Afirma que, se aceitasse casar-se com Thomas, seria por obrigação, e quando Lister exige que Ann se explique, ela, em prantos, confessa: “Quando eu lhe disser a verdade, você não vai querer continuar comigo”. Ann, então, conta sobre seu passado com Thomas, explicando que, quando sua esposa se retirava do recinto, ele a assediava e, por vezes, abusava dela, e que, apesar de detestar as investidas de Thomas, não sabia como dizer “não”. É nesse ponto que Ann, chorando compulsivamente, pergunta: “Isso não me obriga moralmente a aceitar o pedido de casamento?” Ao final, a personagem assume: “Eu sei que você deve pensar que sou fraca, estúpida. Mas se eu tivesse alguém como você na minha vida, isso não teria acontecido, porque eu teria alguém com quem conversar, para contar, alguém que iria me ajudar”.
Em sua análise do conto “Billy Bud”, Sedgwick (1990, p. 110, tradução minha) evoca a provocação que Catherine MacKinnon faz à associação dicotômica do feminino ao espaço privado, ao ressaltar: “[...] privacidade é tudo que às mulheres nunca foi permitido ter ou ser [...]16”. A que privacidade Ann tem direito? O desespero da personagem com a possibilidade de rejeição, por parte de Lister, torna-se compreensível, quando ela confessa os abusos de um homem que agora a pede em casamento. Ann revela um dos efeitos mais violentos da constituição da feminilidade e da heterossexualidade, ao assumir que não sabia como recusar as violações de Thomas.
Aqui, a colonialidade de gênero opera, pressupondo a invasão, subjugação e desumanização de uma pessoa em função do seu gênero. Ann, enquanto mulher, é privada de sua individualidade, sendo destituída de sua qualidade de humana e, portanto, indigna de voz e poder de decisão sobre seu corpo. E, de fato, tal colonialidade é operada sobre um corpo (des)racializado enquanto branco. Lugones (2007) explica que colonialidade não pode ser reduzida ao processo de racialização que inferioriza existências em detrimento de outras, uma vez que aquela opera também como um dos eixos constitutivos do controle sobre as sexualidades e as subjetividades. É, por conseguinte, pelo gênero que Thomas entende poder abusar sexualmente de Ann17. No entanto, é por sua raça que ele assume poder invadi-la mais uma vez; agora, pela via do matrimônio.
Como efeito, pôr-se refratária às violências desse homem seria pôr-se refratária a sua existência enquanto mulher branca e heterossexual, considerando-se a época em questão. Seria, de certa forma, clamar para si a impureza de que trata Lugones (1994), assumir a forma de um corpo (cri)ativo, porque divergente das violências de gênero e sexualidade. Ann, no entanto, é incapaz de o fazer. No frame que compõe a Figura 3, encontramos uma Ann paralisada. Ann, entre dois móveis (uma cadeira e uma mesa), é tornada quase que um objeto. Esconde-se entre os móveis, mas, mais do que isso, emula um, porque, no ápice de sua complacência e pureza, destitui-se de sua própria humanidade. Esse destituir-se, no entanto, não abre espaço para um pacto com a demônia, ou para a formação de um híbrido animal; é, antes, uma pureza-esvaziamento.
Após conhecer e relacionar-se com Lister, Ann encontra meios para rechaçar as investidas de Thomas, embora se sinta culpada. Ann, ao desejar outra mulher, enseja uma outra relação consigo mesma. Explorar essa paixão, órfã de referentes, permite que Ann tensione os limites da feminilidade diante de uma nova forma material de seu desejo. Como efeito, é perturbada a conexão entre feminilidade, heterossexualidade, branquitude e subalternidade. Enquanto Ann e Lister se relacionam, o desejo emerge de maneira mútua e, justamente por isso, produz uma Ann mais autônoma, pois a personagem decide que, mesmo querendo estar com Lister, há limites que para ela ainda são intransponíveis, como o sexo. Seu receio passa a ser, ambivalentemente, efeito de expectativas sociais que produzem limites ao seu desejo por Lister e produto de um desejo que a desapropria de si mesma, possibilitando que Ann ascenda da condição de mulher submissa e determine limites. Ann, enquanto corpo-encenado, encontra-se tão fragilizada quanto fortalecida.
Considerações Finais
O presente artigo assumiu o potencial político e produtivo da imagem (Fischer, 2001; Fischer; Marcello, 2011; Esquenazi, 2011), a fim de discutir questões relativas a gênero, sexualidade e marcadores raciais. As imagens que inspiraram e, portanto, operaram como motriz das discussões compõem a primeira temporada da narrativa seriada Gentleman Jack.
A partir das cenas analisadas, foi possível tecer relações com os escritos de Deleuze, em parceria com Guattari (1995, 1997) e Parnet (1998) sobre desejo, pacto e devir, e com a teoria de Lugones (1994, 2007, 2014), no que diz respeito à colonialidade de gênero e às relações entre pureza e criatividade. Tais operações possibilitaram reflexões sobre os limites e os atravessamentos de gênero e sexualidade, com base em uma personagem branca, lésbica e aristocrata, contemporânea do século XIX.
Mais precisamente, Ann e seu desejo por Lister possibilitaram vislumbrar uma espécie de desterritorialização, na sua trajetória; primeiramente, convidada a estabelecer um pacto com a demônia, na forma de Lister, e, desde tal pacto, expropriar-se de si - movimento que, nesta análise, tomou a forma da expropriação de expectativas sociais de gênero e sexualidade -, para então se constituir em constante relação de tensão e apropriação com tais marcadores. Sua condição de mulher branca e aristocrata ensejou à personagem negociar limites, ao mesmo tempo que definiu um só destino como possibilidade: o matrimônio e a maternidade. Ann, consequentemente, e por meio de seu desejo, forjou para si um outro território, apropriada de um si resistente, renitente e desejante.
Importante frisar que, considerando o potencial político e social da imagem, somado a uma concepção sócio-histórico-cultural de gênero, sexualidade e raça, as operações teórico-analíticas desenvolvidas aqui permitiram elaborar para além de Ann, uma vez que implicaram reflexões sobre as amarras do gênero e da sexualidade sobre corpos constituídos como brancos, femininos e, também, heterossexuais - embora em um contexto temporal específico, o qual, apesar de datado, se mostra suficientemente ancorado em questões atuais.
Ao assumir uma postura paranoica à estratégia paranoica, busquei aqui dar forma às ambivalências, àquilo que foge às amarras da restrição teórica prescritiva. Outras formas de leitura, portanto, podem resultar em visões distintas da personagem e de sua relação com os marcadores aqui elencados. Ainda, é preciso admitir que, considerando o curto espaço de um artigo, foi preciso abdicar de determinadas discussões que se apresentaram como profícuas, mas que se distanciaram do escopo do texto, em alguma medida. A esse respeito, destaco as dicotomias que se formaram entre as personagens Ann e Lister, como o tempo de tela de Ann vinculado ao espaço privado, enquanto Lister circula, na trama, por diversos espaços públicos. Tal dicotomia se torna ainda mais instigante, na medida em que Ann é privada do espaço público justamente por suas “enfermidades”.
Por meio do desejo, Ann vislumbrou outras possibilidades de existência. Se uma das condições para o desejo deleuzo-parnetiano é estar privada/o de dizer “eu”, Ann esteve, portanto, completamente submersa nesse desejo. Não apenas porque, em função dele, se fez refratária a uma série de severas expectativas sociais e institucionais, mas porque, antes mesmo de desejar sua amada, Ann já se encontrava expropriada de si: severamente vigiada, pôs-se elisiva a sua própria existência. Como doente e “inválida”, operou o próprio abandono de si, à espera de uma força motriz: o desejo que a fez insurgir em devir.
Referências
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- DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia - v. 4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: 34, 1997.
- DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998.
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GENTLEMAN Jack: 1a temporada. Direção: Sally Wainwright, Sarah Harding e Jennifer Perrott. Roteiro: Sally Wainwright. Elenco: Sophie Rundle; Suranne Jones. Reino Unido: HBO, 2019. 8 Episódios (480 minutos). Disponível em: Disponível em: https://play.max.com/show/e161e395-1b7a-409d-898d-6659f964a7d9 Acesso em: 21 nov. 2024.
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2
No original, what does knowledge do?
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3
No original, there must be no bad surprises.
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4
Assumo a flexão de gênero por associar aqui a demônia à figura de Lister, compondo esforço no sentido de resistir ao teor masculinista da língua e, mais precisamente, dos conceitos com os quais aqui opero.
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5
A partir dos 6’ do segundo episódio da primeira temporada.
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6
Injúria utilizada, à época, para falar do ato afetivo e/ou sexual homossexual.
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7
Acontecimento que ocorre aos 59’ do sétimo episódio da primeira temporada.
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8
No original, staged body.
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9
No original, homossexual-homophobic knowing.
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10
Aos 28’ do segundo episódio da primeira temporada.
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11
Aos 41’ do terceiro episódio da primeira temporada.
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12
Aos 38’ do terceiro episódio da primeira temporada.
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13
Aos 49’ do terceiro episódio da primeira temporada.
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14
Aos 30’ do quarto episódio da primeira temporada.
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15
Aos 51’ do quarto episódio da primeira temporada.
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16
No original, Privacy is everything women as women have never been allowed to be or have.
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17
Frase propositalmente ambígua, uma vez que aqui também é importante assumir uma outra ressalva: se Ann é destituída de sua humanidade, com base no entendimento que é produzido sobre seu gênero, Thomas é quem a destitui, quem a invade e quem opera sobre Ann os efeitos da colonialidade de gênero. Consequentemente, essa operação se dá não apenas porque Ann foi socializada como mulher, todavia, sobretudo porque Thomas foi socializado como homem, isto é, pelo gênero de Thomas.