RESUMO.
Desde os anos 1980, reconhecem-se como partes constitutivas da tecnologia e do seu desenvolvimento o conhecimento técnico-científico e os valores instrumentais e cognitivos que balizam tal conhecimento, bem como valores ético-políticos. No entanto, segue grandemente negligenciada ou desconhecida uma quarta categoria de elementos que incidem no projeto: acervos imagéticos, valores estéticos e procedimentos estruturados. A desconsideração desses elementos impõe limites ao desenvolvimento técnico possível. Neste artigo, serão apresentados essa quarta categoria de elementos, o impacto dela sobre a prática projetiva e as soluções sociotécnicas construídas, e uma forma de pluralizar seus conteúdos. Será exposto também um esboço de duas das abordagens mais exitosas para a democratização do desenvolvimento técnico. A partir disso, serão discutidos: alguns limites e potencialidades da democratização da tecnologia; uma atualização de parte da compreensão simondoniana de desenvolvimento técnico; a necessidade teórica e prática de se descolonizar (ou seguir descolonizando) a filosofia da tecnologia.
Palavras-chave:
Valores estéticos; Acervos imagéticos; Procedimentos estruturados; Democratização; Descolonização
ABSTRACT:
Since the 1980s, technical-scientific knowledge, instrumental and cognitive values as well as ethical-political values are acknowledged as constitutive parts of technology and its development. However, a fourth category of elements that shapes design continues to be largely neglected or unknown: image collections, aesthetical values, and structured procedures. Disregarding such elements impose limits on the technical development. In this manuscript, I present this fourth category elements, its impact on the designing practice, and a way of pluralizing its contents. I also sketch two of the most successful approaches for democratizing the technical development. Then, I discuss: some limits and potentialities of democratizing technology; an actualization of part of Simondon’s understanding of technical development; the theoretical and practical necessity of decolonizing (or continuing the decolonization of) the philosophy of technology.
Keywords:
Aesthetic Values; Image Collections; Structured Procedures; Democratization; Decolonization
Introdução
Desde a década de 1980, estudos sociológicos, históricos e filosóficos vêm revelando a tecnologia, em sua forma material ou imaterial, como construção para a qual são insuficientes valores instrumentais (como eficiência, eficácia, robustez, durabilidade etc.) e cognitivos (como precisão, capacidade preditiva, coerência, consistência etc.). Com efeito, considerando-se apenas tais valores, seria impossível proceder-se à escolha da solução técnica final, dentre as múltiplas opções disponíveis ou passíveis de serem desenvolvidas para ela. Essa multiplicidade é chamada de subdeterminação da solução pelo problema e pelos dados iniciais. Ela só pode ser superada, e uma solução escolhida, por meio da intervenção, no desenvolvimento tecnológico, de valores ético-políticos (como controle/dominação, empoderamento, lucro, bem comum, hierarquização etc.). É esse mesmo tipo de intervenção ou conformação que explicará, igualmente, muito do desenvolvimento e das modificações por que um produto técnico passará, depois de criado (WINNER, 2017WINNER, L. Artefatos têm política? Analytica, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 195-218, 2017 [1986]. [1986]; PINCH; BIJKER, 1989PINCH, T.; BIJKER, W. The social construction of facts and artifacts: or how sociology of science and the sociology of technology might benefit each other. In: BIJKER, W.; HUGHES, T.; PINCH, T. The social construction of technological systems: New directions in the sociology and history of technology. Cambridge, Mass.: MIT Press , 1989.; FEENBERG, 2019aFEENBERG, A. Entre a razão e a experiência: ensaios sobre tecnologia e modernidade [2010]. Tradução de E. Beira, C. Cruz e R. Neder. Vila Nova de Gaia: Inovatec, 2019a. [2010]).
Porque incorpora valores ético-políticos em sua constituição e porque, uma vez que essa tecnologia é colocada em uso, tais valores são reforçados ou emulados socialmente, entende-se: 1) que sociedade e tecnologia se conformam mutuamente, constituindo partes inseparáveis de uma realidade sociotécnica una (DAGNINO et al., 2004DAGNINO, R.; BRANDÃO, F.; NOVAES, H. Sobre o marco analítico-conceitual da tecnologia social. In: LASSANCE JÚNIOR, A. E. et al. (ed.). Tecnologia social: uma estratégia para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Banco do Brasil, 2004. p. 15-64., p. 22-23); 2) que a tecnologia legisla sobre o mundo da vida, sendo, por vezes, mais rigorosa e eficaz na conformação do nosso comportamento e do funcionamento da sociedade, do que as leis que o Legislativo cria (LATOUR, 1992LATOUR, B. Where are the missing masses? The sociology of a few mundane artifacts. In: BIJKER, W.; LAW, J. (ed.). Shaping Technology/Building Society: Studies in Sociotechnical Change. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1992. p. 225-258.).
O que a compreensão mais recente sobre a tecnologia nos revela, assim, é que o seu desenvolvimento não é regido por uma racionalidade instrumental (HORKHEIMER; ADORNO, 2002HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. Dialectic of enlightenment. Tradução de Edmund Jephcott. Stanford: Stanford University Press, 2002 [1944]. [1944]) ou tecnológica (MARCUSE, 2002MARCUSE, H. One-Dimensional Man [1964]. London & New York: Routledge , 2002. [1964]) puras, nem é tocado de forma autônoma e autorreferenciada (ELLUL, 2008ELLUL, J. La technique ou l’enjeu du siècle [1954]. Paris: Économica, 2008. [1954], 2012ELLUL, J. Le systhème technicien [1977]. Paris: Cherche Midi, 2012. [1977]). Tampouco, a tecnologia nos aprisionaria ontologicamente em uma dispensação singular do Ser, reduzindo-nos a uma existência inautêntica (HEIDEGGER, 1977HEIDEGGER, M. The question concerning technology [1955]. Trans. William Lovitt. NY & London: Garland, 1977. [1955], 1998HEIDEGGER, M. Traditional Language and Technological Language [1962]. Trans. Wanda T. Gregory. Journal of Philosophical Research, v. 23, p. 130-145, 1998. [1962]). Presidiria, ao contrário, ao seu desenvolvimento, uma racionalidade sociotécnica (FEENBERG, 2019bFEENBERG, A. Tecnossistema: a vida social da razão [2017]. Tradução de E. Beira, C. Cruz. Vila Nova de Gaia: Inovatec , 2019b. [2017]), de sorte que tal processo se constituiria, pela própria natureza da tecnologia, em uma agora, em um espaço público de luta em torno ao ideário ético-político que democraticamente pudéssemos querer como conformador da tecnologia e, nisso, da nossa vida em comum.
Não obstante, embora esse entendimento seja bastante defensável e conte, inclusive, com inúmeros exemplos empíricos a corroborá-lo, tal descrição do fenômeno sociotécnico ainda é imprecisa. Essa imprecisão, associada com um apartamento por vezes excessivo - e superável - entre a reflexão filosófica sobre a tecnologia e a manifestação empírica desta, traz limites, por um lado, para algumas reflexões relativas à democratização do desenvolvimento tecnológico, relativos, aqui, às condições para, e aos limites efetivos de, um tal processo. Por outro lado, essa situação demanda também que compreensões filosóficas poderosas sobre a tecnologia, como as do pensador francês Gilbert Simondon, sejam matizadas, de modo que não sejam tomadas como fundamentos para reflexões ou argumentos já superados.
Nesse sentido, naquilo que se segue, buscar-se-á apresentar não apenas práticas correntemente bem avançadas de democratização do desenvolvimento tecnológico - já bem conhecidas e documentadas - (parte 2), sobretudo em relação a trabalhos desenvolvidos em algumas engenharias, quanto a amplamente desconsiderada dimensão poiético-criativa do projeto técnico, na qual uma quarta categoria de elementos, os quais não são instrumentais, cognitivos ou ético-políticos, desempenha papel central (parte 3).
Com isso, ao lado de se prover uma caracterização empiricamente mais acurada de parte daquilo que constitui o fenômeno tecnológico, procurar-se-á apresentar ponderações concernentes à democratização do desenvolvimento tecnológico e ao aparente “purismo axiológico” do desenvolvimento técnico autêntico de Simondon (parte 4). Por fim, nas considerações finais, será apontado um possível caminho para lidarmos não somente com as questões trabalhadas na parte 4, mas com o alargamento da reflexão filosófica da tecnologia em geral, o da descolonização.
1 Projetos emancipadores
Democratizar o desenvolvimento tecnológico significa, em uma primeira aproximação, incorporar ou considerar, no/ao projeto técnico,2 2 Manteremos “projeto”, em lugar de “design”, por conta de ser essa a preferência majoritária para a tradução do termo nos manuais de engenharia (Pahl et al. (2005); Dym e Little (2010)). Como se está procurando refletir a tecnologia aqui também em diálogo com a engenharia, não parece razoável adotar uma terminologia que, além de anglicista, não encontra referente efetivo na prática que almeja analisar. os valores ético-políticos de futuros usuários, consumidores e demais atores direta ou indiretamente afetados pela solução que se irá construir. Historicamente, tal coisa tem lugar pela primeira vez, de forma mais sistemática, consciente e consistente, com as iniciativas de informatização dos espaços de trabalho na Escandinávia fortemente sindicalizada da década de 1970 (ROBERTSON; SIMONSEN, 2013ROBERTSON, T.; SIMONSEN, J. Participatory Design - An introduction. In: SIMONSEN, J.; ROBERTSON, T. (ed.) Routledge International Handbook on Participatory Design. London & New York: Routledge , 2013. p. 1-17.). Desde esse período, a assim chamada prática de projetos participativos diversificou-se e se consolidou grandemente, contando com metodologias e procedimentos bem desenvolvidos, com aplicação nos mais variados espaços sociais (para além do laboral) e em diversas áreas técnicas, e com usos tanto socialmente emancipadores quanto mais mercadologicamente orientados (VAN DER VELDEN; MÖRTBERG, 2015VAN DER VELDEN, M.; MÖRTBERG, C. Participatory Design and Design for Values. In: VAN DEN HOVEN, J.; VERMAAS, P.; VAN DE POEL, I. (ed.). Handbook of Ethics, Values, and Technological Design. Dordrecht: Springer , 2015. p. 41-66.; BANNON; EHN, 2013BANNON, L.; EHN, P. Design: Design Matters in Participatory Design. In: SIMONSEN, J. & ROBERTSON, T. (ed.) Routledge International Handbook on Participatory Design. London & New York: Routledge , 2013. p. 37-63.; ROBERTSON; SIMONSEN, 2013ROBERTSON, T.; SIMONSEN, J. Participatory Design - An introduction. In: SIMONSEN, J.; ROBERTSON, T. (ed.) Routledge International Handbook on Participatory Design. London & New York: Routledge , 2013. p. 1-17.; VAN DE POEL, 2015VAN DE POEL, I. Design for Values in Engineering. In: VAN DEN HOVEN, J.; VERMAAS, P.; VAN DE POEL, I. (ed.). Handbook of Ethics, Values, and Technological Design. Dordrecht: Springer, 2015. p. 667-90.).
O maior potencial democratizante, de todo modo, é alcançado pelos projetos participativos de vertente emancipadora.3 3 A rigor, a democratização defendida por Feenberg (1999) é um processo que pressupõe e que implica, da parte de quem luta por ela, aumento de conscientização, empoderamento ou emancipação, na maneira como esses termos são entendidos por Paulo Freire (1987 [1970]; FREIRE; SHOR, 1986). Freire (1983 [1969]), aliás, defende que a assistência técnica seja oportunidade de se praticar educação popular (ainda que sua compreensão de tecnologia pareça aproximar-se, como não poderia ser muito diferente nessa época, de uma perspectiva instrumental). Isso se deve ao fato de, apenas neles, futuros usuários e demais atores concernidos - os coprojetistas - poderem tomar parte em todas as etapas do projeto4 4 Como se apresentará com mais detalhes na terceira parte deste artigo, o projeto técnico é constituído por várias etapas que costumam ser seguidas de forma iterativa e não linear: análise e formulação do problema; projeto conceitual; escolha da solução conceitual que será implementada; implementação dessa solução; projeto detalhado para se construir essa solução. (excetuando-se, via de regra, a etapa de implementação da solução conceitual escolhida) (IVERSEN et al., 2012IVERSEN, O.; HALSKOVA, K.; LEONG, T. Values-led participatory design. CoDesign, v. 8, n. 2-3, p. 87-103, 2012.; VAN DER VELDEN; MÖRTBERG, 2015VAN DER VELDEN, M.; MÖRTBERG, C. Participatory Design and Design for Values. In: VAN DEN HOVEN, J.; VERMAAS, P.; VAN DE POEL, I. (ed.). Handbook of Ethics, Values, and Technological Design. Dordrecht: Springer , 2015. p. 41-66.). Tal coisa assegura aos coprojetistas espaço não só para terem suas demandas e seus valores apreendidos pelos projetistas (i.e., equipe técnica) e incorporados à solução técnica que se irá construir, como também para antever eventuais efeitos colaterais não desejáveis dela e, também a partir disso, alterar o projeto e a ordem sociotécnica que tal solução em projeto tenderá a construir ou reforçar.
Na América Latina, abordagens técnicas emancipadoras ganham força sobretudo a partir da década de 1990, com o surgimento da tecnologia social (TS). Uma genealogia da TS, porém, não encontrará as suas raízes nos projetos participativos escandinavos, mas no encontro do movimento da tecnologia apropriada com práticas e ideários libertadores do continente (THOMAS, 2009THOMAS, H. De las tecnologías apropiadas a las tecnologías sociales. Conceptos/estrategias/diseños/acciones. In: PRIMERAS JORNADAS DE TECNOLOGÍAS SOCIALES. Programa Consejo de la Demanda de Actores Sociales - MINCyT. Buenos Aires, 14 maio 2009.). É nesse sentido que a TS abandonará a perspectiva acrítica, de mero barateamento de tecnologias consolidadas nos países centrais e conformadora de um ordenamento sociotécnico muito afinado com a ordem capitalista hegemônica da tecnologia apropriada, substituindo-a por projetos tecnológicos que buscam incorporar os saberes dos grupos locais e ser mediação para a emancipação desses grupos (THOMAS, 2009THOMAS, H. De las tecnologías apropiadas a las tecnologías sociales. Conceptos/estrategias/diseños/acciones. In: PRIMERAS JORNADAS DE TECNOLOGÍAS SOCIALES. Programa Consejo de la Demanda de Actores Sociales - MINCyT. Buenos Aires, 14 maio 2009.). Dessa maneira, tais soluções se pretendem também espaço para se sonharem outros mundos possíveis e, a partir disso, coconstruí-los.
Uma das formas como os projetos de TS são atualmente construídos, no Brasil, é a engenharia popular (EP). Ela começa a se constituir a partir de meados da década de 2000, caracterizando-se por diferentes metodologias que lançam mão, via de regra, de pesquisa-ação, educação popular e ferramentais outros, como a ergonomia da atividade (CRUZ, 2020CRUZ, C. Assessing Grassroots Engineering Applications in Brazil. In: ASEE VIRTUAL ANNUAL CONFERENCE CONTENT ACCESS, Virtual Online, 2020. Disponível em: Disponível em: https://peer.asee.org/34176 . Acesso em: 15 nov. 2020.
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). A EP é, além disso, fortemente tributária dos ideais da economia solidária, sendo majoritariamente praticada a partir da extensão universitária (FRAGA et al. 2020FRAGA, L.; ALVEAR, C.; CRUZ, C. Na trilha da contra-hegemonia da engenharia no Brasil: da Engenharia e Desenvolvimento Social à Engenharia Popular. Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnología y Sociedad - CTS, v. 14, n. 43, 2020 (no prelo).).
Tomados comparativamente, os projetos participativos emancipadores e a EP partilham de um mesmo ideário comum, o qual é o do empoderamento dos coprojetistas e o da construção de outra ordem sociotécnica possível, que seja menos opressora, menos injusta e mais sustentável ecologicamente. Os referenciais teóricos e as metodologias desenvolvidas em cada caso, por outro lado, podem variar em maior ou menor grau. Além disso, por conta dos grupos com os quais tende a trabalhar mais frequentemente e à filiação à tradição crítica latino-americana, a EP dá especial atenção aos saberes desses grupos e às suas cosmovisões. Ela busca, com isso, escutar e trabalhar tais elementos, por meio da educação popular, incorporando-os às soluções sociotécnicas construídas e ao seu próprio modo de atuar. Nesse sentido, a EP se pretende também uma prática de projeto tecnológico que é coconstruída, em parte ao menos, com grupos populares com os quais ela atua.
2 Acervos imagéticos, valores estéticos e procedimentos estruturados
Se a incidência de valores ético-políticos nos projetos técnicos é já bem conhecida, assim como são bem documentadas as abordagens democratizantes desse processo, pouco ou nada existe de forma mais sistematizada sobre a incidência de um quarto tipo de elementos no projeto, os quais não são instrumentais, cognitivos ou ético-políticos: valores estéticos, acervos imagéticos e procedimentos estruturados. E, por essa razão, metodologias para a pluralização deles no projeto técnico são praticamente inexistentes ou não têm esse potencial de pluralização identificado ou valorizado como tal.
A incidência dessa quarta categoria de elementos não costuma se dar nas mesmas etapas em que os valores ético-políticos impactam e conformam o projeto. Assumindo-se, como o sustenta Van de Poel (2009VAN DE POEL, I. Values in Engineering Design. In: MEIJERS, A. (ed.). Philosophy of technology and engineering science. Amsterdam: Elsevier B. V. , 2009. p. 973-1006., p. 985), que os projetos técnicos tenham cinco estágios principais (que são percorridos de maneira usualmente iterativa e não linear, afetando-se e interpenetrando-se reciprocamente), tais estágios ou etapas podem ser assim definidos:5 5 A rigor, segundo o modo que se busca ou se assume como ideal na engenharia, atualmente, ao longo dessas etapas, devem ser consideradas, adicionalmente, questões relativas também à fabricação da solução construída (quando se trata de algo a ser produzido em massa), à manutenção desta e, no caso de objetos materiais, à destinação adequada tanto dos rejeitos do processo projetivo/produtivo quanto do artefato produzido, quando do descarte deste pelo usuário/consumidor (PAHL et al., 2005; DYM; LITTLE, 2010).
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Análise e formulação do problema, incluindo a formulação dos requisitos do projeto e o plano do projeto e do desenvolvimento do produto, sistema ou serviço;
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Projeto conceitual, englobando a criação de soluções conceituais alternativas para o problema do projeto, bem como uma possível reformulação do problema;
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Escolha, dentro do conjunto das soluções conceituais desenvolvidas, daquela que será implementada;
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Desenvolvimento da solução escolhida em termos estruturais, materiais e/ou procedimentais;
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Projeto detalhado, isto é, redação de todas as informações e orientações necessárias para que a solução possa ser produzida ou implementada comercialmente (em massa).
Assim, não é difícil perceber que os valores ético-políticos têm particular relevância nos estágios um e três (VAN DE POEL, 2009VAN DE POEL, I. Values in Engineering Design. In: MEIJERS, A. (ed.). Philosophy of technology and engineering science. Amsterdam: Elsevier B. V. , 2009. p. 973-1006., p. 986). De sua parte, como se depreenderá do que se desenvolverá nas próximas páginas, valores estéticos, procedimentos estruturados e acervos imagéticos atuam, sobretudo, ainda que não exclusivamente, nas etapas dois e quatro.
A conjugação dos valores estéticos com o acervo imagético (válido, como se verá, principalmente para soluções técnicas materiais) caracteriza uma dimensão inevitável da prática projetiva, dimensão que, nos termos de Eugene Ferguson (1992FERGUSON, E. Engineering and the mind’s eyes. Cambridge: The MIT Press, 1992.), constitui a arte da engenharia. A conjugação desses dois elementos com procedimentos estruturados leva à constituição de estilos de projeto, os quais, em uma mesma área técnica, poderão se prestar melhor, cada qual, a classes específicas de soluções, funcionalidades e/ou valores ético-políticos.
Com isso, ao não se considerar e tratar de forma apropriada essa quarta categoria de elementos que incidem no projeto, não somente possíveis novas funcionalidades ou aprimoramentos em funcionalidades existentes podem ficar bloqueados, como também implementações eventualmente interessantes para articulações de valores ético-políticos que se estejam procurando avançar sociotecnicamente podem permanecer não concebíveis ou implementáveis.
Nas próximas páginas, será desenvolvida a reflexão sobre o impacto desses elementos no projeto técnico do modo mais completo possível para o espaço que temos aqui disponível. Seguiremos, para tanto, em diálogo com Eugene Ferguson e Walter Vincenti, complementado por contribuições mais pontuais de outros autores. Na sequência, será apresentado um caminho metodológico possível, para se alcançar essa pluralização de estilos aqui defendida.
2.1 Instrumentalidades do projecto e pluralização
Acervos imagéticos, valores estéticos e procedimentos estruturados constituem parte do conteúdo de três tipos de conhecimento que Vincenti (1990VINCENTI, W. What engineers know and how they know it. London: The John Hopkins University Press, 1990.) identifica como demandados nos projetos de engenharia, os quais ele agrupa em uma categoria a que chama de instrumentalidades do projeto. Trata-se de modos de pensar, habilidades avaliativas e procedimentos estruturados.
Com vistas a construir um projeto, a equipe técnica sempre lança mão de procedimentos estruturados bem conhecidos. É o caso da divisão de um projeto geral (p.e., avião) em suas subpartes (p.e., estrutura, motor e hélice) e destas em suas componentes etc. (VINCENTI, 1990VINCENTI, W. What engineers know and how they know it. London: The John Hopkins University Press, 1990., p. 220). Também é o que acontece quando, diante de funcionalidade(s) e requisitos definidos (estágio um), procede-se aos possíveis projetos conceituais da solução perseguida (estágio dois) e, daí, para a construção material e/ou procedimental dela (estágio quatro) e o detalhamento desse processo de construção (estágio cinco).
Nesse processo, pode-se lançar mão de procedimentos que conduzem: 1) do abstrato (funcionalidade(s) e requisitos) para o detalhe (processo de construção detalhado), seguindo os estágios dois, quatro e cinco descendentemente; 2) do detalhe (solução/ões já existente(s) no mercado) para o detalhe (adaptação dessas soluções para se obter aquilo que se está perseguindo), saltando-se do estágio um para o quatro e, daí, o cinco; ou 3) do detalhe (solução/ões existentes no mercado) para o abstrato (possíveis projetos conceituais inspirados nessas soluções) e deste para o detalhe (processo de construção detalhado da solução obtida), ou seja, tomam-se soluções já existentes como inspiração para o projeto conceitual (estágio dois), seguindo-se descendentemente do estágio quatro para o cinco, a partir daí (SPITAS, 2011aSPITAS, C. Analysis of systematic engineering design paradigms in industrial practice: a survey. Journal of Engineering Design, v. 22, n. 6, p. 427-445, 2011a., p. 430-431, 2011bSPITAS, C. Analysis of systematic engineering design paradigms in industrial practice: scaled experiments. Journal of Engineering Design, v. 22, n. 7, p. 447-465, 2011b., p. 450-453).
Entre os procedimentos estruturados e as habilidades avaliativas, bem menos estruturadas, isto é, menos explícitas ou formalizadas (ou mais tácitas), encontram-se os modos de pensar. Eles se referem, por exemplo, aos modos comuns, partilhados pelos engenheiros, de apreender a operação do dispositivo e imaginar o efeito que alterações em seu projeto poderiam provocar. Outro caso de modo de pensar comum nos projetos de engenharia é, por analogia, partir-se de um tipo particular de pensamento para encontrar conceitos que se adequem à situação em análise (como, por exemplo, tomar os sistemas hidráulicos como análogos aos elétricos que se quer conhecer melhor). Um terceiro modo de pensar é o visual, no sentido daquilo que Ferguson (1992FERGUSON, E. Engineering and the mind’s eyes. Cambridge: The MIT Press, 1992.) afirma que todo projetista extraordinário é invariavelmente um extraordinário pensador visual (VINCENTI, 1990VINCENTI, W. What engineers know and how they know it. London: The John Hopkins University Press, 1990., p. 220-2). É este último que nos interessa, de maneira particular aqui.
Por fim, dentre as instrumentalidades do projeto, temos as habilidades avaliativas, que estão associadas, por exemplo, à percepção e busca por uma solução que seja, de acordo com os valores assumidos, bela, elegante, adequada e/ou etc. “Tais habilidades, do mesmo modo que no pensamento visual, requerem inspiração, imaginação e intuição, assim como um senso de elegância e de estética no projeto técnico.” (VINCENTI, 1990VINCENTI, W. What engineers know and how they know it. London: The John Hopkins University Press, 1990., p. 222).6 6 Aqui e em todas as demais citações apresentadas ao longo do texto, as traduções são de nossa autoria. Por isso, elas são mais tácitas e menos “objetivamente aprendíveis”, demandando, para serem internalizadas, vivência, imersão e abertura da parte dos engenheiros (VINCENTI, 1990VINCENTI, W. What engineers know and how they know it. London: The John Hopkins University Press, 1990., p. 222).
PENSAMENTO IMAGÉTICO. No que concerne à importância das imagens e do pensamento imagético no projeto de soluções técnicas materiais (estágios dois e quatro do projeto), já existe uma ampla bibliografia a fundamentar e ilustrar esse entendimento. De uma forma ou de outra, tende-se a convergir, nesse domínio de pesquisa, para a conclusão de que as imagens (mentais e desenhos) são cruciais para o desenvolvimento de novos artefatos e de parte do conhecimento associado a tais projetos (AMMON, 2017AMMON, S. Image-Based Epistemic Strategies in Modeling: Designing Architecture After the Digital Turn. In: AMMON, S.; CAPDEVILA-WERNING, R. (ed.). The active image: architecture and engineering in the age of modeling. Suíça: Springer International, 2017. p. 177-206.). Com efeito, elas operam tanto como disparador da criatividade e como léxico por meio do qual os projetistas conseguem imaginar, articular e comunicar suas ideias (FERGUSON, 1992FERGUSON, E. Engineering and the mind’s eyes. Cambridge: The MIT Press, 1992.; AMMON; CAPDEVILA-WERNING, 2017AMMON, S.; CAPDEVILA-WERNING, R. (ed.). The active image: architecture and engineering in the age of modeling. Suíça: Springer International , 2017.; GOLDSCHMIDT, 2017GOLDSCHMIDT, G. Manual Sketching: why is it still relevant? In: AMMON, S.; CAPDEVILA-WERNING, R. (ed.). The active image: architecture and engineering in the age of modeling. Suíça: Springer International , 2017. p. 77-97.) quanto como instrumentos para a reflexão e para descobertas relativas ao projeto (AMMON, 2017AMMON, S. Image-Based Epistemic Strategies in Modeling: Designing Architecture After the Digital Turn. In: AMMON, S.; CAPDEVILA-WERNING, R. (ed.). The active image: architecture and engineering in the age of modeling. Suíça: Springer International, 2017. p. 177-206.; GOLDSCHMIDT, 2017GOLDSCHMIDT, G. Manual Sketching: why is it still relevant? In: AMMON, S.; CAPDEVILA-WERNING, R. (ed.). The active image: architecture and engineering in the age of modeling. Suíça: Springer International , 2017. p. 77-97.; SUWA et al., 2000SUWA, T.; GERO, J.; PURCELL, T. Unexpected discoveries and S-invention of design requirements: important vehicles for a design process. Design Studies, v. 21, n. 6, p. 539-567, 2000.; CURRIE, 2003CURRIE, G. Aesthetics and Cognitive Science. In: LEVINSON, J. (ed.). The Oxford Handbook of Aesthetics. Oxford: Oxford University Press, 2003. p. 876-896.).
Nesse sentido, as imagens constituem um acervo sem o qual o projeto não tem como acontecer, e um acervo que, quanto mais extenso, maior plasticidade e criatividade parece facultar ao projetista (FERGUSON, 1992FERGUSON, E. Engineering and the mind’s eyes. Cambridge: The MIT Press, 1992., p. 115-130). De igual modo, quanto mais plural é a estimulação imagética externa a que o projetista se encontra submetido, tanto maior tende a ser a sua possibilidade de conceber uma solução criativa. Tais imagens, com efeito, possibilitam a uma mente treinada obter inspiração para se guiar, no projeto com o qual está envolvida, em meio às escolhas aleatórias que esse processo projetivo (i.e., estágios dois e quatro) traz inevitavelmente consigo (GOLDSCHMIDT, 2017GOLDSCHMIDT, G. Manual Sketching: why is it still relevant? In: AMMON, S.; CAPDEVILA-WERNING, R. (ed.). The active image: architecture and engineering in the age of modeling. Suíça: Springer International , 2017. p. 77-97.).
HABILIDADES AVALIATIVAS. Ao contrário do que somos levados a acreditar por uma certa compreensão sobre os estágios dois e quatro do projeto técnico, há, mesmo neles, mais julgamento - calcado em valores que não são nem instrumentais nem cognitivos - do que verdades/ soluções autoevidentes ou a que se pode chegar, através apenas do conhecimento técnico-científico disponível e/ou dos valores instrumentais e cognitivos que os balizam (FERGUSON, 1992FERGUSON, E. Engineering and the mind’s eyes. Cambridge: The MIT Press, 1992., p. 22). Isso pode ser dito ao menos com respeito ao projeto de uma solução inédita (FERGUSON, 1992FERGUSON, E. Engineering and the mind’s eyes. Cambridge: The MIT Press, 1992., p. 173, 194).
As habilidades avaliativas de Vincenti lidam precisamente com esse tipo de julgamento. Por sua natureza, os valores que as balizam não são cognitivos, instrumentais ou ético-políticos. Schummer e seus coatores (2009SCHUMMER, J.; MACLENNAN, B.; TAYLOR, N. Aesthetic Values in Technology and Engineering Design. In: MEIJERS, A. (ed.). Philosophy of technology and engineering science. Amsterdam: Elsevier B. V., 2009. p. 1031-1068.) chamam-nos de valores estéticos, termo que manteremos. Exemplos desse tipo de valor, ao modo como ele se materializa em práticas projetivas da arquitetura, síntese química e engenharia de software, mas que parecem igualmente aplicáveis às outras áreas técnicas, vão desde a simetria e a simplicidade (ou o rebuscamento) até padrões ou ideais de beleza e harmonia específicos (SCHUMMER et al., 2009SCHUMMER, J.; MACLENNAN, B.; TAYLOR, N. Aesthetic Values in Technology and Engineering Design. In: MEIJERS, A. (ed.). Philosophy of technology and engineering science. Amsterdam: Elsevier B. V., 2009. p. 1031-1068., p. 1032, 1045).
A questão particularmente interessante, com respeito aos valores estéticos a balizarem a prática projetiva, é que, ao mesmo tempo que eles podem ser úteis ou profícuos na concepção e construção de determinados arranjos e funcionalidades, eles podem igualmente interditar outros arranjos ou funcionalidades que poderiam ser acessíveis, caso outros valores estéticos estivessem sendo considerados no projeto (SCHUMMER et al., 2009SCHUMMER, J.; MACLENNAN, B.; TAYLOR, N. Aesthetic Values in Technology and Engineering Design. In: MEIJERS, A. (ed.). Philosophy of technology and engineering science. Amsterdam: Elsevier B. V., 2009. p. 1031-1068., p. 1044-54).
Disso decorre que, assim como no caso do acervo imagético, a pluralização, em uma mesma área técnica, de valores estéticos a conformarem os estágios dois e quatro do projeto, pode implicar a possibilidade de concepção e viabilização de soluções até então inconcebíveis ou inviáveis. E soluções que podem ser de particular importância ético-política (ou econômica).
PROCEDIMENTOS ESTRUTURADOS. Ainda que, como se disse antes, procedimentos estruturados sejam a mais estruturada das três instrumentalidades, isto é, a mais explícita e formalizada (ou a menos tácita), procedimentos distintos para uma mesma atividade ou resultado pretendido podem conduzir a soluções, em alguma medida não desprezível, diferentes. No exemplo apresentado anteriormente, dos tipos de procedimentos possíveis para se caminhar do estágio um (funcionalidade(s) e requisitos) ao cinco (detalhamento do processo de produção da solução final) do projeto, Spitas (2011aSPITAS, C. Analysis of systematic engineering design paradigms in industrial practice: a survey. Journal of Engineering Design, v. 22, n. 6, p. 427-445, 2011a.; 2011bSPITAS, C. Analysis of systematic engineering design paradigms in industrial practice: scaled experiments. Journal of Engineering Design, v. 22, n. 7, p. 447-465, 2011b.) não somente inventariou, de forma não exaustiva, seis procedimentos diferentes para esses três modos de proceder a tal tradução, como identificou no modo “do detalhe para o detalhe” uma impossibilidade quase total de produzir uma solução em alguma medida inédita, ao passo que os outros dois modos tenderiam a favorecê-la, em alguma medida.
Diversidade equivalente de procedimentos, mas com impacto possível não apenas no grau de ineditismo da solução final construída, como também na estruturação da atividade projetiva, é atestada no domínio da engenharia de software, no âmbito das comunidades de projetistas-usuários que se constroem em torno a programas, sistemas e aplicações de código aberto (RIEDER; SCHÄFER, 2008RIEDER, B.; SCHÄFER, M. Beyond Engineering: Software Design as Bridge over the Culture/Technology Dichotomy. In: VERMAAS, P.; KROES, P.; LIGHT, A.; MOORE, S. (ed.). Philosophy and Design: From Engineering to Architecture. Dordrecht: Springer Netherlands, 2008. p. 159-71.). Dentre outras coisas, tais estruturações (ou procedimentos estruturados) evidenciam que “extensões às metodologias clássicas, rotas alternativas, abordagens colaborativas e formas auto-organizadas de fluxo de trabalho são tanto possíveis quanto efetivas.” (RIEDER; SCHÄFER, 2008RIEDER, B.; SCHÄFER, M. Beyond Engineering: Software Design as Bridge over the Culture/Technology Dichotomy. In: VERMAAS, P.; KROES, P.; LIGHT, A.; MOORE, S. (ed.). Philosophy and Design: From Engineering to Architecture. Dordrecht: Springer Netherlands, 2008. p. 159-71., p. 170).
Ao lado disso, a pluralização de procedimentos estruturados tem papel também relevante na constituição de estilos de projeto diferentes em uma área técnica (SCHUMMER et al., 2009SCHUMMER, J.; MACLENNAN, B.; TAYLOR, N. Aesthetic Values in Technology and Engineering Design. In: MEIJERS, A. (ed.). Philosophy of technology and engineering science. Amsterdam: Elsevier B. V., 2009. p. 1031-1068., p. 1051). Com efeito, é apenas a adequada construção ou apropriação de procedimentos estruturados e, quando o caso, também de acervos imagéticos, em resposta ao, ou em sintonia com o valor (ou valores) estético(s) assumido(s), que pode garantir a formação de um estilo efetivamente profícuo ou interessante.7 7 Que, na constituição de um novo estilo de projeto, os valores estéticos desempenhem um papel estruturante, isso é o que é ilustrado por estudos empíricos como os de Ball (2005) e Schummer et al. (2009).
Para ilustrar isso, tome-se o exemplo, analisado por Schummer e seus coautores (2009SCHUMMER, J.; MACLENNAN, B.; TAYLOR, N. Aesthetic Values in Technology and Engineering Design. In: MEIJERS, A. (ed.). Philosophy of technology and engineering science. Amsterdam: Elsevier B. V., 2009. p. 1031-1068.), da constituição do estilo de síntese química que acabou por possibilitar a nanotecnologia. Ele emerge no contexto do desenvolvimento de técnicas de representação visual da estrutura molecular das substâncias, assim como de artefatos e procedimentos que possibilitaram enxergar tais estruturas. A partir disso, surgirá, em vários pesquisadores, o fascínio por estruturas moleculares cujas representações eram iguais a (ou muito parecidas com) objetos macroscópicos. Perseguida inicialmente por si mesma, a construção dessas estruturas obrigará aqueles que se dedicavam a ela a desenvolverem ou aprimorarem instrumentais e procedimentos que possibilitassem tal construção. Será somente a partir desse esforço - e do êxito nele -, então, que emergirá ou se tornará possível/viável, a nanotecnologia (SCHUMMER et al., 2009SCHUMMER, J.; MACLENNAN, B.; TAYLOR, N. Aesthetic Values in Technology and Engineering Design. In: MEIJERS, A. (ed.). Philosophy of technology and engineering science. Amsterdam: Elsevier B. V., 2009. p. 1031-1068., p. 1048-1049).
Nesse sentido, a constituição de novos procedimentos estruturados, seja para se obterem resultados em alguma medida similares aos que já são alcançáveis por outros meios (como nos procedimentos de tradução de funcionalidade(s) e requisitos em detalhamento do processo de produção da solução final), seja para se conseguir realizar o que ainda não se consegue (como nos procedimentos para se conseguir copiar o mundo macroscópico em dimensão molecular), pode trazer impacto não desprezível com respeito àquilo que passamos a ser capazes de projetar e/ou construir a partir daí.
2.2 Inserção, diálogo de saberes e cuidado
Até onde se conseguiu ir na revisão bibliográfica que fundamenta esta pesquisa, não existe sequer um procedimento sistematizado e que tenha como objetivo explícito a pluralização do conteúdo das instrumentalidades do projeto. Isso parece ser o caso, ao menos em parte, porque o caráter em alguma medida contingente de tais conteúdos (i.e., acervos imagéticos, valores estéticos e procedimentos estruturados) e o impacto da diversificação deles na prática projetiva seguem grandemente negligenciados ou desconhecidos.
Há, não obstante, modos de proceder a projetos emancipadores que parecem bastante promissores também para tal fim. Nesta segunda seção, apresentaremos um deles, que foi codesenvolvido e aplicado pela etnógrafa colombiana Tania Pérez-Bustos, em uma iniciativa de produção tecnológica junto a um grupo de bordadeiras de Cartago, Colômbia. Trata-se aqui da construção de um projeto participativo e que teve como resultado algo que pode ser entendido como uma tecnologia social. São igualmente promissores quanto à diversificação de acervos imagéticos, valores estéticos e procedimentos estruturados certas abordagens de engenharia popular e de projetos em arquitetura (Techné).
A equipe de Tania era composta por Laura Cortés-Rico, a engenheira que implementará o artefato, além de outros dois engenheiros e uma segunda etnógrafa (RIVERA et al., 2016RIVERA, R.; CORTÉS-RICO, L.; PÉREZ-BUSTOS, T.; FRANCO-AVELLANEDA, M. Embroidering engineering: a case of embodied learning and design of a tangible user interface. Engineering Studies, v. 8, n. 1, p. 48-65, 2016.). O trabalho que essa equipe se propôs desenvolver tinha explicitamente como um de seus pressupostos o reconhecimento e a valorização dos saberes das bordadeiras. De sorte a se assegurar tal coisa, assim como a escuta em profundidade das reais demandas e dos valores e ideais dessas mulheres, o trabalho das etnógrafas foi fundamental. Ele possibilitou, ao fim e ao cabo, que Laura incorporasse à confecção do hardware (i.e., elementos tangíveis condutores que permitiam a construção de padrões do bordado na tela touch de um tablet) e do software (i.e., reconhecimento dos padrões do bordado pressionados sobre a tela) saberes que as bordadeiras detinham relativamente à produção do calado (o tipo de bordado que o grupo produzia), assim como saberes a que ela teve acesso no convívio com essas mulheres e nas lições de bordado que tomara com elas (RIVERA et al., 2016RIVERA, R.; CORTÉS-RICO, L.; PÉREZ-BUSTOS, T.; FRANCO-AVELLANEDA, M. Embroidering engineering: a case of embodied learning and design of a tangible user interface. Engineering Studies, v. 8, n. 1, p. 48-65, 2016.; PÉREZ-BUSTOS; MÁRQUEZ, 2016PÉREZ-BUSTOS, T.; MÁRQUEZ, S. Destejiendo puntos de vista feministas: reflexiones metodológicas desde la etnografía del diseño de una tecnología. Revista Iberoamericana CTS, v. 31, n. 11, p. 147-69, 2016.; CORTÉS-RICO; PIEDRAHITA-SOLÓRZANO, 2015CORTÉS-RICO, L.; PIEDRAHITA-SOLÓRZANO, G. Participatory Design in Practice: The Case of an Embroidered Technology. In: ABASCAL, J. et al. (ed.). IFIP TC 13 INTERNATIONAL CONFERENCE, 15., Bamberg, Germany: September 14-18, 2015. Proceedings [...], Part III, 2015.).
Com efeito, nas palavras de Laura,
[...] o hardware foi literalmente bordado com linhas condutoras e o software demandou uma contínua rememoração do ofício [craft] [executado] com as nossas próprias mãos, de modo a projetar representações computacionais dos pontos do calado. (RIVERA et al., 2016RIVERA, R.; CORTÉS-RICO, L.; PÉREZ-BUSTOS, T.; FRANCO-AVELLANEDA, M. Embroidering engineering: a case of embodied learning and design of a tangible user interface. Engineering Studies, v. 8, n. 1, p. 48-65, 2016., p. 61).
E
Configurar o projeto para dar responsabilidade aos usuários foi importante para garantir que a tecnologia projetada tivesse um impacto real e conduzisse a novos modos de conceber tanto as práticas de bordar quanto as de projetar tecnologia. (CORTÉS-RICO; PIEDRAHITA-SOLÓRZANO, 2015CORTÉS-RICO, L.; PIEDRAHITA-SOLÓRZANO, G. Participatory Design in Practice: The Case of an Embroidered Technology. In: ABASCAL, J. et al. (ed.). IFIP TC 13 INTERNATIONAL CONFERENCE, 15., Bamberg, Germany: September 14-18, 2015. Proceedings [...], Part III, 2015., p. 520).
Ou seja, o procedimento adotado pretendia ir além da identificação das urgências próprias, no caso, do grupo de bordadeiras; dos requisitos que estas poderiam querer ver satisfeitos, na solução técnica que se viesse a encontrar para tais urgências; e da conformação ético-política desse artefato. Pretendia-se, adicionalmente, “modificar a estrutura dos processos de engenharia” (PÉREZ-BUSTOS, 2017PÉREZ-BUSTOS, T. Thinking with Care. Unraveling and mending in an ethnography of craft embroidery and technology. Revue d’anthropologie des connaissances, v. 11, n. 1, p. a-u, 2017., p. k), inspirando-se, para tanto, em saberes práticos das bordadeiras (PÉREZ-BUSTOS, 2017PÉREZ-BUSTOS, T. Thinking with Care. Unraveling and mending in an ethnography of craft embroidery and technology. Revue d’anthropologie des connaissances, v. 11, n. 1, p. a-u, 2017., p. h).
Nas duas falas de Laura citadas acima, contudo, parece que o procedimento adotado contribuiu não apenas com a fertilização da prática projetiva dela por procedimentos estruturados das bordadeiras, como, em alguma medida, com valores estéticos dessas mulheres - valores que a desafiaram ou encorajaram a conceber novos modos de projetar. Com efeito, como o vimos antes, estilos de projeto diferentes - que é o que novos modos de projetar parece querer indicar aqui - distinguem-se, via de regra, não apenas pelos procedimentos que adotam, mas pelos valores estéticos que, por fim, esses mesmos procedimentos buscam promover.
Além disso, parece pouco provável que parte do acervo imagético das bordadeiras, tão carregado com os padrões do bordado que elas produzem e com muito do acervo comum daquelas pessoas que trabalham (com) o tecido, não tenha fertilizado o de Laura, que somente foi apresentada a essa prática e introduzida aos seus rudimentos nos tempos de imersão junto a essas trabalhadoras. Nos textos de Tania e em falas de Laura, por exemplo, o imagético do bordado é utilizado com não pouca frequência (PÉREZ-BUSTOS, 2017PÉREZ-BUSTOS, T. Thinking with Care. Unraveling and mending in an ethnography of craft embroidery and technology. Revue d’anthropologie des connaissances, v. 11, n. 1, p. a-u, 2017.).
Mas qual é o distintivo do procedimento proposto e coconstruído por Tania, que o torna potencializador de tais fertilizações? A resposta aqui parece estar em parte dos métodos empregados e no modo como o processo todo foi conduzido.
Em termos metodológicos, o processo consistiu basicamente de períodos de inserção junto às bordadeiras; de um ativo encorajamento da fala dessas mulheres, do diálogo de Laura com elas e do diálogo entre engenheiros e etnógrafas; da construção de coisas; e, como parte desta última, do aprendizado, por Laura e pelas etnógrafas, dos rudimentos do calado, a partir de aulas tomadas junto a essas bordadeiras (PÉREZ-BUSTOS, 2017PÉREZ-BUSTOS, T. Thinking with Care. Unraveling and mending in an ethnography of craft embroidery and technology. Revue d’anthropologie des connaissances, v. 11, n. 1, p. a-u, 2017.).
Como, porém, assegurar o contato, fundamentalmente de Laura, com os conhecimentos das bordadeiras e, a partir disso, encorajar um diálogo de saberes - isto é, uma fertilização recíproca de acervos imagéticos, valores estéticos e procedimentos estruturados entre ela e as bordadeiras? Para isso, Laura teve não apenas que viver alguns períodos de imersão junto ao grupo de trabalhadoras e aprender os rudimentos de prática laboral delas, como revestir-se, nesse processo, de uma postura profundamente cuidadosa (PÉREZ-BUSTOS, 2017PÉREZ-BUSTOS, T. Thinking with Care. Unraveling and mending in an ethnography of craft embroidery and technology. Revue d’anthropologie des connaissances, v. 11, n. 1, p. a-u, 2017.).
É sobretudo pela imersão e pelo aprendizado do calado que Laura pode ter algum acesso aos valores estéticos, acervos imagéticos e procedimentos estruturados das bordadeiras (PÉREZ-BUSTOS; MÁRQUES, 2016PÉREZ-BUSTOS, T.; MÁRQUEZ, S. Destejiendo puntos de vista feministas: reflexiones metodológicas desde la etnografía del diseño de una tecnología. Revista Iberoamericana CTS, v. 31, n. 11, p. 147-69, 2016., p. 162-163). É, acima de tudo, pelo cuidado que esse conhecimento não é desprezado e que as condições para que o encontro, diálogo e troca de saberes se dê não são solapadas (PÉREZ-BUSTOS; MÁRQUES, 2016PÉREZ-BUSTOS, T.; MÁRQUEZ, S. Destejiendo puntos de vista feministas: reflexiones metodológicas desde la etnografía del diseño de una tecnología. Revista Iberoamericana CTS, v. 31, n. 11, p. 147-69, 2016., p. 158-160).
3 Problematizações
Com as duas partes anteriores, buscou-se fornecer um panorama empiricamente lastreado de parte do fenômeno tecnológico, ou do modo de ser da tecnologia produzida hoje. A segunda parte do artigo sumariza uma reflexão já bem estabelecida e desenvolvida. A terceira, por outro lado, sistematiza uma dimensão que parece grandemente desconhecida ou negligenciada, seja por quem constrói a tecnologia, seja por quem reflete sobre ela. Nesta quarta parte, serão apontadas fragilidades na reflexão filosófica sobre a tecnologia ou em certos usos dessas reflexões, em dois âmbitos específicos: no de alguns desafios nem sempre considerados para se proceder à democratização da tecnologia, como esta é pensada pelo construtivismo crítico de Andrew Feenberg (2019aFEENBERG, A. Entre a razão e a experiência: ensaios sobre tecnologia e modernidade [2010]. Tradução de E. Beira, C. Cruz e R. Neder. Vila Nova de Gaia: Inovatec, 2019a., 2019bFEENBERG, A. Tecnossistema: a vida social da razão [2017]. Tradução de E. Beira, C. Cruz. Vila Nova de Gaia: Inovatec , 2019b.); no de um suposto purismo axiológico do desenvolvimento autêntico dos objetos técnicos, à maneira como isso é encontrado na filosofia de Gilbert Simondon.
3.1 Limites da democratização
No que se refere à democratização do desenvolvimento tecnológico, tem-se, por um lado, a corroboração empírica da viabilidade disso, assim como metodologias amplamente testadas e bastante aprimoradas para subsidiar tal coisa (parte 2). Por outro lado, contudo, esses mesmos dados apontam gargalos ou limites de tal processo democratizante ou emancipador. São gargalos ou limites nem sempre considerados em reflexões sobre a tecnologia ou defesas da democratização dela mais engajadas, em termos políticos.
No âmbito das atuações locais, como a do projeto com as bordadeiras colombianas, os limites ou desafios à democratização-emancipação são metodológicos. Eles se referem, de forma preponderante, à escuta e à incorporação efetivas e em igualdade de condições dos coprojetistas - com seus valores ético-políticos, mas também com suas cosmovisões, saberes e valores estéticos - ao projeto. Quando se trata de grupos socioeconomicamente marginais, tal desafio pode ser ainda maior. O trabalho com as bordadeiras colombianas (PÉREZ-BUSTOS, 2017PÉREZ-BUSTOS, T. Thinking with Care. Unraveling and mending in an ethnography of craft embroidery and technology. Revue d’anthropologie des connaissances, v. 11, n. 1, p. a-u, 2017.) ilustra bem isso: mesmo bem intencionados e convictos da perspectiva empoderadora de projeto que buscam desenvolver, os projetistas, não raro, impõem seus valores e compreensões de mundo, assumindo uma postura paternalista e construindo, em alguma medida, soluções técnicas para, em lugar de com, os coprojetistas.
O êxito desse projeto colombiano indica que a incorporação do cuidado, ao lado da imersão na realidade e, no caso, na atividade laboral do grupo de coprojetistas, parecem ser aspectos fundamentais para que uma abordagem projetiva emancipadora possa ser potencializada. Algo em linha semelhante parece ser confirmado por abordagens em engenharia popular (NEPOMUCENO et al., 2019NEPOMUCENO, V. et al. Uma proposta metodológica para assessoria técnica às empresas recuperadas por trabalhadores a partir da engenharia popular: combinando pesquisa-ação, adequação sociotécnica e análise ergonômica do trabalho. In: ARAÚJO, F. et al. Dialética da autogestão em empresas recuperadas por trabalhadores no Brasil. Marília: Lutas Anticapital, 2019. p. 47-91.; Techné) e no projeto de arquitetura (GUIZZO, 2019GUIZZO, I. Reativar territórios: o corpo e o afeto na questão do projeto participativo. Belo Horizonte: Quintal, 2019.; Techné). Neste segundo caso, a metodologia adotada, ao se calcar na estimulação sensorial dos coprojetistas e na busca por se acessar o inconsciente deles, aponta uma segunda dimensão usualmente negligenciada em projetos técnicos (mesmo emancipadores) e na reflexão sobre eles, para além da perspectiva do cuidado e da imersão na realidade do grupo apoiado, que é a da corporeidade e do inconsciente dos coprojetistas, a qual pode ter impacto significativo no projeto técnico e na emancipação do grupo.
Outro desafio concernente à democratização do desenvolvimento tecnológico é o da sua escalabilidade. Se é inegável que existem metodologias que, aplicadas segundo o imperativo adicional do cuidado, podem produzir ao menos parte da emancipação buscada, também é verdade que elas tendem a ser mais exitosas, quanto mais local for a solução almejada, isto é, quanto menos plural for o âmbito de seus usos possíveis e menos numeroso e diverso for o grupo de coprojetistas.
Para se haver com esse segundo limitante, práticas de technology assessment poderiam ser interessantes, em suas três vertentes: assessoramento de políticas públicas, promoção de debate público e conformação da tecnologia (GRUNWALD, 2015). Tais práticas, adotadas no domínio macro das demandas de uma sociedade (ou um conjunto plural e diverso de grupos e atores sociais), poderiam ser, nesses termos, complementares à atuação micro dos projetos emancipadores.
Não obstante, de uma parte, permaneceriam questões metodológicas atinentes, por exemplo, a como se promover o debate, o cuidado e um autêntico diálogo de saberes e, por meio disso, alcançar-se algo próximo a um consenso entre atores tão numerosos e com valores, cosmovisões e interesses distintos e, frequentemente, conflitantes. De outra parte, e porque se abandona o lugar marginal de experiências pontuais e que pouco afetam o status quo tecnocrático e capitalista, iniciativas mais amplas ou menos locais tenderão a encontrar resistência ou oposição crescentes da parte de atores sociais altamente poderosos. Além disso, e de forma mais radical, pode-se mesmo questionar o imperativo da escalabilidade: em outros mundos possíveis, que não sejam regidos pelas urgências do consumo, do controle e do lucro, toda solução sociotécnica - ou mesmo a maior parte delas - precisa de fato ser escalável, ou seja, replicável? A reaplicação da tecnologia social (DAGNINO et al., 2004DAGNINO, R.; BRANDÃO, F.; NOVAES, H. Sobre o marco analítico-conceitual da tecnologia social. In: LASSANCE JÚNIOR, A. E. et al. (ed.). Tecnologia social: uma estratégia para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Banco do Brasil, 2004. p. 15-64.) não poderia ser uma alternativa mais interessante?
Por fim, e naquilo que mais diretamente concerne à principal reflexão desenvolvida neste artigo, um quarto desafio à democratização relaciona-se à viabilidade de se produzirem as soluções mais adequadas para os desafios sociotécnicos em questão. Aqui, como se buscou evidenciar ao longo da terceira parte deste trabalho, se não cuidarmos da pluralização de procedimentos estruturados, valores estéticos e acervos imagéticos, poderemos seguir marcando passo em desenvolvimento, que, não obstante, pode ser alcançável, desde que se assegurem as condições de possibilidade para tanto, ou seja, essa pluralização.
3.2 O lastro sociocultural da invenção
Quanto à matização de Simondon (1989SIMONDON, G. Du mode d’existence des objets techinques. Paris: Aubier, 1989 [1958]. [1958], 2008SIMONDON, G. Imagination et Invention. Chatou: Les Éditions de La Transparence, 2008 [1965-1966]. [1965-1966], 2009SIMONDON, G. Entretien sur la mécanologie. Revue de synthèse: tomo 130, 6ª série, n. 1, p. 103-132, 2009 [1968]. [1968]), ela parece ser necessária para atualizar a compreensão do autor, incorporando a esta entendimentos sobre a tecnologia que foram se impondo apenas a partir da última década de sua vida.
Como analisado em outra parte (CRUZ, 2017CRUZ, C. Tecnologia social: fundamentações, desafios, urgência e legitimidade. 2017, 280 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., p. 72-82), a perspectiva simondoniana do desenvolvimento autêntico do indivíduo técnico, embora pretenda subordinar tal processo aos mecanismos de individuação do objeto técnico, na relação que aquele inevitavelmente estabelece com o meio que lhe é associado, dissociando tal coisa de pressões sociais ilegítimas, resguarda inadvertidamente um espaço para que o viés social se imiscua mesmo no desenvolvimento autêntico.
Isso se materializa na condição psicológica, a qual, para Simondon, preside à invenção (de um novo objeto técnico ou de uma variedade melhor de algum já existente): uma tensão que o inventor experimenta entre aquilo que o autor chama de ordem da realidade - isto é, o tecnicamente dado e já passível de ser obtido na cultura técnica a que o inventor pertence - e a ordem do resultado - aquilo que ainda não é tecnicamente possível, mas que se apresenta ao inventor como desejável de sê-lo (SIMONDON, 2008SIMONDON, G. Imagination et Invention. Chatou: Les Éditions de La Transparence, 2008 [1965-1966]., p. 139-44).
Está nisso do “mostrar-se desejável” ao inventor a porta deixada aberta, por Simondon, para que interesses ou lastros sociais assumam papel não desprezível no desenvolvimento tecnológico (autêntico). E isso não é propriamente um paradoxo com respeito à compreensão geral do autor, segundo a qual, ainda que tenha sua própria normatividade e que seja digna em si mesma, a técnica opera fundamentalmente como mediadora e harmonizadora entre o ser humano e o mundo natural, mundo que habitamos com ela (SIMONDON, 1989SIMONDON, G. Du mode d’existence des objets techinques. Paris: Aubier, 1989 [1958]., p. 88, 126-128, 164; 2009SIMONDON, G. Entretien sur la mécanologie. Revue de synthèse: tomo 130, 6ª série, n. 1, p. 103-132, 2009 [1968]., p. 107, 110, 116, 127; 2008SIMONDON, G. Imagination et Invention. Chatou: Les Éditions de La Transparence, 2008 [1965-1966]., p. 186).
Ora, se aquilo que damos conta de inventar, precisamos ser capazes, antes, de vislumbrar, e de vislumbrar como desejável, então, inventores pertencentes a grupos sociais distintos, com suas urgências, com seus ideais e valores ético-sociais, com seus acervos imagéticos, valores estéticos e procedimentos estruturados próprios, tenderão a enxergar - e a identificar como desejáveis - soluções diferentes. Adicionalmente, e em sentido negativo, inventores com cidadanias ético-social e estético-cultural diferentes poderiam ser incapazes tanto de identificar urgências de grupo que não o seu quanto de conceber soluções para elas que fossem legítimas (ou o mais legítimo possível) para o referido grupo.
De uma parte, nisso que Simondon identifica como a condição psicológica para a invenção, certo conjunto ou léxico de imagens, certos valores estéticos e/ou certos procedimentos estruturados podem ser fundamentais para possibilitar enxergar materializações possíveis do que se mostra como tecnicamente desejado, e que, em algum momento, se torna também tecnologicamente alcançável.8 8 Feenberg (2019b, cap. 3) aproxima-se dessa mesma compreensão, ao tomar o exemplo da invenção do FAX e da calculadora, pelos japoneses, vinculando-os ao valor ou ideal de miniaturização presente na cultura nipônica. Contudo, ele não avança ou sistematiza essa reflexão, parecendo não ter notado ou dado importância a tal achado. No caso da nanotecnologia, analisado anteriormente, por exemplo, não fossem a representação imagética das estruturas moleculares, o fascínio pela construção de moléculas com representações similares a objetos macroscópicos e procedimentos que foram sendo desenvolvidos para realizar a esta, todo esse campo técnico não teria sido viabilizado.
De outra parte, os avanços ou invenções requerem, para serem percebidos como possíveis, ou reconhecidos como dignos de atenção e de trabalho, para serem materializados, o fato de serem desejados ou de se mostrarem desejáveis. Ou seja, apenas quando o inventor já nutre o desejo, mesmo que não de todo consciente, por certa possibilidade técnica, ou quando, em face dela, reconhece seu valor (que pode ser o de obtenção de lucro com ela), é que ela poderá de fato vir à luz.
Assim, seja para a identificação de novas possibilidades técnicas em um artefato já existente, seja para a concepção de novos artefatos ou funcionalidades, os acervos imagéticos, valores estéticos e procedimentos estruturados a conformarem a prática projetiva do inventor ou equipe técnica desempenham papel não desprezível.
Considerações Finais
Ao longo deste artigo, buscou-se mostrar que a tecnologia e o seu desenvolvimento são um fenômeno lastreado socialmente em ao menos uma dimensão adicional àquela já reconhecida pela literatura da área, relativa a valores ético-políticos. Com efeito, valores estéticos, acervos imagéticos e procedimentos estruturados desempenham, como se explicitou, significativo papel conformador da prática projetiva. A pluralização deles, nesse sentido, pode tornar passível de serem implementadas ou mesmo concebidas soluções sociotécnicas que, sem tal pluralização, seriam impossíveis.
Dar-se conta dessa dimensão tem relevância tanto teórica, no sentido de nos permitir conhecer o fenômeno (socio)técnico de forma mais precisa, quanto prática, já que a democratização da tecnologia e do seu desenvolvimento (ou mesmo o desenvolvimento de invenções ou aprimoramentos na tecnologia convencional/capitalista) pressupõe (ou pode pressupor) tal pluralização.
Ainda que nem sempre impacte a prática de projetistas que estão ligados às iniciativas mais radicalmente democratizantes (em parte, por seguir ainda muito fechada em si e dialogando consigo mesma), a filosofia da tecnologia pode ter um papel importante em esclarecer e subsidiar técnicos e outras pessoas comprometidas com a coconstrução de outras ordens sociotécnicas possíveis. Para tanto, um primeiro passo fundamental é que os filósofos se acerquem mais da tecnologia, à maneira como ela se manifesta - ou pode se manifestar - e é produzida no mundo. A virada empírica nessa área de estudo, que produziu como principais correntes o construtivismo crítico e a pós-fenomenologia (FRANSSENN et al., 2016FRANSSEN, M.; VERMAAS, P.; KROES, P; MEIJERS, A. (ed.) Philosophy of Technology after the Empirical Turn. Dordrecht: Springer, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.1007/978-3-319-33717-3. Acesso em: 10 nov. 2020.
https://doi.org/https://doi.org/10.1007/...
), tem precisamente essa intenção. Contudo, passos adicionais ainda precisam ser dados.
Há algo em comum entre as três abordagens ao projeto técnico mencionadas no início da parte 4 (a colombiana, a engenharia popular e a da arquitetura), que pode ser uma pista relevante quanto a tais passos adicionais. Essas abordagens se filiam a perspectivas teórico-práticas, as quais, de um modo ou de outro, são parte ou estabelecem profícuo diálogo com a reflexão descolonial, do tipo daquela proposta por Anzaldúa (2002ANZALDÚA, G. now let us shift… the path of conocimiento… inner work, public acts. In: ANZALDUA, G.; KEATING, A (org.). This bridge we call home. New York: Routledge, 2002. p. 540-578.), Mignolo (2011MIGNOLO, W. Epistemic Disobedience and the Decolonial Option: A Manifesto. Transmodernity: Journal of Peripheral Cultural Production of the Luso-Hispanic World, v. 1, n. 2, p. 44-66, 2011.) e Escobar (2018ESCOBAR, A. Designs for the Pluriverse: Radical Interdependence, Autonomy, and the Making of Worlds. Durham and London: Duke University Press, 2018.). A descolonização que essas abordagens produzem não tem apenas a ver com a superação do epistemicídio (SANTOS, 2016SANTOS, B. Epistemologies of the South: justice against epistemicide. New York: Routledge , 2016.), abrindo-se para um diálogo com saberes, valores e cosmovisões não ocidentais-colonizadores, mas também, e como consequência dessa abertura e desse diálogo, com o resgate, no projeto técnico, de dimensões como a do cuidado, do corpo e do inconsciente.
Talvez, nessa perspectiva descolonial, fazer filosofia da tecnologia signifique fazer uma filosofia das tecnologias possíveis, algo que parece requerer a desessencialização de aspectos contingentes do fenômeno tecnológico, mas que são (ou parecem ser) fundamentais para a tecnologia ocidental (capitalista/convencional), e que podem ter sido tomados, inadvertidamente, como necessários até agora.
Por outro lado, se outros mundos são possíveis, isso parece requerer também outras tecnologias, outros modos de construí-las e outros saberes que suportem esse processo. É nessa direção que apontam as três práticas projetivas mencionadas. Tal coisa não significa necessariamente a negação da tecnologia, engenharia e ciência ocidentais, mas pressupõe, ao menos, o alargamento delas, por meio do diálogo com saberes, valores e cosmovisões que foram proscritos, desmerecidos ou “assassinados” (SANTOS, 2016SANTOS, B. Epistemologies of the South: justice against epistemicide. New York: Routledge , 2016.), sob a pretensão universalista, desterritorializada e descorporificada inclusive, e eventualmente, sobretudo, do conhecimento filosófico ocidental (DUSSEL, 2008DUSSEL, E. A new age in the history of philosophy: the world dialogue between philosophical traditions. Prajñâ Vihâra, v. 9, n. 1, p. 1-22, 2008.; ESCOBAR, 2018ESCOBAR, A. Designs for the Pluriverse: Radical Interdependence, Autonomy, and the Making of Worlds. Durham and London: Duke University Press, 2018.).
Pode-se dizer que as problematizações desenvolvidas na parte 4 deste artigo são um exemplo dessa descolonização da filosofia da tecnologia, materializado no reconhecimento de uma engenharia menos científica - e mais artística -; em práticas projetivas “técnico-sociais” e que têm muito a ganhar, se são coconstruídas pelos coprojetistas e em profundo diálogo com seus saberes, valores e cosmovisões; em soluções sociotécnicas reaplicáveis (mas não replicáveis), cujo processo projetivo é libertador e cujo impacto social é descolonizador, de emulação de outro mundo possível, no geral mais solidário, socialmente justo e ecologicamente sustentável.
Seguir a trilha da descolonização da filosofia da tecnologia parece não apenas promissor, como necessário. Contudo, para corroborar ou refutar tal hipótese, ou para saber a dimensão desse eventual impacto descolonizador, mais estudos precisam ser desenvolvidos.
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Manteremos “projeto”, em lugar de “design”, por conta de ser essa a preferência majoritária para a tradução do termo nos manuais de engenharia (Pahl et al. (2005PAHL, G.; BEITZ, W.; FELDHUSEN, J.; GROTE, K. Projeto na engenharia. Tradução de Hans Werner. São Paulo: Blucher, 2005.); Dym e Little (2010DYM, C.; LITTLE, P. Introdução à engenharia: uma abordagem baseada em projeto. Tradução de João Tortello. Porto Alegre: Bookman, 2010.)). Como se está procurando refletir a tecnologia aqui também em diálogo com a engenharia, não parece razoável adotar uma terminologia que, além de anglicista, não encontra referente efetivo na prática que almeja analisar.
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A rigor, a democratização defendida por Feenberg (1999FEENBERG, A. Questioning Technology. New York: Routledge , 1999.) é um processo que pressupõe e que implica, da parte de quem luta por ela, aumento de conscientização, empoderamento ou emancipação, na maneira como esses termos são entendidos por Paulo Freire (1987FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. [1970] Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1987. [1970]; FREIRE; SHOR, 1986FREIRE, P.; SHOR, I. Medo e Ousadia: O Cotidiano do Professor. Tradução de Adriana Lopez. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1986.). Freire (1983FREIRE, P. Extensão ou comunicação? [1969]. Tradução de Rosisca de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. [1969]), aliás, defende que a assistência técnica seja oportunidade de se praticar educação popular (ainda que sua compreensão de tecnologia pareça aproximar-se, como não poderia ser muito diferente nessa época, de uma perspectiva instrumental).
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Como se apresentará com mais detalhes na terceira parte deste artigo, o projeto técnico é constituído por várias etapas que costumam ser seguidas de forma iterativa e não linear: análise e formulação do problema; projeto conceitual; escolha da solução conceitual que será implementada; implementação dessa solução; projeto detalhado para se construir essa solução.
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5
A rigor, segundo o modo que se busca ou se assume como ideal na engenharia, atualmente, ao longo dessas etapas, devem ser consideradas, adicionalmente, questões relativas também à fabricação da solução construída (quando se trata de algo a ser produzido em massa), à manutenção desta e, no caso de objetos materiais, à destinação adequada tanto dos rejeitos do processo projetivo/produtivo quanto do artefato produzido, quando do descarte deste pelo usuário/consumidor (PAHL et al., 2005PAHL, G.; BEITZ, W.; FELDHUSEN, J.; GROTE, K. Projeto na engenharia. Tradução de Hans Werner. São Paulo: Blucher, 2005.; DYM; LITTLE, 2010DYM, C.; LITTLE, P. Introdução à engenharia: uma abordagem baseada em projeto. Tradução de João Tortello. Porto Alegre: Bookman, 2010.).
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Aqui e em todas as demais citações apresentadas ao longo do texto, as traduções são de nossa autoria.
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Que, na constituição de um novo estilo de projeto, os valores estéticos desempenhem um papel estruturante, isso é o que é ilustrado por estudos empíricos como os de Ball (2005BALL, P. Elegant Solutions: Ten Beautiful Experiments in Chemistry. Cambridge: The Royal Society of Chemistry, 2005.) e Schummer et al. (2009SCHUMMER, J.; MACLENNAN, B.; TAYLOR, N. Aesthetic Values in Technology and Engineering Design. In: MEIJERS, A. (ed.). Philosophy of technology and engineering science. Amsterdam: Elsevier B. V., 2009. p. 1031-1068.).
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Feenberg (2019bFEENBERG, A. Tecnossistema: a vida social da razão [2017]. Tradução de E. Beira, C. Cruz. Vila Nova de Gaia: Inovatec , 2019b., cap. 3) aproxima-se dessa mesma compreensão, ao tomar o exemplo da invenção do FAX e da calculadora, pelos japoneses, vinculando-os ao valor ou ideal de miniaturização presente na cultura nipônica. Contudo, ele não avança ou sistematiza essa reflexão, parecendo não ter notado ou dado importância a tal achado.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Jun 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
-
Recebido
08 Jan 2021 -
Aceito
08 Mar 2021