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“Defendendo a paz social”: Entre a naturalização e o racismo em decisões de decretação de prisão preventiva

“Defending Social Peace”: Between Naturalization and Racism in Decisions to Decree Pretrial detention

Resumo

Este trabalho foi realizado com o objetivo de analisar os argumentos mobilizados por juízes para justificar a decretação de prisão preventiva, além de observar a existência de relação entre esses argumentos e os fatores de classe e raça. Utilizamos como metodologia a análise documental de decisões interlocutórias que convertem prisões em flagrante em prisões preventivas, referentes a imputações de roubos e furtos ocorridos entre os anos 2015 e 2018 na região metropolitana de Salvador. Foram analisadas 322 decisões interlocutórias de decretação de prisão preventiva, retiradas do arquivo de prontuários do Presídio de Salvador/BA, unidade destinada a presos provisórios. Ao final da pesquisa pode-se concluir que, entre as justificativas vigentes no artigo 312 do Código de Processo Penal, 100% das decisões analisadas se baseavam na categoria de garantia da ordem pública, entendida como harmonia social ofendida pela periculosidade do preso. Essa periculosidade é expressa pelos conceitos de contumácia criminal e modus operandi. Também se chegou à conclusão de que esses argumentos reproduzem estereótipos de classe e raça, tendo em vista que utilizam mecanismos de naturalização do grupo mais atingido pela malha do sistema de justiça penal (jovens negros), retirando-os do gozo da cidadania e proteção de direitos fundamentais.

Palavras-chave:
Ordem pública; Prisão preventiva; Racismo

Abstract

This study aimed to analyze the arguments mobilized by judges to justify the issuance of preventive detention orders and to observe the existence of a relationship between these arguments and class and race factors. The methodology used was the documentary analysis of interlocutory decisions converting flagrant arrests into preventive detentions, referring to charges of theft and robbery that occurred between 2015 and 2018 in the metropolitan region of Salvador, Brazil. A total of 322 interlocutory decisions to decree preventive detention were analyzed, retrieved from the case files of Salvador Prison/BA, a unit for temporary detainees. At the end of the research, it was concluded that, among the justifications in force in Article 312 of the Code of Criminal Procedure, 100% of the decisions analyzed were based on the category of guaranteeing public order, understood as social harmony offended by the dangerousness of the prisoner. This dangerousness is expressed by the concepts of criminal recidivism and modus operandi. It was also concluded that these arguments reproduce class and race stereotypes, since they use mechanisms to naturalize the group most affected by the net of the criminal justice system (young black men), depriving them of the enjoyment of citizenship and protection of fundamental rights.

Keywords:
Public order; Preventive detention; Racism

Introdução

A nossa Carta Constitucional de 1988 impõe em seu artigo 5o, LVII, o princípio da presunção de inocência, que determina que todo cidadão tem o direito a um julgamento justo no qual seja considerado inocente até o proferimento de sentença condenatória transitada em julgado1 1 . Quando não existe mais a possibilidade de recurso. ; ou seja, a regra legal determina que o indivíduo responda o processo em liberdade, exceto nos casos previstos em lei. No entanto, os dados oficiais mostram o uso generalizado das prisões cautelares. Segundo levantamento realizado pelo anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, 25,3% da população privada de liberdade no Brasil era constituída por presos provisórios, esta porcentagem equivale a 210.687 pessoas. Por sua vez, o Estado da Bahia, segundo o mesmo levantamento, ostenta uma taxa bem acima da média nacional, contando com 48,8% de sua população carcerária de presos provisórios, isto é, praticamente metade dos presos do Estado estão recolhidos cautelarmente.

Dentro desta problemática, tem-se observado que o sistema de justiça penal brasileiro segue lógicas discriminatórias por características econômicas e sociais, sendo destinado às pessoas dos substratos marginalizados da sociedade um tratamento mais rigoroso, ficando isso ainda mais evidente em se tratando de características étnico-raciais (Adorno,1994ADORNO, Sergio. (1994), “Crime, justiça penal e desigualdade jurídica: as mortes que se contam no Tribunal do Júri”. USP: Dossiê Judiciário, São Paulo, pp. 132-151.; Sinhoretto e Silvestre, 2014SINHORETTO, Jacqueline; SILVESTRE, Giane & SCHLITTLER, Maria Carolina. (2014), Desigualdade racial e segurança pública em São Paulo: letalidade policial e prisões em flagrante. Sumário executivo. São Paulo, Universidade Federal de São Carlos - Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos. Disponível em http://www.ufscar.br/gevac/#sthash.KiXLiLc4.dpuf, consultado em 11/2020.
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). De acordo com Vargas (1999VARGAS, Joana Domingues. (1999), “Indivíduos sob suspeita: a cor dos acusados de estupro no fluxo do Sistema de Justiça Criminal”. Dados, Rio de Janeiro, 42 (4) . Disponível em http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52581999000400004, consultado em 09/2020.
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), as pessoas negras2 2 . Utilizamos a categoria negros como a soma de pretos e pardos. Essa classificação é convencionalmente usada pelos Movimentos sociais negros e no Campo dos Estudos Raciais no país, além de ser oficializada no âmbito jurídico pela Lei nº 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial). são sentenciadas culpadas em maior grau, mais rapidamente e com penas mais gravosas em comparação com os réus brancos. Conclusões semelhantes são descritas por Lima (2004LIMA, Renato Sérgio. (2004), “Atributos raciais no funcionamento do sistema de justiça criminal paulista”. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, 18 (1): 60-65. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/spp/v18n1/22227.pdf, consultado em 09/2020.
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): o autor aponta que as classificações de raça e gênero são determinantes na probabilidade em que os agentes sejam processados, sentenciados e que, efetivamente, cumpram pena de prisão. Esse fato redunda na sobrerrepresentação das pessoas negras em situação de privação da liberdade: a população carcerária brasileira é composta, principalmente, por homens (94,4%), jovens (54%), negros (63,6%), com baixa escolaridade (Brasil, 2019).

Outro dado relevante é o expressivo aumento em números absolutos e proporcionais de negros nas prisões do Brasil. Segundo estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de pessoas negras encarceradas passa de 91.843 em 2005 para 442.033 em 2022, um aumento de 381,3%, muito superior ao aumento do encarceramento de brancos, que passou de 62.574 em 2005 para 197.084 em 2022 (aumento de 215%). Nesse sentido, esses números são indícios de que não estamos apenas tratando de uma herança racista, mas de uma prática que vem se agravando na contemporaneidade.

O trabalho aqui realizado teve como objetivo compreender os argumentos mobilizados pelos juízes para justificar a segregação de indivíduos antes mesmo da protelação da sentença, além de observar a existência de relação entre esses argumentos com os fatores de classe e raça. Utilizamos como metodologia a análise documental de decisões interlocutórias que convertem prisões em flagrante em prisões preventivas, referentes a imputações de roubos e furtos ocorridos entre os anos 2015 e 2018 na região metropolitana de Salvador. Esses documentos foram retirados do arquivo de prontuários do Presídio de Salvador/BA, unidade destinada a presos provisórios. No arquivo estavam disponíveis 801 prontuários referentes ao montante total de crimes, destes foram analisadas 322 decisões interlocutórias de decretação de prisão preventiva, sendo 278 decisões referentes à acusação de crime de roubo e 44 decisões ao de furto.

Um dos principais desafios em realizar pesquisas sobre relações raciais no âmbito do sistema de justiça penal é que dificilmente são expressos argumentos diretamente racistas nos documentos jurídicos. Esse fato causa a inquietante situação na qual os dados estatísticos apontam para um sistemático encarceramento de negros ao mesmo tempo que vigora uma colorblindness3 3 . Apesar de produzida para o contexto do sistema de justiça norte-americano, a ideia de colorblindness proporciona algumas aproximações interessantes que podem nos ajudar a compreender o caso brasileiro. (Alexander, 2017ALEXANDER, Michelle. (2017), A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo, Boitempo.), ou seja, a invisibilização do fator racial, permitindo que se continue a propagar um discurso de neutralidade, ainda que os resultados sejam evidentemente discriminatórios. Acreditamos que esse fenômeno possui duas causas principais: a primeira é que o sistema de justiça penal construiu, historicamente, uma autoimagem de entidade técnica e imparcial, incumbida de solucionar os conflitos por meio da razão. Nesse sentido, parte de sua legitimidade é resultado da crença em que a justiça cumpre a lei de forma igualitária. A segunda causa está na própria configuração do racismo brasileiro. No contexto do “Mito da Democracia racial” (Fernandes, 2005FERNANDES, Florestan. (2005), A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo, Ática.), a incorporação do negro no âmbito da cultura não significou sua integração no desenvolvimento do país, havendo, portanto, uma barreira racial que impossibilitava a mobilidade social dessa parcela da população. Ainda segundo o autor, existia no Brasil um “preconceito de ter preconceito”, tendo em baliza que a exaltação da miscigenação da nação brasileira não impedia a concretização de práticas discriminatórias no cotidiano que barravam o acesso das pessoas negras à cidadania plena. Neste diapasão, como apontado por Gonzalez (2020GONZALEZ, Lélia. (2020), Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios intervenções e diálogos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.), o racismo brasileiro seria uma neurose cultural, tendo em vista que “parte da negação do racismo, ao mesmo tempo em que produz representações, práticas e saberes estereotipados sobre os negros” (Vinuto, 2022VINUTO, Juliana. (2022), “Contribuições de Lélia Gonzalez aos estudos sociológicos sobre controle social e punição do Brasil”. Civitas: Revista de Ciências Sociais/ PUC/RS, 22: e40428. Disponível em https://doi.org/10.15448/1984-7289.2022.1.40428, consultado em 05/2024.
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, p. 7). As relações raciais no país possuem um caráter de ocultamento, sendo disfarçadas e ambíguas, prescindindo de discriminação direta e formal. Neste contexto, o racismo brasileiro se reproduz em uma linguagem complexa e multiforme, na qual se utilizam figuras de linguagem, alegorias e silêncios. Isso também é realidade no âmbito do sistema de justiça penal; todavia, acreditamos que foi possível uma “aproximação lateral”, observando padrões de significância nos detalhes, nas entrelinhas dos argumentos dos juízes que naturalizavam jovens negros pobres (alvo prioritário de prisões preventivas) retirando-os do âmbito do conceito de cidadania e da proteção de direitos fundamentais.

Dividimos nosso trabalho em duas partes principais. A primeira destina-se à apresentação do perfil sociodemográfico dos presos provisórios, com o objetivo de apontar para a definição dos processos de seletividade realizada pelo sistema de justiça penal, indicando o grupo mais atingido pelas prisões provisórias; e a segunda se volta à sistematização dos argumentos utilizados pelos juízes para a decretação das prisões preventivas.

Contextualizando o problema

O excesso de prisões provisórias é uma problemática mundial. Segundo Heard e Fair (2019HEARD, Catherine & FAIR, Helen. (2019), Pre-trial detention and its over-use: evidence from ten countries. Birkbeck, University of London. Disponível em pre-trial_detention_final.pdf (prisonstudies.org).), existem, aproximadamente, 3 milhões de presos sem condenação em todo o planeta. Ainda que recentemente tenha havido uma pequena queda no Brasil, o país ainda se destaca pelos elevados índices de encarceramento provisório. Não é diferente a situação dos outros países da América Latina. Segundo o Relatório sobre o uso da prisão preventiva nas Américas, produzido pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, CIDH (2013), o uso abusivo e generalizado da prisão provisória é um dos grandes entraves à consolidação de democracias estáveis na região, atestando que em média 40% da sua população carcerária se encontram na situação de cautelaridade.

Ainda conforme mostra o documento da CIDH, a prisão provisória como regra de aplicação de pena antecipada, além de ferir os preceitos basilares de um Estado de direito, influencia negativamente em outras graves violações de direitos humanos como a perpetração de torturas, maus-tratos e o agravamento da precarização das condições das instalações carcerárias, tendo em vista que, dada a condição de provisoriedade, muitas vezes os suspeitos são colocados em carceragens de responsabilidade dos policiais ou em instalações improvisadas no sistema prisional. Segundo Cerneka et al. (2012CERNEKA, Heidi Ann et al. (2012), Tecer justiça: presas e presos provisórios na cidade de São Paulo. São Paulo, ITTC.), outra violação agravada pelo uso abusivo da prisão provisória é o cerceamento da ampla defesa e do devido processo legal, levando em consideração que as pessoas presas durante o processo têm um menor acesso aos profissionais responsáveis por sua defesa técnica, sendo que na maioria dos casos o primeiro encontro, por vezes único, com seus defensores acontece na audiência em que seu caso será julgado. Por conseguinte, fica prejudicado o acesso do detido às informações de seu próprio processo, além da possibilidade de tornar pública sua versão dos fatos e juntar provas e testemunhas em seu favor.

Diversas pesquisas (Jesus, 2016JESUS, Maria Gorete Marques de. (2016), O que está no mundo não está nos autos: a construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas. São Paulo, tese de doutorado em Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.; Santos, 2015SANTOS, Rogério Dultra dos. (2015), Excesso de prisão provisória no Brasil: um estudo empírico sobre a duração da prisão nos crimes de furto, roubo e tráfico (Bahia e Santa Catarina, 2008-2012). Brasília, Ipea, Ministério da Justiça.) têm apontado que o modo de funcionamento dessas instituições produz um sistema penal do flagrante, no qual grande parte do que é processado no sistema de justiça deriva da ação de vigilância ostensiva da Polícia Militar convertida em prisões em flagrante delito. Neste contexto, tem-se analisado que a Polícia Militar é a porta de entrada do sistema de justiça e que sua agência se produz tendo por norte um “conhecimento” prático no qual os representantes do Estado creem antecipar práticas delitivas a partir do que consideram “atitudes suspeitas”. Como apontam Lajes e Ribeiro (2019LAJES, Lívia Bastos & RIBEIRO, Ludmila. (2019), “Os determinantes da prisão preventiva na Audiência de Custódia: reforço de estereótipos sociais?”. Revista Direito FGV, São Paulo, 15 (3): e1933. Disponível em https://www.scielo.br/j/rdgv/a/P9RFdXM8RgtrBSK59hcS6LM/.
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), esse tipo de crença redunda em vigilância sobre determinados grupos nos quais recaem múltiplos estereótipos negativos de classe, raça, gênero e geração, contribuindo para que a população carcerária no Brasil seja, predominantemente, composta por jovens, negros e pobres. Desde a década de 1970 a criminologia crítica, notadamente no que diz respeito à teoria da seletividade penal (Baratta, 2011BARATTA, Alessandro. (2011), Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro, Revan.), tem apontado que, dada a magnitude de crimes cometidos todos os dias e em toda a sociedade, o sistema de justiça seleciona quais crimes e quais criminosos punir. Essa seleção se baseia em estereótipos e estigmas historicamente construídos que, por um lado, criminalizam a parte mais vulnerável da população e, por outro, deixam intocados os responsáveis pelos crimes de “colarinho branco” (corrupção, lavagem de capitais, crime contra o sistema financeiro etc.), que são mais comumente cometidos pela parcela abastada da população. Segundo Misse (2008MISSE, M. (2008), “Sobre a construção social do crime no Brasil”. In: Esboços de uma interpretação. Acusados e acusadores: estudos sobre ofensas, acusações e incriminações. Rio de Janeiro, Revan.), um dos dispositivos que produziram no Ocidente moderno os processos de autorregulação e a normalização dos comportamentos foi a socialização da acusação social, na qual o Estado concentra os mecanismos de administração da justiça. Para o autor, a construção social do crime se produz em quatro níveis:

1) a criminalização de um curso de ação típico idealmente definido como “crime” (através da reação moral à generalidade que define tal curso de ação e o põe nos códigos, institucionalizando sua sanção); 2) a criminação de um evento, pelas sucessivas interpretações que encaixam um curso de ação local e singular na classificação criminalizadora; 3) a incriminação do suposto sujeito autor do evento, em virtude de testemunhos ou evidências intersubjetivamente partilhadas; 4) a sujeição criminal, através da qual são selecionados preventivamente os supostos sujeitos que irão compor um tipo social cujo caráter é socialmente considerado como “propenso a cometer um crime”.

Em outras palavras, pode-se afirmar que existe um primeiro nível da construção social do crime, no qual se institucionaliza a reação moral a determinado comportamento em códigos e leis. Em outro nível existe a incriminação cujos testemunhos são periciais, evidências colocadas em um processo público no qual se acusa um indivíduo do cometimento de um crime. E, em um nível mais profundo, existe a sujeição criminal na qual o processo de acusação social reiterado sobre alguns grupos e indivíduos produz um sujeito particular que retira sua identidade social do estigma negativo de criminoso. Para a sujeição criminal ocorrer é necessário que o estigma de “bandido” passe a produzir uma forma peculiar de comportamento que coloque o agente como parte do “mundo do crime” do qual são retirados os mecanismos que produzem sentido às suas práticas.

Neste trabalho, daremos foco aos dois primeiros níveis de acusação social (criminação e incriminação), observando que por meio dos documentos analisados não é possível mensurar quanto a subjetividade dos agentes foi afetada ou subjugada pela incriminação. O objetivo é entender como se dão estes processos de incriminação.

Lemgruber e Fernandes (2015LEMGRUBER, Julita & FERNANDES, Marcia. (2015), “Tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro: prisão provisória e direito de defesa”. Boletim Segurança e Cidadania, 17: 1-50.), analisando a prisão em flagrante de 1.330 pessoas acusadas por tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro em 2013, chegam à conclusão do abuso do instrumento da prisão provisória, o que acarreta custos excessivos para o Estado, além de potenciais danos muitas vezes graves aos presos. Segundo as autoras:

A prisão provisória não funciona apenas como recurso excepcional para o bom andamento do processo, mas, em grande medida, como dispositivo de segurança pública, não importando que sua eficácia como tal seja altamente duvidosa na prática. Soma-se a isso a seletividade perversa do sistema, que, desde os tempos coloniais, define se a prisão é necessária ou desnecessária, adequada ou inadequada, suportável ou desumana, conforme a “qualidade” social do réu. No caso específico de acusação de tráfico, o suposto benefício da prisão cautelar para a “ordem pública” assenta ainda num imaginário demonizador das drogas, que, contra toda e qualquer evidência, pinta todo e qualquer traficante como um perigosíssimo inimigo da sociedade (Lemgruber e Fernandes, 2025, p. 24).

Outro fator decorrente do sistema penal do flagrante é que, pela natureza das ocorrências, a grande maioria dos crimes que entram no sistema são aqueles com baixa complexidade e com pequena demanda probatória, basicamente os crimes contra o patrimônio e os relacionados ao tráfico ilícito de pequenas quantidades de drogas. Quase sempre o flagrante é visto como suficiente para a elucidação do caso, atentando que estariam supridas as provas de autoria - o suspeito foi preso na prática do ato ou logo após - e que a materialidade do crime seria também facilmente provada pela apreensão dos bens ou da droga em questão, tudo reafirmado pelo testemunho dos policiais militares responsáveis pela prisão (Jesus, 2016JESUS, Maria Gorete Marques de. (2016), O que está no mundo não está nos autos: a construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráfico de drogas. São Paulo, tese de doutorado em Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.).

Perfil dos presos provisórios de roubos e furtos

A produção acadêmica (Lourenço, 2019LOURENÇO, L. C. (coord.) et al. (2019), Dispositivo punitivo e prisão: um estudo dos prontuários de uma unidade destinada a presos provisórios, Salvador/BA (2017-2018). Salvador/BA, Lassos. [Relatório de pesquisa]. Disponível em http://www.lassos.ffch.ufba.br/wp-content/uploads/RELATÓRIO-2019-dispositivo-punitivo-em-ação-relatório-de-pesquisa-dez-1.pdf, consultado em 06/06/2020.
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) e institucional (Brasil, 2019) vem consolidando que o sistema de justiça penal recruta seus alvos em um grupo populacional muito específico: jovens, negros, com baixa escolaridade e que ocupam posições precarizadas no mercado de trabalho. Esse grupo é o mais vigiado, sendo os seus crimes, principalmente os relacionados a tráfico de entorpecentes e crimes patrimoniais de pequenos valores, os mais punidos. Essa “seleção” ocorre primeiramente pelo policiamento ostensivo realizado pelos policiais militares. Essas dinâmicas de vigilância se relacionam sensivelmente com aspectos territoriais e simbólicos. Conforme Sinhoretto, Silvestre e Schlittler (2014SINHORETTO, Jacqueline; SILVESTRE, Giane & SCHLITTLER, Maria Carolina. (2014), Desigualdade racial e segurança pública em São Paulo: letalidade policial e prisões em flagrante. Sumário executivo. São Paulo, Universidade Federal de São Carlos - Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos. Disponível em http://www.ufscar.br/gevac/#sthash.KiXLiLc4.dpuf, consultado em 11/2020.
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), os policiais militares negam que sua atuação seja baseada em critérios raciais. Eles afirmam que suas abordagens levam em consideração o “tirocínio”, ou seja, um conhecimento prático, aprendido com a experiência nas ruas, com o qual são capazes de identificar com um “bater o olho” o indivíduo que está cometendo um crime. A “atitude suspeita” é uma mistura de modo de vestir, com roupas largas, geralmente ostentando marcas famosas, nem sempre originais, como também bonés, tatuagens, óculos escuros, cabelos cortados “na régua” etc., e o próprio território, “conhecido” como ponto de venda de drogas. Neste sentido, mesmo negando a exigência de critérios raciais para a abordagem, os policiais descrevem a identificação de características socioculturais utilizadas pelas juventudes negras das periferias das cidades brasileiras. Esses fatores redundam na sobrerrepresentação desses grupos em prisões em flagrante, não porque eles necessariamente cometam mais crimes, mas por serem mais vigiados, tendo a probabilidade maior de serem apanhados pela malha do sistema de justiça penal.

Os dados retirados dos prontuários corroboram as taxas nacionais, mas possuem algumas particularidades que é importante mencionar. Em relação à idade, foi obtida a média de 25 anos para o crime de roubo, e 32 no de furto. Portanto, confirma-se a tendência de maior persecução penal em relação a essa faixa etária. Outro aspecto a ser ressaltado é a diferença relevante de idade entre os acusados de furto em relação aos de roubo, sendo os primeiros sete anos mais velhos em média. Em termos de raça/cor, a categoria utilizada pelos prontuários foi a de “cútis”, que se classificava em pardos, pardos claros, pardos escuros, negros, brancos e amarelos. Para o crime de roubo obtiveram-se os percentuais de 35,18% de pardos, 28,06% de negros, 18,97% de pardo claro, 10,28% de pardo escuro, brancos 6,72% e amarelos 0,79%. No crime de furto chegou-se às seguintes taxas: 42,50% pardos, 27,50% negros, 17,50% pardos claros, 12,50% pardos escuros, nenhum branco e nenhum amarelo. Quando realizamos, na medida do possível, a conversão para as categorias utilizadas pelo IBGE (pardos, pretos, brancos, indígenas e amarelos) e somamos pretos e pardos em negros, conseguimos as seguintes porcentagens: 92,49% de negros, 6,72% brancos e 0,79% amarelos. No crime de furto chegamos ao incrível número de 100% de negros. Tendo em vista que a população negra do estado da Bahia é de 80,8%4 4 . Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o ano de 2022 , pode-se concluir que estes estão proporcionalmente sobrerrepresentados nas estatísticas de presos provisórios acusados nos crimes de roubos e furtos.

Em termos de estado civil apresentam-se os seguintes dados: nos crimes de roubo 63% se declararam solteiros; 27,97% disseram estar “amigados”; apenas 5,08% se declararam casados, e 0,42% viúvos. Já nos crimes de furto, 71,8% se declararam solteiros; 23,08% disseram ser “amigados”, 2,56% casados, e 2,56% divorciados, ao passo que não houve registro de viúvos.

Nos dois casos existe uma maioria do número de presos declarados solteiros, sendo 63% em roubos e 71,8% em furtos. Pode-se observar na leitura dos prontuários que muitos dos presos que se disseram solteiros apontaram uma companheira como contato familiar para comunicação da prisão; nesse sentido, é razoável intuir que os autuados têm a percepção de que o estado não considera como válidas suas uniões não formalmente constituídas. Também é importante apontar que entre os presos por furto o número de casados é ainda menor - 2,56% -, apresentado como mais um sinal de vulnerabilidade, conforme será mostrado adiante.

Em termos de instrução formal, podemos observar a pouca escolarização em ambos os crimes analisados: em roubo 59,83% dos presos possuíam o primeiro grau incompleto5 5 . Esta nomenclatura foi substituída por diretriz do Ministério da Educação por Ensino Fundamental. ; 8,12% primeiro grau completo; 12,82% segundo grau incompleto; 14,1% segundo grau completo; 0,43% superior incompleto; 0,43% superior completo; 1,28% rudimentar; e 2,99% não alfabetizado. Para o crime de furto obteve-se: 67,5% de presos possuíam o primeiro grau incompleto; 10% primeiro grau completo; 7,5% segundo grau incompleto; 7,5% segundo grau completo; 7,5% não alfabetizados; e nenhum autuado por furto apontou ter alcançado o ensino superior. Como pode ser analisado, no Brasil 53,2% das pessoas com 25 anos ou mais de idade concluíram a educação básica obrigatória; ou seja, possuíam, no mínimo, o ensino médio completo em 2022. Em termos nacionais a taxa é de 28% os que possuíam apenas o ensino fundamental incompleto. Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC, 2022), na Bahia, 39,3% das pessoas com 25 anos ou mais são classificados como sem instrução e ensino fundamental incompleto; 11% fundamental completo e médio incompleto; 36,3 % médio completo e superior incompleto; e 12,9% superior completo. Desta maneira, pode-se afirmar que a população de presos analisada possui um nível de escolaridade muito menor que a média tanto nacional quanto do estado da Bahia.

Em se tratando de ocupações, para melhor análise dividimos as respostas em duas categorias: especializadas e não especializadas. Consideramos especializadas as profissões que necessitassem no mínimo de um curso técnico de nível médio para o exercício. Chegamos aos seguintes números: para o crime de roubo, 87,5% das respostas foram consideradas ocupações não especializadas (lavador de carros, servente de pedreiro, feirante, ambulante, ajudante de pintor etc.); enquanto que 5,6% foi considerada especializada (eletricista, operador de máquinas, técnico em informática, auxiliar administrativo etc.); 0,86% se declarou estudante; 1,3% desempregado; e 4,74% sem profissão. Já no crime de furto se chegou aos seguintes números: 90,24% entraram para a categoria de ocupação não especializada, 2,44% desempregado; 4,88% sem profissão; e apenas 2,44% especializada (corretor de imóveis), e nenhum estudante.

Destes números gostaria de apontar alguns elementos que julgamos importantes. Em primeiro lugar, podemos concluir que o sistema de justiça penal seleciona os seus alvos entre as camadas mais vulneráveis da sociedade, com a grande maioria dos presos sendo integrados ao mercado de trabalho em ocupações não especializadas, que por um lado reproduzem os baixos níveis educacionais e por outro impõem trabalhos com baixos salários e precarizados, ou seja, sem nenhuma seguridade social. Outro fator relevante que se pode inferir, a partir destes dados, é que os presos consideram importante apresentar aos mecanismos de controle social a participação, mesmo que precária, no mercado de trabalho, sendo baixo o número de presos que declaram não possuir profissão. E por fim, é possível verificar que os presos por furto também neste quesito se encontram em desvantagem aos de roubo, tendo os primeiros a taxa de profissões especializadas inferior à metade da taxa dos segundos.

Outro dado pesquisado foi a constituição de advogado particular. Sabe-se que a lei brasileira garante que caso o autuado não possua condições financeiras para a contratação de advogado, o Estado será obrigado a fornecer a defesa através da defensoria pública ou da contratação de um advogado dativo. No entanto, mesmo com a recente valorização da carreira de defensor público, pode-se afirmar que em quase nenhum estado da federação as defensorias públicas contam com estrutura e efetivo suficientes para suprir a quantidade de demanda. Por consequência, a falta da constituição de advogado particular ainda pode ser caracterizada como um obstáculo ao acesso à justiça. Neste contexto, obtiveram-se os seguintes dados: em relação aos presos pelo crime de roubo 55,65% constituíram advogado, e 44,35% não constituíram advogado. Já para os presos de furto apenas 10,26% constituíram advogado, e 89,74% não constituíram advogado. Um aspecto é importante ressaltar: tendo em vista que a grande maioria dos presos antes de entrar na unidade passaram por uma audiência de custódia, na qual aqueles que ainda não constituíram advogado são obrigatoriamente assistidos pela defensoria pública, é possível que exista uma confusão na resposta entre advogados particulares e públicos. Todavia, a discrepância entre a quantidade de constituição de advogados entre as duas categorias de crimes parece confirmar que na hora de responder esse quesito os presos têm com clareza a diferenciação de tipo de defesa.

Os crimes de roubos e furtos são de natureza patrimonial; portanto, para que eles se tipifiquem, é necessário existir a intenção de subtrair coisa alheia móvel. Se houver violência ou grave ameaça, caracteriza-se o roubo. Se não houver, a adequação típica será de furto. A observação da coisa pela qual o preso está sendo acusado de subtrair, mais do que expressar o modus operandi de grupos criminosos, ajuda-nos a compreender que tipo de bem jurídico os órgãos de controle estão protegendo. Devido à variedade de coisas subtraídas, reúne-as em três categorias: celulares, carros e outros, tendo em vista que os dois primeiros são de longe as coisas subtraídas mais apontadas. No caso dos crimes de roubo existe uma frequência muito grande de celulares, 58,02%; e carros, 23,75%; e 24,17% outros (bolsas, relógios, correntes, viatura policial, pequenas quantidades de dinheiro etc.). No crime de furto há maior variedade de tipos de coisas subtraídas, sendo 31,71% celulares, 4,88% carros e 63,41% outros (malas, lojas, mercado, farmácia, bolsa, pequenas quantidades de dinheiro etc.). Pode-se constatar que, retirando a relevante frequência de roubos e furtos de automóveis, a maioria dos presos é acusada de subtrair coisas de pequeno valor. Portanto, pode-se concluir que os crimes que obtêm resposta dos órgãos de controle social são aqueles de baixa complexidade probatória, ocorridos em espaços públicos, que atingem a circulação de mercadorias de pequeno valor, mas que possuem fácil revenda.

Outro aspecto importante a ser ressaltado é que existem sensíveis diferenciações entre aqueles que foram presos por roubo e aqueles que o foram por furto. Os presos por furto são em média sete anos mais velhos que os acusados por roubo, no entanto é possível dizer que os presos por furto se demonstram mais “vulneráveis” às categorizações e estereótipos do sistema de justiça penal: são em geral negros, menos escolarizados, em sua grande maioria não constituíram advogado particular e exercem funções ainda mais precarizadas. Em alguns prontuários há informação de que são pessoas em situação de rua e dependentes químicos. Levando em consideração que esse crime ocorre sem exercício de violência, pode-se levantar por hipótese que, se não fossem essas “vulnerabilidades”, estariam em liberdade.

Argumentos utilizados pelos juízes para decretação de prisão preventiva

Esta parte da pesquisa foi realizada com o objetivo de compreender os argumentos mobilizados pelos juízes para justificar a segregação de indivíduos antes mesmo da protelação da sentença, além de observar a existência de relação entre esses argumentos e os fatores de classe e raça. Utilizamos como metodologia a análise documental de decisões interlocutórias que convertem prisões em flagrante em prisões preventivas, referentes a imputações de roubos e furtos ocorridos entre os anos 2015 e 2018 na região metropolitana de Salvador. Como foi dito, essas decisões foram retiradas do acervo digital cedido pelo Lassos. Foram analisadas no total 322 decisões interlocutórias, sendo 278 correspondentes às prisões por roubo e 44 por furto. Para fins de preservar a identidade de todos os envolvidos, não apontaremos a numeração dos processos, mas apenas os prontuários e páginas nas quais se podem encontrar as citações. Antes de partirmos diretamente para a análise dos documentos, é necessário realizar uma breve descrição dos aspectos jurídicos relativos à prisão preventiva, tendo em vista que é a partir deles que a argumentação dos juízes deve seguir.

Aspectos jurídicos da prisão preventiva

Em nossa sistemática constitucional/penal, é imperante que toda pessoa que seja ré em um processo penal seja presumidamente inocente até que haja condenação e não caibam mais recursos. Um dos desdobramentos desse princípio é que, se o Estado deseja suprimir a liberdade de alguém, cabe a ele formar um conjunto sólido de provas que embasem a condenação. Em ocorrendo dúvidas ou insuficiência de provas, o acusado deve ser considerado inocente. Outra consequência lógica desse princípio é que não se pode prender alguém durante o processo, sob pena de se realizar a punição antecipada, que é inconstitucional. Nesse sentido, no âmbito jurídico, para prender alguém no decorrer processual é forçoso que seja extremamente necessário e que se cumpram rígidos requisitos impostos na lei. Óbvio, no entanto, que esses dispositivos legais estão sendo sistematicamente desrespeitados, como apontam os números de prisões provisórias até aqui analisados. Todavia, esses dispositivos jurídicos são muito importantes porque é através deles que os juízes devem fundamentar suas decisões. Tentarei expor rapidamente os aparelhos legais imprescindíveis para compreendermos quais são os argumentos utilizados pelos juízes para decretar as prisões provisórias.

Em sede de audiência de custódia, o Juiz ao analisar um Auto de Prisão em Flagrante (APF) deve verificar a legalidade da prisão flagrante: a) Se a prisão ocorreu nas situações de flagrância apontadas pelo artigo 302 CPP; b) Se todos os direitos constitucionais dos custodiados foram respeitados, incluindo sua integridade física; c) se todos os procedimentos formais estabelecidos pelo CPP foram realizados. E caso o Juiz observar que houve ilegalidades, a prisão deve ser imediatamente relaxada e o custodiado posto em liberdade. Dando seguimento à análise do APF, não havendo ilegalidades, o Magistrado passa a verificar se existe a necessidade de converter a prisão em flagrante em preventiva ou temporária.

As prisões provisórias podem ser divididas em dois tipos: temporária e preventiva. A prisão temporária é regida pela lei 7.960/89 e é cabível quando for imprescindível para a realização do inquérito policial, quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos para o esclarecimento de sua identidade. Tem prazo de cinco dias, prorrogáveis por mais cinco. Dado terem prazo bastante exíguo, as prisões temporárias são menos utilizadas, e não tivemos nenhum caso em nossos prontuários. Já a prisão preventiva pode ser decretada em qualquer fase da investigação policial ou do processo e não possui prazo estabelecido, podendo durar todo o processo. A prisão preventiva pode ser decretada se cumprir os requisitos do artigo 313 do CPP, entre os quais vale destacar o cometimento de crime doloso (quando existe a intenção de perpetrar o crime) e em crimes que possuam pena máxima maior que quatro anos. Também é preciso que esteja presente ao menos um dos motivos autorizadores do artigo 312 do mesmo diploma legal, quais sejam: garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. Outro requisito é que as medidas cautelares alternativas à prisão estabelecidas no artigo 319 do CPP sejam insuficientes ou inadequadas ao caso concreto.

Os doutrinadores (estudiosos do direito) ainda falam que o artigo 312 do CPP impõe que existam concomitantemente Fumus Commissi Delicti (“fumaça da prática de delito”), quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria) e o periculum libertatis (perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado). Esse perigo causado à ordem pública, ordem econômica, processo e aplicação da lei penal deve ser iminente; ou seja, o agente está tentando fugir, ameaçando testemunhas, destruindo provas etc., portanto o juiz tem que apontar no caso concreto qual é o perigo proporcionado pelo agente. Decorre disso que a gravidade do crime por si mesma não fundamenta a prisão preventiva. Em outras palavras, o juiz não pode argumentar, por exemplo, que o crime de roubo é cometido com violência, então deve ser decretada a preventiva, sob pena de se concretizar punição antecipada, que, como já mencionado, é vedada por nosso sistema jurídico. O juiz deve apontar o motivo pelo qual a liberdade daquele indivíduo, naquele caso concreto, representa um perigo para a sociedade.

Periculum libertatis: a produção da não cidadania

Em 100% das decisões analisadas, a motivação autorizadora da decretação de prisão preventiva foi a garantia da ordem pública. Em alguns casos esta motivação era acompanhada da menção a outro fundamento do artigo 312, mas sem aprofundamento fático. Assim sendo, parece-nos importante discutir o que os juízes entendem por ordem pública. Uma fala retirada de uma decisão pode nos ajudar:

Caracterizamos ordem pública como sendo a paz, a tranquilidade no meio social. Com isso entendemos necessária a decretação da medida constritiva para garantir a paz coletiva (Prontuário 93, p. 5).

O trecho nos dá uma pista. “Ordem pública” seria a paz, caracterizada pela ausência de conflitos. Paz esta que deve ser protegida em benefício da coletividade. Mas quem é a coletividade? Observemos o trecho abaixo, retirado de outra decisão interlocutória:

Destarte, o cidadão de bem, a família, enfim, a comunidade local, precisa ser resguardada e colocada a salvo, tanto quanto possível e necessário, de ações como as que são atribuídas ao representado, razão pela qual sua custódia preventiva neste momento é medida que realiza o propósito de contribuição para preservação da ordem pública na comunidade local (Prontuário 474, p. 6).

É possível inferir da passagem acima que a “comunidade”, “coletividade” ou “sociedade”, como se costuma escrever nas decisões, são compostas pelos “cidadãos de bem”, pela família, pela “comunidade ordeira” em contraposição aos “bandidos”, que devem ser afastados para manter a desejada paz social. Portanto, fica claro que existem duas categorias muito bem delimitadas de indivíduos: os cidadãos, cumpridores de seus deveres, que formam uma sociedade sem conflitos e harmônica, e os criminosos, que com suas ações perturbam a ordem pública. E, para os juízes, é dever do Estado proteger os primeiros dos segundos. Outro traço marcante dessa “ordem pública” é a hierarquia e a pronta obediência a esta, como pode ser observado no trecho:

Entende-se por ordem pública a situação e o estado de legalidade normal em que as autoridades exercem suas precípuas atribuições e os cidadãos os respeitam e acatam, sem constrangimento ou protesto. A ordem pública é a tranquilidade e a paz no meio social (Prontuário 581, p. 30).

Quem não respeita a normalidade e o império das regras deve ser prontamente afastado, neutralizado, isolado: “A única medida capaz de fazer com que eles parem de cometer crimes é prendendo-os preventivamente” (Prontuário 543, p. 3).

Em bem da “sociedade geral” aceita-se a relativização dos direitos fundamentais. A prisão preventiva é vista como um mal menor ou mal necessário à proteção de outros direitos, como a segurança e a própria existência da sociedade:

Observa-se que a medida cautelar objetiva a garantia do equilíbrio social, e por tal razão, ou seja, em prol do coletivo, relativiza-se o direito individual, que é o status libertatis (Prontuário 564, p. 6).

Nesta conjuntura, o papel do juiz não é de árbitro imparcial que efetua a mediação de conflitos entre partes. Muito menos de um garantidor de direitos que zela pela produção de um processo penal democrático no qual são respeitados os princípios da ampla defesa e do devido processo legal. O juiz é alguém que combate um inimigo que deve ser neutralizado, e o sistema de justiça uma instituição que deve ser temida:

O Estado tem que reagir a essa guerra deflagrada contra a pacificidade da sociedade. Uma sociedade sem paz é uma sociedade vencida que sucumbe à ação do terror, havendo todos que se engajar nessa luta, com todos os Poderes Constituídos da República cumprindo a parte que lhes cabe, dentro das suas competências, para garantia e manutenção do regime democrático de direito (Prontuário 15, p. 13).

Como em outras passagens, pode-se identificar, sub-repticiamente, que existe uma sociedade idílica, sem conflitos, composta por “cidadãos de bem”, que deve ser protegida de “outros”, causadores de terror, que põem em risco as instituições do Estado e o regime democrático. Não combater estes “outros” retira das instituições sua credibilidade. Segundo eles, a sociedade espera do Estado, principalmente das instituições encarregadas do controle penal, uma posição dura sobre os criminosos, punindo-os com rigor e agilidade:

A prisão preventiva com fundamento na garantia da ordem pública visa prevenir a reprodução de fatos criminosos, bem como acautelar o meio social e a própria credibilidade da justiça ante a gravidade do crime e sua repercussão (Prontuário 47, p. 10).

A repercussão social de um crime pode levar a sociedade a perder sua confiança na justiça e na capacidade do Estado em reprimir os criminosos, dissuadindo novas práticas delitivas. Esta perda de confiança pode levar o cidadão a pensar que o “crime compensa”, por trazer “ganhos fáceis” (Batista, 2003BATISTA, Vera Malaguiti. (2003), Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Revan.), por meios apartados da ética do trabalho:

Para o homem trabalhador e honesto, viver tornou-se um grande sacrifício e manter-se vivo um grande desafio. A sua luta para sobreviver às omissões do Estado, na garantia dos seus direitos fundamentais, soma-se à angústia de ter que conviver em estado de constante tensão emocional em face da violência crescente. O homem trabalhador e honesto já não sabe se vale a pena lutar para possuir nem o mínimo necessário a uma vida digna, quando até mesmo este se encontra ameaçado (Prontuário 15).

Há um crescente aumento na incidência de roubos de carros, ilícito que desperta o clamor público e abala a ordem social, pondo em xeque a consciência coletiva no tocante à efetividade da norma penal proibitiva e da própria credibilidade do sistema penal estatal (Prontuário 14, p. 16).

Neste contexto semântico, o que separa a “sociedade” dos “criminosos”, dos inimigos, é o trabalho. O “homem honesto”, classificação sempre no masculino, é o arquétipo oposto àquele que retira do crime seu sustento. Mas quem seriam considerados criminosos? Alguns trechos expressam a composição deste grupo:

Logo, é(são) pernicioso(s) para convivência social, solteiro(s), desempregado(s), e em liberdade podem significar perigo a ordem pública, e ainda, tentado(s) a perturbar a prova, e se condenado(s), criarão embaraço ao cumprimento da pena, afastando-se do distrito de culpa” (Prontuário 352, p. 13).

[…] não possui profissão definida nem residência fixa, evidenciando está voltado a prática de condutas criminosas como meio fácil de obter ganhos […] (Prontuário 408, p. 6)6 6 . Os trechos citados dos prontuários estão conforme os originais, sem correções ortográficas. .

Os trechos catalogam quais grupos são considerados perigosos à ordem pública: solteiros, desempregados e aqueles “sem profissão definida nem residência fixa”. É o acesso ao trabalho e ao consumo que medeia o usufruto da cidadania, conformando direitos e garantias fundamentais aos “cidadãos de bens”. Por outro lado, o sistema de justiça penal age separando física e simbolicamente a “sociedade” dos “outros”, que são encarados como criminosos que, ao romperem com a harmonia social, abdicaram desses direitos e garantias próprios do exercício de cidadania.

Como apontado por Alvarez (1996ALVAREZ, Marcos Cesar. (1996), Bacharéis, criminologistas e juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil (1889-1930). São Paulo, tese de doutorado, Departamento de Sociologia, Universidade de São Paulo.), a geração de juristas das décadas de 1930 e 1940 abandonou as categorias raciais utilizadas pela escola positivista de criminologia, que, já à época, sofriam fortes críticas, e adotou a teoria da defesa social. Este conceito, caro à criminologia positivista, tornou-se referencial comum à cultura jurídica deste período, desvinculando-se da sua escola de origem. A ideia de defesa social é uma transformação nos próprios fundamentos do poder de punir. Em outras palavras, o fator legitimador da pena passou a ser a necessidade que a sociedade tem de se defender dos criminosos. A atenção dos juristas abandona os critérios clássicos do crime e se volta para a periculosidade do indivíduo criminoso, isto é, ao perigo que este representa à sociedade. Dessa maneira, seria necessário conhecer esses indivíduos, classificar seu grau de periculosidade e individualizar a pena. O poder punitivo se volta para o futuro, para a prevenção e ressocialização dos criminosos. É possível compreender, neste contexto, portanto, que a adoção do ideário da defesa social exerceu a função de substituir a categoria de raça, que já estava desacreditada, sem perder o poder de controle e disciplinamento do corpo social, elegendo quais são as classes perigosas e as raças perigosas.

Todavia, é importante saber quais são os argumentos utilizados pelos juízes para descrever as situações de iminente perigo à ordem pública. Reunimos em duas categorias as argumentações que são mais utilizadas nas decisões para caracterizar a periculosidade de um agente. São elas: contumácia criminal e modus operandi. Lembremos que é imperativo apontar para a decretação da prisão preventiva o periculum libertatis que aquele determinado indivíduo proporciona à ordem social no caso concreto.

Contumácia criminal

Classificamos como o argumento da contumácia criminal a crença em que determinados indivíduos constroem uma identidade criminosa insuperável e inescapável. A própria personalidade daquele agente estaria corrompida pelo crime de tal maneira que este seria irrecuperável. Observemos o trecho:

Os meliantes se tornam cada vez mais audaciosos e cruéis na execução dos delitos perpetrados e para eles a vida humana não se apresenta com nenhum valor. Desprezam-na eles mesmos as próprias vidas ao arrisca-la por meros vinténs em razão da ausência de valores que não foram internalizados e que, à essa altura, na idade adulta, não mais serão (Prontuário 15, p. 13).

Conforme pode ser interpretado do trecho, não seria mais possível que os autuados internalizassem os valores da “comunidade social”, não restando aos juízes alternativa a não ser apartá-los da sociedade. Se assim não for feito, certamente estes voltarão a delinquir:

[…] desvela a contumácia delitiva patrimonial com o mesmo modus operandi, e, portanto, denota tratarem-se de pessoas com insensibilidade moral aguda e periculosidade em concreto aptas a afrontar a paz e a ordem social, caso permanecem em liberdade (Prontuário 472, p. 4, grifos no original).

A criminalidade, portanto, é parte ontológica irredutível dos autuados, como uma fraqueza moral e psíquica. Essa fraqueza pode se expressar na construção de uma carreira criminosa concretizada pela incidência de antecedentes criminais e reincidências utilizadas como categorias ampliadas, portanto não jurídicas, que embargam qualquer contato com os órgãos de controle social. Os institutos jurídicos dos antecedentes criminais e reincidência, previstos, respectivamente, nos artigos 59 e 61 do Código Penal, são utilizados na dosimetria da pena, aumentando a potencial reprovação do crime. Simplificadamente, é reincidente aquele que comete um crime após ter sido condenado em outro processo há menos de cinco anos. E maus antecedentes referem-se ao histórico criminal de maneira geral. Todavia, os dois institutos dizem respeito a condenações irrecorríveis, sob pena de transgressão do princípio da presunção da inocência. No entanto, nas decisões ora analisadas, são utilizados de forma indiscriminada, expressando a construção de uma carreira criminal e a “personalidade voltada à prática delituosa”. São valorados inquéritos em curso, processos em andamento, passagens por delegacias e, inclusive, acusação de ato infracional, ou seja, praticado enquanto o agente era menor de dezoito anos.

Modus operandi

Outra maneira de expressão de uma personalidade criminosa é o chamado modus operandi, isto é, a maneira como foi praticado o crime. Existe a crença de que, a partir da análise do comportamento de um indivíduo no momento do delito, é possível observar sua personalidade e a probabilidade de ele cometer novos crimes no futuro. O modus operandi inclusive se sobrepõe aos antecedentes, visto que, mesmo não incorrendo nenhum fato pretérito desabonador sobre o autuado, a maneira de agir é suficiente em demonstrar sua periculosidade, justificando a decretação de prisão preventiva. Como visto abaixo:

[…] a forma de execução do crime, a conduta do acusando antes e depois do ilícito, e outras circunstâncias capazes de evidência sua ostensiva periculosidade, abalam a ordem pública e recomendam a segregação cautelar da sua liberdade ambulatorial, mesmo porque a só circunstância de o paciente ser tecnicamente primário, ostentar bons antecedentes e possuir residência fixa não constituem mais do que a obrigação de todo homem de bem, por isso não configuram impedientes a decretação ou (manutenção) da prisão cautelar […] (Prontuário 474, p. 6).

[…] certo é que por si só a primariedade técnica processual e a ausência de demonstração de efetiva periculosidade de personalidade, não são meios suficientes para afastar a segregação cautelar quando há suporto outro que mostram proporcionalidade e adequação do decreto preventivo, evidenciando ser pessoa que tem tendência a prática de conduta delitiva, visando ganhos e lucros fáceis sem que tenha que ter esforço mínimo para tê-lo (Prontuário 137, p. 4).

Como se pode compreender, maus antecedentes, ou seja, algum registro de contato com órgãos de controle penal, são suficientes para dar causa à prisão preventiva, mas o oposto não é verdadeiro, a primariedade não é suficiente para impedir a prisão cautelar, tendo em vista que a periculosidade pode ser demonstrada por outros meios, primordialmente, pelo modus operandi. Outro aspecto importante a ser ressaltado é que o comportamento posterior à prisão também é, para eles, ferramenta fundamental para a compreensão da personalidade do agente. Vejamos:

Certo é, que por si sós, o uso de remédio controlado e a primariedade técnica processual do flagranteado Y7 7 . Foi ocultado o nome do preso. , não afasta a ausência de demonstração de efetiva periculosidade de personalidade, e estes são meios suficientes para a decretação da segregação cautelar quando neste momento a suportes outros que mostram proporcionalidade e adequação do decreto preventivo representado, tais como as próprias declarações dos flagranteados despreocupados e conscientes da ação delitiva, evidenciando os mesmos sentimentos de impunidade instado (Prontuário 220, p. 6, grifos meus).

É possível inferir da fala que existe um comportamento dos presos esperado pelo juiz na audiência de custódia, que inclui temor, arrependimento e reverência. A postura despreocupada, talvez, altiva do autuado irritou o juiz ao ponto de que ela por si só foi suficiente para significar a expressão da personalidade delitiva do agente, motivo da decretação da prisão cautelar.

Outro aspecto fundamental do modus operandi é que ele é um significante vazio, ou seja, pode ser preenchido por qualquer sentido a depender do interesse argumentativo do juiz. O modus operandi pode caracterizar-se por um olhar, palavras de baixo calão proferidas, se foi realizado em festividades, se o preso agiu com agressividade ou outra circunstância específica. Posso apresentar alguns exemplos: o uso de arma de fogo é visto como indício da periculosidade do agente, tendo em vista seu potencial lesivo real à integridade física das vítimas. Todavia, o uso de um simulacro de arma de fogo (arma de brinquedo) também é entendido como expressão de periculosidade, por expressar uma perspicácia (negativa) de enganar as vítimas, mesmo não havendo potencial lesivo real à integridade física das mesmas. Realizar um roubo em espaços públicos movimentados pode anunciar a ousadia e o completo sentimento de impunidade por parte do agente. Por outro lado, roubar em lugares ermos ou pouco frequentados demonstra, também, a personalidade voltada ao crime, tendo em vista que isso é indício de um comportamento planejado, utilizado para escapar impune à persecução penal. Para demonstrar, transcreveremos dois trechos:

A ação não foi praticada altas horas da noite, muito ao contrário; aproveitaram-se da volta para casa das vítimas após o trabalho, ocasião em que se encontravam descontraídas e desatentas (Prontuário 331, p. 6).

Outrossim, a gravidade foi, também, evidenciada pela forma astuciosa de agir quando da abordagem das vítimas, em horário noturno, quando menor o número de pessoas transitando, maior vulnerabilidade das mesmas.

Como se pode depreender dos trechos, a periculosidade dos agentes pode ser expressa em circunstâncias muito diversas, inclusive contraditórias, como nos casos narrados, em que no primeiro trecho o roubo é mais reprovável por ter sido cometido de dia e no segundo por ter ocorrido à noite. Claro que esses argumentos foram utilizados em casos e juízes diferentes, mas o que se deseja destacar é que não existe um padrão mínimo de sentido sobre o que seja modus operandi, podendo ser manejado conforme a conveniência do juiz.

Como era esperado, não foi encontrada nos documentos analisados nenhuma expressão que pudesse ser considerada diretamente racista. Ou seja, não se verificou a existência de insultos raciais, menções à cor da pele, a traços fenotípicos ou qualquer outra característica que possibilitasse a identificação da origem racial dos acusados nos documentos produzidos pelos juízes8 8 . A classificação racial foi formalizada nos cadastros de reclusos. . Todavia, acreditamos que, dentro da lógica do racismo por denegação (Gonzalez, 2020GONZALEZ, Lélia. (2020), Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios intervenções e diálogos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.), a naturalização presente na argumentação dos magistrados racializa os acusados. Conforme Guimarães (2009GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. (2009), Racismo e antirracismo no Brasil. São Paulo, Editora 34.), temos que utilizar a categoria de raça observando-a como uma construção social e histórica, que em detrimento de não ter base biológica factual, tem ação efetiva na realidade determinando como os agentes compreendem, classificam e agem sobre o mundo. Segundo o autor, podemos definir raça como:

O que são raças para a sociologia, portanto? São discursos sobre as origens de um grupo, que usam termos que remetem à transmissão de traços fisionômicos, qualidades morais, intelectuais psicológicas etc. pelo sangue (conceito fundamental para entender raças e certas essências) (Guimarães, 2021GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. (2021), Modernidades negras: a formação racial brasileira (1930-1970). São Paulo, Editora 34., p. 25).

Podem-se observar no discurso dos juízes processos de naturalização do grupo de jovens negros flagranteados, tornando-os raça. Esse processo de racialização (Banton, 2010BANTON, Michael. (2010), A ideia de raça. São Paulo, Edições 70.; Guimarães, 2016GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. (2016). “Formações nacionais de classe e raça”. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, São Paulo, 28 (2): 161-182. https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.109752.
https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.20...
) pode ser identificado nos predicados de ordem psicológica e moral que são atribuídos aos acusados. Estes são apresentados como naturalmente cruéis e amorais, possuindo uma “periculosidade de personalidade”, “índole violenta”, com “tendência à prática de conduta delitiva”. Essas perversões são descritas como inescapáveis e ontológicas, isto é, expressam o “ser” daquele grupo e não podem sofrer modificações, ao ponto em que não existe alternativa senão prendê-los preventivamente antes que estes, fatalmente, voltem a delinquir.

Neste sentido, é necessário observar o racismo como um fenômeno histórico em que devemos “recheá-lo” com contextos de tempo e espaço em suas múltiplas intersecções (Collins, 2015) de raça, classe, sexo e nação. Ante a proscrição de expressões diretamente racistas impostas pela lógica de legitimação do sistema de justiça penal e do racismo por denegação que caracteriza as relações raciais no Brasil, é possível notar que os argumentos utilizados para encarcerar preventivamente jovens negros e pobres racializam este grupo, retirando-os do espaço da cidadania e garantia de direitos.

Considerações finais

Embora a sociologia da violência, do crime e a da punição encontrem evidências de marcadores raciais da punição, ainda é incipiente a compreensão das dinâmicas jurídicas que operam o racismo em nosso país (Freitas, 2016FREITAS, Felipe da Silva. (2016), “Novas perguntas para criminologia brasileira: poder, racismo e direito no centro da roda”. Cadernos do Ceas, Salvador, 238: 488-499.). Deste modo, nosso trabalho busca apontar aproximações possíveis entre os campos da sociologia das relações raciais e a do controle e punição. Também buscamos assinalar a contemporaneidade do problema, tendo em vista que os dados indicam o aumento em números absolutos e proporcionais de encarceramento de pessoas negras nos últimos trinta anos.

Nesse sentido, foi possível observar a existência de um papel ativo do poder judiciário na manutenção das desigualdades de classe e raça, não só reproduzindo a seletividade efetuada pela polícia, mas criando mecanismos próprios de discriminação. Mesmo não havendo em nenhuma decisão menções diretas ao léxico racial, constatou-se que os argumentos utilizados pelos juízes reificam a separação entre “pessoas de bem” e “bandidos”, sendo os primeiros cidadãos e, portanto, portadores de direitos e garantias fundamentais e os segundos não cidadãos que devem ser neutralizados em “bem da paz social”. A separação entre cidadãos e não cidadãos é realizada pelo acesso ao mercado de trabalho. São considerados perigosos os solteiros, jovens, desempregados, moradores de rua, despossuídos, analfabetos etc. A justiça penal é responsável pelo gerenciamento da miséria, e esta é racializada no Brasil. São os negros que ocupam as posições sociais mais vulnerabilizadas, não sendo necessário nomeá-los para que o efeito político das estratégias de controle social seja eficaz.

Os argumentos pelos juízes, participantes da lógica do “mito da democracia racial brasileira” (Fernandes, 2005FERNANDES, Florestan. (2005), A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo, Ática.), não se utilizaram de referência direta a estereótipos raciais; no entanto, atribuíram ao grupo selecionado como “clientela” do sistema de justiça características psicológicas e morais inatas e imutáveis que os retiram do âmbito da cidadania e garantia dos direitos fundamentais, atuando em um ciclo de reprodução das desigualdades raciais. As teorias da defesa social, que se constituem como a tônica da argumentação dos juízes, servem como mecanismo de naturalização desta clientela, atribuindo-lhe características inerentes, imutáveis, racializando-a, portanto, mesmo sem a presença direta do léxico racial. Os indícios aqui levantados mostram que, quando se trata de uma pessoa negra, a presunção é de culpa e não de inocência, sendo a prisão o mecanismo de hierarquização e classificação social.

Referências Bibliográficas

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  • 1
    . Quando não existe mais a possibilidade de recurso.
  • 2
    . Utilizamos a categoria negros como a soma de pretos e pardos. Essa classificação é convencionalmente usada pelos Movimentos sociais negros e no Campo dos Estudos Raciais no país, além de ser oficializada no âmbito jurídico pela Lei nº 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial).
  • 3
    . Apesar de produzida para o contexto do sistema de justiça norte-americano, a ideia de colorblindness proporciona algumas aproximações interessantes que podem nos ajudar a compreender o caso brasileiro.
  • 4
    . Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o ano de 2022
  • 5
    . Esta nomenclatura foi substituída por diretriz do Ministério da Educação por Ensino Fundamental.
  • 6
    . Os trechos citados dos prontuários estão conforme os originais, sem correções ortográficas.
  • 7
    . Foi ocultado o nome do preso.
  • 8
    . A classificação racial foi formalizada nos cadastros de reclusos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    25 Mar 2024
  • Aceito
    22 Abr 2024
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