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François Dosse. A saga dos intelectuais franceses 1944-1989. Volume II: O futuro em migalhas (1968-1989). São Paulo, Estação Liberdade, 2023.

Dosse, François. A saga dos intelectuais franceses 1944-1989. Volume II: O futuro em migalhas (1968-1989). São Paulo: Estação Liberdade, 2023

O “Maio de 68” francês é daqueles acontecimentos que delimitam um antes e um depois. Avaliações distintas à parte, poucos questionam o fato de que o evento significou uma bifurcação não apenas na história política como também nas cenas cultural e intelectual do país europeu - para não falar de suas ressonâncias globais. Em um país que, desde o chamado “caso Dreyfus”, no final do século XIX, quando Émile Zola e outros escritores e acadêmicos se insurgiram contra o processo fraudulento e antissemita que mirava o capitão de origem judaica, ficou conhecido como a pátria dos intelectuais, o impacto não poderia deixar de ser profundo.

Traçar um quadro das consequências intelectuais subsequentes a este “acontecimento-ruptura” é o principal objetivo de François Dosse em O futuro em migalhas (1968-1989), segundo volume de A saga dos intelectuais franceses 1944-1989. Especialista em história intelectual, autor de uma monumental História do estruturalismo, dentre outros trabalhos na área, Dosse apresenta, em O futuro em migalhas, uma visão de conjunto da vida intelectual francesa entre o estrondo de 1968 e a explosão de 1989, simbolizada na queda do Muro de Berlim.

O resultado é uma obra fascinante, em especial pela capacidade do autor de estabelecer “semelhanças de família” entre autores e textos que, embora distintos entre si, compartilham do mesmo espírito do tempo. É assim que Dosse vai descortinando as principais tendências que se sucederam no centro do espaço intelectual francês: do estruturalismo posto sob suspeita após 68, passando pelo breve interlúdio, até 1974, em que se observa a ascensão do marxismo e dos grupos políticos à esquerda do PCF (trotskistas, maoístas, libertários), pela reação antitotalitária desencadeada pela publicação de O arquipélago Goulag, de Alexander Soljenítsin (1974), pelo retorno matizado da ação e da reflexividade dos sujeitos nos anos 1980, até a defesa sem complexos de valores “ocidentais” como a democracia e/ou os direitos humanos nas décadas de 1980 e de 1990.

Mas, como sói ocorrer, a ambição não deixa de cobrar seu preço. Se a explicação convence no atacado, quer dizer, quando define a relação mais geral entre os textos e seus contextos, mais questionável é a abordagem do autor das diversas mediações entre os níveis “internos” e “externos” do processo de produção das ideias. O risco, aqui, é o de fazer dos textos mera expressão de uma época que os engloba, neles enxergando apenas aquilo que confirma o esquema histórico-intelectual pressuposto.

Não é o que pretende Dosse, cuja perspectiva almeja ultrapassar a “alternativa enganosa” entre texto e contexto, de maneira a pensar “os dois polos em conjunto” (p. 18). Nesse sentido, escreve ele, “é vão considerar uma crônica que parasse no limiar das obras, à margem de sua interpretação, que privilegiasse apenas as manifestações históricas e sociais da vida intelectual” (p. 18). Uma coisa, porém, é o que se diz que será feito, outra é o que se faz.

A história reconstituída por Dosse é conhecida. Os anos 1960 se abriram sob a égide do questionamento estruturalista à hegemonia do marxismo, alavancada a partir do pós-guerra. Jean-Paul Sartre, então o principal representante do intelectual total à francesa, do intelectual que se mete onde deve e onde não deve, vai cedendo lugar a nomes como Michel Foucault, para quem o filósofo marxista-existencialista era um grande autor do século XIX!

Mas eis que sobreveio a irrupção de 1968, pouco depois de um jornalista (Pierre Viansson-Ponté, 1968) vaticinar, no Le Monde, que a França estava entediada com a mesmice reinante. Os acontecimentos entre março e junho de 1968 embaralharam o tabuleiro intelectual e político francês. De um lado, puseram um freio na ascensão estruturalista, demonstrando que, de fato, não são as estruturas que saíram às ruas, para lembrar uma provocação da época. De outro, deram novo fôlego, ainda que a contratempo, ao marxismo engajado não apenas de Sartre, senão também de grupos de extrema-esquerda vinculados ao trotskismo, ao maoísmo ou ao autonomismo autogestionário.

O próprio Foucault, aliás, aproximou-se momentaneamente da nebulosa maoísta no pós-68. Enquanto isso, o PCF, outrora imponente, se deparava com o esgotamento da reserva de legitimidade do “Partidos dos Resistentes”, em referência ao seu papel na luta contra a ocupação nazista. Uma mudança tectônica estava em curso, mas seus desdobramentos ainda permaneciam limitados, até que ganharam vazão inaudita em 1974, com o “efeito Soljenítsin”.

É verdade que já havia algum tempo que a União Soviética não fazia mais parte do horizonte de expectativas de parcelas expressivas da esquerda intelectual e/ou política, incluindo Sartre, que se afastara do PCF (do qual era “companheiro de estrada”) por ocasião da invasão da liderança soviética na Hungria, em 1956. No mesmo ano paradigmático de 1968, além do papel tímido e vacilante do PCF nos acontecimentos de maio, a repressão pelas forças do Pacto de Varsóvia da “primavera de Praga”, na Tchecoslováquia, entornou ainda mais o caldo da desilusão.

Mas nada seria comparável, na França, à avalanche precipitada a partir de 1974. A publicação do livro de Soljenítsin serviu como ponta de lança de um novo tema que se tornaria a próxima obsessão dos intelectuais franceses, signo da virada em curso: o totalitarismo. De agora em diante, são os críticos do totalitarismo - cujo alvo era a União Soviética, é claro, mas também o PCF e, para alguns, o marxismo em geral, quando não a própria tradição revolucionária francesa, como no caso de François Furet - que tomam a frente da cena. É o momento da consagração de Raymond Aron, celebrado por ter, ainda em 1955ARON, Raymond. (1955), L’Opium des intellectuels. Paris, Calmann-Lévy., ou seja, em plena hegemonia comunista/sartreana, pregado no deserto contra o marxismo, o verdadeiro “ópio dos intelectuais” (Aron, 1955).

Mesmo a esquerda intelectual já distante do comunismo oficial não passaria incólume ao vendaval antitotalitário. Não são poucos os intelectuais que se distanciaram em definitivo do horizonte marxista, num momento em que o PCF realinhava suas forças em torno do “Programa Comum” com um Partido Socialista revitalizado após o congresso de Épinay, em junho de 1971. Observava-se, assim, um inédito divórcio entre a esquerda política hegemônica e a esquerda intelectual, divórcio que, como mostra François Dosse, nem mesmo a vitória de François Mitterrand (PS) nas eleições presidenciais de 1981 logrou reverter. A situação era muito diferente daquela da vitória da Frente Popular, em 1936, que contou com a adesão entusiasta dos intelectuais.

Nos anos 1980, a virada parecia consolidada. Mais do que o “totalitarismo” soviético, questionava-se agora o próprio horizonte de expectativas que dá sustentação às utopias revolucionárias, com as quais os intelectuais franceses serão acusados de cumplicidade. Em outras palavras: é toda a linhagem dos intelectuais franceses “engajados”, de Zola a Sartre, que é posta em causa, de onde a dimensão da mudança em curso, tanto mais significativa porque protagonizada por figuras muitas vezes oriundas das esquerdas, quer seja do PCF, do maoísmo ou, em menor medida, do trotskismo. Era a mutação do intelectual soixante-huitard, ora mobilizado na exorcização do acontecimento ou, ao menos, na sua domesticação.

Quando tem lugar a queda do Muro de Berlim, em 1989, com o início do fim do socialismo burocrático na União Soviética e no leste europeu, o cenário já estava, portanto, bem adaptado à nova atmosfera intelectual e política - o que não diminui, bem entendido, o impacto do acontecimento. No limite, os anos 1990 intensificam a tendência ventilada na década anterior a respeito do bloqueio das esperanças em um futuro qualitativamente distinto do presente, aspiração vista como irresponsável e como caminho para o totalitarismo. É um novo regime de historicidade que emerge, atingindo em cheio a vida intelectual francesa.

Na ausência de futuro, e com o passado se tornando peça de museu, o presente reina absoluto, um presente dilatado diante do qual não há mais alternativas totalizantes. A fixação no aqui e agora encurta o horizonte de expectativas, impossibilitando o seu descolamento do espaço de experiências, o que bloqueia a relação com a temporalidade histórica que, segundo Reinhart Koselleck (1993KOSELLECK, Reinhart. (1993), “‘Espacio de experiencia’ y ‘Horizonte de expectativa’, dos categorías históricas”. In: Futuro pasado. Para una semántica de los tiempos históricos. Barcelona, Paidós, pp. 333-357.), caracteriza a modernidade. Não por acaso, como mostra Dosse, os anos 1980 e 1990 verão proliferar reflexões intelectuais sobre o “fim”: da modernidade, do progresso, ou mesmo da história, como no caso de Francis Fukuyama. É por isso que, se o primeiro volume de A saga dos intelectuais franceses, dedicado ao período entre 1944 e 1968, é intitulado À prova da História (Dosse, 2021), o segundo é designado O futuro em migalhas (Dosse, 2023). O contraste não poderia ser maior.

No final das contas, François Dosse nos entrega um trabalho de fôlego, entre cujos méritos está uma abordagem para a qual as ideias não nascem e se desenvolvem num espaço abstrato, envolvendo-se, antes, numa trama complexa em que respondem, cada qual à sua maneira, aos desafios impostos pela época. Dosse acerta, por exemplo, ao tratar os desdobramentos intelectuais mais imediatos de “maio de 68”. Ele se recusa a tomar o acontecimento como mera alavancagem de um processo que já estava em curso, marcado pela passagem do estruturalismo ao pós-estruturalismo. “Maio de 68” garante sobrevida ao marxismo antistalinista, mostrando que, se uma tendência de fundo estava de fato em movimento, a sua dinâmica concreta era muito mais acidentada.

A apreciação se torna menos favorável, porém, quando examinados os contornos mais precisos da periodização apresentada pelo autor, em particular no que se refere ao modo como ele encaminha o argumento, privilegiando autores que melhor se adequem à sua periodização geracional, em detrimento daqueles que nela não encontram lugar. Com efeito, Dosse toma como inevitáveis e, mais, como desejáveis as mudanças operadas a partir da segunda metade da década de 1970, inscrevendo-se na onda de valorização de perspectivas intelectuais e políticas de médio alcance, cujo contentamento com os limites das democracias ocidentais se tornava imperativo.

De fato, essa é a linhagem hegemônica, mas ela não anula por completo a emergência de um novo pensamento crítico que, ao invés de se colocar na posição de “guardião do templo”, tira consequências dos acontecimentos acima mencionados a fim de buscar novas saídas que não se circunscrevam aos ditames da democracia liberal e, no mesmo passo, que recusem o flerte com qualquer forma autoritária de socialismo. É uma perspectiva minoritária, evidentemente, mas relevante. Dosse faz referência aqui e ali a alguns dos seus expoentes, como Daniel Bensaïd ou, sobretudo, Cornelius Castoriadis. Entretanto, pouco desenvolve a respeito.

É como se, para reforçar a trajetória dominante estabelecida, Dosse precisasse subvalorizar as margens sem as quais, aliás, o centro não é o que é. Ainda assim, se nos oferece uma espécie de história “oficial” da intelectualidade francesa, o autor nem por isso nos impede de, em contraste comparativo, pensar o que seria uma história subterrânea da vida intelectual do país europeu entre as décadas de 1960 e 1990. Aqui talvez esteja a principal qualidade do livro ora resenhado: ele pode ser lido e bem aproveitado num sentido diferente ao dos argumentos do autor. Em face do oficial, o marginal. Do hegemônico, o emergente. Eis, portanto, para um lado ou para o outro, um livro indispensável.

Referências Bibliográficas

  • ARON, Raymond. (1955), L’Opium des intellectuels. Paris, Calmann-Lévy.
  • DOSSE, François. (2021), A saga dos intelectuais franceses 1944-1989. Volume I: À prova da História (1944-1968). São Paulo, Estação Liberdade.
  • KOSELLECK, Reinhart. (1993), “‘Espacio de experiencia’ y ‘Horizonte de expectativa’, dos categorías históricas”. In: Futuro pasado. Para una semántica de los tiempos históricos. Barcelona, Paidós, pp. 333-357.
  • SOLJENITSYNE, Alexandre. (1974), L’Archipel du Goulag. Paris, Éditions du Seuil.
  • VIANSSON-PONTÉ, Pierre. (15 mar. 1968), “Quand la France s’ennuie…”. Le Monde, Paris (França), p. 1.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    05 Fev 2024
  • Aceito
    20 Maio 2024
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