Resumos
As relações sociais consubstanciais de classe, gênero e raça/cor da pele informam diferenças quando se considera o lugar que músicos ocupam nas formas de vivenciar o campo artístico, seja no trabalho com vínculos duradouros e formais, seja no trabalho intermitente. Os dados estatísticos selecionados evidenciam que o campo da música é, de forma predominante, um espaço constituído de homens brancos (48% do total). As relações sociais de classe acrescentam a importância da origem socioeconômica na formação profissional e no trabalho; em especial dos intérpretes solistas, entre os quais se observa também a predominância de homens brancos.
Trabalho artístico; Músicos; Relações sociais; Trabalho intermitente
Consubstantial social relations of class, gender and race/skin colour inform differences in the ways in which musicians experience the artistic field, whether they are engaged in long-term or intermittent work. Statistical data shows that the music field is predominantly composed of white males (48% of the total). Class relations determined by socioeconomic background also prove important in terms of professional training and work, especially that of soloists, among whom we can again observe the predominance of white males.
Artistic work; Musicians; Social relations; Intermittent work
DOSSIÊ - TRABALHO E GÊNERO: CONTROVÉRSIAS
Os músicos e seu trabalho: Diferenças de gênero e raça
Musicians and their work: gender and race differences
Liliana Rolfsen Petrilli Segnini
RESUMO
As relações sociais consubstanciais de classe, gênero e raça/cor da pele informam diferenças quando se considera o lugar que músicos ocupam nas formas de vivenciar o campo artístico, seja no trabalho com vínculos duradouros e formais, seja no trabalho intermitente. Os dados estatísticos selecionados evidenciam que o campo da música é, de forma predominante, um espaço constituído de homens brancos (48% do total). As relações sociais de classe acrescentam a importância da origem socioeconômica na formação profissional e no trabalho; em especial dos intérpretes solistas, entre os quais se observa também a predominância de homens brancos.
Palavras-chave: Trabalho artístico; Músicos; Relações sociais; Trabalho intermitente.
ABSTRACT
Consubstantial social relations of class, gender and race/skin colour inform differences in the ways in which musicians experience the artistic field, whether they are engaged in long-term or intermittent work. Statistical data shows that the music field is predominantly composed of white males (48% of the total). Class relations determined by socioeconomic background also prove important in terms of professional training and work, especially that of soloists, among whom we can again observe the predominance of white males.
Keywords: Artistic work; Musicians; Social relations; Intermittent work.
Introdução
Nos meus mais de trinta anos de pesquisa em sociologia do trabalho, ir além das relações sociais de classe respondeu às exigências dos próprios objetos e suas análises. As relações de gênero foram incorporadas às pesquisas a partir da compreensão, evidenciada nos resultados obtidos, de que os trabalhadores têm dois sexos e que percebê-los assexuados empobrecia a tentativa de captar o social (Souza-Lobo, 2011). No entanto, mesmo reconhecendo que a raça ou a cor da pele distingue e hierarquiza homens e mulheres no mundo do trabalho, até então não havia me debruçado nessa tarefa1 1 . Salvo na condição de orientadora de tese de doutorado de Reis (2012) . .
As relações sociais consubstanciais de classe, gênero e raça/cor da pele informam diferenças observadas nas pesquisas quando se considera o lugar que ocupam e as trajetórias de homens e mulheres nas formas de vivenciar o campo artístico, seja no trabalho com vínculos duradouros e formais (orquestras/corpos estáveis e docência), seja no trabalho intermitente (trabalho artístico de curta duração, financiado por meio de projetos, editais, cachês e outras formas). Os dados estatísticos selecionados evidenciam que o campo da música é, de forma predominante, um espaço constituído por homens brancos (48% do total). As relações sociais de classe, observadas por meio de entrevistas que corroboram os dados, acrescentam a importância da origem socioeconômica na formação profissional; em especial, dos intérpretes solistas, entre os quais se observa também a predominância de homens brancos.
Neste texto, realizo dois movimentos analíticos. Primeiro, caracterizo o trabalho artístico e as mudanças recentes no mercado de trabalho para trabalhadores em espetáculos ao vivo no Brasil, em tempos de políticas que fortalecem o mercado. Segundo, analiso, por meio de estatísticas nacionais, as especificidades do grupo "profissionais dos espetáculos e das artes"; detenho-me nos "ocupados" (ibge/pnad, 2013), destacando o trabalho formal e/ou intermitente, de homens e mulheres, de brancos, pardos e pretos. Recorro a entrevistas e a observações de campo para evidenciar as relações sociais consubstanciais de classe, gênero e raça/cor da pele.
Trabalho artístico: o sentido das mudanças recentes
O artista no mundo das mercadorias vivencia constantes tensões entre o fazer artístico criativo e a compra e venda do seu trabalho, seja sob a forma do assalariamento ou do trabalho intermitente, financiado, sobretudo por cachês e editais. O crescimento da indústria cultural, durante todo o século xx possibilitou a expansão da arte na forma mercadoria e provocou mudanças no trabalho artístico.
De fato, o crescimento dos ocupados no grupo "profissionais dos espetáculos e das artes" entre os trabalhadores no Brasil mostra-se bem superior aos índices de expansão do mercado de trabalho no país. Por exemplo: entre 1992 e 2003, a população ocupada cresceu 16% enquanto o grupo "profissionais dos espetáculos e das artes" ampliou-se em 67% (ibge/pnad, 2004). Esse dado é confirmado quando considerado o período mais recente, de 2003 a 2011, no qual a população ocupada volta a apresentar crescimento de 17%, enquanto os inscritos no grupo referido registram crescimento de 22%. O Estado representa a principal instituição no financiamento das atividades artísticas no país. Nos últimos vinte anos foi crescente a participação das grandes empresas nesse financiamento, incentivado pelas próprias políticas públicas. As mudanças que engendraram o fortalecimento das políticas neoliberais no período têm dupla origem: a primeira é a multiplicação das formas de gestão da função pública por meio de instituições privadas, fundações, organizações não governamentais e organizações sociais (Bresser-Pereira, 1997); a segunda, o crescente financiamento com base na renúncia fiscal (MinC, 2009)2 2 . De acordo com os dados do período de 1996 a 2006, é crescente e constante a captação dos recursos por meio da política de renúncia fiscal. A soma da captação por mecenato no período é de R$ 4,2 bilhões. Exemplo significativo é encontrado no campo da música, no qual o valor captado, de R$ 20,3 milhões, em 1996, cresceu para R$ 78,6 milhões, em 2006 - considerando somente a Lei Rouanet, de âmbito federal (MinC, 2009, pp. 182 e 185). .
As orquestras sinfônicas, pouco a pouco e não sem conflitos, foram transformadas, por meio da ação do próprio Estado, em fundações e organizações sociais, capazes de captar recursos privados para o desenvolvimento de seus programas artísticos. Nesse processo, algumas orquestras foram fechadas e outras reestruturadas. Isso quer dizer que seus músicos foram submetidos a audições, que redundaram em demissões e novas contratações, não mais de acordo com o Estatuto dos Funcionários Públicos, conforme determina a Constituição Federal de 1988, mas na qualidade de trabalhadores temporários ou celetistas.
A reestruturação de orquestra pode ser observada em muitas formações estatais no Brasil3 3 . A exemplo da Orquestra Sinfônica de Sergipe, da Orquestra Sinfônica Brasileira, da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, da Orquestra Filarmônica do Espírito Santo, entre outras. , inclusive no Theatro Municipal de São Paulo (Pichioneri, 2011) ou na história da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), hoje considerada uma referência no país e internacionalmente. Em 1997, audições realizadas no Brasil e na Bulgária selecionaram um terço dos músicos que compõem hoje a Osesp, substituindo os músicos servidores públicos (sobretudo do naipe de cordas), deslocados para compor a Sinfonia Cultura da Fundação Padre Anchieta, encerrada em 2005 por razões políticas e econômicas.
Nesse mesmo sentido, a mundialização da produção contribuiu para a desregulamentação das formas de proteção social relacionadas com o trabalho. Fazer mais por menos passou a ser um dogma a ser respeitado nas relações de trabalho na função pública. Os artistas, de forma singular, expressam essas mudanças, tanto no trabalho considerado formal como no trabalho intermitente, sem vínculos formais. No entanto, eles as expressam de forma heterogênea. Há, no presente, lugares ocupados por homens e mulheres, brancos e não brancos, explicados sociologicamente por meio das relações sociais e não por referências biológicas. Um traço caracteriza os depoimentos dos músicos e musicistas entrevistados: o sentimento de pertencer a uma profissão de prestígio submetida a pressões políticas e partidárias.
Músicos no mundo do trabalho
O desejo manifesto de artistas por autonomia para a realização do trabalho informa e marca suas trajetórias em momentos históricos distintos, como Norbert Elias (1995) analisa na vida e na obra de Mozart e de Beethoven. No presente, se esse desejo permanece e é reiterado nas entrevistas, ele é ressignificado no contexto da indústria cultural (arte que nasce para ser mercadoria) e das políticas neoliberais (arte gerida pelas grandes corporações e pela lógica do mercado).
As relações sociais consubstanciais de classe e gênero (Kergoat, 1993; Hirata, 2002) constituíram uma referência analítica, desde os escritos iniciais (Segnini e Souza, 2003), e foram determinantes nas pesquisas que se sucederam. No entanto, um dado de pesquisa ia ficando evidenciado pouco a pouco pela sua ausência. Nas orquestras analisadas, nos festivais de música que constituíram campo de observação e entrevistas, ou ainda no programa Rumos Itaú Cultural Música, uma pergunta inquietava: onde estavam os músicos pretos ou pardos, num universo visivelmente constituído de homens brancos? Eram pouquíssimos, praticamente inexistentes, de acordo com as pesquisas de campo.
Duas bases de dados permitem referências ao trabalho protegido pela legislação com direitos vinculados ao trabalho: a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (ibge/pnad) e a Relação Anual de Informações Sociais (mte/Rais). É possível, por meio delas, compreender especificidades do trabalho artístico, especialmente músicos. Neste artigo, deter-me-ei nos dados da pnad, pois eles permitem recobrir o conjunto dos ocupados no mercado de trabalho sob os mais diferentes tipos de relações de trabalho, e não apenas aqueles ocupados no mercado formal4 4 . "A pnad é realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (ibge), desde o ano de 1967. Por ser uma amostra, as desagregações na pnad devem ser utilizadas com cautela. Quanto mais desagregada as informações, menos confiáveis elas se tornam. No caso dos 'profissionais das artes e dos espetáculos', a amostra na pnad 2011 é de 1.311 profissionais. Expandida, essa amostra representa mais de 703 mil profissionais. A amostra para 'profissionais da música' é ainda menor, apenas 239 casos; expandida, 127 mil profissionais" (Jungbluth, 2013). .
Os diferentes dados apontam para a mesma direção: os trabalhadores em "artes e espetáculos", especialmente os "profissionais da música", representam um grupo composto de forma predominante por homens, brancos, com elevado índice de escolaridade quando comparados com os ocupados no país, reduzida participação em instituições sindicais (84% não participam) ou previdenciária (78% não contribuem). Os dados atualizados em 2012 reiteram os achados da pesquisa anterior (Segnini, 2006): a reduzida participação no trabalho protegido por direitos sociais e a predominância do trabalho autônomo ou por conta própria, progressivamente submetido à intensa concorrência entre os pares.
O trabalho com registro em carteira, considerado formal, compreendia 46% (42.923.215) do total dos trabalhadores ocupados no país (93.493.067) em 2011. No grupo "profissionais dos espetáculos e das artes", essa percentagem é drasticamente reduzida para 8% (57.845) (ibge/pnad, 2013). Os números reiteram, de forma ainda mais intensa, a situação ocupacional dos músicos: somente 4% (5.661) têm acesso a esse tipo de contrato; além disso, 24% (30.841) se declaram "sem carteira", e 70% (88.887), por "conta própria".
Um duplo movimento pode ser observado nos dados indicados, referente à intensa participação dos artistas, especialmente músicos, nas formas aqui consideradas autônomas de trabalho, traduzidas nos grupos nomeados "sem carteira" e "conta própria". Por um lado, em 2011, eles eram 119.728 (93%) músicos autônomos num total de 127.972 profissionais. Por outro, observa-se o reduzido número de músicos com emprego formal: 12.928, em 2004; 5.661, em 20115 5 . A partir de 2003, a cbo-Dom informa a captação dos dados estatísticos da ibge/pnad, tornando a comparação anual possível. Por essa razão, é mais confiável considerar o período de 2004 a 2011. .
A docência no ensino superior público e o trabalho em orquestras também públicas constituem as principais possibilidades de trabalho formal para o artista da música, conforme as entrevistas tanto com artistas vinculados a formações orquestrais como com aqueles que encontram na atividade musical um trabalho intermitente. Essa condição observada no Brasil é também reiterada em outros países, como a França (Ravet, 2003; Coulangeon, 2004).
Eu me formei em 1995. No final de 1996, comecei a trabalhar na Universidade do Estado [...]. Nós todos somos professores universitários. Só o Eduardo, que é percussionista da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, sua atividade principal. Todos nós vivemos de música; toda a renda nossa é por meio da música. Não só através do quarteto, mas de outros grupos que a gente toca, mais a atividade acadêmica [...]. Na verdade, como músico, você tem que ter vários caminhos, vários meios (F. M., Grupo Monte Pascoal, 21 jun. 2008).
No entanto, observa-se a diminuição do número de ocupados em música, muito provavelmente pela redução de postos de trabalho com vínculo formal por meio das reestruturações e dos fechamentos de orquestras (Segnini, 2008 e 2009).
É expressiva a participação de homens no campo da música. Essa evidência pouco se altera nos anos 2000: em 2003, eles representavam 87% (112.367) do grupo (129.418); em 2011, 85% (108.127) de um total de 127.972 ocupados que se declaravam músicos intérpretes ou regentes, compositores, arranjadores e musicólogos. O discreto crescimento da participação das mulheres no período é traduzido em números e percentagens, com oscilações. Não é possível assegurar, assim, que a participação das mulheres nesse campo artístico seja uma conquista perene, consolidada.
As pianistas que formam o Duo Gisbranco expressam as dificuldades vividas pelas mulheres intérpretes, mesmo quando apoiadas por uma família de músicos com muito prestígio no país. A dupla compreende a questão reconhecendo a predominância dos homens no campo da música, inclusive no piano. "Há mulheres na música, mas infelizmente a maciça maioria é de homens. As pessoas veem com muito bons olhos duas mulheres, duas pessoas jovens tocando piano, mas pouquíssimas mulheres seguem essa carreira" (Bianca Gismonti, Duo Gisbranco, 23 maio 2008). A reflexão de Bianca é complementada por Claudia, que relata possíveis preconceitos em relação à capacidade artística de uma mulher.
Talvez [...] as pessoas duvidem da sua capacidade pelo fato de você ser mulher. Mas aí a gente vai lá e toca! E a pessoa gosta! Acho que existe algum preconceito. Este ano está acontecendo orquestras de mulheres e eu fico reparando que são instrumentistas, estão mostrando serviço. Acho que é engraçado, a gente vai fazer festival e só tem a gente de mulher. Você chega ao teatro e só tem homens. Aí ficam [...] te olhando e você fica se achando estranha. Ainda é muito pouca mulher, tem festival que eu vou e só tem homem tocando (Claudia Castelo Branco, Duo Gisbranco, 23 maio 2008).
A forma de resistência predominante nas desigualdades e estranhamentos vivenciados é elaborada por meio de muito trabalho e qualidade artística, estratégia já apontada em múltiplas pesquisas realizadas em outros campos de trabalho. "Ah! Então, a gente é meio homem macho. A gente é superfoco. Estudamos todos os dias [risos]" (Bianca Gismonti, Duo Gisbranco, 23 maio 2008).
O trabalho das mulheres é fortemente desafiado quando vivenciam a maternidade, momento no qual o referido foco é ameaçado - essa situação é descrita pelas musicistas autônomas e/ou vinculadas às orquestras. Alzira Espíndola relata uma carreira difícil, mas reconhecida pelos pares e público. No entanto, sua condição de mulher, mãe e artista a levou a trilhar complexos caminhos.
Foi um período muito difícil. O marido que eu arrumei era meu empresário. E aí o que acontecia? Eu tinha que trabalhar, porque o trabalho dele era me colocar trabalhando. Eu tinha as crianças para cuidar e não tinha estrutura nenhuma. Eu trabalhava muito! À noite, eu lavava roupa, tinha que fazer tudo. Então, foi bem difícil pra mim. Mas eu era muito nova [...]. Tinha um gás! Tinha saúde [...]. Eu não tinha um minuto pra sentar e falar "O que está acontecendo com a minha vida?". O nenê chorava, a roupa tinha que secar, lavar, amassar uma coisa, passar na peneira, lavar mamadeira. E ao mesmo tempo eu tinha que tocar e pensar no meu repertório e saber o que eu ia oferecer na praça para ganhar um cachê (Alzira Espíndola, 31 jul. 2008).
Musicistas que pertencem aos nomeados corpos estáveis em orquestras sinfônicas (estatais) também relatam as dificuldades vividas na condição de mulheres grávidas ou mães. Em um contexto marcado pelo desrespeito aos direitos trabalhistas, como o observado no Theatro Municipal de São Paulo, as instrumentistas relatam acordos realizados com colegas: assumem um número maior de concertos durante a gravidez, substituindo-os, para, futuramente, serem substituídas por eles durante o breve período em que se ausentam em licença-maternidade (Segnini, 2009).
As mulheres musicistas, altamente qualificadas e escolarizadas, que ocupam postos de trabalho para os quais prestaram concurso público, mas sem acesso a direitos vinculados ao trabalho, expressam formas contemporâneas de vulnerabilidade e intensificação do trabalho, ainda mais visíveis do que as informadas pelos seus colegas músicos.
Continuam [a pagar] pelo seguinte... porque o naipe é coberto, a gente depende do nosso naipe... Um esquema de revezamento, no meu caso, eu sabia que eu ia ter o nenê mais perto dessa época, então eu quis trabalhar mais antes para poder ter mais folga mesmo agora, porque se não pesa muito, fica muito descompensado. Então eu no naipe de violoncelos era quem tinha menos folga, porque eu deixei mesmo para poder ter de fato folga agora, então agora eu estou de folga... Eu me lembro que eu fiquei tão mal uma época que teve demissões, eu estava grávida, ainda mais isso, eu estava grávida da Maria, ai que sensação horrível, nossa, de não saber o que fazer (violoncelista, Orquestra Sinfônica Municipal, 31 ago. 2004).
Uma pianista e solista imigrante no Brasil informa a difícil situação vivida tanto por ela como por suas colegas, brasileiras ou estrangeiras, numa formação orquestral de grande prestígio no país.
O trabalho é árduo: ensaios diários, concertos, já seriam suficientes para comprometer os cuidados com meu filho. Meu marido e minha sogra me ajudam muito. Mas, a pressão maior está na necessidade de estudar muito, participar de gravações, de grupos de câmara, sobretudo de turnês fora do país. Nesse momento é muito sofrido. Nesse momento eu gostaria de ter mais tempo para meu filho. Não só eu: pergunte para todas, elas também sentem isso! (pianista russa, Osesp, 20 jan. 2007).
A difícil articulação entre trabalho artístico e família, ou seja, entre trabalho altamente qualificado que requer estudo permanente e trabalho doméstico é evidenciada nas entrevistas com musicistas, sobretudo pelas que também são mães. Ressalto que essa articulação não foi citada pelos homens músicos entrevistados.
A relação de gênero observada num grupo profissional altamente escolarizado e qualificado articula-se com as relações de classe social, observadas nas próprias exigências para a formação profissional informada por meio das entrevistas. Essa relação se expressa de forma mais intensa entre os solistas, um grupo predominantemente masculino.
Na pesquisa que conduzi, os solistas relatam trajetórias de formação internacional apoiada pelas famílias ou pelas redes sociais por elas estabelecidas. Um exemplo que sintetiza múltiplos relatos e trajetórias é o do músico que ocupava o posto de primeiro violoncelo da Orquestra Sinfônica Municipal em 2006. Filho de mãe pianista e pai produtor rural, aos 16 anos foi para os Estados Unidos e, de lá, para a Europa, com apoio financeiro da família, com o propósito de voltar ao Brasil somente após se considerar formado. Retornou aos 28 anos, quando, após uma árdua formação que lhe exigiu muita disciplina na concretização de seus objetivos e projetos familiares, iniciou sua carreira artística de solista e primeiro violoncelo em renomadas orquestras.
Nesse universo, em que foram ouvidos 240 profissionais ao longo de dez anos de pesquisa, não foi possível, entretanto, entrevistar um só músico ou musicista que se declarasse preto ou pardo. A ausência é um dado relevante. Mas, o que dizem as estatísticas consultadas?
Observando-se o perfil dos profissionais da música segundo sua condição de sexo e raça/cor da pele, vê-se, entre 2003 e 2011, um crescimento de 26% da participação das mulheres brancas (7.619, em 2003; 9.602, em 2011) e de 28% das mulheres pardas (7.283, em 2003; 9.332, em 2011), ao mesmo tempo que ocorre, no mesmo período, uma redução de 42% do número de mulheres que se declaram pretas (2.149, em 2003; 911, em 2011). Quanto aos homens, mesmo que ainda constituam o maior grupo entre os músicos, é observado o decréscimo de 9% do número de músicos brancos (57.968, em 2003; 51.859, em 2011) e de 9,5% homens pretos (10.061, em 2003; 9.670, em 2011) e um reduzido crescimento dos homens pardos da ordem de 2,3% (44.127, em 2003; 45.132, em 2011).
Em suma, minha análise permite afirmar que o mundo da música é um espaço de homens brancos e, o dos solistas, de homens brancos que pertencem a uma elite econômica e social.
Chegados a esse ponto, pode ser cabível concluir que os achados aqui reunidos permitem ilustrar a relevância da categoria analítica "consubstancialidade das relações sociais de classe, de gênero, raça", tendo em vista o entendimento de um campo - o trabalho no meio artístico, mais especificamente no grupo dos profissionais da música - no qual essa discussão tem sido escassamente desenvolvida, notadamente no Brasil.
Novas pesquisas, por certo, ainda são necessárias para compreender melhor a relevância dos lugares de homens e mulheres, brancos e não brancos no campo da música, num contexto de trabalho predominantemente autônomo e intermitente, desprotegido em relação aos direitos do trabalho, mesmo quando observadas formações orquestrais públicas. Diante da fragilização do trabalho desses profissionais, não deixa de ser contraditório o prestígio e a relevância cultural que lhes são atribuídos, frequentemente sob o influxo de fortes ventos políticos e/ou partidários.
Texto recebido em 27/9/2013
aprovado em 27/2/2014.
Liliana Rolfsen Petrilli Segnini é professora titular do Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Educaçãoe do programa de doutorado em ciências sociais do Instituto de Filososofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: lilianaseg@uol.com.br.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Jul 2014 -
Data do Fascículo
Jun 2014
Histórico
-
Recebido
27 Set 2013 -
Aceito
27 Fev 2014