Resumos
Uma das principais controvérsias atuais no campo dos estudos do trabalho e do gênero é a maneira de conceitualizar a interdependência das relações sociais de raça, sexo e classe, que alguns designam por "interseccionalidade", outros por "consubstancialidade". A controvérsia é apresentada a partir de uma perspectiva "situada", avessa à definição da ciência como objetiva e racional. A seguir, o conceito de consubstancialidade é aplicado à análise das relações de gênero, de raça e de classe no trabalho de care, trabalho material, técnico e emocional, em que essas relações aparecem imbricadas.
Interseccionalidade; Consubstancialidade; Gênero; Raça; Classe social; Trabalho do care
One of the principal controversies today in the field of labour and gender studies is the way in which the interdependence of the social relations of race, sex and class is conceptualized, with some authors appealing to "intersectionality" and others to "consubstantiality". The controversy is presented through a "situated" perspective that upturns the definition of science as objective and rational. The concept of consubstantiality is then applied to the analysis of gender relations, race relations and class relations in the care work, as well as the physical, technical and emotional work, in which these relations appear imbricated.
Intersectionality; Consubstantiality; Gender; Race; Social class; Care work
DOSSIÊ - TRABALHO E GÊNERO: CONTROVÉRSIAS
Gênero, classe e raça Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais
Gender, class and race: the intersectionality and consubstantiality of social relations
Helena Hirata
RESUMO
Uma das principais controvérsias atuais no campo dos estudos do trabalho e do gênero é a maneira de conceitualizar a interdependência das relações sociais de raça, sexo e classe, que alguns designam por "interseccionalidade", outros por "consubstancialidade". A controvérsia é apresentada a partir de uma perspectiva "situada", avessa à definição da ciência como objetiva e racional. A seguir, o conceito de consubstancialidade é aplicado à análise das relações de gênero, de raça e de classe no trabalho de care, trabalho material, técnico e emocional, em que essas relações aparecem imbricadas.
Palavras-chave: Interseccionalidade; Consubstancialidade; Gênero; Raça; Classe social; Trabalho do care.
ABSTRACT
One of the principal controversies today in the field of labour and gender studies is the way in which the interdependence of the social relations of race, sex and class is conceptualized, with some authors appealing to "intersectionality" and others to "consubstantiality". The controversy is presented through a "situated" perspective that upturns the definition of science as objective and rational. The concept of consubstantiality is then applied to the analysis of gender relations, race relations and class relations in the care work, as well as the physical, technical and emotional work, in which these relations appear imbricated.
Keywords: Intersectionality; Consubstantiality; Gender; Race; Social class; Care work.
Introdução: conhecimentos situados
Neste texto pretendo trazer ao debate aspectos relevantes das relações entre trabalho e gênero, tomando um ponto de vista "situado", ou seja, teorizando-os a partir de um feminist standpoint ou enquanto situated knowledge (cf. Haraway, 1988; Harding, 1991; Lowy, 2002). Tomarei, para isso, o ponto de partida das conceitualizações que integram, numa unidade indissociável, sexo, raça e classe.
Nessa perspectiva, a ideia de um ponto de vista próprio à experiência e ao lugar que as mulheres ocupam cede lugar à ideia de um ponto de vista próprio à experiência da conjunção das relações de poder de sexo, de raça, de classe, o que torna ainda mais complexa a noção mesma de "conhecimento situado", pois a posição de poder nas relações de classe e de sexo, ou nas relações de raça e de sexo, por exemplo, podem ser dissimétricas. Assim, um primeiro ponto para aprofundamento é a análise do conceito de "conhecimento situado" ou de "perspectiva parcial" da epistemologia feminista a partir dos conceitos de interseccionalidade ou de consubstancialidade. Ambas as conceitualizações partilham, a meu ver, do pressuposto central da epistemologia feminista, segundo o qual "as definições vigentes de neutralidade, objetividade, racionalidade e universalidade da ciência, na verdade, frequentemente incorporam a visão do mundo das pessoas que criaram essa ciência: homens - os machos - ocidentais, membros das classes dominantes" (Lowy, 2009, p. 40) e, podemos acrescentar, brancos.
O que é interseccionalidade?
A vasta literatura existente em língua inglesa e mais recentemente também em francês1 1 . Ver referências listadas no fim deste texto e a bibliografia mais extensa disponibilizada no site www.sociologia.fflch.usp.br/laps. aponta o uso desse termo, pela primeira vez, para designar a interdependência das relações de poder de raça, sexo e classe, num texto da jurista afro-americana Kimberlé W. Crenshaw (1989). Embora o uso do termo a ponto de se tornar hit concept, como denomina Elsa Dorlin (2012), e o franco sucesso alcançado por ele datem da segunda metade dos anos 2000, pode-se dizer que sua origem remonta ao movimento do final dos anos de 1970 conhecido como Black Feminism (cf. Combahee River Collective, 2008; Davis, 1981; Collins, 1990; Dorlin, 2007), cuja crítica coletiva se voltou de maneira radical contra o feminismo branco, de classe média, heteronormativo.
A problemática da "interseccionalidade" foi desenvolvida nos países anglo-saxônicos a partir dessa herança do Black Feminism, desde o início dos anos de 1990, dentro de um quadro interdisciplinar, por Kimberlé Crenshaw e outras pesquisadoras inglesas, norte-americanas, canadenses e alemãs.
Com a categoria da interseccionalidade, Crenshaw (1994) focaliza sobretudo as intersecções da raça e do gênero, abordando parcial ou perifericamente classe ou sexualidade, que "podem contribuir para estruturar suas experiências (as das mulheres de cor)" (Idem, p. 54). A interseccionalidade é uma proposta para "levar em conta as múltiplas fontes da identidade", embora não tenha a pretensão de "propor uma nova teoria globalizante da identidade" (Idem, ibidem). Crenshaw propõe a subdivisão em duas categorias: a "interseccionalidade estrutural" (a posição das mulheres de cor na intersecção da raça e do gênero e as consequências sobre a experiência da violência conjugal e do estupro, e as formas de resposta a tais violências) e a "interseccionalidade política" (as políticas feministas e as políticas antirracistas que têm como consequência a marginalização da questão da violência em relação às mulheres de cor) (cf. Idem, ibidem). Essa formulação do início dos anos de 1990, desenvolvida posteriormente pela própria Crenshaw e outras pesquisadoras, tem hoje, na definição de Sirma Bilge, uma boa síntese:
A interseccionalidade remete a uma teoria transdisciplinar que visa apreender a complexidade das identidades e das desigualdades sociais por intermédio de um enfoque integrado. Ela refuta o enclausuramento e a hierarquização dos grandes eixos da diferenciação social que são as categorias de sexo/gênero, classe, raça, etnicidade, idade, deficiência e orientação sexual. O enfoque interseccional vai além do simples reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opressão que opera a partir dessas categorias e postula sua interação na produção e na reprodução das desigualdades sociais (Bilge, 2009, p. 70).
É interessante notar que a problemática da "consubstancialidade" de Danièle Kergoat, que abordaremos na segunda parte deste texto, foi elaborada a partir do final dos anos de 1970 em termos de articulação entre sexo e classe social, para ser desenvolvida, mais tarde, em termos de imbricação entre classe, sexo e raça. Embora ambas partam da intersecção, ou da consubstancialidade, a mais visada por Crenshaw no ponto de partida da sua conceitualização é a intersecção entre sexo e raça, enquanto a de Kergoat é aquela entre sexo e classe, o que fatalmente terá implicações teóricas e políticas com diferenças bastante significativas. Um ponto maior de convergência entre ambas é a proposta de não hierarquização das formas de opressão.
O desenvolvimento das pesquisas feministas na França, o contato com as ideias vindas do outro lado do Atlântico, as interpelações das feministas negras em países onde a opressão racial foi objeto de análise bem antes da França, como é o caso do Brasil, certamente contribuíram para uma sensibilização crescente quanto às relações de poder ligadas à dimensão racial e às práticas racistas. Embora pesquisadoras como Colette Guillaumin (1972, [1992]* * A data entre colchetes refere-se à edição original da obra. Ela é indicada na primeira vez que a obra é citada. Nas demais, indica-se somente a edição utilizada pelo autor (N. E.). 2007) tivessem, na França, conceitualizado o racismo (desde o início dos anos de 1970) e a "raça" (desde os primeiros momentos da existência da revista Questions Féministes, no fim dos anos de 1970), essa conceitualização não se fez em termos interseccionais ou de "coextensividade" da raça, do sexo e da classe social.
O interesse teórico e epistemológico de articular sexo e raça, por exemplo, fica claro nos achados de pesquisas que não olham apenas para as diferenças entre homens e mulheres, mas para as diferenças entre homens brancos e negros e mulheres brancas e negras, como fica claro nos trabalhos realizados no Brasil, mobilizando raça e gênero para explicar desigualdades salariais ou diferenças quanto ao desemprego (cf. Guimarães, 2002; Guimarães e Britto, 2008). A partir dos dados da pnad 1989 e 1999, Nadya Araujo Guimarães mostra que, considerando sexo e raça, os homens brancos possuem os salários mais altos; em seguida, os homens negros e as mulheres brancas; e, por último, as mulheres negras têm salários significativamente inferiores (cf. Guimarães, 2002, p. 13). Também considerando sexo e raça, a partir de levantamentos da Agência Nacional de Empregos (anpe), realizados entre 1995 e 1998 na França, e do questionário suplementar à Pesquisa de Emprego e Desemprego (ped) do Seade/Dieese, recobrindo o período entre 1994 e 2001, Guimarães mostra que os imigrantes estrangeiros ocupam as formas mais precárias de emprego no mercado francês; que as mulheres negras e brancas na França representam os maiores índices de inatividade, mas que há maior número de mulheres negras em relação às brancas desempregadas e nas formas precárias de ocupação. No caso do Brasil, as mulheres brancas e negras têm trajetórias duradouras nas ocupações de menor prestígio e de más condições de trabalho, como o emprego doméstico, atividade em que as mulheres negras são mais numerosas. Ambas estão também sobrerrepresentadas no item desemprego. Homens brancos e negros estão sobrerrepresentados nas trajetórias de emprego formal e de trabalho autônomo, embora os últimos em menor proporção. Eles têm trajetórias marcadas pela instabilidade de forma mais marcante que os homens brancos, indicando maior vulnerabilidade (cf. Guimarães e Britto, 2008, pp. 51 ss.).
Mas há também um interesse jurídico em articular sexo e raça. Isso ficou cabalmente demonstrado por Crenshaw (2010) quando ela se refere ao caso de um contencioso jurídico na fábrica da General Motors nos Estados Unidos, que ilustra bem o que é interseccionalidade: o tribunal desagregou e recusou a acusação de discriminação racial e de gênero por parte de mulheres afro-americanas afirmando que a gm recruta afro-americanos para trabalhar no chão de fábrica e que também recruta mulheres. O problema sublinhado por Crenshaw é que "os afro-americanos recrutados pela gm não eram mulheres e que as mulheres que a gm recrutava não eram negras. Assim, embora a gm recrutasse negros e mulheres, ela não recrutava mulheres negras" (Idem, p. 91).
Enfim, há ainda um interesse político em articular sexo e raça (cf. Delphy, 2012), elementos indissociáveis para uma luta unitária. Ele tem sido demonstrado pelas teorias da interseccionalidade e da consubstancialidade, que situam a prática no prolongamento da teoria, embora a questão do véu islâmico na França tenha, ao mesmo tempo, indicado as dificuldades dessa conjunção e as controvérsias relacionadas com a opressão de raça e à opressão de sexo.
Interseccionalidade ou consubstancialidade?
A ideia de articular relações sociais de sexo e de classe foi proposta na França desde o final dos anos de 1970 por Danièle Kergoat (1978), que quis "compreender de maneira não mecânica as práticas sociais de homens e mulheres diante da divisão social do trabalho em sua tripla dimensão: de classe, de gênero e de origem (Norte/Sul)" (Kergoat, 2010, p. 93). A ideia de "genrer" a classe e "classer" o gênero foi desenvolvida ao longo da sua trajetória desde o artigo de 1978 e esteve na origem da criação de um laboratório, o Grupo de Estudos sobre a Divisão Social e Sexual do Trabalho (gedisst) no cnrs, consagrado aos eixos temáticos de gênero e trabalho na França em 1983. Propusemos (cf. Hirata e Kergoat, 1993) um apanhado crítico sobre classe e gênero num artigo que retomava a herança teórica de Christine Delphy em seu texto clássico sobre as mulheres nos estudos sobre estratificação social e discutia as teses de Eric Olin Wright. Proposta similar foi feita no Brasil, também desde os anos de 1980, por Elisabeth Souza-Lobo ([1991] 2011).
A crítica da categoria de interseccionalidade é feita explicitamente por Danièle Kergoat pela primeira vez em conferência no congresso da Associação Francesa de Sociologia (afs) em Grenoble, em 2006, publicada sob forma de artigo em 2009 e traduzida no Brasil em 2010. No artigo citado, ela critica a noção "geométrica" de intersecção. Segundo Kergoat, "pensar em termos de cartografia nos leva a naturalizar as categorias analíticas [...]. Dito de outra forma, a multiplicidade de categorias mascara as relações sociais. [...] As posições não são fixas; por estarem inseridas em relações dinâmicas, estão em perpétua evolução e renegociação" (Kergoat, 2010, p. 98).
Essa crítica é aprofundada na introdução do seu recente livro, Se battre, disent-elles (2012), pelos seguintes pontos: 1) a multiplicidade de pontos de entrada (casta, religião, região, etnia, nação etc., e não apenas raça, gênero, classe) leva a um perigo de fragmentação das práticas sociais e à dissolução da violência das relações sociais, com o risco de contribuir à sua reprodução; 2) não é certo que todos esses pontos remetem a relações sociais e talvez não seja o caso de colocá-los todos num mesmo plano; 3) os teóricos da interseccionalidade continuam a raciocinar em termos de categorias e não de relações sociais, privilegiando uma ou outra categoria, como por exemplo a nação, a classe, a religião, o sexo, a casta etc., sem historicizá-las e por vezes não levando em conta as dimensões materiais da dominação (cf. Kergoat, 2012, pp. 21-22).
A meu ver, o ponto essencial da crítica de Kergoat ao conceito de interseccionalidade é que tal categoria não parte das relações sociais fundamentais (sexo, classe, raça) em toda sua complexidade e dinâmica. Entretanto, há outra crítica que nem sempre fica explícita: a de que a análise interseccional coloca em jogo, em geral, mais o par gênero-raça, deixando a dimensão classe social em um plano menos visível.
De uma maneira mais global, creio que a controvérsia central quanto às categorias de interseccionalidade e consubstancialidade se refere ao que chamo "interseccionalidade de geometria variável". Assim, se para Danièle Kergoat existem três relações sociais fundamentais que se imbricam, e são transversais, o gênero, a classe e a raça, para outros (ver a definição de Sirma Bilge acima) a intersecção é de geometria variável, podendo incluir, além das relações sociais de gênero, de classe e de raça, outras relações sociais, como a de sexualidade, de idade, de religião etc.2 2 . A inclusão da sexualidade na análise interseccional faz parte do debate atual sobre gênero e sexualidade na França, como se pode constatar pelo balanço recente sobre o tema realizado por Isabelle Clair (2013). .
A interseccionalidade ou a questão da imbricação das relações sociais nas teorias do care
Nesta terceira parte comentarei as teorias atuais do care quanto à mobilização do gênero, da classe, da raça, da nação como fatores explicativos da relação de care, e apresentarei, a partir da minha pesquisa comparativa entre Brasil, França e Japão, elementos empíricos sobre a divisão social, sexual e racial no trabalho do care. Joan Tronto é, entre as teóricas do care, quem remete particularmente para a relação entre raça, gênero e classe mobilizada na relação de care, cunhando a expressão "indiferença dos privilegiados", que coloca face a face provedores e beneficiários. Nesse confronto, o polo dos provedores é frequentemente representado por mulheres, pobres, imigrantes, e o polo dos beneficiários é constituído por aqueles que têm poder e meios para serem cuidados sem ter a necessidade de cuidar.
As teorias e os fatores explicativos da desvalorização do trabalho do care
Joan Tronto ([1993] 2009) nos Estados Unidos e Patricia Paperman (2013) na França mostram que o care é provido pelas dimensões de gênero, classe e raça, salientando também a dimensão histórica dessa imbricação das relações sociais no trabalho do care (cf. também Nakano Glenn, 1991, 2013). Como diz Tronto (2009, p. 156), "não é apenas o gênero, mas também o pertencimento de classe e de raça que, na nossa cultura, permitem identificar quem pratica o care e de que maneira". O care revela, segundo Tronto, as relações de poder, pois "os que têm os recursos recebem cuidados independentemente de suas necessidades [...]. Enfim, outras características da sociedade americana, como as desigualdades estruturais de raça e de gênero, tornam-se mais visíveis a partir da perspectiva do care" (Idem, pp. 224-225). Da mesma maneira, Mignon Duffy (2005, 2011) mostra que a provisão do care tem clara conotação de sexo, de classe e de raça, a partir de uma análise histórica baseada em dados de recenseamentos de um século de caring nos Estados Unidos.
O interesse de aprofundar aqui essa questão está no fato de que ela se relaciona estreitamente com o problema de grande atualidade social e sociológica da causa da desvalorização do trabalho do care. Duas explicações têm sido formuladas nesse debate: a das teorias feministas, que consideram que essa desvalorização está na continuidade da desvalorização do trabalho doméstico e de cuidado no âmbito da família, executado gratuitamente pelas mulheres, e a da teoria inovadora de Paperman (2013), em que a vulnerabilidade e a falta de cidadania dos idosos dependentes e dos portadores de deficiências repercutem sobre o status dos cuidadores, que pertencem a uma população considerada de "segunda categoria". Para Paperman, existe assim um "círculo vicioso" entre a desvalorização do trabalho do care e a desvalorização dos seus destinatários: as pessoas e os grupos ditos "vulneráveis".
Relações sociais de classe, de sexo e de raça no trabalho do care
Num texto ainda em vias de redação definitiva, Kergoat (setembro de 2013) enuncia que o care, "no cruzamento das relações sociais de classe, de sexo e de raça, consiste num dos paradigmas possíveis da consubstancialidade". Com efeito, nossa pesquisa sobre "Teorias e práticas do care: comparação Brasil, França, Japão", realizada em 2010-2011 nesses três países3 3 . A pesquisa no Brasil contou com a colaboração de Myrian Matsuo, da Fundacentro, e na França com a colaboração de Efthymia Makridou, doutoranda na Universidade de Paris 8, laboratório cresppa-gtm. , fornece elementos que apontam a confirmação dessa afirmação. A divisão social, sexual e racial no trabalho do care aparece claramente a partir da pesquisa comparativa. Assim, estão envolvidas majoritariamente mulheres, de extratos sociais mais modestos, imigrantes internos (Brasil) ou externos (França). As cuidadoras são em sua maioria as mais pobres, as menos qualificadas, de classes subalternas, imigrantes. São, na França, quase 90% mulheres, no Brasil, mais de 95%. No Japão, uma minoria significativa, mais de 35%, são homens. Quanto à dimensão étnico-racial, na França a maior parte dos cuidadores na região parisiense (Ile de France) são imigrantes, em sua maioria da África Negra e da África do Norte. No caso do Brasil, metade da população das cuidadoras entrevistadas nasceu fora de São Paulo, estado onde realizamos nossa pesquisa nas ilpis (Instituição de Longa Permanência de Idosos). Trata-se, portanto, principalmente de imigração interna. Não encontramos nenhum trabalhador imigrante no setor de cuidados às pessoas idosas durante a nossa pesquisa de campo. No caso do Japão, embora acordos de cooperação econômica com Indonésia (em 2007) e Filipinas (em 2008) tenham sido concluídos a fim de trazer imigrantes para trabalhar no setor do care, essa imigração, dificultada pela legislação japonesa e pela língua, sobretudo escrita, não prosperou. Como diz a socióloga Chizuko Ueno, no caso do Japão as mulheres são o "equivalente funcional" dos imigrantes e se sujeitam ao mesmo tratamento imposto aos imigrantes estrangeiros nos outros países. Enquanto persistir o uso atual da mão de obra feminina não se fará necessário, assim, desenvolver o uso da mão de obra migrante estrangeira (cf. Ueno, 2013).
Nossa pesquisa vai no mesmo sentido. A diversidade e a heterogeneidade dos perfis dos care workers contrastam com o fato de que, nos três países, se trata de um trabalho pouco valorizado, com salários relativamente baixos e com pouco reconhecimento social. Essa igualdade na condição dos care workers (apesar das diferenças salariais entre os países, que dependem dos contextos macroeconômico e social), a despeito da desigualdade nos perfis e nas trajetórias, parece poder ser explicada pelo centro de sua atividade, a de cuidado, realizada tradicional e gratuitamente na esfera doméstica e familiar pelas mulheres. Essa hipótese, formulada pelas teorias do gênero e do care, parece-nos reforçada pela nossa pesquisa de campo.
A consubstancialidade das relações sociais e suas consequências no trabalho do care ficaram claras nos achados dessa pesquisa, que podem ser sintetizados pela ideia sobre o que unifica a população de cuidadores dos três países: no Brasil, trata-se do trabalho informal; na França, da migração; no Japão, é o desemprego e a crise que levam os homens a exercer essa profissão. O ponto unificador desses trabalhadores e trabalhadoras do care é a precarização do seu itinerário profissional. Em cada um dos três países, são os mais vulneráveis que se tornam os provedores do care.
É como categoria vulnerável, portanto, que podemos analisar a reação de um homem, cuidador de origem estrangeira, que se revoltou contra o racismo dos idosos residentes em uma instituição francesa pública, que lhe disseram: "O que você está fazendo no meu país? Quando vai embora?". Ele relata também o caso de um idoso que dizia a um cuidador negro nascido na França, "vá embora para o seu país", ou o caso de uma idosa que procurou uma estagiária branca para lhe aconselhar: "Não faça esse trabalho, deixe esse trabalho aos 'outros'", a mesma que escondia sua caixa de chocolate para oferecer apenas aos cuidadores brancos.
Conclusão
A interseccionalidade é vista como uma das formas de combater as opressões múltiplas e imbricadas, e portanto como um instrumento de luta política. É nesse sentido que Patricia Hill Collins (2014) considera a interseccionalidade ao mesmo tempo um "projeto de conhecimento" e uma arma política. Ela diz respeito às "condições sociais de produção de conhecimentos" e à questão da justiça social (Idem, ibidem). Essa ideia é concretizada por Danièle Kergoat (2012, p. 20) quando afirma a "necessidade de pensar conjuntamente as dominações" a fim de, justamente, não contribuir para sua reprodução.
As pesquisas atuais no campo da sociologia do trabalho e do gênero, tanto na França quanto no Brasil, têm demonstrado o interesse em retomar essas categorias analíticas para avançar no conhecimento da dinâmica e da interdependência das relações sociais e na luta contra as múltiplas formas conjugadas de opressão. Este texto tem a intenção de apresentar as principais controvérsias em torno da interseccionalidade e da consubstancialidade e fornecer pistas de análise a partir da apresentação de uma pesquisa empírica sobre o trabalho de cuidado utilizando esses instrumentos analíticos.
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Texto recebido em 27/9/2013
aprovado em 27/2/2014.
Helena Hirata é socióloga, diretora de pesquisa emérita no Centro Nacional de Pesquisa Científica (cnrs) da França, equipe cresppa-gtm (Gênero, Trabalho, Mobilidades), e professora visitante internacional no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo. E-mail: helena.hirata@gtm.cnrs.fr.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Jul 2014 -
Data do Fascículo
Jun 2014
Histórico
-
Recebido
27 Set 2013 -
Aceito
27 Fev 2014