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Raças e racismos, junções e disjunções

Resumo

Neste artigo, exploro as razões para que se tenha desenvolvido no presente século, no interior da tradição das ciências sociais, a necessidade de se conceituar oracismo, assim como as razões por que tal conceituação é ainda, nos dias que correm, fortemente controversa. Isso me leva a discutir a relação entreracismoeraça, e o desenvolvimento do usoanalíticodo termo raça nas ciências sociais. Ao fazer essa discussão, defenderei duas teses simples, mas radicais: a de que não há como conceituar racismo sem referência a raças, assim como não há racismo sem agência humana.

Palavras-chave:
Raça; Racismo; Sociologia do racismo; Racialização

Abstract

In this article, I explore the reasons why the need to conceptualize racism has developed in this century within the social science tradition, as well as the reasons why this conceptualization is still highly controversial today. This leads me to discuss the relationship between racism and race, and the development of the analytical use of the term race in the social sciences. In making this argument, I will defend two simple but radical theses: that there is no way to conceptualize racism without reference to race, just as there is no racism without human agency.

Keywords:
Race; Racism; Sociology of racism; Racialization

O racismo passou a ser conceituado, tornando-se assim um objeto de investigação científica, apenas quando representou uma ameaça à unidade dos estados nacionais1 1 . Este artigo foi discutido por muitos colegas, entre eles cabe destacar Magali Bessone, Nadya Guimarães e Ana Cláudia Lopes. Uma parte dele, ainda inconclusa, foi publicada no blog da Novos Estudos Cebrap. . Na Europa, principalmente pelo antissemitismo; no caso dos Estados Unidos, quando a segregação racial também ameaçou o mito nacional baseado nas ideias de igualdade de direitos e de liberdade individual. O mesmo vale para as jovens nações latino-americanas, quando estas sentiram a necessidade de buscar maior igualdade social entre seus povos originários, os ex-escravizados e os migrantes europeus. Em seu percurso reflexivo sobre o racismo, a sociologia trilhou dois caminhos distintos, que examino no texto.

O primeiro, que adoto em meus trabalhos anteriores, retoma a conceituação histórica e analítica dos vínculos entre a ideia de raça e o racismo, a partir dos primeiros insights do sociólogo americano W. E. B. Du Bois. É nessa tradição que se desenvolveram conceitos como racialização, racismo institucional; racismo estrutural ou sistêmico. O segundo, recusando o conceito de raça como estranho ao cânone sociológico, favorece o surgimento de análises que se utilizam de categorias comoracismo de classe,racismo da inteligência,racismo culturalouracismo sem raças, dissociando, portanto,raçasderacismo, e tratando esse último como simples forma de essencialização e naturalização das relações sociais.

Como sabemos, a sociologia se voltou desde sua criação para as sociedades nacionais, enquanto a antropologia se dedicou ao estudo de sociedades coloniais. Talvez por isso, a vida social nas metrópoles e a nas colônias foram sempre analisadas em separado. Em ambas, na sociologia e na antropologia, a discussão sobre a existência biológica ou social de raças humanas foi um tema privilegiado para sua constituição - mas o estatuto analítico das raças nas ciências sociais não foi problematizado: as raças figurariam entre os limites biológicos para a ação social, ou seriam produto da imaginação não científica, podendo orientar tais ações; ou ainda, numa visão mais estruturalista, estariam fora do nosso campo científico.

Ao fazer essa discussão, defenderei a tese de que não há racismo sem raças, assim como não há racismo sem agência humana. Embora tal tese possa parecer um lugar-comum, significa que o que entendemos por racismo, seja estrutural ou institucional ou sistêmico, não prescinde de agência, e que essa deve ser explicitada sob o risco de o conceito esvaziar-se numa petição de princípios.

As ciências sociais no começo do século XX

Quem se der ao trabalho de revisitar os clássicos das ciências sociais para buscar o conceito de racismo, ou mesmo a palavra, não encontrará nem um nem outra. Comecemos pelas ciências sociais que se desenvolveram nos Estados Unidos, país onde primeiro se implantou um Departamento de Sociologia, na Universidade de Chicago, em 1892, e no qual foi publicado O negro da Filadélfia, por W. E. B. Du Bois, em 1899, livro pioneiro de sociologia empírica. Em A introdução à ciência da sociologia, de 1921, organizado por Robert Park e Ernest Burgess, há capítulos sobre “raças históricas”, mostrando a influência de Du Bois, e “diferenças raciais” e, na Antropologia e vida moderna, de 1928, Franz Boas realça a necessidade de discutir a consciência racial mesmo que não existam raças humanas naturais. Em nenhum dos dois livros se menciona a palavra “racismo”, tanto quanto Du Bois não a menciona em seu trabalho pioneiro. Apesar disso, embora as ciências sociais não se interessassem pelo racismo, o termo já havia aparecido na linguagem comum e fora registrado pelo Dicionário de Inglês de Oxford, segundo nos conta Gene Demby (2014DEMBY, Gene. (6 jan. 2014), “The ugly fascinating history of the word racism”. NPR, https://www.npr.org/sections/codeswitch/2014/01/05/260006815/the-ugly-fascinating-history-of-the-word-racism.
https://www.npr.org/sections/codeswitch/...
), e no Dicionário histórico da Língua Francesa, segundo Magali Bessone (2013BESSONE, Magali. (2013), Sans distinction de race? Une analyse critique du concept de race et de ses effets pratiques. Paris, Ed. Vrin.), significando, respectivamente, segregação de raças em sociedades humanas, ou a teoria da hierarquia das raças.

Por que o jornalismo e a política falavam de “racismo”, ao passo que as ciências sociais ignoravam o termo? A sociologia tratava tais práticas como decorrentes da formação de grupos sociais, do isolamento e da segregação sociais. Interessante, todavia, é que a palavra “raça” foi incorporada à linguagem científica para se referir a grupos ou comunidades assim designadas popularmente, ou seja, como “raças históricas ou sociais”. Isto é, a crença em raças humanas não era um problema em si para a sociologia. Os problemas eram a discriminação, o preconceito, o isolamento, a segregação e o conflito sociais que alimentavam tal crença ou dela decorriam.

Na França, onde Durkheim, na Universidade de Bordeaux, funda em 1898 a revista L’Année Sociologique, a sociologia tem um desenvolvimento teórico distinto, mais realista no sentido filosófico do termo, recusando-se a tomar emprestados conceitos do senso comum e, portanto, retirando da sua preocupação as “raças históricas”. Mais importante, talvez, o banimento da preocupação com “raças” tenha obedecido ao projeto político de moldar a sociedade francesa nos princípios que deveriam reger uma sociedade moderna - um Estado organizado a partir de apenas uma comunidade, a nação, cujos vínculos de solidariedade se dariam por complementariedade orgânica, na divisão do trabalho social. Nesse ideal nacional, ultrapassavam-se, como coisas do passado, sentimentos de pertença religiosa, tribal, étnica, racial, ainda predominantes nas sociedades europeias, mas que, por isso mesmo, ameaçavam a sociedade moderna, tais como o antissemitismo. Na França, portanto, as ciências sociais não se preocupavam nem com raças, nem com racismo.

Vemos, por conseguinte, que a sociologia na França esteve direcionada para estudar o mundo moderno tal como se desenvolvia nas suas metrópoles. O mesmo ocorre na Inglaterra. Já as sociedades “pré-modernas” de outros continentes foram consideradas objeto da antropologia. As ciências sociais europeias, portanto, recusaram-se a entender que a sociedade moderna era também produto do mundo imperial, dos vínculos metrópole-colônia, em que raças existiam. Essas populações foram racializadas pelos europeus, e conceitos tais como clãs, tribos e etnias foram desenvolvidos para estudá-las. Desse berço decorrem dois erros que ainda perduram: o de supor que as sociedades nacionais podem ser estudadas isoladamente de seus vínculos internacionais; e o de supor que cada sociedade em particular seguirá o desenvolvimento histórico dos estados-nação europeus. Funda-se assim a pretensão de universalidade do conhecimento sociológico sem que o fato colonial seja devidamente estudado. Esses erros contaminaram também a sociologia americana, que tem por objeto uma sociedade na qual o fato colonial foi internalizado através da escravização de africanos, da subalternização dos indígenas ameríndios, e da proeminência das raças e do racismo como estruturantes das relações sociais.

Tal status quo do conhecimento sociológico foi abalado apenas nos anos 1930 com o estabelecimento na Europa de políticas estatais e nacionais de discriminação, segregação e aniquilamento físico de raças internas às nações, ou seja, com o desenvolvimento do nazifascismo. Apenas quando aplicada à própria metrópole, ameaçando o estado-nação moderno, a crença na hierarquia das raças passa a ser um problema também teórico. Para dizer de outro modo, o racismo é teorizado quando passa a ameaçar a unidade nacional construída nos países europeus e nos Estados Unidos. Enquanto a hierarquia envolvia apenas a separação entre europeus e seus descendentes, de um lado, e os povos colonizados ou escravizados, de outro, a crença na hierarquia das raças, de certo modo, apesar de negada pelas ciências sociais, refletia o mundo real tal qual ele se estruturava e tal qual era percebido pelos agentes sociais.

Em 1938, aparece em inglês a primeira edição do livro de Magnus Hirschfeld, Racismo, que analisa a doutrina nazista de superioridade racial dos arianos e a sua justificativa para o extermínio e subjugação das demais raças humanas. As ciências sociais, como as demais ciências, se engajam no esforço de guerra contra o nazifascismo, e só então a crença na existência de raças humanas e na sua hierarquia, referida pelo termo “racismo”, passa a ser um problema teórico para as ciências sociais, abarcando não apenas as doutrinas (desigualdade racial como natural), mas as atitudes (preconceitos e valores) e os comportamentos (discriminação, segregação e outras práticas sociais).

No entanto, também nesse momento, o mainstream sociológico incorre em um erro duradouro: toma as raças como se fossem apenas uma crença e o racismo uma doutrina. A partir do enunciado lógico, claro e preciso de que “sem raças, não há racismo”, acredita-se que essa prescrição e o não enunciado da palavra “raça” teriam a virtude de extinguir o racismo. Falhava-se em entender o que, sociologicamente, eram as raças e a sua crença, assim como o que significava o racismo.

Raças e racismo nas ciências sociais brasileiras

As ciências sociais brasileiras se institucionalizam justamente nos anos 1930, quando a inexistência de raças humanas naturais já está bem estabelecida do ponto de vista científico, e quando a crença em raças ameaça as democracias europeias, como vimos. As nossas ciências sociais, em seu nascedouro, seguem de perto as europeias e estadunidense, mais as primeiras no banimento da palavra “raça”, mas nenhuma delas em relação ao racismo. Vale explicar esse desenvolvimento peculiar.

A conjuntura política no Brasil dos anos 1930 foi marcada pelas influências do nazifascismo nas doutrinas políticas locais, como o integralismo, e pela crítica das democracias representativas, como o comunismo. As tensões regionais eram muitas, separatismo em São Paulo, perda de poder de oligarquias regionais para coronéis do sertão, desenvolvimento de bolsões étnicos nos estados do Sul, fortalecimento da consciência racial dos afrodescendentes etc. O grande desafio era reorganizar o Estado de maneira adequada à formação de uma nação moderna, fosse democrática, fosse autoritária. Esse era um mundo marcado por doutrinas políticas autoritárias e estados racistas, tanto na Europa, como nos Estados Unidos. O desafio nacional brasileiro foi também o desafio das ciências sociais que se institucionalizavam, primeiro, em São Paulo, no Rio de Janeiro e depois nas demais regiões: ajudar a construir um Brasil moderno, deixando para trás as teorias raciais que, no começo do século XX, vicejaram nas escolas de Medicina e de Direito. Ademais, era preciso evitar a formação nativa de sentimentos étnicos e raciais entre os afrodescendentes e os oriundos da grande imigração europeia e do Médio e Extremo Orientes.

Dos esforços modernistas nas artes e na política surgiram dois ideais nacionais que serão elaborados e fundidos no Estado Novo de Vargas: o da democracia racial hierárquica, dos paulistas como Cassiano Ricardo (Campos, 2006CAMPOS, Maria José. (fev. 2006), “Cassiano Ricardo e o ‘mito da democracia racial’: Uma versão Modernista em Movimento”. Revista USP, 68: 140-55. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i68p140-155.
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); e o da democracia social, também às vezes chamada étnica, mas preponderante mestiça, de Gilberto Freyre e dos regionalistas nordestinos.

A sociologia, por sua vez, se desenvolverá em quatro faculdades, a partir das quais florescerá no Brasil uma reflexão sobre raças sociais: a Faculdade de Sociologia e Política de São Paulo, onde circularão com força as teorias da escola de Chicago; a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, onde medrará a sociologia francesa, mais estruturalista; a Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, de matriz variada; e a Faculdade de Filosofia da Bahia, onde a influência da antropologia social da Universidade de Columbia será mais marcante. Os nomes desses pais fundadores da reflexão sobre raças sociais no Brasil são conhecidos: Donald Pierson, na FSPSP; Florestan Fernandes e Roger Bastide, na USP; Arthur Ramos e Costa Pinto, no Rio de Janeiro; Thales de Azevedo, em Salvador.

Grosso modo, a problemática das ciências sociais brasileiras sobre raças, nessa fase formativa, pode ser resumida nas seguintes questões: Existem raças sociais no Brasil? Existe preconceito racial no Brasil?

Donald Pierson (1942PIERSON, Donald. (1942). Negroes in Brazil, a study of race contact at Bahia. Chicago, The University of Chicago Press.), o primeiro a conduzir uma investigação empírica sobre o tema, de certo modo pautará o debate subsequente. Suas conclusões foram: não existem raças no Brasil, enquanto grupos sociais, visto que essas pressupõem grupos fechados, tais quais castas, e aquilo que se chamava às vezes raças no Brasil seriam grupos sociais abertos, tais quais classes. Em consequência, os preconceitos devotados aos membros desses grupos seriam mais propriamente diagnosticados como preconceitos de classe e não de raça. Outros autores, brasileiros ou estrangeiros, seguiram a mesma direção, ainda que com nuanças importantes. Franklin Frazier (1942FRAZIER, Franklin. (1942), “Some aspects of race relations in Brazil”. Phylon, 3 (3): 249, 287-295.), por exemplo, não encontrou propriamente preconceito de raça no Brasil, mas observou preconceitos de cor, ou seja, baseados na aparência física, não na ascendência familiar; Oracy Nogueira (1998NOGUEIRA, Oracy. (1998), Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga. São Paulo, Edusp.) distinguiu o preconceito racial de origem, próprio às raças nos Estados Unidos, do preconceito racial de marca, baseado na aparência física, encontrado no Brasil. Thales de Azevedo (1956AZEVEDO, Thales de. (1956), “Classes sociais e grupos de prestígio”. Arquivos da Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia, Salvador, n. 5.) seguiu, grosso modo, as conclusões de Pierson, porém, em sua teoria, o preconceito racial existente no Brasil era mais próximo ao desenvolvido por grupos de prestígio que os preconceitos de classe ou de casta. Marvin Harris (1964HARRIS, Marvin. (1964), “Racial identity in Brazil”. Luso-Brazilian Review, 1 (2): 21-28.), por sua vez, admitiu a existência do preconceito racial, mas, na ausência de grupos sociais propriamente raciais, previu que a segregação, o isolamento ou o racismo não se desenvolveria no Brasil (Guimarães, 1999GUIMARÃES, Antonio S. A. (1999), Racismo e antirracismo no Brasil. São Paulo, Editora 34.).

Florestan Fernandes (1948FERNANDES, Florestan. (1948), “A análise sociológica das classes sociais”. Sociologia, x (2-3): 91-113.) e Costa Pinto (1946COSTA PINTO, Luis A. (1946), Sobre as classes sociais. Sociologia. São Paulo, 8 (4): 242-258.), por outro lado, criticaram o conceito de “classe” usado por Pierson e pelos estudiosos oriundos de Chicago ou Colúmbia, e conceberam as classes como relações sociais estruturantes - e não apenas como grupos sociais abertos. O preconceito racial no Brasil seria, para eles, próprio à sociedade escravocrata, mas persistia no tempo atual, principalmente nutrido pelas classes dominantes à contramão da ordem capitalista e competitiva que se formava. O ethos dessas classes dominantes, de certo modo, influenciava a práxis social geral, principalmente das camadas médias e dos descendentes de imigrantes europeus, generalizando as práticas de preconceito e de discriminação raciais. A grande diferença entre os dois era o modo como avaliavam a formação de organizações negras entre nós. Para Florestan, tratava-se de fenômeno próprio ao Novo Negro insubmisso que se estabelecia nos centros urbanos industriais e modernos; enquanto para Costa Pinto, tratava-se de um fenômeno de alienação das classes médias negras, que, querendo integrar-se à sociedade de classes, não compreendiam o sentido das lutas políticas nas sociedades capitalistas.

Para resumir, podemos dizer que, em geral, para a nascente sociologia brasileira, as raças não existiriam propriamente como grupos sociais, a não ser de modo incipiente. No entanto, o racismo - compreendido como atitudes e comportamentos motivados pela crença na existência de raças humanas hierarquizadas em termos morais e culturais - existia, mas estava restrito a indivíduos isolados ou pequenos grupos. Temos que apontar, todavia, duas brilhantes exceções.

Em O negro no Rio de Janeiro, Costa Pinto define racismo como “a crença na inferioridade inata de certos grupos étnicos”. Fala também em criptorracismo dos brancos, ou seja, o racismo velado, secreto e publicamente negado. Ainda em Costa Pinto (1953, p. 296), encontramos também outra precisão conceitual: “[…] a invocação de fatores biológicos para explicar uma atitude específica de um grupo étnico diante da vida social é o cerne e o núcleo do racismo em qualquer variante ou modalidade”.

Para Bastide e Florestan (1955BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan. (1955), Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo; ensaio sociológico sôbre as origens, as manifestações e os efeitos do preconceito de côr no município de São Paulo. São Paulo, Editora Anhembi.), o racismo é uma ideologia e um conjunto de atitudes e preferências baseadas no preconceito de raça ou de cor. Bastide chega mesmo a parafrasear Sartre (1948SARTRE, Jean-Paul. (1948), “Orphée Noir”. Introdução à Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de langue française, Léopold Sedar Senghor. Paris, Quadrige/PUF.) e teorizar o racismo antirracista dos negros: “Um racismo provisório e mitigado, pois necessário. Um racismo que seja uma técnica para ultrapassar o racismo” (Bastide e Florestan, 1955, pp. 167-8).

Vale a pena complementar que nos estudos empíricos feitos no projeto Unesco, por Thales de Azevedo (1953AZEVEDO, Thales de. (1953), Les élites de couleur dans une ville brésilienne. Paris, Unesco.) e René Ribeiro (1956RIBEIRO, René. (1956), Religião e relações raciais. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura.), o termo “racismo” aparece apenas em citações de informantes ou fontes, com o mesmo sentido então corrente no jornalismo e na política.

Mas racismo, enquanto conceito que envolve mais que ideologia, comportamentos e atitudes, como estando referido a práticas sociais inscritas na estrutura social da sociedade brasileira moderna e capitalista, é primeiramente estudado apenas por Carlos Hasenbalg em sua tese de doutorado de 1979, ultrapassando a visão dos primeiros estudos de Florestan, nos quais o racismo não seria funcional à ordem capitalista, e não teria como alicerce grupos propriamente raciais. Depois de Hasenbalg, uma série de estudos históricos, antropológicos e sociológicos desenvolveram-se rapidamente, procurando desvendar a construção social das raças no Brasil e o racismo como um fenômeno estrutural, no sentido de sua operação acontecer nas práticas de organizações e instituições brasileiras (Munanga, 1999MUNANGA, Kabengele. (1999), Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis, Vozes.; Schwarcz et al, 1996SCHWARCZ, Lilia et al. (1996), Raça e diversidade. São Paulo, Estação Ciência Edusp.; Guimarães, 1999GUIMARÃES, Antonio S. A. (1999), Racismo e antirracismo no Brasil. São Paulo, Editora 34.; D’Adesky, 1997).

Na entanto, devemos reconhecer que tais estudos não atingiram o mainstream da sociologia e da antropologia brasileiras, não tendo circulação ampla fora do círculo de intelectuais negros e ativistas. Mais influentes entre os cientistas sociais brasileiros foram os estudos europeus que teorizam um racismo sem raças, umracismo de classe, um racismo da inteligência, um racismo cultural, dissociando, portanto,raçasderacismo. Isso justifica que nos voltemos de novo para a sociologia francesa do século XX.

Raças e racismo nas ciências sociais francesas do século XX

De certo modo, pode-se dizer que não apenas a derrota militar para a Alemanha em 1940, mas principalmente o racismo que dominava as instituições e a política francesas entre as duas guerras foram responsáveis pela derrocada da Terceira República e pelo alinhamento do governo de Vichy ao nazismo. Não é de surpreender, portanto, que o conceito de raça (biológico) acionado pelas teorias raciais fascistas, já superado e abandonado pelas ciências sociais no século XX, tenha sido completamente banido do léxico científico no pós-guerra em toda a Europa, mormente na França e na Alemanha. Se raça não era um conceito científico ou analítico (tal como definido pela filosofia), nem ao menos era reivindicado por qualquer grupo social ou agrupamento político, não poderia ter qualquer estatuto, seja no discurso acadêmico, seja no político. Apenas a sociologia americana poderia fazer uso êmico dessa categoria com algum proveito, refletindo a formação política dos negros nos Estados Unidos, que assumiram o termo “raça” para se autodefinirem.

A Quinta República, nascida dos estertores do mundo colonial francês, procurou retomar os ideais humanistas de igualdade entre os seres humanos, tradição que remonta ao Iluminismo. Nesse imaginário, as ciências sociais teriam um papel importante na educação dos jovens e dos políticos na construção de um mundo pós-racial. Desafiados pela guerra de libertação da Argélia e pelas acusações de racismo por parte dos argelinos, os humanistas buscaram explicar e combater o racismo, sem reviver a palavra “raça”, tão tragicamente carregada de valores negativos. Contudo, o racismo foi teorizado, então, de modo exemplar, como colonial e sistêmico por Fanon (1952FANON, Franz. (1952), Peau noire, masques blancs. Paris, Éditions du Seuil.), Memmi (1973MEMMI, Albert. (1973), Portrait du colonisé, précédé du portrait du colonisateur. Paris, Payot.), Sartre (1956SARTRE, Jean-Paul. (1956), “Le colonialisme est um système”. Les Temps Modernes, 126: 1371-1386., p. 1386)2 2 . “[…] o colonialismo está se destruindo. Mas ele ainda contamina a atmosfera: ele é nossa vergonha, ele zomba de nossas leis ou as caricatura; ele contagia-nos com o seu racismo […].” e outros, mas, para a maioria dos franceses, o racismo fazia parte de um mundo distante da França metropolitana. Fanon foi o único a chamar a atenção para a persistente racialização de africanos e judeus na ordem republicana (Fanon, 1952, p. 129). De modo geral, portanto, estudava-se e combatia-se o racismo como se esse dependesse apenas da crença biológica em raças humanas, ou seja, dependesse de um conceito ilusório, o qual não valeria a pena transformar criticamente em instrumental analítico, pois era parte do reportório de indivíduos a serem convenientemente educados pelos vários aparatos de socialização erigidos pela República.

Por outro lado, a economia francesa do pós-guerra passou por um boom expansionista que ensejava o desenvolvimento de uma pujante sociedade de bem-estar social, com direitos bem regulados, uma sociedade de classes e de categorias sociais, muito bem retratada e analisada em livros que se tornariam clássicos da sociologia, tais como Bourdieu (1979BOURDIEU, Pierre. (1979), La distinction critique sociale du jugement. Paris, Éditions de Minuit.), Boltanski (1973BOLTANSKI, Luc. (1973), “L’espace positionnel: multiplicité des positions institutionnelles et habitus de classe”. Revue Française de Sociologie, 14 (1): 3-26.), Desrosières e Thévenot (1992DESROSIÈRES, Alain & THÉVENOT, Luc. (1992), Les catégories socioprofessionnelles. Paris, La Découverte.) e muitos outros. Os imigrantes magrebinos e subsaarianos originários das ex-colônias pareciam poder integrar-se à classe operária, ainda que tivessem de sobrepor algumas barreiras xenofóbicas e racistas (Beaud e Pialoux, 2003BEAUD, Sthéphane & PIALOUX, Michel. (2003), Violences urbaines, violence sociale. Genèse des nouvelles classes dangereuses. Paris, Fayard.). Na verdade, o sistema escolar francês parecia, a um só tempo, integrar e hierarquizar socialmente esses imigrantes sem grandes conflitos, a ponto de assemelhar-se a uma reprodução funcional (Bourdieu e Passeron, 1970).

No entanto, depois desses trinta primeiros anos do pós-guerra, vários processos históricos alteraram completamente o mundo social francês, tais como a nova imigração de trabalhadores norte-africanos e subsaarianos das ex-colônias, acompanhada da fragmentação da produção industrial ao redor do mundo, da reorganização do capitalismo internacional, do avanço de novas tecnologias microeletrônicas, da precarização do trabalho e da desorganização dos sindicatos operários. Essas mudanças, catalogadas e estudadas sob diferentes rótulos - mundialização (Boyer et al., 2001BOYER, Robert et al. (2001), Mondialisation et régulations: Europe et Japon face à la singularité américaine. Paris, Découverte.), neoliberalismo (Bourdieu, 1998BOURDIEU, Pierre. (1998), “L’essence du néolibéralisme” [archive]. Le Monde Diplomatique, mars: 3.), precarização (Linhart, 2016LINHART, Danièle. (2016), “Idéologies et pratiques managériales: du taylorisme à la précarisation subjective des salariés”. Sociedade e Estado, 28 (3): 519-539. Recuperado de https://periodicos.unb.br/index.php/sociedade/article/view/5836.
https://periodicos.unb.br/index.php/soci...
) - reacenderam o debate sobre o racismo na França desde o final dos 1970.

Todavia, manteve-se a orientação republicana francesa, tecida em torno da recusa em admitir qualquer comunidade identitária além da nação. Embora tensionada durante todo o tempo do pós-guerra pelas erupções de racismo, provocadas pela guerra da Argélia, pela recepção tensa de imigrantes muçulmanos, pela continuidade do antissemitismo, tal orientação seria reatualizada a cada momento mais conflituoso, por análises que se utilizavam de categorias como o racismo de classe (Mauger, 2011MAUGER, Gérard. (2011), “Racisme de classe”. Savoir/Agir, 17, (3): 101-105.), racismo da inteligência (Bourdieu, 1980BOURDIEU, Pierre. (1980), Questions de sociologie. Paris, Minuit.; Croizet, 2011CROIZET, Jean-Claude. (2011), “Le racisme de l’intelligence”. In: L’Évaluation, une menace? Paris, Presses Universitaires de France, pp. 135-144.), racismo cultural ou racismo sem raças (Balibar e Wallerstein, 1991BALIBAR, Étienne & WALLERSTEIN, Immanuel. (1991), Race, nation, class: Ambiguous identities. Londres, Nova York, Verso.; Balibar, 2013) etc. Esses termos buscavam dissociar raças de racismo, acusando o uso da palavra “raça” como modo de reificação de um termo vulgar, e tratando racismo apenas como um modo de essencialização e de naturalização do mundo social.

Desde os “trinta anos gloriosos” (Fourastié, 1979FOURASTIÉ, Jean (1979), Les trente glorieuses: ou, La Révolution invisible de 1946 à 1975. Paris, Fayard.; Pawin, 2013PAWIN, Rémy. (2013), “Retour sur les ‘Trente Glorieuses’ et la périodisation du second XXe siècle”. Revue d’Histoire Moderne & Contemporaine, 60-1 (1): 155-175.), ou seja, de crescimento contínuo da economia francesa, de construção do Estado de Bem-Estar Social e de estabilização das regras de resolução de conflitos trabalhistas entre 1945 e 1975, apenas duas frestas estiveram abertas para que a reflexão conceitual sobre a raça se desenvolvesse na França, sempre em diálogo com as ciências sociais de língua inglesa. Essas frestas foram os estudos feministas, refletindo sobre concepções naturais de poder, sexo e raça (Guillaumin, 1972GUILLAUMIN, Collete. (1972), L’ideologie raciste. Génèse et language actuel. Paris, Mouton., 1978); os estudos sobre discriminações no mercado de trabalho (De Rudder, 1999; De Rudder et al., 1987; De Rudder et al., 2000). Mais tarde, nesse século, nos estudos históricos sobre as continuidades e descontinuidades entre o antijudaísmo do século XV e o antissemitismo do século XX (Schaub, 2015SCHAUB, Jean-Fréderic. (2015), Pour une histoire politique de la race. Paris, Éditions du Seuil.), emerge também a necessidade de teorizar a raça.

Pois bem, no século XXI, essas três frestas serão responsáveis pelo surgimento na França de uma pletora de estudos empíricos e teóricos sobre o racismo e o estatuto teórico das raças. Sabbagh (2022SABBAGH, Daniel. (2022), “De la race en sciences sociales (France, XXIe siècle): éléments pour une synthèse comparative”. Politix, 140 (4): 127-189.) publicou recentemente uma resenha bastante elucidativa acerca desses novos estudos. A reação a eles, entretanto, não tem sido pequena por parte da sociologia estabelecida sob a liderança de Pierre Bourdieu (Beaud e Noiriel, 2021BEAUD, Stephane & NOIRIEL, Gérard (2021), Race et sciences sociales: essai sur les usages publics d’une catégorie. Marseille, Agone.) e dos autores marxistas, que formam o arcabouço da sociologia francesa, nesse século.

A seguir, para extrair algumas conclusões teóricas desse debate, examinarei criticamente o pensamento sobre o racismo na França atual, partindo de um autor marxista que enfrentou esse tema e que escreveu do interior de uma das mais férteis tradições da sociologia francesa. Utilizarei boa parte de sua reflexão para avançar definições mais precisas de racismo e raça.

Raças, racismos, racialização3 3 . Retomo nesse item o que desenvolvi originalmente no blog da Novos Estudos Cebrap, c. Corrigi agora minha interpretação de Balibar em diversos pontos, principalmente no que se refere ao uso que ele faz da expressão “racismo sem raças”. Acrescentei também uma nova conceituação para formação racial.

Em 1991, o filósofo marxista Étienne Balibar, ao refletir sobre os incidentes e as frequentes acusações de racismo que se espalhavam pela Europa, envolvendo minorias estrangeiras e seus descendentes já cidadãos e europeus natos, usou o conceito antropológico de “fato social total”, empregado primeiramente por Marcel Mauss no Ensaio sobre a dádiva ([1922] 2003), para refletir sobre o racismo4 4 . “Racismo - um verdadeiro ‘fato social total’ - se inscreve em práticas (formas de violência, desprezo, intolerância, humilhação e exploração), em discursos e representações que são elaborações intelectuais do fantasma da profilaxia ou da segregação (a necessidade de purificar o corpo social, de preservar a ‘própria’ ou a ‘nossa’ identidade de todas as formas de mistura, cruzamento ou invasão), e que se articulam em torno de estigmas de alteridade (nome, cor da pele, práticas religiosas). O racismo, portanto, organiza os afetos (o estudo psicológico destes concentrou-se na descrição de seu caráter de obsessão e na sua ambivalência ‘irracional’), conferindo uma forma estereotipada, que diz respeito aos seus ‘sujeitos’ e a seus ‘objetos’. É essa combinação de práticas, discursos e representações em uma rede de estereótipos afetivos que nos permite explicar a formação de uma comunidade racista (ou uma comunidade de racistas, entre os quais existem laços de ‘imitação’ a distância) assim como da maneira que, tal qual uma imagem espelhada, os indivíduos e as comunidades que são vítimas do racismo (seus ‘objetos’) se veem constrangidos a se verem como uma comunidade.” (Balibar, 1991, pp. 17-18; tradução minha). .

O racismo como “fato social total” seria uma constelação de práticas sociais (discriminações, violências, humilhações, segregação); de atitudes, no sentido da psicologia social (preconceitos, intolerâncias, afetos, preferências); de estigmas e carismas de alteridade, no sentido que lhe deu Nobert Elias (nomes, fenótipos, marcas, estereótipos, e hábitos culturais); e de estruturas sociais, como as entende a sociologia (leis, regulamentos, regras institucionais que resultam em enviesamento de resultados na aquisição de bens e serviços, assim como em limitações de oportunidades de vida).

Com efeito, não há fato, ofensa, preconceito ou resultado referidos como racistas pela imprensa ou pelos indivíduos que não se enquadrem nessa definição totalizadora, e por isso mesmo muito útil. No entanto, é preciso esclarecer dois pontos deixados em aberto que podem gerar imprecisões.

O primeiro é que não fica claro se a definição pressupõe ou não a ideia de raça. Aparentemente não, pelo uso da expressão. No entanto, a verdade parece ser exatamente o contrário, tal como sugere a entrevista posterior de Balibar (2013BALIBAR, Étienne. (2013), “Un racisme sans races: entrevue”. Relations, 763: 13-17.) sobre o “racismo sem raças”, em que tratava do fato de que os novos racistas não empregavam a palavra “raça”, pelo contrário a repudiavam, preferindo atribuir sua intolerância à recusa dos novos imigrantes de se integrarem a uma sociedade laica. Mas, para Balibar (2013, p. 15), ainda que a palavra desapareça, a ideia de raça está presente: “[…] a ideia de ‘raça’ se recompõe, inclusive tornando-se invisível: por exemplo no que tem sido chamado de “racismo diferencialista” ou “culturalista” e que eu chamei há algum tempo de um ‘racismo sem raças’”.

A segunda é que também não fica claro se a eventual ocorrência de práticas, atitudes, estigmas, ou estruturas, de modo isolado, ou seja, ocorrendo sem a presença das demais, poderia ser, assim mesmo, alcunhada de racismo. Por exemplo, o tratamento desigual de pessoas em situações de mercado ou de sociabilidade, mas sem a presença ativa de uma doutrina, ou discurso, ou na ausência de legislação estatal ou práticas consuetudinárias discriminatórias. Poder-se-ia, ainda assim, falar em racismo? Ou seria preciso que todos os fatos sociais estejam presentes para falar de racismo?

Em outro texto, argumentei que só deveríamos falar em racismo quando fosse possível demonstrar que a ideia de raça orientasse a ação social e sua estruturação (Guimarães, 1999GUIMARÃES, Antonio S. A. (1999), Racismo e antirracismo no Brasil. São Paulo, Editora 34.). Do contrário, seria mais apropriado falar de sexismo, xenofobia etc. O conceito de raça que utilizei então era de natureza weberiana. Ele se referia a uma ação social orientada subjetivamente pela ideia de raça. O conceito sociológico de raça nos serviria, portanto, para tratar de comportamentos, atitudes e instituições sociais em que a ideia de raça estivesse presente, ainda que de modo encoberto por tropos, ou de modo sistematicamente latente. Mas como definir raça? Não precisei, naquele momento, ir mais além do que me referir a todo o instrumental mobilizado pelas teorias raciais pseudocientíficas desenvolvidas no século XIX e ainda presente no imaginário social. Os autores que fizeram trabalho etnográfico no Brasil nos anos 1950 e 1960 foram unânimes e fartos em documentar a vigência na sociedade brasileira dessas ideias e doutrinas (Wagley, 1952WAGLEY, Charles. (1952), Race and class in rural Brazil. Paris, Unesco.; Nogueira, 1998NOGUEIRA, Oracy. (1998), Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga. São Paulo, Edusp.; Harris, 1956HARRIS, Marvin. (1956), Town and country in Brazil. Nova York, Columbia University Press.; Hutchinson, 1957HUTCHINSON, Harry. (1957), Village and plantation life in Northeastern Brazil. Seattle, University of Washington Press.), assim como em documentar que a palavra “raça” não era comumente usada, mas sim “cor”, ou “qualidade”, para referir-se a essas crenças.

No entanto, historiadores e cientistas sociais (Murji e Salomos, 2005MURJI, Karin & SOLOMOS, John. (2005), Racialization: Studies in theory and practice. Oxford, Oxford University Press.; Mattos, 2009MATTOS, Hebe. (2009), “Racialização e cidadania no Império do Brasil”. In: CARVALHO, J. M. & NEVES, M. B. P (orgs.). Repensando o Brasil do Oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, pp. 349-391.) expandiam, ao mesmo tempo, o uso do conceito de “racialização”, ou seja, da transformação ou redução de pessoas ou grupos a raças, ainda que classificadas a partir de características diversas. Isso nos possibilita, agora, definir “raça” de modo mais preciso. Assim, avanço para uma definição mais clara, ao observar que a ideia de raça da qual estamos tratando é constituída por quatro elementos definidores: a) conota a transmissão hereditária de características intelectuais, mentais e comportamentais; b) procura explicar a história e a vida social como se esta fosse parte de uma ordem natural; c) estabelece marcadores somáticos e culturais em discursos políticos; d) é empregada para designar, manter ou reverter hierarquias sociais.

Esses elementos definidores nos permitem também enfrentar a distinção proposta por Appiah (2014APPIAH, Anthony. (2014), Lines of descent: W. E. B. Du Bois and the emergence of identity. Cambridge, Harvard University Press.) e Machery e Faucher (2005MACHERY, Edouard & FAUCHER, Luc. (2005), “Social construction and the concept of race”. Philosophy of Science, 72 (5): 1208-1219.) entre racialismo e racismo. Enquanto o primeiro seria a crença na divisão natural entre seres humanos em raças (elementos a e c); o segundo envolveria a crença na hierarquia moral e intelectual entre as raças (elementos a, b, c e d). Deveríamos, portanto, falar de racismo apenas quando práticas e discursos mobilizam todos esses elementos da raça, de modo explícito ou não, em situações históricas concretas, como no caso dos judeus convertidos ao catolicismo nos séculos XV e XVI, e referidos como cristãos-novos; no antissemitismo do século xx europeu, quando os judeus são transformados numa raça; ou dos descendentes dos africanos escravizados nas Américas, em qualquer tempo, referidos como “negros” no pós-abolição etc.

Ou seja, seguindo Appiah ou Machery e Faucher, a crença em raças não levaria necessariamente ao racismo, embora o racismo não possa prescindir da ideia de raça. W. E. B. Du Bois, por exemplo, considerava que a única maneira de os negros americanos se contraporem ao racismo seria aceitarem a missão de desenvolverem plenamente seu potencial civilizatório enquanto negros, isto é, enquanto raça. Isso seria o que os poria em condição de igualdade com as demais raças e civilizações (Du Bois, 1897; Bessone e Renault, 2021BESSONE, Magali & RENAULT, Matthieu. (2021), W. E. B. Du Bois double conscience et condition raciale. Paris, Éditions Amsterdam.).

Vale sublinhar, antes de passarmos adiante, uma distinção analítica crucial entre os elementos a e c de nossa definição. Jean-Frédéric Schaub e Silvia Sebastiani argumentaram convincentemente que raça, enquanto transmissão hereditária de qualidades e virtudes, assim como de defeitos, pode ser retraçada à noção de sangue nobre, nutrida pela aristocracia medieval; carisma este que foi depois revertido em estigma pela doutrina de pureza de sangue dos ibéricos, usada para discriminar negativamente os cristãos-novos (Schaub e Sebastiani, 2021). Ou seja, eles estabelecem, sem dar margem a dúvidas, que o preconceito de origem, inerente à ideia de raça, já estava presente no imaginário europeu, antes do tráfico de escravos africanos; portanto, e mais importante, a origem deve ser tratada analiticamente separada dos marcadores físicos ou culturais que identificam a raça.

A distinção entre racialismo e racismo é crucial para os estudos do racismo nas Américas, porque aqui a resistência ao racismo, a luta por direitos civis e mesmo a garantia de direitos políticos se deram pelo desenvolvimento da consciência racial entre os oprimidos pela raça, que se afastaram do ideal humanista de simples recusa à raça, e consequente integração aos estados-nação, para constituir comunidades de grande solidariedade social e unidade de propósitos políticos no interior mesmo das nações. Temos, portanto, convivendo em nossas sociedades dois usos funcionais da raça - um para oprimir e justificar hierarquias sociais, outro para organizar e conduzir a resistência à opressão. O modo simples, humanista e individualista de definir racismo como conceber ou tratar um indivíduo não como indivíduo portador de direitos universais, mas como membro de um grupo racial inferior, esse modo mostrou-se historicamente incapaz de conduzir a luta antirracista, apesar dos esforços de construção do imaginário de nações mestiças na América Latina ou da ordem republicana, laica e individualista, na Europa.

Poderíamos nos perguntar até que ponto a resistência de muitos cientistas sociais europeus de hoje em usar o termo “raça” nas ciências sociais, preferindo o termo “etnia”, não advém parcialmente do fato de as comunidades de origem às quais a raça foi historicamente referida na Europa, até o século XV, serem todas realmente demarcadas por simbologia e discursos étnicos ou nacionais - raças francesa, alemã, judia etc. Afinal, esse fato precedeu o emprego do termo “branco” para se referir ao conjunto dos povos europeus, identificados a partir de marcadores físicos, em contraste com os povos de outros continentes.

Ainda outra observação sobre Balibar. O que chamamos de estrutural não prescinde de agência humana, nem pode ser reconhecido apenas por seus efeitos, sob pena de se tornar uma caixa preta, que esconde ao invés de revelar processos. Não apenas as instituições resultam de ações e interações políticas, como normas, regras, regulamentos, leis etc., como precisam, em sua operação, de intervenções e decisões humanas de interpretação e de aplicação. Uma extensa bibliografia sobre burocracias trata desse assunto, refiro aqui apenas Lipsky (1980LIPSKY, Michael. (1980), Street level bureaucracy dilemmas of the individual in public services. Nova York, Russell Sage Foundation.).

Em suma, temos até aqui definidas duas noções de raça a compor um conceito propriamente científico: uma se refere à ação social subjetiva, isto é, ao universo dos agentes; a outra se refere à lógica do poder político e de sua reprodução. E temos também duas autodesignações de “raça”, uma pelo opressor, outra pelo oprimido.

Retornando à citação de Balibar, entender o racismo como um fato social total não impede, entretanto, que possamos falar de modo singular de suas manifestações: racismo policial, racismo cotidiano, racismo ambiental, racismo estrutural etc. Enquanto os dois primeiros usos se referem a comportamentos manifestos - por exemplo, a forma como a violência policial se abate preferencialmente sobre os negros, ou como esses são objeto de tratamento diferencial nas relações sociais -, alguns só podem ser constatados do modo estatístico - negros, por exemplo, podem estar mais expostos a riscos de contaminação ambiental em consequência de sua situação racial, numa cadeia de causações difíceis de determinar a não ser estatisticamente; da mesma maneira, instituições públicas e privadas, que estruturam a vida social, podem acabar por gerar formas de seleção e operação que se revelem racialmente enviesadas.

Podemos concluir, portanto, que o racismo, enquanto um fato social total, pode manifestar-se também de modo parcial, de acordo com a situação concreta em que se encontrem as forças sociais do racismo e do antirracismo. No pós-guerra ocidental, até muito recentemente, a ideia de raça não era tolerada no discurso público, de sorte que discriminações e preconceitos raciais eram normativamente coibidos, às vezes até legalmente. No caso do Brasil, uma rígida etiqueta racial tornava inaceitável o uso do termo “raça” ou mesmo referências à cor de uma pessoa negra. Ou seja, o racismo passara a operar apenas institucionalmente através de enviesamento de resultados ou de oportunidades de vida, ou pelo uso de tropos ou profiling de características associadas preferencialmente aos negros. De fato, em nenhum momento na história do Ocidente deixamos de escutar vozes e ler escritos que se opusessem à operação do racismo. Tal oposição poderia ser feita por fora dos grupos oprimidos ou pelos próprios grupos oprimidos. Não há racismo sem antirracismo.

A ideia de raça apenas como comunidade de pertença étnica é, portanto, também mobilizada em discursos antirracistas, ou seja, em discursos, práticas e instituições que se contrapõem a situações e estruturas de exploração e opressão. Volto de novo a Balibar. Nele, a ideia de raça utilizada pelos subalternos pode ser compreendida como um modo alienado de reação, delimitado pelo uso dominante do opressor. Seria, portanto, um uso também subalterno e sem futuro libertário, preso no anti-humanismo do próprio racismo. Esse seria o modo de lê-lo dentro da tradição marxista dos anos 1960. Porém, o fato de estarem presos ao léxico do racismo em sua luta de libertação, o que Balibar refere como constrangimento, deve significar que estejam confinados num círculo vicioso? Devemos lembrar que as lutas sindicais, desde o século XIX, estiveram limitadas à lógica de reprodução da relação de exploração salarial, sem que a luta operária fosse considerada alienada. Na filosofia da práxis marxiana, a própria luta enquanto prática seria capaz de esclarecer escolhas políticas. No caso da luta antirracista, deveríamos também assumir que o ideal humanista de um mundo não racializado pode também se delinear através do combate em que formas raciais sejam utilizadas.

O pressuposto de que o antirracismo deve necessariamente embasar-se sobre a recusa em utilizar o conceito de raça é insustentável por razões científicas e políticas.

Cientificamente, porque impede que se estude o modo como a ideia de raça permeia a vida social e política independentemente de que o conceito não tenha existência natural, isto é, não possa ser empregado pelas ciências da natureza sem causar confusões sobre seu uso social. Ora, as ciências humanas têm como objeto fatos que são construídos socialmente, que orientam a ação social e que permitem a reprodução, integral ou modificada, do ordenamento social e de suas instituições. Não se pode deixar de investigar, portanto, que a ideia de raça é empregada cotidianamente na ordem social e tem efeitos estruturantes.

Politicamente, porque seria errôneo supor que as forças políticas do antirracismo prescindissem sempre da ideia de raça. Certamente, em algumas constelações racistas, como o antissemitismo, o seu combate pode ser organizado politicamente a partir de organizações religiosas ou laicas, do judaísmo ao sionismo, prescindindo da ideia de raça e recusando-a, visto que se trata de dar existência plena a um povo, a uma religião ou a uma nação. No caso do racismo antinegro, essa estratégia é mais difícil, uma vez que não há uma comunalidade nacional, religiosa ou étnica entre os racializados a não ser a própria racialização. A experiência comum de escravização, ou a experiência da colonização, ou o fato de serem referidos universalmente como ‘negros” são usados comumente como referentes aglutinadores da sua organização política.

Evidentemente, não devemos, portanto, ler Balibar com base em uma tradição marxista para a qual o racismo antinegro seria uma consequência da expansão e da operação do capitalismo mercantil, industrial e financeiro e do seu colonialismo e neocolonialismo, não um desdobramento histórico concomitante a partir de novas relações de poder - colonial ou nacional - e de velhas estruturas mentais - étnicas. A operação do capitalismo enquanto modo de produção como ontologicamente alienante é uma perspectiva que geralmente leva à conclusão de que a luta anticapitalista prescindiria da ideia de raça em sua organização, visto que se trataria de construir uma sociedade radicalmente igualitária, sem a alienação capitalista. Tal estratégia antirracista, infelizmente, ainda que capaz de reduzir drasticamente a desigualdade racial, não foi capaz, até hoje, de ser efetiva na erradicação do racismo, mesmo nos países que experimentaram ou experimentam o socialismo de maneira duradoura (De la Fuente, 1995; 2013).

Podemos avançar a hipótese de que a supressão do conceito de raça é ineficaz no combate ao racismo, assim como estabelecer tão somente a igualdade de oportunidades é insuficiente, se se desconsidera o modo como essas oportunidades são socialmente hierarquizadas. Parece ser necessário, ao contrário, que os grupos que sofrem o racismo possam se organizar e atuar em todas as esferas da vida social para que sejam eles mesmos os agentes de todos os compromissos e decisões políticas.

Há usos que parecem se valer mais de analogias que de processos de racialização, tais como “racismo de classe”, ou “racismo de inteligência”. Gérard Mauger (2011MAUGER, Gérard. (2011), “Racisme de classe”. Savoir/Agir, 17, (3): 101-105.), Pierre Bourdieu (1980BOURDIEU, Pierre. (1980), Questions de sociologie. Paris, Minuit.) e Jean-Claude Croizet (2011CROIZET, Jean-Claude. (2011), “Le racisme de l’intelligence”. In: L’Évaluation, une menace? Paris, Presses Universitaires de France, pp. 135-144.), que usam essas expressões, parecem apenas querer chamar a atenção para o fato de que certos grupos sociais são tratados ou se erigem socialmente reivindicando um carisma de superioridade. Bourdieu, por exemplo, usa “racismo” de um modo especialmente frouxo e funcionalista: “há tantos racismos quanto existem grupos que precisem justificar o modo como existem, o que constitui a função invariante dos racismos”. Nesses casos, melhor seria admitir que a hierarquia de classes pode ser rígida, e que os grupos dominantes tendem a desenvolver um ethos de superioridade social, sem grande mobilidade ou proximidade social, a ponto de permitir, por exemplo, que setores burgueses ou das classes médias pensem a pobreza como decorrente da cultura dos pobres, e que alimentem uma série de estigmas em relação às classes populares ou aos não detentores do saber erudito ocidental. Como demonstraram Elias e Scotson (1994ELIAS, Nobert & SCOTSON, John L. (1994), The established and the outsiders: A sociological enquiry into community problems. Londres, Sage.), o recurso à estigmatização pode ser empregado no interior de uma mesma classe para que uma parcela desta monopolize carismas sociais em detrimento da outra.

Mas o que dizer de intolerâncias religiosas a grupos relativamente homogêneos em termos culturais, ou mesmo fenotipicamente, tais como os árabes? O que se chama de islamofobia seria um tipo de racismo? Estaríamos diante de um racismo sem raças, ou de um racismo cultural?

Assim como o antijudaísmo medieval evoluiu para o antissemitismo, que atribuía caracteres e personalidades transmitidos hereditariamente, não seria esse também o caso em relação aos mulçumanos europeus? Se assim for, teríamos então formado uma raça social. Acredito que essa seja, no entanto, uma questão para investigação empírica. Na definição de Modood (2018MODOOD,Tariq. (2018), Islamophobia: A form of cultural racism. A Submission to the All-Party Parliamentary Group on British Muslims in response to the call for evidence on Working Definition of Islamophobia, 1 June, 2018.), que me parece correta: “Islamofobia é a racialização dos muçulmanos, com base na aparência física ou ascendência biológica, como membros de uma comunidade, atribuindo-lhes valores e características culturais ou religiosos, usados para difamar, marginalizar, discriminar, ou exigir assimilação, e tratando-os assim como cidadãos de segunda classe”. Nesse caso, portanto, a palavra “raça” pode desaparecer do vocabulário racista, substituída por “cultura”, “civilização”, ou “religião”, mas a ideia de raça permanece. Ou seja, muitos autores europeus, nesse século XXI, tem mantido o termo “racismo” para se referir a formas de racialização que não operam com uma doutrina que pregue a existência e a hierarquia de raças. Seriam, portanto, formas institucionais, comportamentais ou atitudinais de racismo que prescindem de doutrinas raciais, mas funcionam com discursos nacionais, religiosos ou civilizacionais. O importante, para esses autores, com quem também concordo, é que a ideia de raça seja um marcador central para a definição e identificação do grupo pelos outros. Na maioria das vezes, porém, esses grupos tratados como raças não se autodefinem assim, o que impede que as relações sociais entre racializadores e racializados se estabilizem efetivamente em relações raciais. O racismo seria, por definição, unilateral. Esses conflitos evoluem para formas de intolerância cultural e religiosa não menos agressivas e deletérias que o racismo doutrinário.

Resta-nos precisar melhor o que entendemos por racialização e formação racial5 5 . Em outros artigos (Guimarães, 2016, 2017), penso que usei formação racial no sentido que Przeworski (1977) deu à formação de classe, ou seja, o desenvolvimento histórico de uma classe-para-si. Agora, prefiro usar com o sentido primeiro dado por Marx (2008) a uma formação econômico-social: uma unidade de sistemas de exploração, opressão e ideologia. No nosso caso, formação racial como a unidade num tempo histórico de diversas formas de racialização. Ou seja, opressão e luta emancipatória raciais tal qual ocorrem num período histórico. . O termo é empregado com diversos sentidos por diferentes autores. Seus vários sentidos, no entanto, não podem ser estabelecidos organizando os autores em agregados (Felix, 2024FELIX, Marcelle. (2024), Quando eles nos veem: percepções de processos de racialização entre pretos e pardos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, tese de doutorado em Sociologia, Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.), pois a maioria dos autores explora seus diferentes sentidos, podendo falar em heterorracialização, autorracialização, desracialização etc. Uma saída me parece ser observarmos as dimensões ou eixos analíticos em que estamos empregando o conceito de racialização. Estamos analisando ao nível do indivíduo ou do coletivo? É uma pessoa que está sendo subsumida num determinado grupo com o uso da ideia de raça, desumanizada, portanto, como notara Fanon? Ou é um grupo que está sendo formado pela nomeação racial? Estamos ou não analisando as implicações dessa nomeação para a estrutura social, em termos de hierarquização, exploração, opressão? E como se dá historicamente a luta contra a desumanização, opressão ou exploração daqueles que foram racializados? Negando ou afirmando a raça como forma de identificação? Não há por quê a princípio dizer que uma definição de racialização seja correta e possa englobar todas as possibilidades concretas, pois o que está em jogo é sempre uma determinada conjuntura histórica, ou uma dada situação social. Por isso, por englobar a dinâmica concreta e histórica da racialização, é que utilizo o conceito de formação racial, cunhado por Omi e Winant (1994OMI, Michael & WINANT, Howard. (1994), Racial formation in the United States: From the 1960s to the 1990s, Routledge.).

Desafios para a pesquisa empírica

Para concluir, passo a avaliar os principais desafios que os conceitos de racismo e de racialização representam para a pesquisa empírica em ciências sociais (ver também Campos ou Gato, neste número).

Para começar, a definição do racismo como fato social total, cujas manifestações podem ou não ocorrer simultaneamente em diversas esferas da vida social - discursos, valores, comportamentos, instituições, estruturas sociais -, coloca uma grande dificuldade para a observação: como se articulam no espaço, no tempo e em uma instituição particular essas diferentes esferas? Ademais, se nem todos os discursos ou atitudes de essencialização e naturalização da vida social são racistas, ou seja, podem ocorrer e ser efetivos sem referência à noção de raça, como em cada caso específico consequências institucionais e burocráticas podem ser chamadas de racistas e qual o papel dessas formas de essencialização na caracterização de uma instituição como racista?

Vou tomar dois exemplos recentes de excelentes pesquisas que tratam do racismo em instituições de correção ou judiciárias (Vinuto, 2009VINUTO, Juliana. (2009), “O outro lado da moeda”: O trabalho de agentes socioeducativos no estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Autografia Editora.; Marques, 2023MARQUES, Luiz Henrique Gamboa. (2023), A cor entre grades: análise do racismo no fluxo do sistema de justiça penal nos crimes de roubos/furtos em comarcas da região metropolitana de Salvador (2015-2018). Salvador, tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia, UFBA.). Ambos os autores analisam discursos, sejam eruditos, sejam do senso comum, que essencializam o comportamento criminoso ou desviante de menores infratores, no caso de Vinuto, ou de encarcerados por roubo ou furto, no caso de Marques, mas não conseguem, nenhum deles, demonstrar que a categoria raça exerça papel preponderante nesse discurso específico, negado peremptoriamente pelos sujeitos. Certamente, há uma biologia vulgar nas justificativas e nos argumentos; uma noção de índole bandida ou criminosa está presente nos discursos, mas falta alguma referência explícita à natureza racial; ao contrário, é como se uma loteria genética escolhesse esses indíviduos. E, no entanto, ambos os autores, conseguem estabelecer estatisticamente a seletividade racial, seja do objeto do discurso essencializador, seja da população encarcerada.

Nas conversas com os agentes socioeducadores, com os agentes policiais ou nas falas dos operadores do Direito, nos discursos essencializadores, mesmo nos de cunho biologizante, o emprego do termo “raça” não é considerado legítimo nem muito menos aceito. Estariam esses agentes contaminados por ideologias denegadoras do racismo, como a “democracia racial”, seriam contrangidos pelo politicamente correto? Ambos os autores flertam com tais explicações de autoengano dos agentes sociais.

Há, contudo, uma outra possibilidade, qua aparece de modo claro na tese de Luiz Gamboa Marques. A explicação pode estar na articulação entre uma ideologia de “classes perigosas” (Guimarães, 1982GUIMARÃES, Alberto Passos. (1982), As classes perigosas: Banditismo urbano e rural. Rio de Janeiro, Graal.), por um lado - ou seja, de populações marginalizadas, vulneráveis e temidas (desempregados, miseráveis, jovens, homens) -, e uma suspeição generalizada sobre essa população, que teria maior propensão ao crime, principalmente contra a propriedade privada; e, por outro lado, a seletividade social na composição dessa população em termos raciais ou étnicos. Sobre essas “classes perigosas” recai o discurso justificador da suspeita: seriam pessoas propensas a comportamentos criminosos e ilegais, ou adolescentes de suposta índole perversa e irreversível.

Em termos da teoria do racismo que esboçamos acima, o racismo sistêmico seria responsável pela seletividade racial na composição das “classes perigosas”; enquanto os discursos essencializadores - que tratam como pertencente à ordem natural o que é próprio da ordem social - justificariam o enquadramento de pessoas nessas classes. O primeiro, o racismo sistêmico, só pode ser percebido estatisticamente, pois ele arranja as oportunidades de vida dos indivíduos por raça ou etnia; enquanto o segundo, o racismo atitudinal ou comportamental dos agentes, pode ser observado pela análise de discurso ou de comportamentos.

Qualquer que seja o arranjo entre as diversas dimensões do racismo, este só pode ser determinado pela análise empírica, caso a caso. Ou seja, se quisermos evitar o vício de tomar como dado o que deve ser demonstrado (o racismo), devemos separar o que pode ser diagnosticado como sistêmico ou estrutural, do que é atitudinal, discursivo ou comportamental. É absolutamente possível que uma estrutura racista se acople a um discurso essencializador não racista.

Outra dificuldade empírica surge quando se trata de processos históricos e sociais em que grupos são definidos por outros como raças (racializados) e, portanto, são vítimas do racismo, mas que, para combatê-lo, definem-se a si mesmos também em termos raciais. Nesse caso, podemos estar (ou não) em presença de discursos e estruturas raciais, porém não necessariamente de regimes de hierarquia e opressão, mas apenas de regimes de luta pela igualdade racial. Não há como a priori pressupor que esses coletivos que se assumem como raças sejam grupos de atitudes e comportamentos opressivos, ou qual a abrangência e a eficácia do sistema racialista que eles constituem.

Quanto à pesquisa sobre processos de racialização, os historiadores brasileiros tem avançado de modo bastante seguro quando se trata do pós-abolição. Nesse período, as teorias das raças humanas e sua hierarquia ganharam ampla circulação nas classes dominantes e letradas, as pesquisas históricas consistem em demonstrar como os indivíduos classificados antes como libertos, ingênuos, livres, pessoas de cor etc. são reclassificados como membros de uma única “raça negra” (Albuquerque, 2009ALBUQUERQUE, Wlamyra. (2009), O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras.; Gato, 2020GATO, Matheus. (2020), O massacre dos libertos. São Paulo, Perspectiva.). Para outros períodos históricos, entretanto, Colônia ou Império (Mattos, 2009MATTOS, Hebe. (2009), “Racialização e cidadania no Império do Brasil”. In: CARVALHO, J. M. & NEVES, M. B. P (orgs.). Repensando o Brasil do Oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, pp. 349-391.), anteriores à popularização das teorias sobre raças humanas, a tarefa dos historiadores é mais árdua - consiste em demonstrar que os regimes de essencialização e naturalização do mundo social baseiam-se em ideias de raça, mesmo que não utilizem necessariamente traços fisionômicos como marcadores (Shaub e Sebastiani, 2021).

Referências Bibliográficas

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  • 1
    . Este artigo foi discutido por muitos colegas, entre eles cabe destacar Magali Bessone, Nadya Guimarães e Ana Cláudia Lopes. Uma parte dele, ainda inconclusa, foi publicada no blog da Novos Estudos Cebrap.
  • 2
    . “[…] o colonialismo está se destruindo. Mas ele ainda contamina a atmosfera: ele é nossa vergonha, ele zomba de nossas leis ou as caricatura; ele contagia-nos com o seu racismo […].”
  • 3
    . Retomo nesse item o que desenvolvi originalmente no blog da Novos Estudos Cebrap, c. Corrigi agora minha interpretação de Balibar em diversos pontos, principalmente no que se refere ao uso que ele faz da expressão “racismo sem raças”. Acrescentei também uma nova conceituação para formação racial.
  • 4
    . “Racismo - um verdadeiro ‘fato social total’ - se inscreve em práticas (formas de violência, desprezo, intolerância, humilhação e exploração), em discursos e representações que são elaborações intelectuais do fantasma da profilaxia ou da segregação (a necessidade de purificar o corpo social, de preservar a ‘própria’ ou a ‘nossa’ identidade de todas as formas de mistura, cruzamento ou invasão), e que se articulam em torno de estigmas de alteridade (nome, cor da pele, práticas religiosas). O racismo, portanto, organiza os afetos (o estudo psicológico destes concentrou-se na descrição de seu caráter de obsessão e na sua ambivalência ‘irracional’), conferindo uma forma estereotipada, que diz respeito aos seus ‘sujeitos’ e a seus ‘objetos’. É essa combinação de práticas, discursos e representações em uma rede de estereótipos afetivos que nos permite explicar a formação de uma comunidade racista (ou uma comunidade de racistas, entre os quais existem laços de ‘imitação’ a distância) assim como da maneira que, tal qual uma imagem espelhada, os indivíduos e as comunidades que são vítimas do racismo (seus ‘objetos’) se veem constrangidos a se verem como uma comunidade.” (Balibar, 1991, pp. 17-18; tradução minha).
  • 5
    . Em outros artigos (Guimarães, 2016, 2017), penso que usei formação racial no sentido que Przeworski (1977) deu à formação de classe, ou seja, o desenvolvimento histórico de uma classe-para-si. Agora, prefiro usar com o sentido primeiro dado por Marx (2008) a uma formação econômico-social: uma unidade de sistemas de exploração, opressão e ideologia. No nosso caso, formação racial como a unidade num tempo histórico de diversas formas de racialização. Ou seja, opressão e luta emancipatória raciais tal qual ocorrem num período histórico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    09 Fev 2024
  • Aceito
    23 Abr 2024
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: temposoc@edu.usp.br