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Entrevista com Yves Sintomer

Yves Sintomer é referência em inúmeros trabalhos acadêmicos relacionados às teorias da democracia e às novas formas de representação política, incluindo as experiências de democracia participativa, democracia deliberativa, assembleias cidadãs, sorteio político, orçamento participativo (Sintomer, 2008SINTOMER, Yves & HERZBERG, Carsten; RÖCKE, Anja. (2008), Participatory budgeting in Europe: Potentials and Challenges, 32, Issue 1., 2013SINTOMER, Yves. (2013), “Les sens de la représentation politique: usages et mésusages d’une notion”. Raisons Politiques, 2 (50): 13-34., 2016SINTOMER, Yves; RÖCKE, Anja & HERZBERG, Carsten. (2016), Participatory budgeting in Europe: Democracy and public governance. Routledge., 2018SINTOMER, Yves. (2018), “From deliberative to radical democracy? Sortition and politics in the twenty-first century”. Politics & Society, 46 (3): 337-357., 2020SINTOMER, Yves. (2020), “Sortition and politics: From radical to deliberative democracy - and back?”. Brill’s Companion to the Reception of Athenian Democracy. Brill, 490-521., 2023SINTOMER, Yves. (2023), “De la république: la méthode, le mot et le concept vus du XXIe siècle. À propos de l’ouvrage Res publica de Claudia Moatti”. Astérion. Philosophie, Histoire des Idées, Pensée Politique, 29.). Professor de ciência política da Universidade Paris 8 e pesquisador do Centro de Pesquisas e Estudos Sociológicos e Políticos de Paris (Cresppa), ele também é membro associado do Nuffield College, na Universidade de Oxford, e professor associado na Universidade dos Países Bascos e na Universidade de Neuchâtel. Foi diretor adjunto do Centro Marc Bloch (2006-2009), em Berlim, e membro sênior do Instituto Universitário da França (2012-2017). Em 2023, recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade de Liège.

Yves Sintomer desenvolveu pesquisas na Europa, Ásia e América Latina. Sua produção é reconhecida internacionalmente por seus trabalhos traduzidos em dezenove línguas. No Brasil, possui diversos artigos (dez. 2010, 2012) e dois livros publicados: A esperança de uma outra democracia (2002) e O poder ao povo: Júris de cidadãos, sorteio e democracia participativa (2010). O acadêmico visitou o Brasil em diversas ocasiões. A primeira ocorreu em 1988, quando passou um período na Universidade de São Paulo (USP), e a sua última visita foi em setembro de 2023, para participar de eventos na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj).

A entrevista apresentada, a seguir, ocorreu no dia 21 de novembro de 2023, em Saint-Denis, na região metropolitana de Paris, França. Yves Sintomer generosamente concordou em conceder esta entrevista que versa sobre a crise das democracias e as inovações políticas experimentadas em diversos lugares no mundo, inclusive no Brasil. A abordagem se concentrou sobre os desafios, possibilidades e limites dos regimes democráticos no contexto atual.

Este trabalho só foi possível por causa do apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001.

Vania Morales Sierra [VMS]: Considerando que a democracia passa por uma crise global, que se expressa no declínio das ideologias de esquerda, no distanciamento dos partidos de sua base, na descrença da política como possibilidade de promover transformações estruturais, que mudanças no sistema de representação poderiam nos conduzir à sua revitalização?

Yves Sintomer [YS]: A primeira coisa que eu quero dizer é que a crise da democracia agora não é só em um país ou em uma região do mundo. Em francês se diz intruder. Não é só um momento pequeno, acho que é uma crise estrutural. Então, a resposta possível também tem que ser estrutural. A segunda coisa é que não tem uma receita. Seria bom, mas não tem. Existem as experiências de democratização da democracia mais ou menos exitosas, mas não há um modelo completo capaz de propor uma alternativa. Tenho também que dizer que, em 2021, 2023, a situação parece mais difícil que há vinte anos, quando tivemos o Fórum Social Mundial e o primeiro governo Lula na América do Sul, e também os governos de esquerda na Europa. A ideia de que “outro mundo é possível” era bastante forte, bastante realista. Agora, é muito mais difícil. É certo que o sistema democrático eleitoral foi estável na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, na América do Norte, na Austrália, na Nova Zelândia, no Japão durante umas décadas, depois da Segunda Guerra Mundial, com várias condições. A Europa Ocidental e a América do Norte eram o centro do mundo, com uma disponibilidade de energia das matérias-primas do mundo. Mas a possibilidade de redistribuir a riqueza para as classes populares dessa região acabou. A Europa, agora, é uma província no mundo, e a América do Norte também. A competição com a China e com a Índia é muito mais forte.

Acho que no Brasil e na América Latina a ideia era fazer uma via similar, criando um Estado Social no Brasil, na América Latina, um pouco parecido com o Estado Social do Norte Global. O Estado intervencionista de Vargas, de Perón, fracassou. O primeiro período de desenvolvimentismo fracassou.

No Brasil, a segunda tentativa com Lula e Dilma também fracassou. A América Latina nunca teve estabilidade no sistema político eleitoral comparável à estabilidade do sistema eleitoral da Europa do Sul ou da Europa do Norte. A possibilidade da estabilidade do sistema político eleitoral e do Estado Social do modelo do Norte Global existia também porque não se sabia da crise ecológica. Agora ficou muito difícil, porque o modelo de produção e consumo, o modelo de desenvolvimento que foi possível no Norte Global, não é mais possível em nível mundial, universal. Também era possível porque o Estado Nacional era bastante funcional. Naturalmente o mercado mundial sempre foi muito forte. A intervenção dos Estados Unidos na América Latina sempre foi forte, mas agora a dependência da economia, também em nível político, em nível transnacional e internacional, é ainda maior, e a capacidade do Estado nacional de conduzir uma política independente é menor. Os mercados são tão fortes que um Estado que não respeitar as suas regras terá de enfrentar muitas dificuldades. Podemos ver também a Argentina nestes anos com o problema da dívida pública.

Também para a Europa, uma condição para a estabilidade era ter partidos políticos fortes, de massa, que podiam permitir a integração das classes populares no sistema político. Isso acabou. Talvez, no Brasil, o PT1 1 . Partido dos Trabalhadores (PT). e, na Bolívia, o MAS2 2 . Movimento ao Socialismo (MAS). tenham sido as últimas criações de partidos de massa democráticos. Existem partidos de massa não democráticos, como é o AKP3 3 .Adalet ve Kalkınma Partisi em Turco, traduzido em português como Partido da Justiça e do desenvolvimento. na Turquia, a Fidesz4 4 .Magyar Polgári Szövetség em Húngaro, traduzido em português como União Civil Húngara. na Hungria, o Partido Comunista Chinês, mas não há partidos democráticos de massa novos nos últimos trinta anos. Há novos partidos como são os Partidos Verdes na Europa, que são muito fracos, muito pequenos, que não são partidos de massa, partidos populares. E, ademais, a sociedade agora, tanto o Sul quanto o Norte do mundo, é muito diferente da sociedade de trinta anos atrás. Para falar sobre a Europa, o modo de socialização dos jovens agora com as redes sociais é diferente. Eu tenho um pouco mais de sessenta anos. A minha socialização foi muito distinta, mas o sistema político manteve-se igual na sua estruturação e nos partidos. A formação estrutural do sistema político é igual. Então, a distância entre a evolução da sociedade e a permanência do sistema político é um problema. Acho que para o Brasil também é um problema. Basicamente, a estrutura política do Brasil depois da democratização é igual agora, trinta anos depois. Os partidos são mais estruturais, a forma de eleger e de tomar decisão pelo menos é igual, mas acho que a sociedade não é igual. Então essa é uma situação muito difícil para a democracia.

Eu tenho o Brasil em meu coração. Minha primeira viagem ao Brasil foi nos anos 1980, durante o final da luta pela democratização. Para mim e também para muitas pessoas na América Latina, na Europa, a experiência brasileira era uma experiência de um processo de democratização, de luta pela justiça social, de uma esquerda que não era uma esquerda stalinista, autoritária. Eu fiz pesquisa no Brasil sobre uma inovação democrática: o Orçamento Participativo. Também fiz uma pesquisa em paralelo na China. Eu tenho a impressão de que, nos últimos vinte anos do século XXI, a China cresce muito, se moderniza muito, tem um Estado muito mais eficiente. E, no Brasil, há proteção, regressão, opressão, mas não existe uma dinâmica que poderia permitir ao país mudar realmente.

Fernanda Natasha Bravo Cruz [FNBC]: Mas a China não é um país autoritário?

YS: Acho que a China é um país autoritário, mas que tem um circuito de retroalimentação5 5 . A expressão empregada pelo pesquisador foi bucle de rétroaction, também entendida como feedback loop em inglês. O conceito remonta à sequência circular de causas e efeitos. Entende-se que as decisões mudam conforme as informações introduzidas no sistema. Então se avalia a existência ou não de alteração e se a ação foi ou não eficaz. Para compreensão, consultar: Sterman, 2000. forte para a população, o cidadão e o Estado, que não são as eleições, mas é a participação local através do partido comunista, através da consulta do que os chineses chamam “a democracia consultiva”. E tem uma reatividade, uma responsiveness, para utilizar a palavra, uma responsividade forte. Não tem uma dimensão de autorização através das eleições, mas tem uma responsividade forte. Uma colega chinesa me disse o seguinte: “Nossos líderes não são eleitos porque não prestam serviço à legitimidade proveniente da eleição, mas eles devem entregar o serviço, ou seja, para serem legítimos, a responsabilidade tem de ser forte, pois precisam entregar o serviço”. Talvez nos países com democracia eleitoral, a responsiveness, accountability não sejam tão significativas.

VMS: Gostaríamos de saber o que você pensa sobre a chamada crise das esquerdas na democracia.

YS: O problema da esquerda em nível mundial, agora, é que a sua imaginação está mais para trás. Não se tem uma visão de uma sociedade diferente, de “outro mundo é possível”. Mas ainda se olha para trás, para a época dos Estados nacionais, do Estado Social na Europa. Eu tenho colegas, amigos brasileiros, que dizem que, durante a época do Lula e, depois, da Dilma, o objetivo era chegar ao nível da Europa do Sul. Mas na Europa do Sul o modelo está em crise, então é mais uma visão para o passado, nostálgica, que não tem visão para o futuro.

VMS: A crise da democracia liberal trouxe à Ciência Política uma reflexão que culmina na elaboração de novos modelos de democracia: democracias deliberativa, epistêmica, agonística, radical. Que relação pode ser estabelecida entre a crise das representações políticas tradicionais, que organizaram o poder na democracia liberal, e os novos modelos de democracia?

YS: Acho que existem grandes diferenças no percurso das regiões do mundo. Por exemplo, na Europa, ao longo dos últimos dez ou quinze anos, assistimos a um verdadeiro desenvolvimento de procedimentos de democracia deliberativa, baseados em minipúblicos escolhidos por sorteio. Isso foi verdade na França, com a convenção dos cidadãos sobre o clima; foi verdade na Irlanda, onde as assembleias sorteadas propuseram reformas constitucionais para permitir o direito ao aborto e ao casamento para todos. Houve até uma conferência organizada em nível da União Europeia sobre o futuro da Europa, que reuniu deputados nacionais, deputados europeus, representantes da sociedade civil e cidadãos por sorteio.

Até agora, na Europa, isso não modificou a lógica geral do sistema político, mas na inovação democrática é algo muito visível. Na discussão teórica isso é importante, talvez ainda mais importante nos países anglo-saxônicos, ainda que as experiências sejam mais comumente realizadas na Europa do que na América do Norte. Outras experiências de inovação democrática vieram do Brasil e tiveram impacto internacional, como o orçamento participativo, que, hoje, é sem dúvida um dos dispositivos de maior sucesso na Europa. Na França, existem várias dezenas de orçamentos participativos. Simplesmente, ao mudar continentes e países, o significado é outro, é uma democratização, sem dúvida, uma melhoria na eficácia das políticas públicas.

No Brasil, também houve uma dimensão de transformação social do orçamento participativo, pelo menos no início de sua existência. Isso fazia parte de um movimento de transformação mais global, que também resultou nos anos Lula e Dilma. Na Europa não é assim, é um instrumento que continua mais isolado, não particularmente de transformação global do país e cuja dimensão social é quase inexistente. Ele não é um instrumento de justiça social.

FNBC: Você entende que são mais localizados os instrumentos, os mecanismos de participação?

YS: É…, no Brasil também é localizado porque tinha o orçamento participativo, certamente, mas não foi muito convincente. Porém, os casos que se formaram de maneira consciente faziam parte do movimento que pretendia inverter as prioridades sociais e transformar todos os países. Nunca foi assim na França, nem na Europa e nos Estados Unidos. Isso foi desenvolvido na China e na África, mas é um instrumento limitado ao âmbito nacional ainda. Considerando as inovações no Brasil, como as conferências nacionais e os conselhos, não há realmente equivalentes na Europa. A democracia consensual, baseada em parte nos sindicatos, especialmente nas igrejas, era mais forte, há trinta anos, na Europa do que hoje. Então não houve introdução desse modelo brasileiro de inovação social.

Depois, o que se constata, é um aumento dos processos de iniciativa cidadã e do referendo. A Suíça é a campeã em qualquer dessas categorias. São muito comuns nos Estados Unidos, mas lá o dinheiro apodrece a política eleitoral, bem como a política das campanhas de referendo e das iniciativas cidadãs. Entretanto, internacionalmente vemos um aumento na democracia direta, em comparação com há dez, vinte ou trinta anos. Este não é o caso do Brasil. Na América Latina houve referendos pontuais que fizeram parte da vida política ordinária. Penso que há também outro elemento da democratização. Então surge a grande questão da forma de democratização em escala transnacional. Todos estes procedimentos que mencionei são essencialmente realizados em escala nacional ou subnacional, local. À medida que cada vez mais decisões são tomadas em escala transnacional, como podemos democratizar a governação global que é hoje extremamente assimétrica? As vias mais importantes estão em alguns grandes países, como a China, os Estados Unidos, talvez a União Europeia, talvez o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional; multinacionais como os gigantes do petróleo… A Petrobras tem um papel nisso, especialmente para o Brasil, um papel internacional muito forte e as grandes multinacionais petrolíferas americanas ou europeias; as agências de notação financeira da dívida dos Estados e das empresas, que pesam enormemente tanto no Brasil como na França. Como aumentar nosso poder em órgãos de negociação internacionais através de ONGs, através de movimentos sociais, através, talvez, de assembleias internacionais de cidadãos? Houve uma organização para as mudanças climáticas na última COP6 6 . COP: Conferência das Partes da Convenção - Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. , mas não teve importância real para a crise do Sul. É aqui que precisamos responder, mas não temos elementos para responder. Fortalecer a ONU7 7 . ONU: Organização das Nações Unidas. com os Brics8 8 . O Brics é um grupo formado inicialmente pelos seguintes países: Brasil, Rússia, Índia e África do Sul. e transformar a governança global é outra forma de reequilibrar o mundo, mas também deve ser dito que os Brics estão longe de ser democráticos. E as eleições na Argentina reforçam o problema.

VMS: Entendendo que o espaço político é mais complexo do que a disputa ideológica pelo poder, pois compreende valores, afetos, representações sociais, rituais, qual a importância da abordagem antropológica para a ciência política e como tais processos podem influir na construção contínua da democracia, tendo em vista a sua necessidade de mudar para permanecer?

YS: Então, acho que essa questão é muito importante. Um grupo de colegas filósofos, que se situam na perspectiva da teoria crítica da Escola de Frankfurt, falam da filosofia pragmática norte-americana, falam da democracia como modo de vida. Acredito que, felizmente, isso também está de acordo com o que postulam pesquisadores educacionais como Paulo Freire, de modo que a democracia não começa apenas com os mecanismos institucionais de tomada de decisão. É como uma forma de vida quase antropológica, de fato. Podemos simplesmente considerar esta forma de vida democrática de um ponto de vista puramente liberal, muitas vezes apresentado por outros, como os políticos e acadêmicos que falam nas mídias. A democracia seria o respeito pelos outros, a aceitação do pluralismo, a discussão pacífica dos problemas coletivos. Mas penso que podemos ter uma visão muito mais dinâmica do modo de vida democrático. É também a vontade de reverter relações de dominação e desigualdades, de mobilizar, de permitir o empoderamento das camadas subalternas, de transformar as relações sociais, inclusive as formas agonísticas e os modelos rígidos. Então, hoje, a ideia de uma revolução através da luta armada ao estilo cubano, ou de uma revolução como a tomada do Palácio de Inverno à moda dos russos, ou da Bastilha à moda dos franceses, perdeu muito da sua credibilidade. Podemos pensar em mudanças revolucionárias radicais considerando outro paradigma, além de Foucault ou da tomada do Palácio de Inverno. Para isso, o feminismo é um paradigma muito mais interessante, mesmo se houver tentativas de voltar atrás. Vimos isso no Brasil com Bolsonaro, Milei na Argentina, também os republicanos fizeram isso para dominar a América do Norte, com o retorno da votação do direito ao aborto. Nas últimas décadas, tivemos uma verdadeira revolução antropológica que transformou radicalmente a relação entre homens e mulheres na sociedade, e ainda não acabou. É, de fato, enorme a história destas mulheres, mesmo se tomarmos apenas cinquenta anos.

Há ainda as relações das pessoas, a orientação sexual; acima de tudo, é uma revolução global. As mulheres conquistaram seus direitos reprodutivos por todo lado. Há mais estudantes do sexo feminino do que do masculino internacionalmente. No mundo, há cada vez mais mulheres na política, no desporto, na cultura. É uma revolução antropológica; um modo de vida que mudou profundamente; uma democratização imensa; a metade da humanidade. As mulheres, hoje, controlam a Europa e quase todos os países, menos na África. Controlando a sua fertilidade, também vemos isso, inclusive no Brasil, onde a transição demográfica está avançando. Então podemos pensar na arma da esperança, considerando esta forma de transformação antropológica, de revolução antropológica, de modificações, de democratização dos modos de vida. Contudo, também é preciso admitir, infelizmente, que não se trata apenas de um movimento de transformação antropológica dos modos de vida. Por exemplo, uma secessão dos ricos através dos condomínios, ou dos gerentes de comunidades on-line em escala internacional, não vai em direção à democratização. Agora, temos também o fundamentalismo religioso, seja cristão, muçulmano, hinduísta, budista. Eles vão em direção à desdemocratização, ao autoritarismo e até ao fascismo. É um movimento que, infelizmente, hoje é extremamente forte em escala internacional. Não há um continente que escape. Portanto, acredito que, hoje, talvez uma das batalhas ainda mais importantes que a batalha institucional seja a batalha pela democratização das fortunas.

VMS: A internet parece ter deixado de operar como um espaço democrático. As mídias e as redes sociais digitais atendem a grandes corporações que atuam na produção de imagens, na manipulação de símbolos, no uso de representações sociais com objetivos antidemocráticos. A influência no Brexit e também as eleições de Bolsonaro demarcaram uma nova forma de operar na disputa eleitoral. Que procedimentos e mecanismos, para além da ação judicial, poderiam ser acionados para que o princípio da participação democrática pudesse prevalecer também no espaço virtual?

YS: Acredito que devemos evitar idealizar o passado. Vamos imaginar os anos, a década de 1970, o início da década de 1970 na América Latina. Como na Europa, as mídias eram controladas pelos Estados… Ditaduras na América Latina, democracia relativa na Europa. Havia uma fonte de comunicação: os jornais que eram lidos na Europa. Nos Estados Unidos, eram pluralistas. Este não foi o caso no Brasil. De qualquer modo, o pluralismo era muito mais restrito durante a ditadura, mas o número de pessoas que liam jornais era muito baixo e, portanto, a fonte de informação era muito controlada e extremamente pouco democrática. Com a liberalização das rádios, dos canais de televisão e, principalmente, depois da chegada da internet, surgiu o sonho de uma informação igualitária e democrática em que todos os usuários pudessem participar e escolher o recurso de informação. É verdade que hoje essas esperanças de democratização devem ser muito relativizadas. Certamente as redes sociais promoveram revoluções democráticas, como a Primavera Árabe, o movimento Occupy Wall Street, o movimento de ocupação de praças9 9 . A expressão “movimento de ocupação de praças” foi adotada para traduzir do francês mouvements des places. semelhante em muitos países… Elas têm favorecido muito os movimentos sociais, como os Coletes Amarelos na França há alguns anos, mas também têm favorecido a difusão das fake news, as manipulações nas campanhas eleitorais, e hoje, finalmente, as redes sociais e a internet são espaços que não são nem negros nem brancos, neste movimento democrático que admite essas coisas. Hoje quase todo mundo, todos os eleitores têm certa interação com as pessoas que fazem e que usam as redes sociais, mas obviamente também são usados, manipulados por copistas. E isso será reforçado pela inteligência artificial, pois permitirá operações estratégicas muito mais eficientes e muito menos dispendiosas, além de muito mais econômicas em termos de tempo humano nas redes sociais.

O que fazer em relação à regulamentação para evitar equívocos? Isso também pode ser perigoso porque amanhã pode se voltar contra os movimentos sociais de emancipação. Podemos evitar ter leis que reduzam a concentração capitalista dos meios das mídias e das redes sociais. Acredito que isso é extremamente importante. Podemos realizar debates democráticos sobre regulamentações necessárias, sem deixá-las às grandes empresas da internet para que façam simplesmente a autolimitação. Acho que isso não é suficiente, então não devemos esquecer a imensa captação financeira que permite a essas gigantes incluírem seus perfis em paraísos fiscais de capitalistas, de acionistas. Desde o início elas são o coração da indústria informática. De minha parte, tenho mais perguntas do que respostas neste ponto de vista.

FNBC: Qual seria o papel do sorteio e da formação de minipúblicos diante da crise das representações no contexto da pós-democracia?

YS: Acredito que um dos interesses das experiências que reintroduzem o sorteio na política é colocar as eleições em perspectiva. Quer dizer que a democracia não é igual, não é sinônimo, desculpe-me, de eleições; que na história democrática republicana, que passou na Europa essencialmente, mas também noutras partes do mundo, o sorteio é frequentemente utilizado juntamente com a eleição de várias maneiras para designar a representação política. Isso era verdade em Atenas. O sorteio era muito importante para as eleições, na designação de cargos no governo, na constituição do conselho, na seleção dos juízes. De maneira diferente, também era verdade, na Roma republicana, nas repúblicas medievais e modernas e até no período da Revolução Francesa e Americana. E desapareceu em favor das eleições. Mas hoje, numa fase histórica, a legitimidade das eleições tem enfraquecido, pois na Europa, por exemplo, a maioria dos cidadãos europeus pensa que os políticos eleitos não se preocupam com os interesses dos cidadãos ordinários, embora existam outras maneiras importantes de fazer as coisas, sem ser apenas pela via do sistema eleitoral.

Até agora, a expansão do sorteio tem ocorrido principalmente na Europa. Em menor grau em outros países do Norte… a América do Norte, Japão, e houve alguns na China, em nível local. As experiências no Brasil são quase inexistentes, há uma ou duas experiências, e não há um forte impacto. Existe uma grande diferença.

Não penso que haja uma fórmula mágica para renovar a democracia, mas o sorteio permite, pelo menos em certas situações, colocar em perspectiva os interesses dos lobbies e os interesses particulares. Na Irlanda, as assembleias de cidadãos, que propuseram uma reforma na Constituição para permitir a legalização do aborto e do casamento para todos, responderam à evolução da sociedade, mas depois de conseguirem não foram mais capazes de alcançar resultados. Contudo, ao se permitir a utilização do sorteio na iniciativa da proposição e ao fazer subverter o conjunto dos cidadãos pelo referendo, o bloqueio foi ultrapassado. Podemos pensar também que, na questão do aquecimento global, os interesses dos lobistas são tão fortes que, se não for encontrada outra direção em outros canais que substituam os canais do Parlamento, eles podem influenciar neste aspecto.

Acho que teremos total desgosto se não adotarmos as políticas necessárias para lidar com os compromissos dos países de reduzir as emissões de gases que causam o efeito estufa. A Convenção dos Cidadãos para o Clima foi interessante porque propôs um programa que não era perfeito, mas era mais ambicioso do que o instalado pelo Parlamento e pelo governo de esquerda, centro e direita anterior. Além disso, quando falamos de Europa, se a Europa, como é provável, tiver de se expandir para a Ucrânia e os países Balcãs, teremos de reformar os tratados europeus. Nesta perspectiva, numa convenção para reformar os tratados nos moldes da conferência sobre o futuro da Europa, que aconteceu no ano passado, apareceriam os representantes da sociedade civil, deputados nacionais, deputados europeus, cidadãos sorteados em nível nacional, cidadãos sorteados em nível europeu, e assim haveria mais legitimidade do que numa convenção formada apenas por deputados, sendo essa uma das formas para permitir a revisão dos tratados, o que na Europa é muito complicado. Portanto, é uma possível voz para a democratização.

Quando falamos sobre a China, alguns colegas e reformadores em nível local pensam que através do sorteio poderíamos democratizar melhor a China do que através de eleições. Com relação ao partido único, houve a introdução da experiência do sorteio, porque na Europa, em todo caso, a experiência tem certa legitimidade e, por outro lado, o sorteio implica deixar de lado interesses particulares para ter um instrumento mais imparcial.

O sorteio acarreta ter um espaço de discussão socialmente diversificado, que geralmente não é o da representação política eleitoral, pois muitas vezes os representantes são das classes superiores da sociedade e predominantemente do sexo masculino. Se fizéssemos o sorteio estratificado por cotas de homens, mulheres, escolaridade, província regional, haveria uma amostra que seria um microcosmo aleatório, e isso poderia conferir mais legitimidade, além de permitir que os colegas, em particular, nos Estados Unidos depois da democracia epistêmica, pudessem ter, de fato, um ponto de vista diferente.

Referências Bibliográficas

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  • 1
    . Partido dos Trabalhadores (PT).
  • 2
    . Movimento ao Socialismo (MAS).
  • 3
    .Adalet ve Kalkınma Partisi em Turco, traduzido em português como Partido da Justiça e do desenvolvimento.
  • 4
    .Magyar Polgári Szövetség em Húngaro, traduzido em português como União Civil Húngara.
  • 5
    . A expressão empregada pelo pesquisador foi bucle de rétroaction, também entendida como feedback loop em inglês. O conceito remonta à sequência circular de causas e efeitos. Entende-se que as decisões mudam conforme as informações introduzidas no sistema. Então se avalia a existência ou não de alteração e se a ação foi ou não eficaz. Para compreensão, consultar: Sterman, 2000STERMAN, John D. (2000), Business dynamics: Systems thinking and modeling for a complex world. Boston, MacGraw-Hill Education..
  • 6
    . COP: Conferência das Partes da Convenção - Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima.
  • 7
    . ONU: Organização das Nações Unidas.
  • 8
    . O Brics é um grupo formado inicialmente pelos seguintes países: Brasil, Rússia, Índia e África do Sul.
  • 9
    . A expressão “movimento de ocupação de praças” foi adotada para traduzir do francês mouvements des places.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2024
  • Aceito
    21 Maio 2024
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