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Pesquisa e engajamento em policiamento: Entrevista com Adam Crawford

Adam Crawford integra a Academia de Ciências Sociais do Reino Unido e é membro honorário da Sociedade Britânica de Criminologia - um status conferido aos acadêmicos cujas contribuições deixaram marcas indeléveis na disciplina da Criminologia no âmbito nacional ou internacional. Ele ocupa simultaneamente os cargos de professor de Policiamento e Justiça Social na York Law School da Universidade de York e professor de Criminologia e Justiça Criminal no Centre for Criminal Justice Studies da School of Law da Universidade de Leeds1 1 . Suas páginas institucionais estão disponíveis respectivamente em: https://www.york.ac.uk/law/people/crawford/ e https://essl.leeds.ac.uk/law/staff/187/professor-adam-crawford. . É autor, coautor, editor ou coeditor de 17 livros, 61 capítulos e 52 artigos, além de 5 verbetes em dicionários acadêmicos e 7 resenhas de livros que, em conjunto, compõem uma extensa lista de publicações influentes sobre policiamento, prevenção do crime, segurança comunitária e temas subjacentes como governança, redes e parcerias. Foi organizador ou coorganizador de várias redes internacionais de pesquisa e também se engaja ativamente com profissionais em projetos colaborativos envolvendo universidades, polícias e organizações governamentais e não governamentais. Adam concedeu esta entrevista em outubro de 2023, quando eu encerrava um período como pesquisador visitante sob sua orientação na York Law School2 2 . Estágio de pesquisa no exterior apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp, Processo 2022/10622-8). .

Adam, para começar penso que seria interessante saber sobre o início de sua carreira. O que o levou a fazer sua graduação em Direito e Sociologia na Universidade de Warwick e, em geral, o que despertou seu interesse pela Criminologia?

Desde o início, eu sempre me interessei por coisas nas margens, pelas possibilidades de cruzar fronteiras e pelo que acontece quando elas são rompidas. Por isso, sempre fui atraído por estudos multidisciplinares ou interdisciplinares. Sendo fortemente comprometido com as Ciências Sociais - com o estudo da maneira pela qual as pessoas interagem, se comportam e influenciam o mundo ao nosso redor; essencialmente, de como a sociedade funciona -, eu fui atraído pela graduação conjunta de Direito e Sociologia por várias razões.

Em primeiro lugar, por conta do meu interesse na ordem social - a questão durkheimiana do que mantém a sociedade unida - que, em essência, é assunto tanto do Direito como da Sociologia. O Direito busca codificar normas e regras que vinculem e reflitam a solidariedade social, enquanto a Sociologia busca explicar a presença ou a ausência da ordem social. Em segundo lugar, elas fornecem perspectivas muito diferentes. O Direito é uma disciplina antiga e estabelecida, enquanto a Sociologia tem uma origem bem mais recente. O Direito me pareceu decididamente conservador, enquanto a Sociologia, com suas influências marxistas (ao menos no começo dos anos 1980), era atrativamente radical. Essa fricção entre diferentes disciplinas e as faíscas intelectuais produzidas em sua interface ambígua foi o que me atraiu. Estudar Direito e Sociologia em meados dos anos 1980 me levou a aprofundar meu interesse em crime, dano e desordem, pois esse foi o período do thatcherismo, da agitação urbana e da disputa industrial, mais notavelmente o da greve dos mineiros de 1984/5. Nessa época, o uso da criminalização e o do poder coercitivo do Estado para gerenciar e suprimir a dissidência política, a desordem urbana e as relações industriais pareciam tão marcantes, opressivos e, ainda assim, intrigantes. Isso plantou a semente de meu subsequente interesse pela Criminologia. Mas eu sempre fui algo como um criminólogo relutante, mais interessado na natureza mundana da (des)ordem social do que em representações espetaculares do crime e da punição.

Warwick era ímpar em oferecer esse curso - o único no Reino Unido naquela época - em parte devido à sua própria tradição radical de estudar e lecionar o Direito em contexto, como uma Ciência Social e não como uma matéria de princípios doutrinários.

Você cursou o mestrado em Criminologia na Universidade de Cambridge e o doutorado em Criminologia na Universidade de Leeds. Poderia nos contar sobre as pesquisas que desenvolveu na pós-graduação? Como seus interesses evoluíram e quais foram suas influências durante esse período?

Eu tive a sorte de conseguir uma bolsa de estudos do Economic and Social Research Council (ESRC) para a Universidade de Cambridge, onde fui exposto a algumas grandes mentes e ideias. Era um ambiente muito diferente dos prédios funcionalistas e brutalistas de Warwick, ver-se diante das belas faculdades ameadas de Cambridge imersas na história medieval. Foi preciso se acostumar com tudo, mas um ano não é muito tempo para isso!

Portanto, não é surpreendente que minha dissertação de mestrado tenha sido histórica, explorando os discursos racistas que acompanharam a criminalização de populações migrantes e irlandesas na Inglaterra vitoriana. Fui enormemente influenciado pelas maravilhosas histórias sociais de Edward Palmer Thompson, a quem tive o prazer de encontrar em várias ocasiões enquanto eu estudava em Warwick. Apesar do uso do Direito como instrumento para opressão e reforço das desigualdades, que ele documentou tão vividamente em relação à Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, Thompson manteve-se firme na noção de que o Estado de Direito é “um bem humano inqualificável” (1975, p. 266, tradução nossa), embora tendo como premissa uma desconfiança “sanguinária” do Estado. Eu ainda acho que ele é um dos mais importantes pensadores britânicos do século XX. Também fui muito influenciado por outro titã intelectual da época, Stuart Hall, a quem igualmente tive o prazer de conhecer e ouvir, incluindo uma palestra memorável que proferiu na Universidade de Cambridge, na qual ele defendeu o “ecletismo da teoria”. Na época, isso contrariou minhas inclinações pós-estruturalistas um tanto quanto dogmáticas, mas depois passou a me inquietar e a informar meus pensamentos e meu trabalho desde então.

Meu doutorado foi um estudo das relações de parcerias multiagências entre vários provedores de serviços, incluindo a polícia, o governo local e organizações da sociedade civil engajadas no trabalho de segurança comunitária nos anos 1990. Essa foi uma época em que as parcerias entre a polícia e outros provedores de serviços de saúde e assistência social eram embrionárias no Reino Unido e anteriores à introdução de uma obrigação legal por meio do Crime and Desorder Act 1998, que formalizou esses arranjos de segurança comunitária. A tese foi posteriormente publicada como The local governance of crime pela Oxford University Press (Crawford, 1997CRAWFORD, Adam. (1997), The local governance of crime: appeals to community and partnerships. Oxford, Oxford University Press.). Muitos dos desafios que eram evidentes na provisão de segurança urbana naquela época permanecem persistentemente verdadeiros até hoje (Crawford, 2023).

Após seu doutorado, quais foram os principais caminhos que sua pesquisa seguiu?

O primeiro trabalho acadêmico que consegui, em 1987, foi no Second Islington Crime Survey como pesquisador na Politécnica de Middlesex, trabalhando com Jock Young e colegas (Crawford et al., 1990CRAWFORD, Adam et al. (1990), The second Islington crime survey. Enfield, Centre for Criminology, Middlesex University.). Então, por associação e, em grande medida, por escolha, fui atraído pelo Realismo de Esquerda no auge de sua influência no final dos anos 1980 e início dos 1990 (Matthews & Young, 1986MATTHEWS, Roger & YOUNG, Jock (eds.). (1986), Confronting crime. Londres, Sage.; Young & Matthews, 1992). Isso reforçou alguns pilares fundacionais muito importantes que continuaram a informar meu trabalho. Primeiro, o reconhecimento da desigual concentração social e espacial da vitimização, dos danos e das desvantagens sociais. O crime agrava outros males sociais e formas de privação. Qualquer foco no crime precisa ser acompanhado de um foco na desigualdade.

Segundo, aliado a isso está o reconhecimento de que o crime - apesar de seu caráter decididamente político, frequentemente usado como um meio para preservar diferenciais de riqueza, defender a propriedade privada e reforçar poderosos interesses por meio das instituições de policiar, acusar e punir - não é uma atividade protorrevolucionária a ser romantizada como os Robin-Hoods desses tempos, mas é largamente intraclasse e intrarraça, prejudicando aqueles que já são os mais marginalizados. Por mais contingente ou arbitrário que seja o processo de rotulação do crime, a realidade do crime é construída e reproduzida em cadeias repetidas de interações entre atos e respostas a eles. Pessoas comuns tratam os crimes como reais não apenas porque eles têm consequências (danosas) reais, mas também porque elas os reproduzem em suas respostas por meio de ações sociais.

Terceiro, o dano que resulta das experiências vividas do crime e da vitimização demanda ações reformistas aqui e agora e, portanto, um engajamento pragmático com as próprias estruturas e instituições que também podem servir para perpetuar o dano. O Estado e a polícia - ao menos no Reino Unido e na maior parte da Europa - não apenas produzem e agravam as vulnerabilidades e os danos existentes, mas também podem servir para mitigá-los e reduzi-los. O Estado é a máxima e última instância do poder investido com o bem público e deve ser continuamente responsabilizado por tais aspirações e valores e como uma inibição ao poder arbitrário. Houve um belíssimo panfleto publicado pela primeira vez em 1979 pelo London-Edinburgh Weekend Return Group (1980), intitulado In and against the State, que captou bem esse paradoxo e a invocação de uma ética da práxis. Estruturas sociais como o sistema de justiça criminal e a polícia são tanto um recurso para que os atores deem sentido às suas ações como um produto dessas ações. Para mim, isso suscita questões éticas não apenas sobre a produção do conhecimento, mas sobre como o conhecimento e as ideias são mobilizados e usados, bem como sobre o que os pesquisadores acadêmicos valorizam e como eles assumem a responsabilidade por suas intervenções de modo a combinar a problematização e a solução de problemas.

Quarto, em contrapartida, os estímulos e as causas do crime estão longe do alcance tradicional do sistema de justiça criminal e das agências estatais. Como Braithwaite (1989BRAITHWAITE, John. (1989), Crime, shame and reintegration. Cambridge, Cambridge University Press.) e outros há muito notaram, a maioria das pessoas não comete crimes na maior parte do tempo, fundamentalmente, não porque a lei ou um juiz lhes diz para não o fazer, mas devido às forças legítimas da conformidade, à vergonha, à aprovação e aos mecanismos de controle social paroquial que estão emaranhados em múltiplas relações de interdependência, cuidado, família, parentesco e comunidade. É importante ressaltar que a polícia e as autoridades legais são chamadas para gerenciar a ordem social, mas elas não a criam e não podem criá-la em primeiro lugar. A ordem é fomentada e sustentada por processos, instituições, normas e valores sociais muito mais amplos. Portanto, não pode haver uma única agência dirigida pelo Estado (do tipo comando e controle) como solução para o crime, dadas as suas causas e efeitos complexos e multifacetados. Isso reforça a marginalidade da lei e das autoridades legais na vida da maioria das pessoas e a importância de processos e relações de controle social informal. Contudo, esses processos podem ser inclusivos ou excludentes. Além disso, como ressaltei no final do penúltimo capítulo do meu primeiro livro: “Uma afirmação de identidade ‘comunitária’ ao nível local pode ser lindamente conciliatória, socialmente matizada e construtiva, mas também pode ser paroquial, intolerante, opressiva e injusta” (Crawford, 1997CRAWFORD, Adam. (1997), The local governance of crime: appeals to community and partnerships. Oxford, Oxford University Press., p. 294, tradução nossa). Meu trabalho nos anos seguintes foi largamente informado por trabalhar na e contra a Criminologia, bem como dentro e fora de movimentos contemporâneos da teoria social.

Ao longo de sua carreira, você usou conceitos como família policial estendida, economia mista, governança contratual e, mais recentemente, policiamento plural, segurança cotidiana e vulnerabilidade ( Crawford, 2003 CRAWFORD, Adam. (2003), “‘Contractual governance’ of deviant behaviour”. Journal of Law and Society, 30 (4): 479-505. ; 2006; Crawford & Lister, 2004; Crawford et al., 2005; Crawford & Hutchinson, 2016). Você poderia descrever brevemente quais aspectos do policiamento e da segurança você buscou captar com esses conceitos e como eles se alternaram, complementaram ou articularam? 3 3 . Conceitos como policiamento plural e segurança cotidiana foram discutidos por cientistas sociais brasileiros e compuseram uma agenda de pesquisa recente (Lopes & Paes-Machado, 2021; Patriarca, 2023).

Você está apontando para o fato de que eu frequentemente busquei utilizar, adaptar e desenvolver conceitos de médio alcance em vez de grandes teorias sociais. Aqueles que podem ser aplicados em diferentes domínios, disciplinas e setores, mas que agregam valor na compreensão das dimensões da mudança, das tendências e dos conflitos sociais. Todas as teorias e ferramentas conceituais são até certo ponto desajustadas. A chave para seu valor é a medida em que o que elas iluminam supera esse desajustamento.

Todos os conceitos que eu usei - e que você menciona -, em maior ou menor grau, giraram em torno da confluência, primeiro, das fronteiras entre a polícia e outras organizações públicas, privadas e do terceiro setor/sociedade civil (policiamento plural, família policial estendida, parcerias/governança em rede, noções de segurança etc.); segundo, das delimitações ambíguas entre controle e cuidado, punição e prevenção, respostas criminais e civis (vulnerabilidades, comportamento antissocial, governança contratual, justiça restaurativa, regulação responsiva etc.); terceiro, do papel dos públicos, das comunidades e dos indivíduos vulneráveis em moldar ativamente as práticas, informar as regulações e os comportamentos, bem como em constituir o conhecimento (segurança cotidiana, coprodução etc.).

Eu também gostaria de falar sobre o seu engajamento com profissionais. Atualmente você é membro do Police Science Council do Reino Unido 4 4 . Mais informações em: https://science.police.uk/about/police-science-council/. e, anteriormente, já integrou outros grupos de referência acadêmica para o governo. Além disso, você participa, lidera ou mesmo fundou projetos colaborativos entre universidades, polícias e organizações governamentais e não governamentais, como a N8 Policing Research Partnership 5 5 . Mais informações em: https://www.n8prp.org.uk/. , o ESRC Vulnerability & Policing Futures Research Centre 6 6 . Mais informações em: https://vulnerabilitypolicing.org.uk/. e o projeto IcARUS 7 7 . Mais informações em: https://www.icarus-innovation.eu/. . Você poderia nos dizer qual é a sua posição sobre o papel que a pesquisa tem, pode ter ou deve ter em informar as práticas de policiamento - e vice-versa?

Essa é uma questão importante e desafiadora, que se apresenta de forma bastante diferente em várias partes do mundo. Eu suspeito que, para muitos leitores brasileiros e sul-americanos, a mera ideia de pesquisadores acadêmicos se engajarem com a polícia pode parecer muito estranha - dados seus poderes coercitivos, sua autoridade punitiva e as histórias de abuso discriminatório dos direitos civis e de pessoas vulneráveis, bem como a proteção do poder e do privilégio. Contudo, no contexto britânico onde os princípios peelianos de policiamento por consentimento, imparcialidade, uso mínimo da força e a tradição histórica de que “a polícia é o público e o público é a polícia”8 8 . Creditada ao então ministro do Interior, Sir Robert Peel, e associada à fundação da polícia britânica moderna por meio do Metropolitan Police Act 1829. têm uma influência ideológica considerável, parece particularmente importante que a polícia seja responsabilizada por esses elevados ideais. Para tal fim, acredito que os pesquisadores têm um papel e uma responsabilidade fundamental de se engajar com o policiamento tanto em termos empíricos como normativos. Além disso, nos últimos anos no Reino Unido, houve esforços conjuntos por parte do governo, policiais sêniores e universidades para superar o tradicional “diálogo de surdos” entre polícia e pesquisa (Bradley & Nixon, 2009BRADLEY, David & NIXON, Christine. (2009), “Ending the ‘dialogue of the deaf’: evidence and policing policies and practices”. Police Practice and Research, 10 (5/6): 423-35.) - do qual resulta que o treinamento e a prática policial foram tradicionalmente informados mais pelo conhecimento tácito, pelo “ofício” individual e pela experiência nas ruas do que por pesquisas empíricas ou qualquer conhecimento científico rigoroso - sob os auspícios da “profissionalização do policiamento” (liderada pelo College of Policing) e do movimento do policiamento baseado em evidências.

O policiamento é marcado pelo fato de ser exercido por policiais com considerável discricionaridade e escopo para abusos na linha de frente, empregando poderes coercitivos significativos onde a supervisão, a transparência e a accountability são geralmente mais ausentes (embora as filmagens por celular e as mídias sociais tenham reduzido isso até certo ponto). Tendo em vista os poderes da polícia para definir problemas de um modo que possa apressar a criminalização e a coerção, é necessário que sejam criadas novas e aprimoradas maneiras por meio das quais sejam providos serviços públicos para pessoas vulneráveis e em risco de danos, para reduzir o crime e a vitimização. Aqueles que sofrem com o crime e com os danos da exploração tendem a ser os já mais socialmente desfavorecidos. O crime e o policiamento tendem a agravar outras formas existentes de desigualdade social e marginalização. Para que o policiamento supere suas tendências a práticas discricionárias e frequentemente discriminatórias, é preciso que os pesquisadores se engajem com as condições sob as quais a polícia pode servir tanto para mitigar e reduzir, como também para exacerbar as desvantagens e as vulnerabilidades existentes.

Nesse contexto, o engajamento com o policiamento não é um meio de realizar pesquisas para a polícia - no lugar de pesquisas sobre a polícia ou do escrutínio da polícia -, mas sim de gerar um conhecimento que aproveite os insights, o entendimento e os recursos da própria polícia (como eles definem problemas e os dados que rotineiramente coletam), e que simultaneamente também desafie seus pressupostos e práticas de trabalho. A premissa desse engajamento é uma teoria da mudança segundo a qual aqueles profissionais e os cidadãos que usarão a pesquisa e aplicarão a base do conhecimento gerado devem ser envolvidos em sua construção, ativamente coproduzindo as evidências (Crawford, 2020CRAWFORD, Adam. (2020), “Effecting change in policing through police/academic partnerships: the challenges of (and for) co-production”. In: FIELDING, Nigel; BULLOCK, Karen & HOLDAWAY, Simon (eds.). Critical reflections on evidence-based policing. Londres, Routledge, pp. 175-197.).

Contudo, se a pesquisa se torna muito estritamente vinculada aos interesses organizacionais da polícia, ela sem dúvida perderá sua distância crítica vital e se tornará um braço das - e uma justificativa para as - práticas prevalecentes (ou programas dominantes de mudança), em vez de um motor de reflexão crítica e aprendizado organizacional. A polícia é um ator eminentemente poderoso e autoritário, bem versado em articular suas preferências ou interesses e impor sua própria construção narrativa de eventos aos demais. Sua autoridade coercitiva genérica diferencia a polícia da maioria dos outros funcionários públicos. Pesquisas sobre parcerias no policiamento invariavelmente destacam essa dimensão do poder e da frequente tendência de a polícia dominar as agendas coletivas e excluir vozes dissidentes. Consequentemente, o policiamento coloca em primeiro plano, de maneiras inevitáveis, os desafios de gerenciar relações de poder diferenciais. Em outros contextos, as sutilezas dos diferenciais de poder podem ser mais facilmente ignoradas. Minhas próprias experiências sugerem o valor da “interdependência independente” como estrutura norteadora para negociar as realidades vividas no engajamento com a polícia e com agências de policiamento de modo a proteger a integridade da pesquisa. Isso também exige atenção às formas de governança e accountability que garantam uma responsabilidade ativa pelos resultados compartilhados.

Tampouco devemos esquecer que, como pesquisadores engajados no processo de produção do conhecimento, nós também temos recursos poderosos que precisam ser exercidos com o devido cuidado, atenção e integridade em relação àqueles que buscamos estudar e influenciar. O processo de (co)produção do conhecimento não está livre de hierarquias, conflitos e relações de poder diferenciais. Isso exige negociações complexas e sutis, assim como gerenciamento ético. Por conseguinte, também precisamos mudar as maneiras pelas quais os acadêmicos se engajam com os profissionais, os cidadãos comuns, os grupos vulneráveis e os participantes de pesquisa de um modo que leve devidamente em conta seus conhecimentos e experiências vividas.

Por fim, poderíamos encerrar nossa entrevista mirando o futuro. Em sua visão, quais são as questões mais importantes a serem ampliadas e aprofundadas, os desafios a serem enfrentados ou as possibilidades a serem exploradas na pesquisa e na prática do policiamento e da segurança nos próximos anos?

A principal lição de nossa revisão internacional de evidências sobre segurança urbana e prevenção do crime conduzida para o Projeto IcARUS (Crawford, Donkin & Weirich, 2022CRAWFORD, Adam; DONKIN, Susan & WEIRICH, Christine. (2022), The changing face of urban security research: a review of accumulated learning. IcARUS Project, 2022. Disponível em https://www.icarus-innovation.eu/d2-1-the-changing-face-of-urban-security-research-a-review-of-accumulated-learning/.
https://www.icarus-innovation.eu/d2-1-th...
; Crawford, 2023) é a de que, apesar dos avanços na base de evidências sobre estratégias efetivas para redução de danos em diferentes cidades, muito pouco disso está sendo implementado nas práticas de segurança urbana. Não é que saibamos pouco sobre o que funciona - embora ainda existam lacunas importantes em nosso conhecimento sobre como o aprendizado é traduzido em diferentes contextos -, mas que a base de conhecimento não está sendo implementada. A prevenção do crime, em particular, ainda segue com poucos recursos e mal implementada em comparação com os recursos e os investimentos nos sistemas de aplicação da lei, acusação e punição. Após quarenta anos de experimentação e aprendizado com pesquisas, há agora uma rica base de evidências que demonstra os benefícios sociais decorrentes da prevenção e das intervenções precoces upstream. É evidentemente mais efetivo antecipar os danos e evitar as oportunidades criminosas por meio de mudanças sociais, físicas e tecnológicas do que responder aos problemas depois que eles se manifestam ou adaptar soluções após o evento. No entanto, a promessa de uma virada sustentável à prevenção no campo do crime e da redução de danos continua persistentemente não cumprida. Apesar das evidências de que a prevenção desempenhou um papel na redução dos índices agregados de criminalidade em muitas e diversas jurisdições, a preocupação com policiar, acusar e punir mantém uma influência pervasiva sobre a consciência política, a mentalidade legal e as sensibilidades culturais. O desafio é efetuar mudanças políticas e práticas por meio de pesquisas rigorosas que insiram as vozes daqueles afetados pela intervenção, e não apenas as daqueles que a realizam.

Esse desafio está no cerne do meu trabalho atual como codiretor do Vulnerability and Policing Futures Research Centre, o qual está avançando um programa de pesquisa baseado em locais e orientado a problemas, troca de conhecimento e construção de capacidades. Enquanto um centro de excelência interdisciplinar de larga escala, estamos explorando como as vulnerabilidades são produzidas, agravadas e mitigadas pelo policiamento e como a polícia e outros serviços públicos podem ser melhor aproveitados para prevenir e reduzir essas vulnerabilidades. Sediado conjuntamente na Universidade de York e na Universidade de Leeds e financiado pelo ESRC, pretendemos ser pioneiros em respostas novas e integradas para questões como o tráfico de drogas através dos condados9 9 . No Reino Unido, county lines descreve a prática de traficantes das áreas urbanas que viajam para cidades menores, distantes e até em outros condados, a fim de vender os entorpecentes. Para isso, redes criminais frequentemente recrutam ou pressionam pessoas vulneráveis para realizar o transporte ou a venda. Mais informações em: “County lines policing and vulnerability”, Vulnerability & Policing Futures, Research Centre, https://vulnerabilitypolicing.org.uk/county-lines/. , escravidão moderna, violência doméstica e situação de rua.

A natureza e as causas das vulnerabilidades são complexas e dinâmicas. Dado que a polícia é cada vez mais levada a trabalhar com pessoas vulneráveis, ela está se tornando mais e mais entrelaçada com o trabalho de outros provedores de serviços. Com muita frequência, há falta de clareza sobre as funções e o propósito compartilhado enquanto, ao mesmo tempo, o público tem crescentes preocupações sobre o papel e as prioridades da polícia. Contudo, a transformação dos dados e seu uso estão reformulando os serviços públicos, oferecendo oportunidades para entender as vulnerabilidades e responder a elas de maneiras eticamente sensíveis.

Nossa pesquisa está dividida em três vertentes complementares. Primeiro, pesquisa baseada em locais: combinando pesquisa qualitativa e resultados de grandes bancos de dados do setor público, estamos explorando como as múltiplas vulnerabilidades se compõem nos bairros das cidades. Isso fornece insights ímpares sobre como as diferentes agências interagem e o que precisa ser feito para reduzir danos. Segundo, pesquisa orientada a problemas: estamos analisando questões urgentes que representam desafios singulares nas áreas de vulnerabilidade e policiamento, como a exploração por redes de drogas através dos condados, vitimização sexual infantil on-line, violência doméstica, escravidão moderna e o policiamento em casos envolvendo pessoas com transtornos mentais ou em situação de rua. Terceiro, engajamento público e político: estamos investigando o entendimento do público sobre o policiamento, as questões que as pessoas consideram as mais importantes e o apetite por mudanças, ajudando a informar o debate público, as políticas e as práticas.

No que pode parecer bastante ambicioso, estamos tentando repensar e ajudar a remodelar o papel do policiamento em uma perspectiva mais ampla de segurança pública e redução de danos. Fazendo isso, buscamos integrar insights da ciência de dados com a análise social qualitativa e com as experiências vividas das pessoas vulneráveis. O escopo amplo de nossa pesquisa se baseia em colaborações efetivas com a polícia, organizações parceiras e pessoas com experiências vividas. Muitos trabalham conosco em nossos grupos consultivos ou ajudam a coproduzir nossas pesquisas, o que nos permite compreender as perspectivas de diversos serviços e das pessoas que os usam, ao mesmo tempo obtendo novos insights por meio de uma variedade de métodos de pesquisa. Essas parcerias e iniciativas colaborativas nos propiciam compreender como a vulnerabilidade se desenvolve em diferentes áreas, como as organizações podem trabalhar juntas para lidar com problemas-chave e, finalmente, como podemos moldar um futuro melhor que reduza os danos entre as pessoas vulneráveis na sociedade.

O Centro reúne coinvestigadores de todo o Reino Unido e conta com o apoio de parceiros internacionais e de um Conselho Consultivo Internacional que está nos ajudando a desenvolver nossa estratégia internacional. Os objetivos são compartilhar o aprendizado e as inovações em teorias, processos e métodos por meio de redes acadêmicas colaborativas e comunidades profissionais; incorporar boas práticas internacionais e comparações de pesquisa no programa do Centro; bem como formar novas colaborações de pesquisa comparativa e explorar oportunidades de pesquisa alinhadas a isso. Há muito o que fazer! Também é muito empolgante trabalhar com um elenco tão excelente de pessoas e parceiros.

Referências Bibliográficas

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    . Estágio de pesquisa no exterior apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp, Processo 2022/10622-8).
  • 3
    . Conceitos como policiamento plural e segurança cotidiana foram discutidos por cientistas sociais brasileiros e compuseram uma agenda de pesquisa recente (Lopes & Paes-Machado, 2021; Patriarca, 2023).
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    . Mais informações em: https://science.police.uk/about/police-science-council/.
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  • 8
    . Creditada ao então ministro do Interior, Sir Robert Peel, e associada à fundação da polícia britânica moderna por meio do Metropolitan Police Act 1829.
  • 9
    . No Reino Unido, county lines descreve a prática de traficantes das áreas urbanas que viajam para cidades menores, distantes e até em outros condados, a fim de vender os entorpecentes. Para isso, redes criminais frequentemente recrutam ou pressionam pessoas vulneráveis para realizar o transporte ou a venda. Mais informações em: “County lines policing and vulnerability”, Vulnerability & Policing Futures, Research Centre, https://vulnerabilitypolicing.org.uk/county-lines/.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2024
  • Aceito
    21 Maio 2024
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