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Intercorrências do tempo no Brasil moderno: História econômica do Brasil (1945) e Sobrados e mucambos (1936)

The intercurrences of time in modern Brazil: História Econômica do Brasil (1945) e Sobrados e mucambos (1936)

Resumo

Atento às concepções do tempo que orientam os retratos da vida social brasileira delineados nas versões inaugurais de História econômica do Brasil e Sobrados e mucambos, o artigo examina duas hipóteses: primeiramente, as imagens do país projetadas nos ensaios assentam-se sobre um mesmo referencial epistemológico que estreita as possibilidades de intelecção de ambos tanto a respeito dos ingredientes e processos implicados na formação brasileira, quanto acerca do lugar e das perspectivas dessa sociedade no Ocidente moderno. Conforme a segunda hipótese, não obstante suas intenções críticas, HEB e SeM mantêm-se presos aos horizontes de cognição de certo enquadramento hegemônico da modernidade, o qual conduz Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre a ratificarem a posição retardatária e coadjuvante do país vis-à-vis os chamados contextos modernos modelares.

Palavras-chave
Gilberto Freyre; Caio Prado Jr; Pensamento social brasileiro

Abstract

While concerned with the conceptions of time that orient the portraits of the Brazilian social life outlined in the inaugural editions of História econômica do Brasil and Sobrados e mucambos, the article examines two hypotheses: first and foremost, despite the specificity of their approaches, the essays rest on a common epistemological ground that constrains Gilberto Freyre’s and Caio Prado Jr’s perceptions about Brazil’s societal formation as well as its place and prospects in the modern scene. Secondly, notwithstanding the critical intentions of these authors, both remain entrenched in the cognitive horizons of a hegemonic frame of reference on modernity, which ultimately leads Prado Jr and Freyre to ratify the longstanding idea of Brazil as a secondary and delayed experience vis-à-vis the so-called advanced modern societies.

Keywords
Gilberto Freyre; Caio Prado Jr; Brazilian social thought

A princípio, motivos não faltariam para que Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre fossem situados em campos distintos, para não dizer diametralmente opostos, do pensamento brasileiro1 1 . O presente artigo é fruto de projeto de pesquisa financiado pelo CNPq (Bolsa Produtividade). Agradeço às/aos pareceristas anônimas/os de Tempo Social as valiosas sugestões, as quais busquei incorporar no trabalho. . Integrantes de uma geração de intelectuais desde longa data louvada por haver redefinido os termos a partir dos quais a vida social no Brasil passou a ser vislumbrada2 2 . As considerações de Candido (1994) e Cardoso (1993) permanecem exemplares de tal percepção difusa acerca da relevância dessa geração, em especial de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. , é comum chamar-se atenção para as dessemelhanças das trajetórias pessoais e profissionais desses personagens, extensivas às suas inclinações políticas e posicionamentos ideológicos. A tomar por essas análises, apreciações inconfundíveis a respeito da formação nacional teriam se desdobrado em prognósticos não menos contrastantes para o país: afora o fato de exprimirem agendas de reflexão próprias, suas obras de maior impacto teriam se amparado em referenciais epistemológicos e parâmetros teórico-metodológicos díspares, disso resultando abordagens irreconciliáveis a propósito da experiência nacional3 3 . A esta altura, há uma vasta produção acerca dos itinerários pessoais, intelectuais, profissionais e políticos dos dois intérpretes. A respeito de Caio Prado Jr. vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Secco (2008) e Pericás (2016). Sobre Freyre, atente-se para as obras de Pallares-Burke (2005) e Meucci (2015). . No fim das contas, tamanha a distância a separá-los que, além de fortuitas e pontuais, as consonâncias entre seus retratos do Brasil careceriam de qualquer relevância nas respectivas faturas dos célebres pensadores.

Transcorridas várias décadas desde suas aparições inaugurais, as famigeradas formulações de Freyre e Prado Jr. continuam a ensejar uma gama profusa de controvérsias, concernentes a um conjunto copioso de questões – dentre as quais as influências dos contextos sociais e intelectuais nas obras que os projetaram, as recepções e legados duradouros de suas lucubrações, as continuidades com relação a abordagens analíticas precedentes, as inovações interpretativas então consumadas, os limites, alcances e as indagações suscitadas por suas ideias etc. A par das especificidades de suas trajetórias e projetos intelectuais, parece-me, no entanto, haver correspondências decisivas entre suas cogitações. Está claro que o leitmotiv dos prolíficos percursos de ambos consistiu em inquirir os ingredientes e sínteses primordiais dessa sociedade, assim como examinar as dinâmicas históricas que, com o passar do tempo, redundariam na adesão do país às formas de sociabilidade características da modernidade ocidental. Interessado em explorar as intersecções entre suas ideias, o presente artigo propõe-se empreender uma análise crítica de um aspecto em particular que perpassa as edições princeps de Sobrados e mucambos (SeM) e História econômica do Brasil (HEB)4 4 . Almejo aqui expandir e complexificar um programa de análise que venho desenvolvendo em Tavolaro (2020; 2021; 2022a; 2022b). . Convém reconhecer que, embora tenham sua relevância afiançada pela fortuna crítica, trata-se de ensaios com frequência ofuscados pela extraordinária visibilidade que Casa-grande & senzala (1933) e Formação do Brasil contemporâneo (1942) alcançaram dentro e fora dos círculos acadêmicos. Os insights oferecidos por CGS e FBC no âmbito do pensamento brasileiro, em especial a perícia com que estabeleceram novas veredas para a compreensão do Brasil, dispensam maiores comentários. Dito isso, cabe salientar que foi somente em projetos subsequentes que Prado Jr. e Freyre deram curso à sua ambiciosa agenda de investigação, contemplando uma problemática que, em pouco tempo, se tornaria central nas ciências sociais aqui praticadas – leia-se, as implicações dos processos históricos e dos intercâmbios societários que, a partir do século XIX, compeliram tal experiência a internalizar padrões de sociabilidade via de regra vinculados à modernidade.

Ao menos nessa dimensão, é razoável aventar que HEB e SeM constituem trabalhos mais fecundos que seus ilustres precedentes, visto terem intentado perscrutar os caminhos e percalços da modernização brasileira sem perder de vista as propaladas origens sui generis do país. Não restam dúvidas quanto ao fato de essas obras expressarem motivações e interesses até certo ponto exclusivos, que levaram seus autores a perseguirem preocupações discordantes. Ademais, também é verdade que, em conformidade com seus distintos embasamentos teórico-conceituais, os ensaios em tela conferiram prioridade a diferentes variáveis explicativas, as quais conduziram as reflexões em direções em muitos aspectos discrepantes. Seja como for, como quero já de partida ressaltar, um traço em comum desde pronto salta aos olhos na leitura concomitante de Sobrados e História econômica: em um e outro casos, com insuspeita nitidez, é evidente a propensão para posicionar a sociedade brasileira num patamar secundário no concerto moderno – ou, se assim se preferir, para codificá-la como um cenário tributário de outros itinerários sócio-históricos. A bem dizer, ao invés de residual ou ancilar, tal inclinação partilhada revela-se difusa nos trabalhos, presente em vários momentos das argumentações.

Como pretendo desenvolver a seguir, essa orientação convergente é a expressão epidérmica de outra homologia, mais arraigada e penetrante em seus efeitos interpretativos. De acordo com a primeira conjectura do artigo, não obstante os traços irredutíveis a cada obra e autor, as imagens do país delineadas em SeM e HEB assentam-se sobre um mesmo referencial epistemológico do tempo, que estreita as possibilidades de intelecção de ambos, tanto a respeito dos ingredientes e processos implicados na formação brasileira, quanto acerca do lugar e das perspectivas dessa sociedade no Ocidente moderno. Em virtude desse referencial, os predicados com frequência identificados por Freyre e Prado Jr. como distintivos de tal formação – acervos culturais, estruturas econômicas, arranjos políticos e arcabouços institucionais específicos, ao lado de fatores naturais e aspectos étnico-raciais invulgares – acabam inevitavelmente percebidos como parcial ou integralmente dessincronizados da modernidade e, ipso facto, responsabilizados pelos disparates e lapsos do país frente a outros contextos coetâneos. Ainda conforme esta conjectura, tais homologias manifestam-se em ao menos três planos dos trabalhos ora analisados: primeiramente, em suas ideações em torno dos legados históricos e dos componentes físico-ambientais e raciais que teriam participado de nossas gêneses; em segundo lugar, nos diagnósticos acerca dos padrões de sociabilidade cristalizados ao longo de tal formação; por fim, nas cogitações das obras a propósito das alardeadas incongruências do tecido social brasileiro e de suas discrepâncias vis-à-vis sociedades tomadas por protagonistas da modernidade.

Decerto, não são poucas as investigações que apontaram para as intermitências do tempo nessas e em outras conhecidas fabulações dos intérpretes. Para citar alguns exemplos, Iumatti (2018IUMATTI, Paulo T. (2018), "Temporalidades". In: IUMATTI, Paulo T. História, dialética e diálogo com as ciências: A gênese de Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr. (1933-1942). São Paulo, Intermeios, pp. 417-486., p. 484, p. 417) discerne na fatura de Prado Jr. a respeito da realidade nacional a problematização “do conceito de evolução linear por etapas”, ou ainda, “a ruptura com o tempo linear e a percepção de uma multiplicidade de temporalidades, gerais e específicas”. Conservando uma apreciação “positiva da modernidade e de suas formas culturais”, o autor de A revolução brasileira teria se debruçado sobre a “questão do descompasso” do país na quadra moderna, palco de transformações que “somavam-se dialeticamente ao passado” (Idem, p. 483, pp. 480-481). De sua parte, Lage (2016LAGE, Victor. (2016), Interpretations of Brazil, contemporary (de)formations. Rio de Janeiro, 2 vols., 624 p., tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro., p. 219, p. 228) defende que, em acréscimo à acepção “linear e progressiva do tempo”, Caio Prado Jr. adota um tipo de registro que lhe permite tornar recíprocos “o velho e o novo”; a concomitância dessas “duas temporalidades”, uma “cíclica” e outra “progressiva”, seria indicativa da “importância da contradição entre as esferas econômica e política, tanto quanto da miscigenação para o futuro da nacionalidade brasileira”. Por fim, Ricupero (2000RICUPERO, Bernardo. (2000), Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo, USP; Fapesp; Editora 34., p. 161, p. 180) sustenta que, na visão projetada pelo pensador paulista, “em nossa formação econômico-social o tempo custa particularmente a passar”, sendo um de seus principais aspectos “[a] caracterização do presente como praticamente continuação não modificada do passado”.

No que diz respeito às proposições de Freyre, Bastos (2003BASTOS, Elide. (2003), Gilberto Freyre e o pensamento hispânico: entre Dom Quixote e Alonso El Bueno. Bauru, Edusc., p. 122, p. 95, pp. 83-84) destaca a influência do conceito de “tempo tríbio”, de Ortega y Gasset, sobre o autor de SeM, manifesta no diagnóstico da interpenetração entre “presente, passado e futuro” na vida brasileira. A isso se articularia a ideia de que, em vez de abruptas, as alterações ocorridas em nossa história constituiriam “um processo que se estende ao longo do tempo, que não ocorre de forma linear, mas tem a conformação de um labirinto”, com “vaivéns sinuosos”. De modo análogo, Nicolazzi (2008NICOLAZZI, Fernando. (2008). Um estilo de história: a viagem, a memória, o ensaio. Sobre Casa-Grande & senzala e a representação do passado. Porto Alegre, pp. 399, tese de doutoramento em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/13823/000651794.pdf?sequence=1&isAllowed=y, consultado em 24/01/2024]
https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/1...
, p. 263) sustenta que, em CGS, “Gilberto desenvolve uma concepção particular de tempo tripartite, segundo a qual, para além de qualquer ruptura, o que fica evidente é a ligação íntima entre passado, presente e futuro”5 5 . A esse enquadramento, Nicolazzi (2008, p. 268) confere a designação de “tempo homogêneo”, o qual, em seu entendimento, “oculta as rupturas entre passado e presente”. Em sua avaliação, na escrita de CGS, “é como se tudo aquilo que fizesse parte do campo de experiência se embaralhasse sem uma ordem de tempo definida de forma linear e progressiva” (Idem, p. 298). Agradeço ao parecer anônimo por apresentar-me essa referência. . Já se referindo prioritariamente aos trabalhos elaborados a partir da década de 1950, Motta (2013MOTTA, Roberto. (2013), “Tempo, desenvolvimento e (in)correção histórica: a propósito da lusotropicologia de Gilberto Freyre”. In MOTTA, Roberto & FERNANDES, Marcionila (orgs.). Gilberto Freyre: Região, tradição, trópico e outras aproximações. Rio de Janeiro, Fundação Miguel de Cervantes, pp. 213-242., p. 215) assevera que “em sua maneira de encarar a civilização brasileira, [Freyre] afasta-se da exaltação da modernidade, caracterizada pela racionalidade e pela produtividade” sintetizadas “na hora inglesa”. De modo alternativo, o autor preferiria agarrar-se “à tradição, ou àquilo que interpreta como tradição e que configura na noção do ‘tempo ibérico’, que é um ingrediente básico do Lusotropicalismo”. Enfim, Villas Bôas (2003VILLAS BÔAS, Gláucia. (2003), "Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens". In: KOSMINSKY, Ethel et al. (orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru, Edusc, pp. 115-134., p. 123) advoga que, movido pela ambição de compreender as especificidades do itinerário nacional, o intelectual pernambucano abdicou da suposição “de um tempo universal”. Tal desígnio o teria levado “a fundamentar sua obra em uma concepção de duração, permanência de valores e maneira de ser” e a reivindicar a existência de um “tempo primordial” – aquele da “experiência humana de casa-grande” –, de onde fluiriam “valores e formas de convivência” renovados “nas mais diversas fases históricas” dessa sociedade.

De diferentes maneiras, sobressai-se nessa fortuna o entendimento de que Prado Jr. e Freyre lançaram desafios contundentes às pretensões universalistas de uma dada autorrepresentação dominante da experiência moderna. Nesse caso, o anseio de apreender uma realidade inconfundível – a vida social brasileira – os teria incentivado a problematizar e, em última instância ou ao menos em vários momentos, a transgredir critérios, categorias e parâmetros analíticos vigentes – dentre os quais os sentidos do tempo subjacentes a tal imaginário da modernidade. Em resposta a essa influente interpretação, eis a segunda conjectura do artigo: longe de colidirem com os supostos desse referencial hegemônico, os diagnósticos traçados em História econômica e Sobrados mantêm-se presos aos horizontes de compreensão e experimentação da realidade que Aleida Assman (2020)ASSMAN, Aleida. (2020), Is time out of joint? On the rise and fall of the modern time regime. Ítaca e Londres, Cornell University Press. designa de “regime temporal moderno”. É através das lentes desse enquadramento estrito, em cujo cerne prima a concepção de um tempo uniforme e calculável, prospectivo e em constante movimento (Anderson, 1991ANDERSON, Benedict. (1991), Imagined communities. Londres, Verso.; Assman, 2020ASSMAN, Aleida. (2020), Is time out of joint? On the rise and fall of the modern time regime. Ítaca e Londres, Cornell University Press.; Giddens, 1991; Gumbrecht, 2015GUMBRECHT, Hans. (2015), Nosso amplo presente: o tempo e a cultura contemporânea. São Paulo, Ed. Unesp.; Koselleck, 2006KOSELLECK, Reinhart. (2006), Futuro passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro, Contraponto, Ed. PUC-Rio.; Zerubavel, 1982ZERUBAVEL, Eviatar. (1982), "The standardization of time: A sociohistorical perspective". American Journal of Sociology, 88 (1): 1-23, July.), que as obras aqui interpeladas se remetem às presumidas idiossincrasias do país – de acordo com ambos os pensadores, uma sociedade que, não bastasse ter tardado a ingressar na cena moderna, se manteve emoldurada por visões de mundo e formas societárias erigidas no passado. Disso se segue o retrato de uma estrutura temporal compósita, intricada e irregular, apenas em parte aderente aos códigos da modernidade: configurada por padrões de sociabilidade procedentes de uma pluralidade de épocas e lugares, tratar-se-ia de uma vida social fraturada por anacronismos de toda espécie, fruto da convivência de imagens heterogêneas do mundo, de referências cognitivas, estéticas e ético-morais díspares e de modelos institucionais conflitantes. Ao fim e ao cabo, apesar de suas eventuais intenções críticas, e malgrado as diferentes ênfases teórico-explicativas e as distintas repercussões político-ideológicas de seus esforços interpretativos, sustento que os ensaios em tela se alicerçam em supostos epistemológicos convergentes, os quais reiteram o diagnóstico desta como uma trajetória sócio-histórica desconcertada e coadjuvante na quadra moderna.

Antes de entabular o exercício, fazem-se necessárias algumas ponderações metodológicas. Em primeiro lugar, a prioridade dispensada a Sobrados e mucambos e História econômica do Brasil advém da percepção de se tratar de trabalhos que, conquanto sobejamente examinados, lidaram com questões que continuam a mobilizar as ciências sociais contemporâneas. A meu ver, retornar a essas faturas abre-nos a oportunidade não apenas de reavaliar concepções que sensibilizaram diversas gerações de nossos intérpretes, mas também de indagar, a partir de um viés crítico, pressupostos caros à imaginação sociológica (Tavolaro, 2021TAVOLARO, Sergio B. F. (2021), "Interpretações do Brasil e a temporalidade moderna: do sentimento de descompasso à crítica epistemológica". Sociedade e Estado, 36 (3): 1059-1081.; 2023). Por outro lado, a atenção dedicada às versões princeps decorre do anseio de refletir sobre seu estatuto presumivelmente inovador na cena intelectual das décadas de 1930 e 1940, como se sabe, um juízo recorrente em sua fortuna. Nesse caso, extrapola as ambições do artigo cotejá-las com edições posteriores ou com acréscimos e modificações efetuados com o passar dos anos6 6 . A título de ilustração, além de não incluir o Prefácio de janeiro de 1945 que abria a versão princeps, a edição de 2008 de História econômica do Brasil, também publicada pela editora Brasiliense, traz o capítulo intitulado “A crise em marcha”, bem como um “Postscriptum” de 1976 (Prado Jr., 2008). No que se refere a Sobrados e mucambos, recorde-se que, a partir da 2ª edição, a obra passou a contar com cinco capítulos inéditos (Freyre, 1996). . Por último, saliento que procederei a uma análise interna dos trabalhos, animado pela possibilidade de desvelar afinidades inesperadas e discernir alguns de seus alicerces fundamentais.

Gilberto Freyre e Caio Prado Jr.: retratos convergentes do Brasil

Conforme apontado pela bibliografia especializada, muitas foram as influências intelectuais das noções de tempo que embasaram as formulações desses pensadores: quanto a Freyre, além de Ortega y Gasset, haveria que se levar em conta a presença de Marcel Proust e Henri Bergson em sua “sociologia genética”, sem esquecer Franklin Giddings nem, já na década de 1950, George Gurvitch (Villas Bôas, 2003VILLAS BÔAS, Gláucia. (2003), "Casa grande e terra grande, sertões e senzala: a sedução das origens". In: KOSMINSKY, Ethel et al. (orgs.). Gilberto Freyre em quatro tempos. Bauru, Edusc, pp. 115-134., p. 123; Burke & Pallares-Burke, 2009BURKE, Peter & PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. (2009), Repensando os trópicos: um retrato intelectual de Gilberto Freyre. São Paulo, Ed. Unesp., p. 271; Bastos, 2003)BASTOS, Elide. (2003), Gilberto Freyre e o pensamento hispânico: entre Dom Quixote e Alonso El Bueno. Bauru, Edusc.. No que diz respeito a Prado Jr., fala-se da relevância dos debates e ideias com os quais o autor se engajou desde os anos 1930, na nascente Universidade de São Paulo, por onde passaram Fernand Braudel, Pierre Deffontaines, Claude Lévi-Strauss, dentre outros, fascinados pela simultaneidade de distintos “tempos históricos” na cena nacional (Ricupero, 2000, pRICUPERO, Bernardo. (2000), Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo, USP; Fapesp; Editora 34., p. 162; Iumatti, 2018, pIUMATTI, Paulo T. (2018), "Temporalidades". In: IUMATTI, Paulo T. História, dialética e diálogo com as ciências: A gênese de Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr. (1933-1942). São Paulo, Intermeios, pp. 417-486., pp. 417-440; Martinez, 2013)MARTINEZ, Paulo H. (2013), "História da colonização e método histórico". In: NOGUEIRA, Antonio G. & GONÇALVES, Adelaide (orgs.). Caio Prado Jr.: legado de um saber-fazer histórico. São Paulo, Hucitec, pp. 191-212.. Para iniciar a discussão, deixe-me revisitar alguns dos argumentos centrais de trabalhos de sua autoria que precederam HEB e SeM.

Recorde-se que, no Prefácio à versão inaugural de Evolução política do Brasil (1933), Caio Prado Jr. torna explícita sua predileção por “um método relativamente novo”, que o capacitaria a superar as deficiências de seus pares – a “interpretação materialista” da história (Prado Jr., 1994, p. 7). Como bem sabemos, as ressonâncias dessa opção manifestam-se de um extremo ao outro em seus ensaios de fôlego publicados na década seguinte, em que a dimensão econômica da experiência brasileira e suas inúmeras implicações societárias são expressamente declaradas “as mais importantes e fundamentais” (Prado Jr., 1945, p. 135)7 7 . A propósito das referências marxistas de Caio Prado, vale também conferir Pericás (2016, pp. 49-79). . A se considerar o Prefácio à edição inaugural de sua mais conhecida obra, muito diversa é a ênfase analítica de Gilberto Freyre. A despeito de saudar o “materialismo histórico” em razão da “influência considerável, embora nem sempre preponderante, da técnica da produção econômica sobre a estrutura das sociedades”, são outras as referências epistemológicas e teóricas de Casa-grande & senzala – em especial os ensinamentos antropológicos de Franz Boas, que o teriam ajudado a perceber “a diferença entre raça e cultura” e, ato contínuo, a compreender a “diferenciação entre hereditariedade de raça e hereditariedade de família” (Freyre, 1933, pFREYRE, Gilberto. (1933), Casa-grande & senzala: Formação da família brasileira sob o regimen de economia patriarchal. Rio de Janeiro, Maia & Schmidt Ltda., p. XII)8 8 . Para se ter uma percepção da variada formação intelectual de Freyre, veja-se Burke e Pallares-Burke (2009, pp. 35-68). . As repercussões desse enquadramento são, à sua vez, igualmente patentes na obra de 1936, agora com enfoque em processos históricos e transformações sociais que se teriam conjugado para solapar a estrutura patriarcal brasileira.

Por sonoros que sejam, tais contrastes não diluem as simetrias entre tais empreendimentos interpretativos, seja no tocante aos diagnósticos do Brasil avançados pelos autores, seja em relação às imagens da modernidade inscritas em suas prestigiadas obras. Desde pronto, urge ressaltar o zelo de ambos com padrões societários que, apesar de cristalizados em tempos remotos, teriam encontrado meios para se perpetuarem e moldarem o presente do país. Ao invés de relíquias de um passado longínquo, as “casas-grandes” mostravam-se a Freyre “até hoje” o cenário mais ilustrativo de nossa identidade – e, mais que isso, expressivas da perenidade dessa experiência (Freyre, 1933, pp. XXX-XXXI). Sendo, para ele, “a história social” desse ambiente nada menos que “a história íntima de quase todo o brasileiro”, sua inquirição representaria um “outro meio de procurar-se o ‘tempo perdido’” (Freyre, 1933FREYRE, Gilberto. (1933), Casa-grande & senzala: Formação da família brasileira sob o regimen de economia patriarchal. Rio de Janeiro, Maia & Schmidt Ltda., p. xxxi). Também para Caio Prado o “passado colonial” conservava-se vivo entre nós, “em parte modificado, é certo”, mas atuante de maneiras que não se poderia enganar (Prado Jr., 1942, p. 7). De modo algum restrita “a tradições e a certos anacronismos berrantes”, tal situação parecia-lhe estender-se tanto à dimensão econômica, quanto ao “terreno social” e ao “estatuto moral” de vários segmentos da população, inclinados “inteiramente para o passado” (Idem, p. 7). Em minha avaliação, tais aproximações não constituem coincidências estéreis ou casuais. Ao contrário, são indicativas de pressupostos comuns que delimitam as percepções de Prado Jr. e Freyre a respeito das origens da sociedade brasileira e da posição do país na modernidade.

A natureza e as gentes brasileiras: ingredientes antimodernos da formação nacional

Pontuando a obra em diferentes momentos, fatores naturais e variáveis raciais desempenham papel proeminente na economia interna de CGS (Araújo, 1994ARAÚJO, R. B. (1994), Guerra e paz: Casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro, Editora 34.; Bastos, 2006BASTOS, Elide. (2006), As criaturas de prometeu: Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira. São Paulo, Global.). Freyre refere-se aos “Grandes excessos e grandes deficiências” enfrentados pelo europeu na “nova terra”: “O solo”, com uma ou outra ressalva, quase sempre “rebelde à disciplina agrícola”; os cursos d’água, por seu turno, “inimigos da regularidade do esforço agrícola e da estabilidade da vida de família”; adicionem-se a isso “viveiros de larvas, multidões de insetos e de vermes nocivos ao homem” (Freyre, 1933, p. 22). Nada havia, pois, que se equiparasse às vantagens “encontradas pelos ingleses na América do Norte, a começar pela temperatura: substancialmente a mesma que a da Europa Ocidental (média anual 56° F)”, de acordo com Freyre, “a mais favorável ao progresso econômico e à civilização à europeia” (Freyre, 1933, p. 22). Distante do êxito “rápido e sensacional dos ingleses naquela parte da América de clima estimulante, flora equilibrada, fauna antes auxiliar que inimiga do homem” – a seu ver, “condições agrológicas e geológicas favoráveis, onde hoje esplende a formidável civilização dos Estados Unidos” (Freyre, 1933FREYRE, Gilberto. (1933), Casa-grande & senzala: Formação da família brasileira sob o regimen de economia patriarchal. Rio de Janeiro, Maia & Schmidt Ltda., pp. 23-24) –, abundavam os infortúnios “para quem quisesse aqui organizar qualquer forma permanente ou adiantada de economia e sociedade” (Idem, p. 23. Itálico meu). Tais contingências ajudariam a compreender o tipo de ordenamento social e econômico que o português se viu compelido a estabelecer no Novo Mundo em meio ao esforço “de criação local de riqueza […] sob a pressão das circunstâncias americanas” – a saber: “a colonização em larga escala dos trópicos” com “a utilização e o desenvolvimento de riqueza vegetal pelo capital e pelo esforço do particular; a agricultura; a sesmaria; a grande lavoura escravocrata” (Idem, p. 24).

Aspectos físico-ambientais e espaciais também são ingredientes-chave na interpretação empreendida em FBC (Martinez, 2013MARTINEZ, Paulo H. (2013), "História da colonização e método histórico". In: NOGUEIRA, Antonio G. & GONÇALVES, Adelaide (orgs.). Caio Prado Jr.: legado de um saber-fazer histórico. São Paulo, Hucitec, pp. 191-212.; Iumatti, 2018IUMATTI, Paulo T. (2018), "Temporalidades". In: IUMATTI, Paulo T. História, dialética e diálogo com as ciências: A gênese de Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr. (1933-1942). São Paulo, Intermeios, pp. 417-486.). Pela avaliação de Prado Jr., à diferença do que se passava na região “temperada” norte-americana – marcada por uma paisagem natural bastante similar à europeia, palco de “uma sociedade que, embora com caracteres próprios, terá semelhança pronunciada à do continente de onde se origina” –, a ocupação da “área tropical e subtropical” do Novo Mundo representou uma experiência sem precedentes. Para isso teriam concorrido circunstâncias ambientais desafiadoras, responsáveis por afastar “o colono que vem como simples povoador, da categoria daquele que procura a zona temperada” (Prado Jr., 1942, pp. 19-21). Ora, para o autor, tais peculiaridades naturais viriam a se tornar um incentivo a certas atividades em detrimento de outras, visto oferecerem “aos países da Europa a possibilidade da obtenção” de provisões escassas no velho continente (Idem, p. 22). Não por acaso, a colonização nos trópicos acabaria por seguir “um rumo inteiramente diverso do de suas irmãs da zona temperada”, especializada na extração de “recursos aproveitáveis para a produção de gêneros de grande valor comercial” (Prado Jr., 1942, p. 25).

A tomar pelos ensaios, qualidades insólitas inerentes aos contingentes populacionais que participaram da formação brasileira ajudaram a reforçar tais discrepâncias. CGS preconiza que, dadas as incessantes contrariedades impostas pela natureza tropical, apenas povos biológica e culturalmente especiais conseguiriam corresponder às extraordinárias exigências desse meio: o português, beneficiado por “condições físicas e psíquicas de êxito e resistência”, propenso como nenhum outro europeu a miscigenar-se e a aclimatar-se a novos ambientes (Freyre, 1933FREYRE, Gilberto. (1933), Casa-grande & senzala: Formação da família brasileira sob o regimen de economia patriarchal. Rio de Janeiro, Maia & Schmidt Ltda., pp. 9-10); o nativo americano, exímio conhecedor da terra virgem e de seus valiosos recursos (Freyre, 1933FREYRE, Gilberto. (1933), Casa-grande & senzala: Formação da família brasileira sob o regimen de economia patriarchal. Rio de Janeiro, Maia & Schmidt Ltda., pp. 92-93); o negro africano, elevado de um ponto de vista técnico e cultural, mas também dotado de “predisposição como que biológica e psíquica para a vida nos trópicos” (Idem, p. 307). Colocados em contato íntimo, os três agentes teriam concorrido para uma convivência racial harmônica e, de um ponto de vista cultural, favorecida pelas contribuições que os “povos atrasados” proporcionaram ao “adiantado” (Idem, p. 88. Itálicos meus). À sua maneira, FBC demonstra a mesma tendência para racializar os três segmentos da população, estratificados na obra segundo capacidades supostamente díspares (Melo, 2020MELO, Alfredo. (2020), "Raça e modernidade em Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr.". Revista Brasileira de Ciências Sociais, 35 (102): 1-16.). Haveria na colônia uma “diferença profunda de raças”, disso resultando um “obstáculo intransponível à aproximação das classes e dos indivíduos” (Prado Jr., 1942, p. 271). Caio Prado classifica os africanos traficados para o país como “povos bárbaros e semibárbaros, arrancados do seu habitat natural e incluídos, sem transição, numa civilização inteiramente estranha” (Prado Jr., 1942, p. 270). Mutatis mutandis, os nativos também lhe pareciam “raças inferiores” (Idem, p. 25), portadores de culturas igualmente ignóbeis em relação à do colonizador (Idem, p. 270). Premidos por condições hostis, pouco teriam colaborado para a formação nacional a não ser no empenho econômico de sua “força bruta, material” (Ibidem).

De uma forma ou de outra, essas mesmas concepções reapareceriam nos trabalhos aqui priorizados. Preocupado com as alegadas incongruências entre os diversos estratos da população brasileira, mas também com os alardeados descompassos do país frente aos parâmetros societários da Europa, Gilberto Freyre volta a mencionar a existência de “diferenças psíquicas entre as raças, do mesmo modo que entre os sexos” (Freyre, 1936, p. 156). SeM faz por bem advertir que os recorrentes “choques de antagonismos na vida social ou cultural do Brasil” deveriam ser buscados antes nas discordâncias “entre as fases ou os momentos de cultura que, encarnados a princípio pelas três raças diversas, hoje o são por populações ou ‘raças’ puramente sociais” – para o que, aliás, teriam também corroborado “diferenças regionais de progresso técnico”, a “maior ou menor facilidade de contatos sociais e intelectuais de grupos e regiões”, tanto quanto as “distâncias sociais” aprofundadas “com o desenvolvimento da economia industrial” (Freyre, 1936FREYRE, Gilberto. (1936), Sobrados e mucambos: Decadência do patriarchado rural no Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional., pp. 373-374). Seja como for, em última análise, consubstancia-se a ideia de um cenário social que, além de internamente refratado, apresentava divergências inequívocas com o padrão de sociabilidade moderno: Freyre chama atenção para as resistências que práticas culturais e “tradições religiosas” trazidas pelos africanos impuseram às coerções niveladoras da Europa, mantendo-se ativas em instâncias variadas da vida social (Freyre, 1936, p. 363). Ressalta, ademais, as tribulações ditadas pelo meio tropical, também elas responsabilizadas por refrear nossa adesão à norma moderna, preservando ao máximo aqui contornos e tonalidades “antieuropeias” (Freyre, 1936FREYRE, Gilberto. (1936), Sobrados e mucambos: Decadência do patriarchado rural no Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional., p. 259).

Se bem que mobilizadas à luz de um espectro distinto de questões, trata-se de variáveis igualmente importantes na arquitetura interpretativa de HEB. A julgar pelos retratos ali esboçados, a própria integração nacional viu-se desde pronto perturbada pelos reveses de um meio peculiar, “de relevo acidentado, de coberturas florestais, nos pontos estratégicos, de difícil penetração […]” (Prado Jr., 1945, p. 117). Aspectos físico-ambientais teriam contribuído também para prefigurar os destinos econômicos do Brasil. Em alguns casos, as “esplêndidas possibilidades naturais” do vasto território – segundo o autor, “tanto em clima como em solos favoráveis” – incentivaram a expansão agrícola, realce feito à produção cafeeira, em determinado momento beneficiada pelas “grandes reservas de terras virgens e inexploradas com solos magníficos, […] temperaturas amenas, pluviosidade bem distribuída” (Prado Jr., 1945, pp. 170-171). Por outro lado, apesar de referto de minérios, faltaria ao país o “carvão de pedra”, insumo indispensável à industrialização, não por acaso longamente incipiente entre nós, muito aquém dos padrões alcançados nas sociedades capitalistas centrais (Prado Jr., 1945, p. 268-269). Vale dizer: as formulações de Caio Prado aludem ainda ao papel condicionante do meio natural sobre a fisionomia assumida pela população. A partir do século XIX, medidas mais sistemáticas foram tomadas com o fito de promover a migração europeia, portadora de ambições e valores que lhe pareciam estranhos aos “escravos” e “libertos” – a seu ver, “ainda muito próximos do regime servil e de suas origens semibárbaras” (Idem, p. 262. Itálicos meus). Davam-se ali, segundo o intérprete, passos importantes para a superação dos “primitivos quadros econômicos e sociais do país” e, dessa forma, para regular “seu desenvolvimento” (Ibidem, Itálico meu). Ocorre que, de acordo com Caio Prado, as regiões do norte ficaram à margem dessa política, não apenas em razão de “suas condições econômicas” precárias, mas também em decorrência de “seu clima acentuadamente tropical”, fatores adversos a “esta nova corrente de colonos” (Idem, p. 169). Problemas de adaptação, aliás, teriam inibido o influxo de imigrantes da Europa setentrional, antes prevalecendo “o italiano, tanto pela questão de clima, como de afinidade maior com as condições do Brasil” (Idem, p. 199).

A pertinácia da tradição nos padrões societários brasileiros

É lícito afirmar que o interesse continuado por Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre vincula-se, dentre outras razões, à convicção disseminada de que seus trabalhos abriram trilhas auspiciosas à compreensão de padrões comportamentais, modelos institucionais e códigos de sociabilidade desde longa data operantes no tecido social brasileiro. Como tenho ressaltado, admitidas as distintas referências teóricas e metodológicas das obras, são notáveis as consonâncias entre os retratos da modernização brasileira delineados pelos autores (Tavolaro, 2022b). De maneira geral, sobressai-se em suas faturas o entendimento de que as circunstâncias especiais de nossa formação, notadamente diversas dos contextos originários da modernidade, tiveram efeitos perenes na vida nacional. Recorde-se que, para CGS, em vez de obra do esforço individual, de qualquer empresa mercantil ou mesmo de iniciativa estatal, teria sido a instituição familiar o principal agente da colonização portuguesa na América. (Freyre, 1933FREYRE, Gilberto. (1933), Casa-grande & senzala: Formação da família brasileira sob o regimen de economia patriarchal. Rio de Janeiro, Maia & Schmidt Ltda., p. 27). Como sabemos, Freyre não se referia a um arranjo doméstico qualquer, mas à família de tipo patriarcal e poligâmico, que abrigava em seu interior esposas e concubinas, descendentes legítimos e “bastardos”, escravos, agregados e dependentes de toda sorte (Idem, p. 32), todos sujeitos a regras de sociabilidade primárias (pessoais) e sob o olhar despótico do pater famílias. Tamanha preponderância dessa instituição fez valer seu peso num sem número de dimensões: de um ponto de vista político, o aparato estatal viu-se quase sempre sobrestado pelos proprietários rurais que logo contiveram “o poder dos reis e mais tarde o próprio imperialismo” (Freyre, 1933FREYRE, Gilberto. (1933), Casa-grande & senzala: Formação da família brasileira sob o regimen de economia patriarchal. Rio de Janeiro, Maia & Schmidt Ltda., p. 27); quanto aos parâmetros ético-morais prevalecentes, foram desde cedo plasmados pelos códigos intimistas da casa-grande e impactados por influências culturais e religiosas africanas e indígenas; no que diz respeito à organização e à dinâmica material, a grande propriedade exportadora, assente no trabalho escravo, conservou-se por longa data soberana, emperrando o florescimento de outras atividades e setores produtivos. As consequências de todos esses fatores revelar-se-iam duradouras na vida brasileira9 9 . Na visão de Nicolazzi (2008, p. 297), “Em CG&S, de certo modo, a história que privilegia o ‘espaço de experiência’ convive com um modelo propriamente moderno de escrita da história, onde o futuro e o progresso parecem alargar indefinidamente o ‘horizonte de expectativa’, embora o peso reconhecidamente recaia sobre o primeiro elemento […]”. Talvez por isso, a seu ver, seria impróprio afirmar “que Freyre rejeitasse o tempo linear, sucessivo e causal” (Idem, p. 298). .

Expressivas do sentimento de defasagem em relação aos padrões societários erigidos na Europa moderna, tais proposições convergem com ideias caras à FBC. Decerto, inexistem no ensaio de Prado Jr. as mesmas insinuações otimistas de CGS acerca do convívio entre portugueses, africanos e indígenas. De outro modo, abundam as referências ao “forte preconceito discriminador das raças” e aos obstáculos deste para a coesão “da sociedade colonial”, em sua avaliação, mais assemelhada a um “aglomerado incoerente e desconexo, mal amalgamado e repousando em bases precárias” (Prado Jr., 1942, p. 272, pp. 274-275). Para o autor, essa ordem de fatores deixaria marcas indeléveis nos “padrões morais e materiais” vigentes, desvirtuados pela ubiquidade da escravidão e pela conotação “pejorativa e desabonadora” invariavelmente conferida às atividades laborais (Idem, p. 268, p. 277). Dito isso, FBC aproxima-se novamente dos retratos elaborados por Freyre ao conferir relevância à “grande propriedade monocultural”. Estaria ali, segundo Prado Jr., “a célula fundamental da economia agrária brasileira”, o alicerce primordial de “toda a estrutura do país, econômica e social” (Idem, p. 113, p. 117). Sob o comando de poucos e dedicada prioritariamente a atender demandas externas, essa ordenação produtiva tolheu a diversificação da economia, favoreceu “a concentração extrema da riqueza”, ao tempo em que também retardou a ampliação do mercado doméstico (Idem, pp. 118-119). Com efeito, as simetrias entre as obras estendem-se à precedência que FBC atribui ao “clã patriarcal” na paisagem colonial, entidade a um só tempo produtiva, política e, em alguma medida, cumpridora de funções religiosas (Idem, pp. 284-285). Naquelas condições, tamanho o potencial de mando do “senhor rural” que, para se fazer presente na extensão de seu domínio, o poder público, sempre frágil e remoto, via-se compelido a curvar-se ante sua “autoridade e prestígio” (Idem, p. 285).

Note-se que, ao se colocarem o desafio de reconstruir os itinerários da modernização brasileira e de estimar o alcance e a profundidade de suas consequências, SeM e HEB recorrem a várias dessas imagens. Sem dúvida, Gilberto Freyre faz por bem assinalar que “o desenvolvimento das cidades e das indústrias” trouxe consigo alterações fundamentais nos padrões então correntes (Freyre, 1936FREYRE, Gilberto. (1936), Sobrados e mucambos: Decadência do patriarchado rural no Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional., p. 14. Itálicos no original). A seu ver, o aprimoramento e a ampliação da estrutura econômica para outras direções, combinados ao fortalecimento do aparato político-administrativo, prepararam o terreno para que um conjunto mais diversificado de personagens reclamasse espaço na cena social (o mulato, o burguês, o negociante, o jovem, a mulher, o operário, o funcionário público, o advogado, o médico, o bispo etc.). Na medida em que as instituições e poderes públicos logravam coibir “os abusos do particular e da casa” (Idem, p. 18. Itálicos no original), padrões comportamentais, valores e códigos de sociabilidade tradicionais viam-se confrontados por uma nova modalidade de referências, doravante mais afinadas aos códigos societários da modernidade. Clivagens e desavenças de variada espécie, outrora irrisórias ou de todo ausentes, não tardariam a irromper – conflitos que envolviam “os senhores dos sobrados e os negros libertos, ou fugidos, dos mucambos”, entre estratos abastados e gentes destituídas (Idem, pp. 14-16. Itálicos no original). Isso posto, SeM reitera que todas essas mudanças ganharam uma azáfama própria e um teor particular no Brasil. Ao lado das dificuldades ditadas pelas circunstâncias tropicais, haveriam também que se contabilizar as resistências oferecidas pelas heranças “antieuropeias” procedentes da África, da Ásia e do mundo islâmico, sedimentadas ao cabo dos trezentos anos de afastamento em relação ao mundo europeu de além-Pirineus (Idem, pp. 257-258). Tão numerosos e profundos os traços distintivos dessa experiência, que os modelos institucionais, valores, referências ético-morais, padrões estéticos, visões de mundo, etc., importados dos contextos modelares da modernidade, assumiriam aqui matizes especiais. No fim das contas, as transformações experimentadas pelo país durante o século XIX ver-se-iam suavizadas, forçosamente abrandadas sob o imenso peso do passado – o que se poderia constatar pelo prestígio continuado da “nobreza rural”, pela ascendência do ambiente doméstico na “formação social do brasileiro de cidade”, pela persistente submissão da mulher ao “páter-famílias burguês”, tanto quanto pela tenacidade das superstições cotidianas e pelas práticas de higiene e hábitos alimentares das diversas classes sociais, todos ainda condicionados pela tradição (Idem, p. 21, p. 36, p. 62, p. 162, pp. 246-248).

É com semelhante contumácia que HEB refere-se à perseverança de técnicas produtivas datadas na estrutura econômica brasileira. Para isso, certamente teria contribuído “o sistema geral da colonização, fundada no trabalho ineficiente e quase sempre semibárbaro do escravo africano”; mas também a “natureza do colono português”, ao que se somava o “regime político e administrativo que a metrópole impôs à sua colônia”, relegando-a à inépcia “de burocratas incapazes e pouco escrupulosos” (Prado Jr., 1945, pp. 98-99). Dito isso, o problema parecia a Caio Prado Jr. possuir raízes ainda mais longínquas, que remontavam ao “anacronismo” de Portugal no novo “equilíbrio mundial de forças” inaugurado na era industrial (Idem, p. 131). Aferrados ao capitalismo de tipo comercial e encerrados “hermeticamente dentro de um conservadorismo colonial obsoleto”, os impérios ibéricos teriam travado “a marcha dos acontecimentos” ao obstar o livre desenvolvimento das possessões latino-americanas (Idem, pp. 132-133). No caso brasileiro, isso envolveu as “mais drásticas e severas medidas restritivas”, que excluíam da colônia a possibilidade de abastecer-se “com produção própria” (Idem, pp. 133-134). Conquistada a independência política, tais deficiências originárias continuaram a se fazer presentes: além da permanência de “modestos padrões” desde muito estabelecidos, havia a instabilidade financeira crônica (reforçada pela hiperexposição ao fluxo econômico internacional) e o desenvolvimento industrial diminuto (Idem, p. 143). A essas condições desvantajosas adicionava-se a resiliência de práticas agrícolas e métodos de criação ultrapassados, ainda correntes “em princípios do séc. XIX”, tudo isso combinado a “processos que datavam do início da colonização” – segundo a obra, procedimentos “bárbaros, destrutivos, […] que começavam já pela insistência neles, em fazer sentir seus efeitos devastadores” (Idem, pp. 95-96). De acordo com o intérprete, o mesmo sucedia com as “indústrias complementares da agricultura”, equipadas com “aparelhos antiquados, de baixo rendimento, apesar dos progressos técnicos […] que já tinham sido adotados havia muito em outros lugares” (Idem, pp. 97-98). Enfim, conquanto o país tivesse alcançado algum “progresso” nos estertores dos oitocentos, a maior parte de seus avanços conservou-se “dentro dos quadros tradicionais da economia”, baseada “na mesma organização herdada do passado: a grande propriedade e exploração fundiária” (Idem, p 236. Itálicos meus).

Uma modernização peculiar: descompassos próprios e decalagens externas

A seu modo, ambos História econômica e Sobrados são categóricos quanto aos impactos que os processos de modernização tiveram no tecido social brasileiro: segundo Caio Prado Jr., a partir do começo do século XIX, “circunstâncias de caráter internacional” despertaram “forças renovadoras latentes” que atuariam “cada vez mais no sentido de transformarem a antiga colônia numa comunidade nacional e autônoma” (Idem, p. 134). Na esteira do desembarque da realeza em terras americanas, estímulos diversos teriam se precipitado sobre a vida local, introduzindo de imediato ideias, costumes e expectativas caros à Europa, mas até aquela oportunidade ignorados pelos colonos (Idem, p. 145). Tal a magnitude das modificações incitadas pela “abertura dos portos”, num dado momento se tornou impraticável regressar ao que antes existia (Idem, p. 136). Dali em diante, afirma o intérprete, “em todos os setores sente-se o influxo da grande transformação operada pela revogação da política de restrições” (Idem, p. 140). Em boa medida, é análoga a apreciação de Sobrados: sustenta Freyre que tão logo as novas potências modernas – França e Grã-Bretanha – semearam sua hegemonia em planos variados da vida brasileira, tal impulso jamais se interrompeu. Lá pela metade daquele século, percorrendo o interior do vasto território, um viajante britânico não se reconhecia mais “tão fora da Europa […] como cinquenta anos antes”. A bem dizer, ocasiões havia em que a ambiência dos lares chegava a suscitar a sensação de se “estar na Inglaterra e em pleno século XIX europeu” (Freyre, 1936, p. 77). A par com a gradual monopolização do poder pelo Estado central e com a crescente diversificação da economia, o que quer que nos houvesse emprestado ares de um certo Oriente foi se desbotando, ou melhor, foi se descolorindo ao toque da nova hegemonia europeia (Idem, p. 261). Freyre faz menção às sucessivas intervenções urbanísticas que deram vida aos espaços públicos e esmaeceram o convívio doméstico-familiar; ao incremento da circulação de pessoas e mercadorias viabilizado por meios de transporte mais ágeis; à aderência a novos estilos arquitetônicos, estranhos aos gostos e exigências locais; às alterações nos hábitos alimentares e à preferência por itens estrangeiros (quase sempre em prejuízo de sabores e provisões tradicionais); ao uso de vestimentas e adornos infensos ao clima tropical; à adoção de métodos científicos de profilaxia e medicamentos laboratoriais em substituição às drogas e práticas de cura convencionais etc. (Idem, pp. 54-55, pp. 263-264, p. 291, pp. 294-295, pp. 300-301). Tais processos foram seguidos por toda sorte de conflitos, envolvendo estratos sociais e personagens cujos anseios, visões de mundo e padrões comportamentais pareciam apartar-se e descompassar-se a passos largos: jovens e velhos, homens e mulheres, negros, brancos e mulatos, brasileiros e estrangeiros, aristocratas e burgueses, lideranças rurais, políticos e burocratas, empresários e operários etc.

Nessa mesma toada, há outro importante aspecto realçado nos ensaios: com o acolhimento de inventos e valores modernos, a cena urbana adquiria uma cadência especial, disso resultando um cotidiano mais intenso e acelerado (Idem, p. 294, p. 300). Caio Prado sustenta que, a partir de meados do XIX, impulsos econômicos diversos nos compeliram aos “altos e baixos violentos da vida financeira contemporânea” (Prado Jr., 1945, p. 163). Além da apreciável elevação dos níveis de bem-estar de alguns estratos, os balanços positivos do café garantiram sustentação a melhorias técnicas, consumadas com a instalação de “estradas de ferro e outros meios de comunicação e transportes, mecanização das indústrias rurais, instalação de algumas primeiras manufaturas etc.”. No curso dessas modificações, à medida que atingíamos graus de prosperidade e conforto então desconhecidos, adquiríamos consciência do real significado do “progresso moderno” (Idem, p. 179). A certa altura, já removida do insulamento e da “mediocridade” de outrora, “a antiga colônia” enfim “se moderniza e se esforça por sincronizar sua atividade com a do mundo capitalista contemporâneo” (Idem, p. 206. Itálico meu). Dissolvidos “os quadros conservadores” da era imperial, a inauguração do regime republicano – agora sem o fardo da escravidão – se incumbiria de exacerbar cada uma dessas tendências (Idem, p. 221), do que resultaria “um ritmo de crescimento sem paralelo em qualquer outro período da história brasileira. (Idem, p. 222. Itálico meu). No início do século XX, à proporção que “o setor nacional da economia” se robustecia, os centros urbanos experimentavam avanços sensíveis, pari passu ao aprimoramento do aparato estatal (Idem, p. 300, p. 307).

Seja como for, a despeito de convictas quanto às reverberações de tais mudanças no corpo social, as obras são taxativas a respeito dos contornos especiais de sua aderência no país. Nesse caso, enquanto SeM trata de acentuar o artificialismo que muitas vezes acompanhou nossa aquiescência aos padrões ocidentais10 10 . Acerca do alcance das mudanças sociais contempladas por Freyre em Sobrados, Araújo (1994, p, p. 115) adverte que “Não é que devamos desconfiar da extensão e da profundidade das transformações recém-apresentadas, capazes de estabelecer o predomínio do sobrado, do comércio, da monarquia e até de alguma civilidade burguesa no Brasil do século XIX. Sucede apenas que, pouco a pouco, ao longo de sua argumentação, nosso autor vai chamando atenção para a persistência de determinados componentes da tradição colonial, os quais obviamente relativizam aquelas alterações […]”. , HEB reserva-nos o epíteto de “réplica, modesta embora e muito afastada de seus modelos” estadunidense e europeu (Freyre, 1936FREYRE, Gilberto. (1936), Sobrados e mucambos: Decadência do patriarchado rural no Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional., p. 298; Prado Jr., 1945, p. 206. Itálico meu)11 11 . Para Coutinho (2011, p, p. 215), “Mesmo quando reconhece a ocorrência de fatos novos, o historiador paulista tende a tratá-los como ‘aparências’ que não alteram a ‘essência’ […], isto é, como manifestações que, longe de implicarem a superação do passado, contribuem para acentuar seus traços mais perversos”. . Nessas como em outras ocasiões, Caio Prado e Gilberto Freyre fazem valer a percepção de que as dissonâncias nacionais vis-à-vis os parâmetros societários da modernidade manifestaram-se em dois níveis distintos, embora articulados da realidade: por um lado, são profusas as menções à simultaneidade de códigos de sociabilidade diversos no seio dessa sociedade, fruto da convivência de imagens do mundo, referências ético-morais e padrões estéticos díspares no tecido social. Lastreados em momentos históricos variados, tais referências e parâmetros heterogêneos encontrariam respaldo em distintas frações e personagens da paisagem social (negros, indígenas e brancos; homens e mulheres; velhos e jovens; agricultores, burgueses, profissionais liberais e burocratas; brasileiros e imigrantes, escravos e trabalhadores livres; etc.), atuando em instâncias e âmbitos igualmente diversos (domínios público e privado; família e Estado; capela e Igreja; latifúndio e pequena propriedade; agricultura, comércio e indústria; casa e escola; etc.), espalhados pelas inúmeras localidades e regiões do território (campo e cidade; vilarejos e centros urbanos; Norte/Nordeste e Sul/Sudeste; sertão e litoral; etc.).

Nesse particular, é sugestivo que Sobrados refira-se aos retardos – no dizer de Freyre, “atrasos” – de meio século, quando não de um século inteiro entre o “Engenho” e a “Praça” (leia-se, entre a vida no campo e o nascente espaço público citadino), para advertir acerca dos lapsos que, em pleno XIX, distanciavam a paisagem rural (ainda dominada pela esfera doméstico-familiar) da vida urbana (palco dos códigos sociais modernos) – aquela, contida em sua rotina e hábitos rudimentares; esta, suscetível aos influxos, novidades e agitações do mundo europeu. Além das manias vernaculares identificáveis num e noutro contextos, persistiriam discrepâncias entre maneiras de viver e se deslocar, avultadas por “ridículos de moral e de etiqueta”, em alguns casos separadas por cem, duzentos, ou até trezentos anos (Freyre, 1936, p. 57). Contabilizadas suas oscilações regionais e intrassociais, segundo o intérprete, tais decalagens concorriam para nos revestir de uma pluralidade curiosa de comportamentos, hábitos “e estágios de cultura” (Ibidem). De sua parte, mais preocupado com os desafios que, àquela mesma época, estorvavam a inserção do Brasil na ordem industrial, História econômica alude às propaladas disparidades morais e cognitivas de nossa força de trabalho, impeditivas ao aprimoramento da produção – tal qual verificado na metade do XIX, quando cativos e imigrantes recém-chegados da Europa dividiam espaço nas plantações cafeeiras, uma “estranha combinação” fadada a malograr (Prado Jr., 1945, pp. 185-186). Tais disparates acrescentavam-se a toda sorte de fragilidades institucionais e financeiras, agravadas por desequilíbrios regionais que inibiam o acesso da produção nacional aos mercados estrangeiros (Idem, p. 206, pp. 230-280).

Em suma, seriam por demais pronunciados os hiatos a nos separar dos contextos pioneiros da modernidade, evidenciados numa ampla variedade de instâncias: de um ponto de vista político, não obstante as melhorias efetuadas desde 1808, o aparato estatal brasileiro permanecera assolado em hábitos administrativos ineficientes e recursos técnicos e pessoais arcaicos, refém de arranjos e códigos de poder típicos de um mundo tradicional (Freyre, 1936FREYRE, Gilberto. (1936), Sobrados e mucambos: Decadência do patriarchado rural no Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional., pp. 112-113; Prado Jr., pp. 145-146, p. 197). No tocante ao ordenamento econômico do país, mal conseguíamos aperfeiçoar a agricultura por meio de métodos de produção mais eficazes, quanto menos nos capacitar às exigências tecnológicas, financeiras e laborais da era industrial (Prado Jr., 1945, pp. 241-242, p. 269, p. 274, pp. 281-293). Algo análogo se passaria com os arcabouços ético-morais e cognitivos que permeavam distintos segmentos do corpo social, no mais das vezes destoantes dos modelos comportamentais, visões de mundo e paradigmas jurídico-legais a que aspiravam nossas elites: não bastassem as incontáveis adversidades ditadas pela natureza tropical, a tenacidade dos códigos característicos da grande propriedade rural (Freyre, 1936FREYRE, Gilberto. (1936), Sobrados e mucambos: Decadência do patriarchado rural no Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional., p. 23) e a persistência de tradições avessas à dinâmica moderna (Idem, p. 364) atestavam a Sobrados que os padrões societários inaugurados pela Europa jamais conseguiriam impor-se integralmente no país. Sopesados todos esses lapsos, parecia a HEB que a consolidação de uma “comunidade nacional e autônoma” entre nós permanecia inconclusa, “evoluindo com intermitências e através de uma sucessão de arrancos bruscos, paradas e mesmo recuos” (Prado Jr., 1945, p. 134. Itálicos meus) – ou, se assim se preferir, repleta de “tropeços”, com “momentâneos retornos ao passado”, ao qual se apegavam “forças poderosas” inclinadas “a manter o país em sua primitiva situação” (Idem, p. 302. Itálicos meus).

A vida social brasileira e o “regime temporal moderno”

É importante frisar que, a despeito das conhecidas particularidades dos programas intelectuais de Prado Jr. e Freyre, História econômica e Sobrados compartilham entre si e com tantas obras caras à tradição sociológica a ideia de que o Atlântico Norte – a bem dizer, uma região estrita da Europa, estendida a algumas de suas ex-colônias americanas – constituiu o polo difusor das formas de sociabilidade forjadas na modernidade. Aspectos discernidos nesses contextos – leia-se, os atributos psíquico-emocionais e padrões comportamentais imputados a seus povos, os predicados de seu meio natural, os legados culturais e transformações históricas vivenciadas por tais sociedades, bem como os arranjos institucionais, as referências cognitivas, os preceitos ético-morais e os juízos estéticos que lhe seriam próprios – oferecem a ambas as obras os crivos através dos quais a realidade brasileira é descrita e apreciada. Nesse caso, a propalada circunspecção das gentes europeias, a sobriedade e o despojamento ensejados pela natureza temperada, a solidez, o senso de justiça e a publicidade das instituições ali erguidas, a racionalidade de seus códigos normativos e imagens do mundo, a complexidade e pluralismo de sua vida social, bem como a sofisticação de suas forças produtivas, são assumidos como parâmetros a partir dos quais ambos os intérpretes aferem nossas qualidades pretensamente mais distintivas – dentre elas a opulência e a feracidade do meio tropical, as incongruências de seus segmentos populacionais e a precariedade de sua vida material, o provincianismo e tradicionalismo das ideias e preceitos ético-morais predominantes no país, a simplicidade (indiferenciação) do tecido social brasileiro, tanto quanto a habitual iniquidade de suas instituições. Com poucas exceções, essas imagens contribuem para ratificar a condição retardatária e coadjuvante do Brasil na cena mundial, em contraste com o pioneirismo e vanguardismo facultados a um conjunto restrito de trajetórias societárias do Atlântico setentrional (Tavolaro, 2021TAVOLARO, Sergio B. F. (2021), "Interpretações do Brasil e a temporalidade moderna: do sentimento de descompasso à crítica epistemológica". Sociedade e Estado, 36 (3): 1059-1081.; 2022b; 2023).

A meu ver, ao invés de fortuitas, as simetrias entre esses diagnósticos denotam uma convergência mais profunda, a saber, certa concepção da temporalidade moderna que baliza os horizontes de percepção das interpretações aqui examinadas. Não restam dúvidas de que, conforme amplamente enfatizado pela literatura, as formulações de Freyre e Prado Jr. aludem à existência de uma configuração temporal no Brasil diversa daquela entrevista nos chamados contextos precursores da modernidade ocidental – vide a recorrente alegação da “coexistência de diferentes tempos históricos” nessa sociedade, ou o argumento não menos frequente da “interação de passado, presente e futuro” entre nós (Iumatti, 2018IUMATTI, Paulo T. (2018), "Temporalidades". In: IUMATTI, Paulo T. História, dialética e diálogo com as ciências: A gênese de Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr. (1933-1942). São Paulo, Intermeios, pp. 417-486., p. 417; Burke & Pallares-Burke, 2009BURKE, Peter & PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. (2009), Repensando os trópicos: um retrato intelectual de Gilberto Freyre. São Paulo, Ed. Unesp., p. 272). Ocorre que, em minha avaliação, longe de delinearem um enquadramento epistemológico dissidente em suas tentativas de codificar as alegadas especificidades do país, SeM e HEB apoiam-se em pressupostos alinhados àquela mesma imaginação hegemônica da experiência moderna. De acordo com esse imaginário, concomitantemente à inauguração de padrões societários sem precedentes, a emergência da modernidade instituiu um “cronótopo” também inédito, ancorado em novas acepções e numa nova arquitetura do tempo (Gumbrecht, 2015, pGUMBRECHT, Hans. (2015), Nosso amplo presente: o tempo e a cultura contemporânea. São Paulo, Ed. Unesp., p. 14) – um tempo “vazio” e calculável, destacado de coordenadas espaciais específicas e em constante movimento em direção ao porvir (Anderson, 1991, pANDERSON, Benedict. (1991), Imagined communities. Londres, Verso., p. 24; Giddens, 1991, pp. 25-26). Ainda segundo essa perspectiva, em meio a tais mudanças, o passado ver-se-ia crescentemente depreciado e apartado do presente, por sua vez convertido em antessala fugidia de um futuro hipervalorizado, suscetível às escolhas e intervenções humanas (Gumbrecht, 2015GUMBRECHT, Hans. (2015), Nosso amplo presente: o tempo e a cultura contemporânea. São Paulo, Ed. Unesp.; Koselleck, 2006KOSELLECK, Reinhart. (2006), Futuro passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro, Contraponto, Ed. PUC-Rio.; Luhmann, 1976)LUHMANN, Niklas. (1976), "The future cannot begin: Temporal structures in modern society". Social Research, vol. 43, n. 1, pp. 130-152, Spring.. Respaldada no “princípio de racionalidade”, essa conformação uniformizada e mensurável do tempo não tardaria a se estabelecer como referência partilhada por uma gama cada vez mais numerosa de contextos societários (Zerubavel, 1982, pZERUBAVEL, Eviatar. (1982), "The standardization of time: A sociohistorical perspective". American Journal of Sociology, 88 (1): 1-23, July., p. 20, pp. 2-3).

Pois bem, como quero argumentar, admitidas as singularidades de suas análises, os retratos da cena nacional projetados em Sobrados e mucambos e História econômica do Brasil residem no interior do que Assman (2020)ASSMAN, Aleida. (2020), Is time out of joint? On the rise and fall of the modern time regime. Ítaca e Londres, Cornell University Press. denomina de regime temporal moderno12 12 . Importa salientar que, para Assman (2020, p, pp. 8-9), “Todos os regimes do tempo fornecem uma base para valores tácitos, interpretações da história e atividades significativas”, ou seja, “um complexo de pressupostos culturais, valores e decisões profundamente ancorado, que guia desejos, ações, emoções e apreciações humanos, sem que os indivíduos necessariamente tenham ciência desses alicerces”. : tratar-se-ia, segundo a autora, de uma “semântica e ordenamento” do tempo específicos (Idem, pp. 9-10), condensados na esteira de alterações (epistemológicas, culturais, políticas, econômicas, institucionais etc.) que, maturadas primeiramente na Europa, encontraram seu ápice na cultura norte-americana. Nos termos desse regime, além de o passado, o presente e o futuro terem se desmembrado e se revestido de novos sentidos, o advento da era moderna redundou na prevalência de “um tempo que flui de maneira contínua, regular e irreversível através de todos os eventos” (Idem, pp. 13-14)13 13 . Donde o argumento de que o cronótopo moderno opera à maneira de “um mecanismo que produz ambos o novo e o velho” (Assman, 2020, p, p. 13). . Conforme a autora, essa temporalidade “abstrata” e “homogênea”, apartada “dos ciclos naturais e da atividade humana”, desvencilhou-se da “organização temporal de todas as outras culturas e épocas históricas”, assumindo ares de objetividade e isenção com relação a valores, significados e preceitos particulares (Idem, pp. 9-10; pp. 13-14, p. 31). Seriam cinco seus principais traços: 1) a noção segundo a qual a modernidade consumou uma “ruptura” no tempo, ou ainda, uma “caesura” histórica decisiva (Idem, p. 93, pp. 95-96); 2) “a ficção do começo”, por sua vez estreitamente vinculada a expectativas otimistas quanto às venturas do “progresso” (Idem, pp. 106-107); 3) a “destruição criativa” como método de aniquilação do que antes existia e de construção do devir por meio do “planejamento ativo” (Idem, pp. 116-126); 4) “a invenção do histórico” e a representação do passado como dimensão irregressível da experiência (Idem, pp. 129-131); por fim, 5) a intensificação do ritmo da vida e a incidência generalizada de “diferentes tipos de aceleração” – “do transporte, das tecnologias de comunicação, da transformação sociocultural, e da experiência subjetiva” (Idem, p. 136). No fim das contas, as dessemelhanças desse regime do tempo ante os ordenamentos temporais de sociedades pré-modernas seriam ineludíveis: se, nessas últimas, “O passado era compreendido como o lugar de onde tanto o presente quanto o futuro tomavam sua direção e estabilidade” (Assman, 2020ASSMAN, Aleida. (2020), Is time out of joint? On the rise and fall of the modern time regime. Ítaca e Londres, Cornell University Press., pp. 10-11), a modernidade fez do futuro o ponto de referência basilar da vida social. Daí por diante, em vez de infortúnios a serem evitados ou contornados, “transição e mudança” passam a ser positivamente estimadas, enquanto “a inovação torna-se um imperativo cultural central” (pp. 12-13).

É digno de nota que esse “novo padrão temporal” (Assman, 2020ASSMAN, Aleida. (2020), Is time out of joint? On the rise and fall of the modern time regime. Ítaca e Londres, Cornell University Press., p. 31) abriu caminho para a contração de diferentes “histórias” e de suas “estruturas narrativas temporais” correspondentes (Idem, pp. 37-38) em um único arranjo – a saber, “um sistema unificado da história mundial”, capaz de “registrar todos os eventos” num mesmo quadro geral (Idem, p. 31). Observe-se, contudo, que, longe de dispô-las em pé de igualdade ou de posicioná-las em patamares equivalentes, essa “história unificada” teve o efeito de sobrelevar “certas formas de estar-no-mundo e […] marginalizar e fazer impossíveis outras” modalidades de experiência (Idem, p. 32)14 14 . No entendimento de Koselleck (2006, p, p. 286), ao cabo dessas mudanças, “a simultaneidade do não simultâneo passa a ser a experiência básica de toda a história […]”. . Ora, abrigados no interior desse enquadramento hegemônico, não é de surpreender que HEB e SeM retratem a sociedade brasileira como uma trajetória inconfundível com a dita vanguarda do Ocidente moderno15 15 . Assman (2020, p, p. 8) vincula o “regime temporal moderno” a “uma transformação mais geral na estrutura do desenvolvimento cultural do Ocidente”. . Nesse particular, dois pontos precisam ser recobrados: de um lado, os ensaios dão a entender que, historicamente, ingredientes-chave da formação nacional – conforme afirmei, os predicados psíquico-emocionais e comportamentais discernidos em suas gentes, somados às variáveis ambientais do território e a fatores socioculturais próprios a essa experiência – mostraram-se adversos, quando não francamente hostis aos requisitos da modernidade. De outro, ambas as obras aludem à coexistência no país de uma pluralidade de padrões de sociabilidade oriundos de contextos e momentos históricos diversos, isto é, à ocorrência concomitante no tecido social de distintos arranjos institucionais, de uma variedade incongruente de valores e preceitos ético-morais, tanto quanto de um conjunto díspar de referências estéticas e cognitivas. Em última instância, tratar-se-ia de uma vida social que, malgrado estruturalmente impactada pela modernização, permaneceu refratária à primazia do tempo progressivo-linear.

Em síntese, ao confirmarem o diagnóstico da chegada tardia do país na quadra moderna e de suas renitentes assincronias (internas e externas) com relação aos principais parâmetros societários da modernidade, Sobrados e História econômica acabam por reiterar o estatuto modelar do regime temporal moderno. Resta ponderar se, não obstante tais convergências epistemológicas, os trabalhos em tela insinuam algum enquadramento alternativo.

A configuração temporal moderna desde uma visada compósita e relacional

A tomar pelos retratos esboçados em HEB e SeM, a contiguidade com o passado e a persistência de padrões de sociabilidade tradicionais constituiriam evidências inequívocas da condição destoante do país na cena contemporânea. Em lugar de rupturas definitivas capazes de nos impulsionar rumo ao futuro, os processos de modernização aqui experimentados teriam se revelado morosos e intermitentes, além de restritos em seu alcance. Disso se seguiria uma estrutura temporal intercorrente, coabitada por sentidos díspares do tempo. Importa ressaltar uma vez mais que, dedicados a perquirir uma vida social que se lhes mostrava inconfundível com a vanguarda ocidental, ambos os ensaios aderem a parâmetros que, implícita ou explicitamente, incutem acepções cronológicas nas propaladas diferenças entre tais contextos (Tavolaro, 2022b). Iterando uma série de binarismos analíticos recorrentes no imaginário acerca da modernidade, reforça-se o sentimento de que o Brasil e os ditos cenários modernos modelares representam itinerários sócio-históricos irredutíveis – estes, precursores e protagonistas da modernidade; aquele, uma experiência extemporânea, no mais das vezes suscetível a influências adventícias –, apartados entre si por uma ordem variada de decalagens (econômicas, institucionais, políticas, culturais, ético-morais, naturais e/ou comportamentais)16 16 . Concordo com o parecer anônimo que a noção de “modernização seletiva” desenvolvida por Souza (2000) explora uma rota de interlocução profícua nesse debate. Busquei dialogar com essa linha de interpretação em Tavolaro (2011). .

Dito isso, ainda assim, entendo que História econômica e Sobrados imbuem ao menos duas ideias promissoras para uma abordagem alternativa da configuração temporal da modernidade. Refiro-me, em primeiro lugar, à noção conforme a qual o Brasil se ergueu a partir de incontáveis intercâmbios societários, conjugando elementos oriundos de um rol variegado de experiências sociais. Tal percepção, difusa ao longo das obras, tem o efeito de descentrar a vida nacional e situá-la em um amplo feixe de transações sócio-históricas. Significa dizer que, apesar de aderirem à concepção de se tratar de um itinerário especial, ambos os ensaios resistem a conceber o país de maneira autossubsistente, em prol de uma perspectiva relacional17 17 . Inspiro-me aqui nas formulações de Dépelteau (2013), Emirbayer (1997) e Vandenberghe (2018) em torno de uma visada sociológica transacional/relacional. Venho refletindo sobre essas questões em Tavolaro (2020; 2021; 2022a; 2022b). da formação nacional. O segundo aspecto diz respeito à proposta igualmente auspiciosa de que, conquanto modificado por processos de modernização, o tecido social brasileiro manteve-se atravessado por temporalidades diversas, em virtude do que passado, presente e futuro – via de regra afetados pelos movimentos do mundo natural e moldados por aspectos culturais – jamais chegaram a se autonomizar por completo, tampouco a se sucederem de maneira peremptória. A fim de explorar tais insights e expandir o potencial heurístico dessas ideias, gostaria de articulá-las com algumas formulações recentes da teoria social.

De início, vale considerar as crescentes críticas à tendência daquele mesmo imaginário hegemônico para atribuir o surgimento da era moderna e de suas correspondentes formas de sociabilidade a mudanças (epistemológicas, culturais, econômicas, políticas, institucionais, comportamentais etc.) endógenas a uma dada região da Europa, donde se teriam difundido mundo afora. Em reação a essa orientação eurocêntrica estrita, ganhou corpo uma vasta literatura propensa a apurar a extensa e intricada rede de conexões sócio-históricas, desde longa data envolvidas tanto no aparecimento quanto na estabilização dos padrões societários modernos. Sem perder de vista as profundas assimetrias constitutivas de tais relações, o efeito imediato desse reenquadramento interpretativo é o descentramento da experiência europeia (e do Atlântico Norte) em favor de uma concepção alargada das gêneses da modernidade e de suas sucessivas modificações (Chakrabarty, 2000CHAKRABARTY, Dipesh. (2000), Provincializing Europe: Postcolonial thought and historical difference. Princeton, Princeton University Press.; Conrad, 2016CONRAD, Sebastian. (2016), What is global history? Princeton, Princeton University Press.; Mignolo, 2005MIGNOLO, Walter. (2005), The idea of Latin America. Oxford, Blackwell.; Subrahmanyam, 1997). Levada às últimas consequências, tal mudança de perspectiva indica que, em vez de inerentes a percursos sociais específicos, as imagens do mundo, os preceitos ético-morais, os modelos institucionais e as referências cognitivas e estéticas que coabitam a cena moderna irromperam em meio a enlaces societários os mais variados.

Se assim for, as inúmeras “semânticas” e os distintos “ordenamentos do tempo” discernidos na modernidade podem, também eles, ser codificados desde um ponto de vista relacional – isto é, para além da alegada excepcionalidade de determinados contextos do Atlântico setentrional. Disso se seguem ao menos três ponderações: 1) ao invés de peculiar às ditas sociedades modelares, seria preferível afirmar que aquela compreensão “progressiva, calculável e abstrata do tempo” resultou de incontáveis transformações (culturais, econômicas, políticas, institucionais, comportamentais etc.) processadas na esteira de vínculos e intercâmbios envolvendo experiências societárias modelares e cenários sociais não modelares (Chakrabarty, 2000CHAKRABARTY, Dipesh. (2000), Provincializing Europe: Postcolonial thought and historical difference. Princeton, Princeton University Press.; Quijano, 2005QUIJANO, Aníbal. (2005), "Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina". In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires, Clacso, pp. 227-278.); 2) a despeito de seu estatuto hegemônico e de sua enorme capacidade de se impor sobre outros, aquele regime temporal específico com frequência vinculado à modernidade (“vazio, homogêneo e linear”) jamais logrou extinguir formas alternativas de se conceber e vivenciar o tempo, as quais continuaram a florescer e a organizar a experiência social não apenas em cenários modernos não modelares, como também no seio dos assim chamados contextos modelares (Althusser, 1970ALTHUSSER, Louis. (1970), "The errors of classical economics: outline of a concept of historical time". In: ALTHUSSER, Louis & BALIBAR, Étienne. Reading Capital. Londres, NLB, pp. 91-118; Harootunian, 2007HAROOTUNIAN, Harry. (2007), "Remembering the historical present". Critical Inquiry, 33 (3): 471-494, Spring.)18 18 . Assman (2020, p, p. 31) admite que o “padrão temporal” inaugurado na modernidade “não foi nem abrupta nem uniformemente estabelecido de maneira geral, de modo que a coexistência de diferentes formas temporais continua a caracterizar mesmo a nossa própria era”. ; 3) percebida dessa forma, seria mais exato qualificar a estrutura temporal moderna como uma configuração compósita, espessa e irregular, na qual convivem, de maneira tensa e conflituosa, uma profusão de temporalidades que, embora coetâneas, nem sempre se acham plenamente sincronizadas (Althusser, 1970ALTHUSSER, Louis. (1970), "The errors of classical economics: outline of a concept of historical time". In: ALTHUSSER, Louis & BALIBAR, Étienne. Reading Capital. Londres, NLB, pp. 91-118; Chatterjee, 2008CHATTERJEE, Partha. (2008), La nación em tempo heterogéneo: y otros estúdios subalternos. Buenos Aires, Siglo XXI.; Hall, 2011HALL, Stuart. (2011), Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte, Ed. UFMG.; Harootunian, 2007HAROOTUNIAN, Harry. (2007), "Remembering the historical present". Critical Inquiry, 33 (3): 471-494, Spring.)19 19 . Em contraposição ao “espaço-tempo homogêneo e vazio da modernidade”, Chaterjee (2008, pp. 62-63) discorre sobre “a presença de um tempo denso e heterogêneo”, prevalecente na maior parte “do mundo moderno”. Longe de “meras sobrevivências de um passado pré-moderno”, a seu ver, “estes ‘outros’ tempos” constituem “os novos produtos do encontro com a própria modernidade”. .

Relidas em diálogo com tais ponderações, as proposições confluentes de Sobrados e mucambos e História econômica do Brasil estimulam-nos a refletir sobre um conjunto de pressupostos difusos no pensamento brasileiro e a complexificar percepções correntes acerca da modernidade. Na melhor das hipóteses, ao invés de tomá-los por sintomáticos da posição peculiar do país na quadra moderna, os ensaios aqui examinados podem ser vistos como obras que nos animam a interpelar de maneira crítica parâmetros epistemológicos caros à própria imaginação sociológica.

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  • ZERUBAVEL, Eviatar. (1982), "The standardization of time: A sociohistorical perspective". American Journal of Sociology, 88 (1): 1-23, July.
  • 1
    . O presente artigo é fruto de projeto de pesquisa financiado pelo CNPq (Bolsa Produtividade). Agradeço às/aos pareceristas anônimas/os de Tempo Social as valiosas sugestões, as quais busquei incorporar no trabalho.
  • 2
    . As considerações de Candido (1994)CANDIDO, Antonio. (1994), "O significado de Raízes do Brasil". In: HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, pp. XXXIX-L. e Cardoso (1993)CARDOSO, Fernando H. (1993), "Livros que inventaram o Brasil". Novos Estudos, 37 (3): 21-35, nov. permanecem exemplares de tal percepção difusa acerca da relevância dessa geração, em especial de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr.
  • 3
    . A esta altura, há uma vasta produção acerca dos itinerários pessoais, intelectuais, profissionais e políticos dos dois intérpretes. A respeito de Caio Prado Jr. vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Secco (2008)SECCO, Lincoln. (2008), Caio Prado Júnior: o sentido da revolução. São Paulo, Boitempo. e Pericás (2016)PERICÁS, Luiz Bernardo. (2016), Caio Prado Júnior: Uma biografia política. São Paulo, Boitempo.. Sobre Freyre, atente-se para as obras de Pallares-Burke (2005)PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. (2005), Gilberto Freyre: Um vitoriano dos trópicos. São Paulo, Ed. Unesp. e Meucci (2015)MEUCCI, Simone. (2015), Artesania da sociologia no Brasil: Contribuições e interpretações de Gilberto Freyre. Curitiba, Ed. Appris..
  • 4
    . Almejo aqui expandir e complexificar um programa de análise que venho desenvolvendo em Tavolaro (2020TAVOLARO, Sergio B. F. (2020), "Stasis, motion and acceleration: The senses and connotations of time in Raízes do Brasil and Sobrados e mucambos (1936)". Sociologia & Antropologia, 10 (1): 243-266.; 2021; 2022a; 2022b).
  • 5
    . A esse enquadramento, Nicolazzi (2008NICOLAZZI, Fernando. (2008). Um estilo de história: a viagem, a memória, o ensaio. Sobre Casa-Grande & senzala e a representação do passado. Porto Alegre, pp. 399, tese de doutoramento em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/13823/000651794.pdf?sequence=1&isAllowed=y, consultado em 24/01/2024]
    https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/1...
    , p. 268) confere a designação de “tempo homogêneo”, o qual, em seu entendimento, “oculta as rupturas entre passado e presente”. Em sua avaliação, na escrita de CGS, “é como se tudo aquilo que fizesse parte do campo de experiência se embaralhasse sem uma ordem de tempo definida de forma linear e progressiva” (Idem, p. 298). Agradeço ao parecer anônimo por apresentar-me essa referência.
  • 6
    . A título de ilustração, além de não incluir o Prefácio de janeiro de 1945 que abria a versão princeps, a edição de 2008 de História econômica do Brasil, também publicada pela editora Brasiliense, traz o capítulo intitulado “A crise em marcha”, bem como um “Postscriptum” de 1976 (Prado Jr., 2008). No que se refere a Sobrados e mucambos, recorde-se que, a partir da 2ª edição, a obra passou a contar com cinco capítulos inéditos (Freyre, 1996FREYRE, Gilberto. (1996), Sobrados e mucambos: Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 2. Rio de Janeiro, Record.).
  • 7
    . A propósito das referências marxistas de Caio Prado, vale também conferir Pericás (2016PERICÁS, Luiz Bernardo. (2016), Caio Prado Júnior: Uma biografia política. São Paulo, Boitempo., pp. 49-79).
  • 8
    . Para se ter uma percepção da variada formação intelectual de Freyre, veja-se Burke e Pallares-Burke (2009BURKE, Peter & PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. (2009), Repensando os trópicos: um retrato intelectual de Gilberto Freyre. São Paulo, Ed. Unesp., pp. 35-68).
  • 9
    . Na visão de Nicolazzi (2008NICOLAZZI, Fernando. (2008). Um estilo de história: a viagem, a memória, o ensaio. Sobre Casa-Grande & senzala e a representação do passado. Porto Alegre, pp. 399, tese de doutoramento em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/13823/000651794.pdf?sequence=1&isAllowed=y, consultado em 24/01/2024]
    https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/1...
    , p. 297), “Em CG&S, de certo modo, a história que privilegia o ‘espaço de experiência’ convive com um modelo propriamente moderno de escrita da história, onde o futuro e o progresso parecem alargar indefinidamente o ‘horizonte de expectativa’, embora o peso reconhecidamente recaia sobre o primeiro elemento […]”. Talvez por isso, a seu ver, seria impróprio afirmar “que Freyre rejeitasse o tempo linear, sucessivo e causal” (Idem, p. 298).
  • 10
    . Acerca do alcance das mudanças sociais contempladas por Freyre em Sobrados, Araújo (1994, pARAÚJO, R. B. (1994), Guerra e paz: Casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro, Editora 34., p. 115) adverte que “Não é que devamos desconfiar da extensão e da profundidade das transformações recém-apresentadas, capazes de estabelecer o predomínio do sobrado, do comércio, da monarquia e até de alguma civilidade burguesa no Brasil do século XIX. Sucede apenas que, pouco a pouco, ao longo de sua argumentação, nosso autor vai chamando atenção para a persistência de determinados componentes da tradição colonial, os quais obviamente relativizam aquelas alterações […]”.
  • 11
    . Para Coutinho (2011, pCOUTINHO, Carlos N. (2011), "A imagem do Brasil na obra de Caio Prado Júnior". In: Cultura e sociedade no Brasil: ensaio sobre ideias e formas. São Paulo, Expressão Popular, pp. 201-219., p. 215), “Mesmo quando reconhece a ocorrência de fatos novos, o historiador paulista tende a tratá-los como ‘aparências’ que não alteram a ‘essência’ […], isto é, como manifestações que, longe de implicarem a superação do passado, contribuem para acentuar seus traços mais perversos”.
  • 12
    . Importa salientar que, para Assman (2020, pASSMAN, Aleida. (2020), Is time out of joint? On the rise and fall of the modern time regime. Ítaca e Londres, Cornell University Press., pp. 8-9), “Todos os regimes do tempo fornecem uma base para valores tácitos, interpretações da história e atividades significativas”, ou seja, “um complexo de pressupostos culturais, valores e decisões profundamente ancorado, que guia desejos, ações, emoções e apreciações humanos, sem que os indivíduos necessariamente tenham ciência desses alicerces”.
  • 13
    . Donde o argumento de que o cronótopo moderno opera à maneira de “um mecanismo que produz ambos o novo e o velho” (Assman, 2020, pASSMAN, Aleida. (2020), Is time out of joint? On the rise and fall of the modern time regime. Ítaca e Londres, Cornell University Press., p. 13).
  • 14
    . No entendimento de Koselleck (2006, pKOSELLECK, Reinhart. (2006), Futuro passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro, Contraponto, Ed. PUC-Rio., p. 286), ao cabo dessas mudanças, “a simultaneidade do não simultâneo passa a ser a experiência básica de toda a história […]”.
  • 15
    . Assman (2020, pASSMAN, Aleida. (2020), Is time out of joint? On the rise and fall of the modern time regime. Ítaca e Londres, Cornell University Press., p. 8) vincula o “regime temporal moderno” a “uma transformação mais geral na estrutura do desenvolvimento cultural do Ocidente”.
  • 16
    . Concordo com o parecer anônimo que a noção de “modernização seletiva” desenvolvida por Souza (2000)SOUZA, Jessé. (2000), A modernização seletiva: Uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília, Editora Universidade de Brasília. explora uma rota de interlocução profícua nesse debate. Busquei dialogar com essa linha de interpretação em Tavolaro (2011)TAVOLARO, Sergio B. F. (2011), “Freyre, DaMatta e o lugar da natureza na ‘singularidade brasileira’”. Lua Nova, 83: 217-257..
  • 17
    . Inspiro-me aqui nas formulações de Dépelteau (2013)DÉPELTEAU, François. (2013), "What is the direction of the 'relational turn'?". In: POWELL, Christopher & DÉPELTEAU, François (eds.). Conceptualizing relational sociology: ontological and theoretical issues. Nova York, Palgrave Macmillan, pp. 163-185., Emirbayer (1997)EMIRBAYER, Mustafa. (1997), "Manifesto for a relational sociology". American Journal of Sociology, 103 (2): 281-317, September. e Vandenberghe (2018)VANDENBERGHE, Frédéric. (2018), "The relation as magical operator: Overcoming the divide between relational and processual sociology". In: DÉPÉLTEAU, François (ed.). The Palgrave handbook of relational sociology. Cham, Palgrave MacMillan, pp. 35-57. em torno de uma visada sociológica transacional/relacional. Venho refletindo sobre essas questões em Tavolaro (2020TAVOLARO, Sergio B. F. (2020), "Stasis, motion and acceleration: The senses and connotations of time in Raízes do Brasil and Sobrados e mucambos (1936)". Sociologia & Antropologia, 10 (1): 243-266.; 2021; 2022a; 2022b).
  • 18
    . Assman (2020, pASSMAN, Aleida. (2020), Is time out of joint? On the rise and fall of the modern time regime. Ítaca e Londres, Cornell University Press., p. 31) admite que o “padrão temporal” inaugurado na modernidade “não foi nem abrupta nem uniformemente estabelecido de maneira geral, de modo que a coexistência de diferentes formas temporais continua a caracterizar mesmo a nossa própria era”.
  • 19
    . Em contraposição ao “espaço-tempo homogêneo e vazio da modernidade”, Chaterjee (2008, pp. 62-63) discorre sobre “a presença de um tempo denso e heterogêneo”, prevalecente na maior parte “do mundo moderno”. Longe de “meras sobrevivências de um passado pré-moderno”, a seu ver, “estes ‘outros’ tempos” constituem “os novos produtos do encontro com a própria modernidade”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2023
  • Aceito
    17 Jan 2024
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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