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A sociologia econômica de Bourdieu: entrevista com Frédéric Lebaron

Frédéric Lebaron é um importante nome da sociologia francesa atual. Em 2016, tornou-se Professor da prestigiosa École Normale Supérieure Paris-Saclay (ENS Cachan), na qual lidera o Departamento de Ciências Sociais. Ele também leciona em outras instituições, como a Sciences Po – Saint-Germain-en-Laye – e a Université Paris-Sorbonne. Lebaron cumpriu recentemente mandato (2015-2017) como presidente da Association Française de Sociologie (AFS), da qual ainda é membro do comitê executivo. Seus trabalhos concentram-se na interface entre a sociologia econômica e a das elites e ele se especializou em uma concepção metodológica nas ciências sociais que faça uso criativo de técnicas estatísticas quantitativas e tem se engajado em sua difusão. É um dos “herdeiros” de Pierre Bourdieu e nos contou que teve contato com sua obra muito precocemente, em suas aulas de Filosofia do ensino médio. Depois de alguns anos, no mestrado, começou a trabalhar no grupo de Bourdieu na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Seu doutorado, sobre o campo dos economistas franceses na primeira metade da década de 1990, foi realizado sob orientação de Rémi Lenoir, um colaborador próximo a Bourdieu. Em 1996, Lebaron foi convidado para trabalhar com Bourdieu, desenvolvendo pesquisas sobre o campo da economia, banqueiros centrais, política econômica, e, ao mesmo tempo, colaborando na Actes de la Recherche en Sciences Sociales, na Raisons d’Agir

e na Liber1 1 . A Liber foi uma editora europeia criada por Bourdieu. . Na época, Bourdieu era um intelectual público, o que possibilitou que Lebaron tivesse envolvimento em experiências políticas, conhecesse pessoas de importantes movimentos sociais, fizesse contatos em universidades no exterior etc. Nas palavras de Lebaron: “nós fomos comprometidos, atuando em vários níveis contra o neoliberalismo… Foi a linha que seguimos naquele momento”.

Em passagem pelo Brasil para a realização de curso sobre a sociologia de Bourdieu, em parceria com o Nespom – Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Sociedade, Poder, Organização e Mercado, sediado na Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, em Araraquara, e com o Nesefi – Núcleo de Estudos em Sociologia Econômica e das Finanças, da Universidade Federal de São Carlos2 2 . O curso foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (2016/00673-3). , Lebaron nos concedeu gentilmente esta entrevista, na qual traça um panorama da sociologia econômica de Bourdieu na atualidade.

Silvio Eduardo Alvarez Candido: Nas últimas décadas, a abordagem sociológica proposta por Bourdieu se difundiu amplamente e tornou-se muito influente. Qual é a sua avaliação geral sobre esse processo? Como você vê os apelos à separação do trabalho de Bourdieu do que se tornou a “sociologia bourdieusiana”?

Primeiramente, é importante considerar que o trabalho de Bourdieu se desenvolveu até a sua morte. Ele trabalhou até seus últimos momentos. Seu trabalho é muito amplo, complexo e dinâmico, sendo desenvolvido em muitas frentes, que às vezes se cruzam. Mas o que posso dizer brevemente é que a difusão de seu trabalho é agora um tema de pesquisa. Quero dizer, há sociólogos históricos trabalhando nisso, é um tópico real, em que se busca entender como aconteceu, como foi possível. Gisèle Sapiro, por exemplo, trabalhou nisso, buscando entender as traduções que foram feitas, por quem e quando foram feitas, o livro no qual foi publicado, como foi difundido etc. É um tema empírico e não sou especialista nisso, então só posso ler os bons trabalhos sobre isso e dizer o que penso.

O primeiro estágio foi a recepção em pequenas comunidades de especialistas em temas específicos de diferentes lugares. Por exemplo, na Europa Oriental, houve recepções muito precoces na Hungria e na Romênia, desde a década de 1960, o que pode ser surpreendente. Especialistas em educação, por exemplo, foram importantes nesse primeiro momento da difusão. Na Dinamarca e na Suécia, países em que tomaram contato com a obra de Bourdieu muito cedo, pessoas como [Staf] Callewaert, Donald Broady importaram a análise, tópicos e métodos de Bourdieu em seu campo. O Esboço de uma teoria da prática foi muito lido nos Estados Unidos na década de 1970 por antropólogos. Eles estavam interessados, naturalmente, no mundo árabe, sendo essa recepção ainda especializada e muito específica. Na sociologia econômica houve alguma recepção de alguns conceitos e aspectos específicos da abordagem, como o das noções de capitais, considerados de forma isolada. Na sociologia da estratificação, a noção de capital cultural estava lá. Havia fragmentos, mas não a recepção da obra em geral.

Em um momento posterior, foi desenvolvida uma estratégia de exportação, que foi, em certo sentido, consciente, feita pelo próprio Bourdieu com Löic Wacquant, especialmente com o livro Réponses: pour une anthropologie reflexive (Bourdieu e Wacquant, 1992BOURDIEU, Pierre & WACQUANT, Loïc. (1992), Réponses pour une anthropologie réflexive. Paris, Édition du Seuil.). O livro tornou-se muito mais importante em inglês do que em francês. Ele foi uma ferramenta de difusão de Bourdieu, não apenas das ideias, mas das formas de pensar, especialmente metodologias. A linguagem adotada foi muito livre, o que lhes permitiu discutir as principais questões teóricas do período. Esse foi, sem dúvida, um marco na história da recepção, porque, depois disso, as ideias de Bourdieu se espalharam muito mais amplamente, especialmente nos Estados Unidos.

Provavelmente, é que se percebeu, então, a importância de Bourdieu como um pensador e como pesquisador. O reconhecimento mais amplo ocorreu a partir da década de 1990 e essa é a razão pela qual a difusão continuou e se desenvolveu nesse período. Houve um efeito da consagração do campo americano que foi muito importante e surtiu efeito na Europa, o que é engraçado. A partir daí o nível de recepção e interesse mudou completamente. Mas, ao mesmo tempo, o trabalho de Bourdieu prosseguiu na França e em suas redes internacionais, porque ele também internacionalizou seu grupo, o que é algo que se deve levar em conta. Ele teve conexões com a Argélia, é claro, mas também com o Brasil, Suécia, e muitos outros países. Uma difusão maior no campo francês também ocorreu, o que se deve a muitas razões, como mudanças geracionais e mudanças no ambiente político. Houve, por exemplo, uma oposição marxista muito forte nos anos de 1970 que desapareceu completamente na década de 1990. Isso também porque Bourdieu passou a ser visto como um intelectual proeminente de esquerda, como um aliado. Nesse momento, Bourdieu passou a ser lido por diferentes escolas, por marxistas, filósofos, sociólogos, historiadores, e também se espalhou nas ciências sociais. Em alguns setores, a influência de Bourdieu se tornou superficial, consistindo em uma espécie de referência educada, para alguém que parece particularmente importante em geral. Em outros campos, ele foi incorporado de maneira mais decidida. Provavelmente, o que aconteceu também, e esse é o último tipo de análise que devo fazer, é que, desde que Bourdieu faleceu, sua metodologia e suas formas de pensamento foram incorporadas por muitas escolas. É muito interessante descobrir pessoas que trabalham com as ideias de Bourdieu, com seus modos de pensar, de forma muito precisa, mas sem realmente saber ao certo de onde vieram suas ideias, das apostas em que ele estava envolvido, por que ele criou um conceito etc. As pessoas fazem isso de forma não mecânica. Eles entenderam o que é o mais importante, o que me deixa feliz e mostra a riqueza desse trabalho.

Candido: E quanto à questão específica da sociologia bourdieusiana?

Essa é uma questão difícil para mim. Por vezes lemos coisas absurdas, como descrições de uma espécie de seita em torno de Bourdieu. Algo semelhante pode até ter acontecido no período em que o grupo estava muito integrado, com forte espírito coletivo. Mas, desde por volta da década de 1980 é totalmente absurdo fazer uso dessa analogia. Não corresponde à nova realidade do grupo em torno de Bourdieu, que se tornou muito diversificado, expandindo-se em vários setores disciplinares. Como prova disso, você pode ver a lista de contribuintes nas Actes de la Recherche [en Sciences Sociales] na década de 1990. É muito internacional, alguns não são totalmente bourdiesianos, o que faz com que a noção de “bourdiesiano” se torne borrada, difusa. Usamos rótulos, é claro, e não podemos viver sem eles em sociologia, mas acho que eles são cada vez menos apropriados, devido à incorporação dos principais aspectos da mensagem. Sou muito otimista, como vocês podem notar. É claro que sou descrito como um bourdiesiano, mas não acho isso necessário. Eu sou um cientista social, não quero ser atrelado a esse tipo de visão pessoal da ciência.

Candido: Temos outra pergunta ampla… Como você vê o cenário da sociologia francesa depois de Bourdieu? Quais são, em sua opinião, os principais problemas remanescentes e os caminhos que têm sido tomados para superá-los?

Isso é material para um livro. É muito difícil responder rapidamente e ser justo. O risco é ser injusto com muitas coisas que são muito importantes e boas, porque a sociologia francesa tornou-se muito diversificada. Na Association Française de Sociologie, temos cinquenta grupos temáticos, a maioria deles muito ativa e dinâmica. Eu posso falar sobre sociologia das elites, que é o meu grupo temático. A sociologia das elites, evidentemente, não é a sociologia francesa, mas não vejo problema. Trata-se de um grupo com desenvolvimentos muito interessantes e conectados com a sociologia econômica, outro grupo do qual eu evidentemente participo. Tem sido o subespaço na intersecção de coisas muito interessantes, como a influência da sociologia americana, da sociologia econômica, da análise de redes, que é muito importante e praticada por jovens estudiosos. Também é um lugar no qual você tem um tipo mais pragmático de sociologia. Há também este rótulo, a sociologia pragmática, que surgiu neste período, o que corresponde ao trabalho já existente em torno de Luc Boltanski, Laurent Thévenot e outros acadêmicos com obra pujante e com uma espécie de quadro teórico muito influente na sociologia econômica. Mas eu não quero citar nomes, porque eu esquecerei muitos nomes, então prefiro parar por aqui.

Houve uma renovação na sociologia da estratificação, muito influenciada por Bourdieu. A sociologia qualitativa tornou-se muito proeminente na área e, provavelmente, em detrimento de tipos mais quantitativos de sociologia. O tipo mais convencional de sociologia quantitativa perdeu bastante espaço. Há, evidentemente, colegas fazendo isso muito bem, mas eles não são numerosos e estão isolados. A linha de trabalho de [Raymond] Boudon é um exemplo. É um grupo pequeno na sociologia francesa, não comparável à influência de Bourdieu em relação a número de pesquisas e intensidade do debate. A [teoria da] ação racional está presente, então, como um pequeno subsetor de pesquisa, o que pode parecer um pouco estranho em comparação com os Estados Unidos, onde [a teoria da ação racional] é muito mais influente. A sociologia quantitativa agora está ganhando importância novamente, mas é uma abordagem mais pluralista, usando novos métodos. Criamos o programa de mestrado na minha universidade denominado Mestrado em Sociologia Quantitativa e Demográfica3 3 . Sociologie Quantitative et Démographique. . Então, estamos perto da demografia também. E a ideia não é ter uma espécie de norma muito rígida de metodologia rotineira. É o contrário disso, em certo sentido. Queremos desenvolver métodos inventivos em pesquisa quantitativa, levando a uma renovação nessa pesquisa, por meio da análise de redes, da análise de sequências e outros novos métodos que têm sido muito usados em teses de doutorado, discutidos e ensinados.

O que é muito forte na França, discuti isso com Maria [Chaves Jardim]4 4 . Professora do Departamento de Sociologia da Unesp e organizadora do curso sobre Bourdieu ministrado por Lebaron no Brasil. há pouco, é, por exemplo, a sociologia da família. Sociologia do amor, de formação de pares etc. Tudo isso é muito importante na França, muito importante, muito forte. Em estreita ligação com a demografia, que agora é muito sociológica. A demografia na França não é o que a demografia fazia há 30 anos. Ainda existe, mas se tornou um pequeno setor dentro de algo que é muito mais amplo agora e que é muito mais sociológico, histórico. A demografia tornou-se mais qualitativa. Existem muitos trabalhos qualitativos no Institut National d’Études Démographiques. Eles estão fazendo pesquisas quantitativas e qualitativas. Esse é outro ponto, isto é, o ideal é que devemos desenvolver estudos que estejam usando métodos de ambas as tradições, que foram separados. E, na França, Bourdieu é, naturalmente, importante nisso. Pessoas, acadêmicos como Florence Weber, por exemplo, supervisionam teses usando métodos etnográficos detalhados e métodos quantitativos, incluindo regressão logística e ferramentas clássicas. Acho esse tipo de desenvolvimento especialmente interessante.

O que devo acrescentar, porque eu mencionei isso rapidamente, é o fato de que a etnografia como método tornou-se muito, muito proeminente na sociologia francesa. Então, se você for a um congresso da AFS, vai ver que as pesquisas são muito profundamente empíricas, com um trabalho qualitativo aprofundado. E se você estiver muito interessado na teoria pura, será difícil encontrar espaços de discussão, por que a maior parte do tempo a teoria é discutida em painéis empíricos. Essa é uma evolução muito importante. Um problema que está relacionado com a pergunta sobre Bourdieu é que ainda precisamos de evoluções teóricas das disciplinas, mas, é claro, a maioria de nós na França não pensamos que isso deveria ocorrer de forma separada da pesquisa empírica. Isso produz o que Bourdieu chamou de la grande théorie, que pode estar correta para alguns setores, mas que tem o risco de ser completamente desconectada com o resto. A teoria está mudando e evoluindo por meio de pesquisas empíricas, então não há uma grande luta teórica entre bourdiesianos e a sociologia pragmática. Podemos discutir muito concretamente sobre o trabalho empírico e ver se a interpretação pragmática é mais relevante ou não, e coisas assim. Penso que esse é um aspecto interessante da evolução da disciplina.

Candido: O fato de os sociólogos franceses não serem muito internacionalizados me surpreende. Talvez a existência de uma discussão nacional muito vibrante é provavelmente algo que gera incentivos para isso…

Eles não são muito internacionalizados no sentido de que os objetos são franceses na maioria das vezes, o que é um ponto interessante. E, em segundo lugar, eles não viajam muito, não difundem muito as ideias, algo que também está relacionado a fatores linguísticos. Sabemos disso, todos sabemos disso. Sabemos que os franceses não são numericamente suficientes em congressos e em coisas assim. Mas nós estamos tentando mudar isso agora. Como presidente da AFS, esse era um dos aspectos centrais do meu programa. Acho que nós merecemos uma recepção muito mais ampla e uma das condições para isso é a difusão por meio do inglês, então precisamos comunicar nossas ideias no exterior, nossos resultados, e não apenas dentro, o que já é bom. Quero dizer, é importante ter uma comunidade acadêmica de boa qualidade na França e também em outros países de língua francesa. Então, para mim, não é um ponto ruim. Mas também devemos desenvolver isso em condições internacionais. E isso mudaria muitas coisas e as pessoas fariam mais para difundir seu bom trabalho. Por vezes, as melhores obras não são as mais conhecidas e difundidas. Não há correlação direta. Sabemos disso, Bourdieu disse isso.

Estamos detidos pelo fato de que a sociologia francesa está muito próxima da ciência política francesa. A ciência política francesa é muito sociológica. Parte dela é altamente influenciada por Bourdieu, grandes setores da disciplina, não todos, são muito influenciados por Bourdieu. E são mais internacionalizados, por razões sociológicas, porque estão relacionados com o Sciences Po5, por exemplo. Essa instituição, na década de 1990, decidiu tornar-se a principal instituição internacional. Portanto, no Sciences Po, muitos cursos estão em inglês etc. Eles se voltaram completamente para essa orientação. As pessoas em ciência política que se relacionam com essa instituição estão comumente mais internacionalizadas. E isso ajuda, ajuda em muitas coisas. Ajudaria para os sociólogos, que são um pouco mais franceses hoje. Isso exceto nas Grandes Écoles da França… nas Grandes Écoles você agora é treinado em inglês de forma muito intensa e você vai para o exterior um ano. No Sciences Po, é obrigatório, você é obrigado a fazer isso. Na École Normale Supérieure, existem fortes incentivos para isso. Mas nas universidades6 6 . No sistema de ensino superior Francês, as universidades têm menor prestígio do que as chamadas Grandes Écoles. , e acho que é devido a uma forte desigualdade social, o inglês não é visto como algo muito importante, mesmo no nível de mestrado e de doutorado. É absurdo, como é possível? Então, é importante corrigir isso. E agora há uma condição orçamentária difícil, o que gera problemas. Não precisamos ser nativos em inglês, isso não é necessário. Precisamos nos comunicar, para poder comunicar nossas ideias, nossos resultados e o que eles têm de muito específico e mais interessante. Penso que é o mesmo para o Brasil, exatamente o mesmo.

Candido: Você acha que a abordagem de Bourdieu efetivamente supera a dualidade entre agência e estrutura? Como você responde a críticas que consideram que ela é limitada para explicar a emergência e transformação de campos e lidar com a dinâmica de ação coletiva nesses processos? Nós pensamos particularmente sobre a visão que foi articulada por autores como Neil Fligstein nos Estados Unidos e no trabalho de Bernard Lahire na França.

Penso que, em grande parte, Bourdieu superou a dualidade. Era parte do que queria fazer, evitar a dualidade e evitar as discussões teóricas puras sobre a dualidade. Eu acho que ele pensou que era uma armadilha que não leva a lugar nenhum. Podemos discutir isso por séculos… Podemos ter cursos sobre isso, mas aonde isso leva? Isso ajuda a produzir novos conhecimentos sobre o mundo social? E acho que Bourdieu teve muito cuidado com isso, era muito consciente do fato de que, em certo sentido, era uma espécie de discussão escolástica remanescente, que permanece o tempo todo, por que sempre encontraremos pessoas que estão de um lado e outras, do outro. Existem bases sociais para que esse tipo de discussão continue indefinidamente. Então, uma das ideias de Bourdieu é tentar criar ferramentas conceituais que, por si só, evitavam isso. Isso é o que ele tentou com o conceito de habitus. Talvez ele tenha falhado, mas acho que não. Se você tiver uma visão relativamente aberta do habitus, como ele fez, deve permitir que você vença essa divisão. O habitus também é um fator de criação individual e Bourdieu estava especificamente interessado em criadores individuais, como Flaubert, Manet etc., e esse era o coração de seu trabalho. Como alguém pode ser um criador? Isso não é ação coletiva, mas se relaciona diretamente com a ação coletiva. E não penso, se eu tomo a última parte da pergunta, que as coisas são tão diferentes quando se pensa em grupos. Sejam coletivos de vanguarda ou mesmo revolucionários. Então, não faz tanta diferença se Bourdieu se concentrou em indivíduos revolucionários. Talvez porque ele tivesse uma visão muito individual da evolução dos campos, mas acho que era um viés mais pessoal de interesse do que realmente algo que se relaciona com sua teoria. Sua teoria pode integrar revoluções coletivas, ações coletivas etc., como forma de transformar os campos em profundidade, incluindo as dimensões institucionais, quero dizer, mudar as regras legais oficiais como efeitos da ação coletiva. Não quero dizer que Bourdieu tenha feito tudo. Não é isso. Ele fez coisas parciais e sua teoria também deve ser melhorada, adicionando coisas de outras tradições, de outros autores, especialmente no que diz respeito às dimensões e dinâmicas processuais, que creio ser a questão mais crítica de todas. Deve-se utilizar das ideias de Elias, que adicionou muitas, muitas coisas importantes. E de outros… Por que não Fligstein e McAdam? Eles fizeram um trabalho interessante. Eu acho o livro deles um pouco teórico demais e muito geral. Você não pode definir tudo e nem usar conceitos genéricos demais, pois isso realmente não ajuda quando você vai para o trabalho empírico. Você realmente não sabe o que fazer, porque é uma estrutura muito geral, em certo sentido. Questões específicas apontadas por Bourdieu são perdidas. E acho que é uma pena, porque se você ampliar demais uma noção, no final, você pode usá-la em qualquer lugar e em qualquer ocasião e não faz sentido. E esse é um dos riscos do tipo de trabalho que eles fizeram com a noção de campo. Eu me atenho a um tipo mais exigente de conceituação e formalização do campo com base em trabalho empírico preciso, feito em campos específicos. O número de campos para mim não é infinito. Um dia teremos uma visão ampla e profunda da história social dos principais campos, mas ainda não temos. Ainda há muito trabalho a fazer e estamos em fase preliminar da nossa disciplina, eu penso.

Candido: E qual é sua visão sobre a “sociologia pragmática da crítica”, que tem sido desenvolvida sob a liderança de Boltanski e Thévenot, e sobre sua oposição à “sociologia crítica” de Bourdieu?

Na verdade, nunca pensei no que eles fizeram na sociologia da crítica como em oposição. Não acreditei nessa história que eles contaram em seus seminários. Boltanski distanciou-se muito fortemente de Bourdieu. Mas, como aluno, li La dénonciation, é claro. Boltanski diz que há uma crítica ao grupo de Bourdieu nesse texto, então você deve lê-lo com isso em mente. Acho também que ele publicou de forma bourdiesiana em L’amour et la justice comme compétences, que eu também li. Acho que ele desenvolveu suas próprias ideias, especialmente sobre os mundos [cités], que para mim estão muito relacionados às investigações linguísticas. Então, se você pensar nesses termos, você verá que é um pouco menos original do que ele afirma, mas muito interessante. Não acho que ele está criando uma sociologia inteiramente nova e radical, que evita as armadilhas da sociologia crítica. Nunca pensei que isso fosse relevante. Mas quando você pensa que isso foi feito nessa direção, é interessante, especialmente quando é operacionalizado por meio de ferramentas linguísticas. As coisas feitas por [Francis] Chateauraynaud em torno de Prospéro e os usos desse tipo de trabalho para dizer e desenvolver novas ideias sobre o material textual, que não foi investigado na tradição bourdiesiana, por exemplo, acho muito interessantes. A lexicometria, por exemplo, foi pouco usada pelo grupo de Bourdieu. Eu não quero dizer que se deve reduzir o que Boltanski e Thévenot fizeram à lexicometria. É claro que não. Há novas ideias, não apenas linguísticas, mas acho que essas são as principais, contribuindo para classificar e qualificar textos, todas essas coisas. A sociologia da quantificação com [Alain] Desrosières também é muito interessante. Em suma, tudo isso para mim é muito interessante, mas nunca pensei que estava em contradição, por exemplo, com a sociologia quantitativa da desigualdade. Não sei por quê. Explique-me, por que deveria estar em oposição? E eu não acho que a estrutura que foi construída naquela época estava realmente em contradição. Era diferente, mas alegaram que era algo radical e novo. Acho que Boltanski, depois de alguns anos, admitiu que não estava realmente em contradição e tentou integrar isso no seu quadro teórico. Isso tem ocorrido mais recentemente. Nesse quadro ele mantém um espaço para a sociologia crítica, o que é acertado, pois deixa espaço aberto para o debate, evitando que ele se feche rapidamente.

Na minha visão, portanto, esse trabalho envolve complementações, adições, novas ideias. Coisas que podem ser discutidas. E eu vi muitas teses fazendo isso. Acho interessante quando as ideias de Boltanski e Thévenot, as cités, por exemplo, estão integradas a uma forma mais clássica de sociologia. Acho que elas realmente podem contribuir para melhorar o trabalho em geral. Então, eu não tomo uma decisão dogmática contra esse tipo de bricolage. É a forma como procedemos quando temos material empírico que pode ser esclarecido por esse tipo de abordagem. Acho que algumas das ideias sobre as cités são realmente inovadoras, mas com o tempo a Économie des Conventions tornou-se, em alguns casos, muito teórica, muito abstrata. Fico menos convencido quando se torna muito abstrato e é apresentado como uma teoria geral da ação. Mas é parte das coisas que tendemos a fazer na sociologia, você tem algumas ideias novas e diz que tem uma teoria geral de tudo. Eles não são os primeiros a fazer isso e provavelmente não serão os últimos. Nós dissemos o mesmo sobre Fligstein. É muito semelhante em certo sentido.

Karina Gomes de Assis: E você não acha que esse movimento liderado por Boltanski é uma reação ao desenvolvimento da proposta de sociologia como esporte de combate por Bourdieu?

Cronologicamente não é correspondente. Boltanski começou em torno de 1985 e, naquela época, Bourdieu estava, de forma lenta, tornando-se mais claramente um intelectual público. Seu primeiro envolvimento na política ainda era muito tímido. Em 1985, ele fez um relatório no College de France para (François) Mitterrand. Mas ele não foi muito direcionado ao discurso crítico. Ele estava aconselhando um governo político de esquerda, tentando integrar suas ideias, especialmente seus resultados sobre educação, em políticas públicas. Foi o que ele tentou, mas não conseguiu realmente, é claro… Provavelmente estava em um dos seus períodos menos crítico, para assim dizer. Depois é que se tornou mais crítico sobre o governo. Oito anos depois, em 1993, publicou La misère du monde e, em torno de 1995, tornou-se um intelectual público, com uma forte dimensão crítica pública em relação a política pública, política econômica, neoliberalismo etc. Boltanski foi mais crítico em relação à sociologia crítica a partir de 1985. Mais tarde, quando Bourdieu tornou-se um intelectual público, Boltanski reclamou dizendo que quando era membro do grupo isso era proibido, o que é uma caricatura, porque em 1968 Bourdieu disse que devemos difundir nossas ideias nos movimentos sociais etc. Não se pode dizer que ele proibia qualquer coisa. O que ele provavelmente não gostaria era que os acadêmicos de seu grupo se tornassem políticos, ativistas demais, porque daí já não seriam mais cientistas. Mas qualquer acadêmico pensa isso. Você tem bons estudantes, não quer que eles se tornem ativistas. Mas digo isso porque Boltanski era do ponto de vista político ou normativo mais próximo de Bourdieu em 1995. Ele assinou as mesmas petições, por exemplo. Eu estudei essas petições, então eu sei. Boltanski, naquela época, estava em contradição com pessoas como Latour, que estava mais do outro lado. Divisões apareceram no espaço que Boltanski criou mais ou menos ao seu redor com a sociologia da crítica. Esse é o início da reconciliação, embora não haja reconciliação, porque Boltanski escreveu coisas muito ruins depois que Bourdieu faleceu. Eu diria que havia muita tensão naquela época, mas é mais complexo do que um puro jogo de ação e reação. É preciso ser muito preciso com a trajetória de Bourdieu, especialmente como um intelectual público, que é algo que eu tento fazer agora, usando meus próprios arquivos e usando também minha experiência pessoal e conhecimento das pessoas para entender o que aconteceu. Isso também é necessário com Boltanski, que tem uma trajetória bastante complexa. Depois de 1995, e especialmente depois de 1998 e 1999, Boltanski estava mais próximo dos grupos extremos de esquerda, como o Nouveau Parti Anticapitaliste, por exemplo. É importante dizer isso, porque não é publicado nos livros, nem nos artigos, e é importante. Nossas tomadas de posição pública são parte de nossa vida, em primeiro lugar, e de nosso trabalho, penso. Faz parte de como difundimos nosso trabalho, pois somos sociólogos públicos. [Michael] Burawoy e sua Sociologia Pública, de certa forma, legitimou globalmente esse tipo de perspectiva e agora se pode dizer que a sociologia pública é importante. Para concluir este ponto, nessa questão, as posições de Boltanski e Bourdieu não estão longe. Eles estão muito perto, na minha visão.

Candido: Durante sua trajetória acadêmica você se especializou em usar técnicas estatísticas, particularmente análise de correspondência múltipla (ACM). Como você vê os usos desses métodos na análise sociológica contemporânea e particularmente na sociologia econômica? Quais são os limites e as possibilidades?

Pergunta muito importante para mim, porque investi muito na tentativa de renovar esse tipo de método, inclusive em discussão com os matemáticos com quem trabalho até hoje e também com pesquisadores que não conhecem muito além da matemática básica. Mas esse não é o ponto. Quero dizer, isso deve ajudar os usuários a ser rigorosos e reflexivos com seus métodos, usando-os adequadamente, não os usando por usar. Notei que algumas pessoas querem usá-lo para ter um gráfico, porque se orgulham disso. Há muitos alunos que são assim, o que é normal. Mas muitas vezes não é relevante fazer ACM. Há uma técnica ou maneiras de fazer coisas mais apropriadas. Então, eu nunca quis dizer que é uma maneira universal de fazer as coisas. O que muitas vezes as pessoas frequentemente não veem é que a ACM não é apenas uma técnica. Trata-se de uma metodologia com análise de dados geométricos que foi parcialmente criada por [Jean-Paul] Benzécri, mas que tentamos ampliar e difundir agora, que envolve uma concepção de prática estatística, de pesquisa quantitativa, que é bastante diferente do que é normalmente falado e dito sobre como deveríamos usar estatísticas. Inicialmente são feitas as primeiras descrições e, então, são usados tipos apropriados de inferência, de forma a não reduzir a estatística à probabilidade ou ao que chamamos de técnicas de fit and test, que consiste em realizar testes de significância e ver se estão alinhados com os resultados. Então, é uma concepção completa da metodologia. É maior e, em certo sentido, mais ambicioso do que fazer apenas a ACM. A ACM é muito importante, envolvendo escolhas que devem ser acertadas. Ter o programa [softwares] nas mãos é muito importante e é preciso praticar. As estatísticas são algo que você deve sempre praticar, o que não é tão óbvio, inclusive para as pessoas que ensinam estatísticas com dados simulados, que não gostam dos dados, que não estão interessadas nos dados. Existem muitos estatísticos puros, lecionando em Departamentos de Estatística que não gostam de dados, na verdade. Isso está mudando agora com todo esse movimento de big data e ciência dos dados, que não é algo novo. Se você olhar o que Benzécri escreveu nas décadas de 1960 e 1970, verá que ele estava completamente consciente da necessidade de integrar as evoluções dos programas e do fato de que você pode fazer muitas coisas de forma cada vez mais rápida. É exponencial, então você pode cada vez mais lidar com conjuntos de dados muito, muito grandes. Você precisa de uma metodologia, de uma reflexão sobre o que fazer, sobre quais são os dados, sua qualidade, seu formato e o tipo de tabela que deseja analisar. Benzécri é uma espécie de mestre nisso. Você deve criar a tabela que deseja analisar, em seguida usa algumas ferramentas, que não são em si muito matematicamente sofisticadas, mas que são muito poderosas. Então, o que é importante é o tipo de dados, a tabela que deseja analisar. É um tópico geral. É o mesmo se você quiser fazer uma análise de rede. Primeiro deve ter cuidado, ser muito reflexivo(a), sobre o tipo de dados que você produz, o que eles dizem e o que eles permitem que você faça, o que eles adicionam à sua análise, o que eles adicionam à observação etnográfica ou a coisas que as pessoas dizem. Então, essa metodologia geral acaba de começar a se espalhar. Estamos no começo mesmo disso. Provavelmente porque existem outras maneiras de fazer, que – como eu poderia dizer? – geram retornos de curto prazo mais altos, permitem que você publique mais rapidamente etc. Então, inserir uma metodologia muito exigente, que não permite que você publique rapidamente e faça sua carreira, provavelmente é muito difícil. O uso de técnicas de ACM e técnicas relacionadas está se desenvolvendo provavelmente mais no campo das práticas culturais e comparações de dados culturais, que são os estudos de A distinção (Bourdieu, 2007BOURDIEU, Pierre. (2007), A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo, Edusp.) do que na sociologia econômica. Mas também está se desenvolvendo em sociologia econômica. Na sociologia econômica, há ferramentas que são muito usadas, como a análise de redes, que é muito central, então as bases mínimas para mim é que se devem discutir as conexões entre as duas e tentar, às vezes, integrar uma à outra. Como Elisa Klüger7 7 . Elisa Klüger, pesquisadora brasileira, atualmente pós-doutoranda do Centro de Estudos da Metrópole (Cebrap), desenvolveu sua tese sobre o espaço dos economistas no Brasil e realizou estágio na Université de Picardie Jules Verne sob orientação de Lebaron. fez em sua tese, por exemplo. Ela usou mais de análise de rede do que tinha em mente. O trabalho que ela também faz com a análise de correspondência em dados semelhantes, sobre o mesmo objeto, também é importante. Eu estou cada vez mais otimista com isso. Eu acho que provavelmente eles ainda estão subutilizados, em comparação com o quanto eles deveriam [ser utilizados], mas está melhorando. E o que você tem que ter em mente é que existem métodos que também são usados na ciência dos dados em geral, com ferramentas variadas que são agora usadas como redes neurais, e muitas ferramentas que estão se desenvolvendo com esses grandes conjuntos de dados que as pessoas produzem graças à internet. Eles são usados em muitos campos, como no marketing, e também em ciências naturais e biologia, em que há muitas pessoas usando análise de correspondência, análise de componentes principais, todo esse conjunto de ferramentas.

Bem, estou convencido de que a metodologia estatística é ainda subdesenvolvida em geral em sociologia em comparação com economia e, provavelmente, a primeira etapa do desenvolvimento foi muito influenciada pelo que aconteceu nas estatísticas matemáticas e econometria. Agora, provavelmente será experimentado um novo período no qual um novo tipo de ferramentas e novos métodos serão desenvolvidos, da mesma forma que aconteceu com a análise de redes. A análise de redes não é a única ferramenta. Eu acho que é bom que ela tenha se desenvolvido, é muito importante, mas agora devemos tentar combinar análise de redes e outros métodos e ferramentas, incluindo modelos de regressão. De qualquer maneira, acho relevante fazer algo que seja previsível. Temos ferramentas para isso, incluindo regressão logística, por exemplo. Para mim, trata-se de ferramentas que por vezes são mais pensadas como norma em muitos programas de sociologia quantitativa. Sou contra isso. Não há norma. Não se deve dizer que a ACM é uma norma ou a regressão logística é uma norma. A norma é a reflexividade científica e a qualidade do julgamento quando há números, dados quantitativos. E a norma é provavelmente ter boa qualidade, não só de dados, é claro, a qualidade da fonte é importante, mas também as tabelas que são apropriadas para construir o objeto. Então, estou muito na linha de A profissão do sociólogo (Bourdieu, Chamboredon e Passeron, 1999BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude & PASSERON, Jean-Claude. (1999), A profissão do sociólogo: preliminares epistemológicas. Petrópolis, Vozes.). E deve-se construir um bom objeto. Isso é o que eu quero dizer. Talvez a melhor técnica sejam tabulações cruzadas. Talvez seja suficiente, em alguns casos. As boas tabelas cruzadas, bem interpretadas, podem proporcionar bons conhecimentos.

Candido: Gostaríamos de voltar um pouco para sociologia econômica. Como você vê particularmente a recepção de Bourdieu em sociologia econômica? Quais são, na sua opinião, os desenvolvimentos mais interessantes?

Eu acompanho isso, especialmente depois de 1996, quando trabalhei e discuti isso com Bourdieu. Bourdieu estava ciente do desenvolvimento de trabalhos em torno de [Walter] Powell, [Paul] DiMaggio e [Neil] Fligstein, por exemplo… Fligstein visitou o Collège de France [na época]. A primeira vez que o encontrei foi na sala de Bourdieu, eu acho. Bourdieu estava consciente das apostas em torno da recepção e discussão de seu trabalho. Ele acrescentou alguns comentários críticos ao trabalho de [Mark] Granovetter em As estruturas sociais da economia (Bourdieu, 2001BOURDIEU, Pierre. (2001), As estruturas sociais da economia. Lisboa, Instituto Piaget.) e no artigo “O campo econômico” (Bourdieu, 2005BOURDIEU, Pierre. (2005), “O campo econômico”. Política & Sociedade, 4 (6): 15-58.). Então, ele estava muito na polêmica do campo, porque o que é importante ter em mente é que Bourdieu era um sociólogo global, quer dizer, seu campo não era a França, é claro. Depois que se tornou conhecido nos EUA, sua recepção tornou-se muito intensa. Wacquant teve um papel muito importante inicialmente, ainda que ele não seja um sociólogo econômico propriamente falando, ele estava próximo. Deu uma aula de sociologia econômica na École des Hautes Études Commerciales na década de 1990, por exemplo. Somente depois ele mudou-se para a Antropologia e esse envolvimento do Loïc Wacquant foi importante para a sociologia econômica. Ele conhecia a literatura, a literatura americana, provavelmente mais sobre o setor organizacional, estava ciente dos trabalhos de DiMaggio, Fligstein etc. [Viviana] Zelizer, por exemplo, foi traduzida para o francês na coleção de Bourdieu e ficou cada vez mais conhecida pelos sociólogos econômicos franceses muito rapidamente. Houve intercâmbios, influências recíprocas, penso, depois da década de 1990. Quanto a mim, vi a evolução da percepção e da consciência com o handbook organizado por [Richard] Swedberg (Smelser e Swedberg, 1994SMELSER, Neil Joseph & SWEDBERG, Richard (eds.). (1994), The handbook of economic sociology. Nova York, Princeton University Press/Russell Sage Foundation.). Foi muito interessante para mim ter lido, fiz a revisão dele etc. [A contribuição de] Bourdieu acabou ficando mal representada no livro e eu acho que Swedberg não estava totalmente consciente da importância de seu trabalho na Argélia e nas demais coisas que ele fez. Ele veio para a França e o conheci. Ele é um acadêmico muito gentil, muito engraçado. Ele foi obrigado a reconhecer que Bourdieu e seu grupo começaram muito cedo a fazer coisas que os pesquisadores americanos pensaram que eram os primeiros a fazer na década de 1970. Dez anos antes, coisas muito inovadoras em sociologia econômica foram feitas, apesar de elas não terem sido classificadas assim. Elas também não foram publicadas em revistas internacionais. Na verdade, havia algumas invenções, incluindo invenções empíricas de pesquisadores franceses, que não foram consideradas no campo americano. Apenas conceitos muito parciais de Bourdieu foram usados, mas não a metodologia, especialmente a metodologia quantitativa, que não havia se difundido. O que havia de mais desenvolvido, muitas vezes, devia-se aos franceses que já conheciam o trabalho de Bourdieu, como Marion Fourcade. Então, é bom para a sociologia francesa que pesquisadores franceses se tornem estudiosos americanos proeminentes, porque muda a relação entre os espaços, eu acho.

Candido: Agora, considerando o contexto geral em que a financeirização da economia ganha legitimidade prática e discursiva e eficácia simbólica, quais seriam os desafios para a sociologia econômica? Como a sociologia econômica de Bourdieu tem respondido a esses movimentos? Como deve ser a nossa posição em relação à economia heterodoxa?

Muito boa pergunta, perguntas muito atuais, é claro. Penso que a sociologia econômica, e eu vi isso desde a década de 1990, é um tema muito central, porque é a parte da disciplina mais conectada e que mais interage com a economia e com a dominação da economia e das ideias econômicas. Houve muitas mudanças na década de 1990, que não é possível descrever aqui. Mas, por exemplo, a crise [de 2007], para mim, foi um momento importante. Seremos capazes, como sociólogos, de dizer coisas relevantes nesse contexto de mudança do mundo, com a crise de crenças, com toda essa turbulência em torno das finanças etc.? Não somos totalmente capazes, é claro. Nós não conseguimos. Na crise, quem falava eram os economistas, é claro, inclusive os economistas líderes, os economistas neoliberais, ainda estavam lá, no topo da produção da agenda e isso poucos anos depois de uma recessão muito grande e de toda a quebra do sistema. Não conseguimos propor algo que fosse uma alternativa clara para atores políticos, atores públicos em geral, líderes de empresas, para instituições financeiras. Mas penso que o nosso trabalho melhorou o conhecimento, por exemplo, das instituições financeiras. Nesse sentido, ele é cada vez mais relevante. Este ano, por exemplo, fui convidado pelos banqueiros centrais do Banco Central Europeu (BCE) [para um evento], e os economistas de lá queriam ouvir coisas que fossem críticas. Estamos em um período que também é interessante e vemos mudanças, inclusive nas instituições dominantes. Recentemente, um artigo crítico ao neoliberalismo foi lançado pelo FMI (Ostry, Loungani e Furceri, 2016OSTRY, Jonathan D.; LOUNGANI, Prakash & FURCERI, Davide. (2016), “Neoliberalism: oversold?” Finance & Development. Disponível em https://www.imf.org/external/pubs/ft/fandd/2016/06/pdf/ostry.pdf, consultado em 23/2/2018.
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). Como sempre digo, como Bourdieu disse a si mesmo, qualquer instituição também é um espaço, um subcampo potencial, onde há muitas lutas simbólicas. Estamos muito dominados, portanto, não podemos esperar que em um dia nos tornemos altamente dominantes. Há estabilidade, a dominação simbólica é algo muito forte. O domínio da economia ainda é muito importante. Recentemente, na França, houve um panfleto escrito por dois economistas neoliberais qualificando críticas, incluindo a crítica de Bourdieu, classificada como um “negacionismo” econômico. Essa é a palavra que usamos na França para nos referirmos às pessoas que negam o que aconteceu com os judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Então, somos como pessoas que dizem, por exemplo, que o 11 de setembro não aconteceu, que negam a cientificidade da economia. Você vê a retórica? São economistas dominantes, economistas franceses. Estou muito curioso para ver o que acontece no debate internacional com eles, porque eles são muito arrogantes e muito violentos em seus ataques, simbolicamente muito violentos. Mas acho que isso é também a prova de que estão sentindo sua fraqueza agora, porque suas ideias estão perdendo terreno. Quero dizer, agora vemos que o neoliberalismo pode ter um fim. Pelo menos na Europa e nos Estados Unidos… Aqui [no Brasil] é mais complexo, vocês provavelmente estão em outro estágio ideologicamente, por muitas razões. Mas vemos que as falhas são muito numerosas, que as pessoas no coração das instituições começam a perder a fé etc. Isso aconteceu um pouco em 2008-2009, mas o choque foi rápido, houve uma paralisia keynesiana, a turbulência foi muito forte e, claro, as instituições financeiras dominantes levaram tudo. Na ocasião, houve uma restauração conservadora, mas ela não foi completa e nem total. Penso que a sociologia econômica tem um papel a desempenhar, que é manter a maneira científica, razoável e empiricamente fundamentada de falar sobre isso, o que os economistas não fazem. Quando eles fazem coisas empíricas, alguns deles, afirmam que a ciência [econômica] é como a medicina, o que, obviamente, não é o caso. Eles estão com um problema cognitivo, um forte problema cognitivo, eu acho. O que fazemos é mais modesto, nós reconhecemos. O estado da nossa ciência ainda não é o de uma experimental. Temos muitas ferramentas, mas ainda as estamos melhorando, ainda hesitamos entre nossos métodos. Nós realmente não sabemos como articulá-los completamente. Estamos em progresso contínuo, mas sabemos que nossos resultados empíricos são limitados e nossas teorias ainda precisam ser melhoradas, o que, em certo sentido, é uma força comparada a essas afirmações muito ideológicas que são cada vez mais irrelevantes quanto a seus efeitos políticos, sociais etc. Por isso, não sou pessimista sobre isso. Simplesmente temos que fazer o nosso trabalho, temos que fazer nossa pesquisa e não nos limitar à nossa comunidade. Pense que o mundo externo é ruim, eles são tão violentos, mas, como eu tento fazer, temos coisas para dizer, temos coisas para discutir no debate público, coisas relativamente modestas. No momento, estamos sendo seguidos pelo menos por alguns atores políticos, atores públicos etc. e até mesmo atores econômicos, que se deram conta que precisam mudar sua visão de mundo se quiserem evitar a catástrofe. Alguns deles estão cientes da situação crítica.

Candido: Você vê algum diálogo acontecendo com economistas heterodoxos?

Sim, me desculpe. Não mencionei esse aspecto e ele está muito dentro do debate. Eu acho que as coisas estão mudando porque há alguns economistas ortodoxos – economistas que pareciam ortodoxos, como o Piketty na França era completamente ortodoxo, por sua trajetória, por sua tese etc., se você olha o que ele fez –, que são mais críticos em relação a outros economistas no mundo. E ele está tentando desfocar, subverter, penso eu, a fronteira entre a ortodoxia e a heterodoxia, em um sentido, e também entre a economia como disciplina dominante e as outras ciências sociais. Ele está tentando fazer alguma contribuição nessa direção, dizendo que ele é um cientista social e não um economista, por exemplo. Eu estive em uma entrevista com ele para a revista Savoir/Agir e foi muito interessante, porque suas posições eram muito próximas das minhas. Mas eu diria que os economistas heterodoxos são muito diversos, há uma diversidade muito forte. Alguns deles são muito teóricos, ainda existem algumas guerras entre eles, entre pequenos grupos e, às vezes, muito longe do que fazemos como sociólogos, que somos mais empíricos. Temos maneiras diferentes de trabalhar, é claro. Mas as coisas estão melhorando porque as pessoas que estão no meio, que têm uma posição intermediária, tentaram tornar a economia heterodoxa próxima da sociologia, especialmente da sociologia econômica, borrando as fronteiras novamente. Então, eu tenho, pessoalmente, cada vez mais, supervisionado teses com colegas economistas heterodoxos ou economistas treinados na ortodoxia, mas que são muito abertos às ciências sociais, como Jérôme Bourdieu, filho de Bourdieu.

Candido: Parte do seu trabalho se concentra em investigar o papel dos economistas na formação de processos sociais e políticos em todo o mundo. Algumas pesquisas indicam a crescente influência de juristas sobre esses mesmos processos. Você acha que isso indica mudanças relevantes nos campos econômicos? Quais são essas mudanças?

Pergunta muito, muito interessante! Tenho pensado nisso porque estou muito perto de alguém, que talvez você conheça, que é Antoine Vauchez. É um tema que é muito discutido com especialistas europeus. Há uma comunidade de acadêmicos em estudos europeus, por que a construção europeia foi, desde sua própria origem, um processo muito legal e feito por juristas. Isso foi descrito por Antoine Vauchez e outros. Eu tenho trabalhado com eles em estudos prosopográficos, então eu os conheço muito bem. Mas eles notaram a mudança, com o crescente papel da economia, especialmente na década de 1980, com a revolução neoliberal. De qualquer forma, economia e direito estão intimamente relacionados, porque o papel da lei ainda é muito importante na construção europeia, incluindo, claro, a [defesa da] concorrência. A concorrência é uma questão econômica, mas também é uma questão de direito da concorrência. Temos economistas que legitimaram a ideia de mercado, a ideia de concorrência etc., mas, ao mesmo tempo, você precisa de dispositivos para produzir o mercado e na Europa o papel da lei é muito forte. É o mesmo com bancos centrais. Após a crise, nós provavelmente nuançamos a ideia de que os economistas estão assumindo a comparação com os juristas na Europa por causa da natureza jurídica da crise que foi o fracasso na regulamentação, de modo que o BCE, por exemplo, recrutou economistas porque precisava de mais economistas, mas também muitos juristas. Isso mostra que as coisas são mais complexas. Que ambos estão em uma dialética e que a crescente dominação dos economistas em comparação com a lei não é uma tendência geral e linear. É cíclico e mais complexo. E não sou especialista em direito, pelo ponto de vista da economia, posso dizer que os economistas estão, de novo, como estão com os sociólogos, eles tendem a ser arrogantes com os profissionais da lei, dizendo que não são cientistas etc.

O que posso adicionar a isso? Ah, sim, na esfera acadêmica… Na França, pelo menos, mas acho que é o caso em muitos países, pesquisadores jurídicos, especialistas em direito, tornaram-se atores resistentes contra a normalização a que os economistas estão muito mais familiarizados, muito mais conectados, que eles apoiam e até promovem. Então, isso está criando a tensão, o que é bastante interessante, que vimos na França, especialmente nas reformas das universidades e do sistema educacional, às quais nossos colegas do direito são, às vezes, muito críticos. Isso mudou o espaço, porque nós, de certo modo, nos sentimos mais perto de alguns especialistas em direito que estão vendo a ameaça em instituições que se relacionam com uma espécie de generalização e padronização de nossas práticas na universidade. Isso também ocorre na Alemanha, como em outros países que eu conheço um pouco.

Candido: Muito obrigado pela rica entrevista.

Referências Bibliográficas

  • BOURDIEU, Pierre & WACQUANT, Loïc. (1992), Réponses pour une anthropologie réflexive Paris, Édition du Seuil.
  • BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude & PASSERON, Jean-Claude. (1999), A profissão do sociólogo: preliminares epistemológicas Petrópolis, Vozes.
  • BOURDIEU, Pierre. (2001), As estruturas sociais da economia Lisboa, Instituto Piaget.
  • BOURDIEU, Pierre. (2005), “O campo econômico”. Política & Sociedade, 4 (6): 15-58.
  • BOURDIEU, Pierre. (2007), A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo, Edusp.
  • OSTRY, Jonathan D.; LOUNGANI, Prakash & FURCERI, Davide. (2016), “Neoliberalism: oversold?” Finance & Development Disponível em https://www.imf.org/external/pubs/ft/fandd/2016/06/pdf/ostry.pdf, consultado em 23/2/2018.
    » https://www.imf.org/external/pubs/ft/fandd/2016/06/pdf/ostry.pdf
  • SMELSER, Neil Joseph & SWEDBERG, Richard (eds.). (1994), The handbook of economic sociology Nova York, Princeton University Press/Russell Sage Foundation.
  • 1
    . A Liber foi uma editora europeia criada por Bourdieu.
  • 2
    . O curso foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (2016/00673-3).
  • 3
    . Sociologie Quantitative et Démographique.
  • 4
    . Professora do Departamento de Sociologia da Unesp e organizadora do curso sobre Bourdieu ministrado por Lebaron no Brasil.
  • 5
    . O Institut d’Études Politiques, conhecido como Sciences Po, passou nos anos de 1990 por um intenso processo de internacionalização da sua grade e de seu processo de seleção de alunos. Por conta disso, o instituto é hoje reconhecido como uma referência dentre as Grandes Écoles em termos de internacionalização.
  • 6
    . No sistema de ensino superior Francês, as universidades têm menor prestígio do que as chamadas Grandes Écoles.
  • 7
    . Elisa Klüger, pesquisadora brasileira, atualmente pós-doutoranda do Centro de Estudos da Metrópole (Cebrap), desenvolveu sua tese sobre o espaço dos economistas no Brasil e realizou estágio na Université de Picardie Jules Verne sob orientação de Lebaron.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2018
  • Aceito
    6 Mar 2018
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