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As transformações do racismo estrutural: Entrevista com Eduardo Bonilla-Silva1 1 . Versão em português traduzida por Gabriel Delphino.

Eduardo Bonilla-Silva é internacionalmente reconhecido como dos principais formuladores do conceito de “racismo estrutural”. Nascido em 1968 em Porto Rico, ele foi presidente da American Sociological Association (ASA) em 2018. Atualmente professor da Universidade de Duke, Bonilla-Silva vem argumentando que a racialização das nossas estruturas sociais é mais efetiva na reprodução das desigualdades do que propriamente ideologia ou doutrina política explicitamente racista. Em 2003, ele publicou Racism without racists (traduzido pela editora Perspectiva em 2020), livro no qual propõe que o mundo contemporâneo viveria um “racismo cego às cores”, em que a discriminação racial continuaria operando no mundo mesmo com a condenação ampla de valores racistas por parte de vários movimentos políticos. Apesar do uso cada vez mais cotidiano da noção de racismo estrutural, as obras de Bonilla-Silva ainda são pouco conhecidas no Brasil. Por esse motivo, realizamos esta entrevista com ele em setembro de 2023, abordando temas como a estruturação do racismo no mundo de hoje, o efeito de eventos como o brutal assassinato de George Floyd nos Estados Unidos e os desafios atuais do antirracismo no Brasil e no mundo.

Você é um dos principais proponentes e defensores do conceito de racismo estrutural. Você poderia oferecer uma definição abrangente desse conceito? Qual é o seu significado no contexto global de hoje?

Presumo que os seus leitores compreendam que o fenômeno que rotulamos como racismo surgiu na modernidade (1492) como uma consequência dos empreendimentos imperiais de várias nações europeias (por exemplo, Espanha, Portugal, Países Baixos, França etc.). Na sua voracidade de extrair recursos e lucros, desenvolveram, de forma casual, “raças” e também o que chamamos de racismo. Mas assim que a categoria “raça” foi criada e o racismo se solidificou como sistema de práticas, e também como cultura e lógica, eles consolidaram-se como elementos da estrutura social da modernidade.

Mas o que é especificamente isso que chamamos de racismo estrutural? No meu trabalho concebi o racismo estrutural como um conjunto de práticas nos níveis econômico, político, social e até psicológico, destinadas a manter vantagens sistêmicas para o grupo racializado como branco e a manter os grupos classificados como não brancos sob controle e numa posição de subordinação. Compreender que o racismo é estrutural significa que os nossos problemas raciais não são uma questão de alguns indivíduos preconceituosos, mas uma manifestação coletiva e social. Significa também - e isto é central para o meu argumento estrutural - que estas práticas existem para beneficiar aqueles que estão no topo da hierarquia racial, razão pela qual enfatizei que o racismo tem sempre uma base material. Assim, a abordagem correta para tratar dos problemas raciais de qualquer sistema político envolve estudar como as desigualdades raciais são produzidas nas habitações, na política, na justiça criminal, nos bairros e noutros domínios. Em vez de procurar “racistas” por meio de questionários, o que é necessário, especialmente nas sociedades da América Latina e do Caribe, são estudos que descubram as formas específicas como a discriminação afeta as oportunidades de vida das pessoas de cor em todas as áreas da vida.

É fundamental reconhecer que os elementos raciais da modernidade não estão limitados a alguns países (Estados Unidos, África do Sul etc.), mas são sistêmico-mundiais, como argumentou Howard Winant em The world is a ghetto. Não há país no mundo que não seja afetado pelo racismo, quer como sistema ou como lógica. Como sistema ou estrutura, a maioria dos Estados-nação tem uma ordem racial, incluindo alguns que consideramos estarem “além da raça” porque são presumivelmente monorraciais. Tomemos por exemplo o caso do Haiti. A maioria dos observadores casuais presume que a raça não tem impacto porque todos são negros. Na verdade, o Haiti, desde antes da revolução, desenvolveu uma classe “mulata parda” ou “parda clara” que utilizou os seus recursos e capital fenotípico para alcançar um certo grau de mobilidade racial. Assim, uma vez terminada a revolução haitiana, eles conseguiram alcançar o domínio e, desde então, têm sido o segmento racial no poder. As massas negras no Haiti, tal como na Jamaica, no Brasil ou em Porto Rico, estão no fundo do poço em todos os aspectos da vida e são consideradas pela elite parda como um tipo inferior de pessoas. (Seria negligente se não mencionasse a presença de uma pequena população “branca” de descendentes de colonos franceses, imigrantes de outros países europeus e imigrantes do Líbano. Eles tendem a estar numa posição econômica média, já que muitos trabalham em empregos profissionais, mas a lógica da cor - a preferência da elite pela brancura e por tudo o que é francês ou ocidental - ajuda-os a manter um estatuto social distinto.)

A racialização sistêmica mundial também explica como os imigrantes de cor ou com antecedentes religiosos diferentes dos cristãos são “racializados” nas nações ocidentais. Isto é claramente ilustrado no Reino Unido, onde os seus imigrantes coloniais da Índia, do Paquistão e do Caribe são colocados numa posição “coletiva negra”. Mas a lógica da raça funciona em todos os lugares, por isso os imigrantes da Nicarágua para a Costa Rica são denegridos (é claro, a Costa Rica tem uma longa e rica história de racismo contra os povos indígenas, bem como contra as populações negras na parte atlântica do país), os haitianos são vistos como a “ameaça negra” na República Dominicana, e os imigrantes dominicanos são estigmatizados e tratados como pessoas inferiores em Porto Rico. Não há dúvida de que o pincel do racismo pintou todas as pessoas no sistema mundial, embora de forma diferente. Nenhum país ou povo, independentemente dos seus protestos, pode legitimamente reivindicar estar além da raça.

Em que medida a noção de racismo estrutural, que o senhor apoia, difere de conceitos semelhantes como “racismo sistêmico” ou “racismo institucional”? O que o leva a preferir o primeiro termo a outros?

No meu artigo de 1997 na American Sociological Review, “Rethinking racism: Toward a structural interpretation”, apresentei a minha teorização estrutural que rotulei de abordagem do sistema social racializado. Durante muitos anos defendi uma compreensão estrutural do racismo na minha luta quixotesca contra aqueles que insistem que o racismo é apenas preconceito, ou seja, uma doença que pode ser curada através da educação. Também participei em muitos esforços para trazer o “racismo estrutural” à tona e torná-lo um conceito legítimo e útil na praça pública. Devo admitir, porém, que nós, do campo estruturalista, falhamos neste esforço, mas uma porta foi aberta após o assassinato de George Floyd. Rapidamente, as pessoas começaram a usar o termo “racismo sistêmico”, que estudiosos como Joe R. Feagin têm usado há anos. Nas idas e vindas da conjuntura política criada pelo movimento de massas contra a violência policial e em plena pandemia, decidi escrever um artigo sobre racismo sistêmico. O artigo apareceu na Sociological Inquiry em 2021, e eu o intitulei “O que torna o ‘racismo sistêmico’ sistêmico?”. Expliquei por que mudei de termos e apresentei um argumento eminentemente político. Cito abaixo, na íntegra, o que escrevi.

A revolta trouxe à tona a noção de “racismo sistêmico” (doravante RS), que parece ter enterrado a noção simplista de racismo como apenas preconceito para a lixeira da história. É difícil imaginar esse antigo termo voltando a comandar o espaço que ocupou por tanto tempo, tanto no senso comum dos americanos quanto na academia. Nesse artigo, utilizo RS no lugar de “racismo estrutural”, mas associo-a à plataforma teórica que construí anos atrás. O termo que se usa para discutir questões raciais não é uma questão teórica em si, mas como disse Marx: “A disputa sobre a realidade ou não realidade do pensamento que está isolado da prática é uma questão puramente escolástica” (Marx, 1978, p. 156). Portanto, se ainda estamos empenhados em mudar o mundo, e não apenas em interpretá-lo, o termo que utilizamos para transmitir o grande peso do racismo na sociedade tem um significado fundamental. Caso contrário, para quem estamos escrevendo? (Lee, 1976LEE, Alfred Mc Clung. (1976), “Presidential address: Sociology for whom?”. American Sociological Review, 41 (6): 925-36.).

Assim, hoje em dia uso os termos “racismo sistêmico” e “racismo estrutural” como equivalentes. Para mim, a questão é simples. O termo “racismo estrutural” não agrada às pessoas comuns e, como ativista acadêmico, os termos e conceitos devem ser práticos e ajudar-nos a passar de A para B. Apenas sobrepus o meu esquema teórico à noção de “racismo sistêmico”, esperando que a abordagem estrutural e a política que ela implica ganhem mais força.

Em relação ao termo “racismo institucional”, surgido na década de 1960 e popularizado por Stokely Carmichael (mais tarde conhecido como Kwame Ture) e Charles Hamilton em seu livro Black power (1967CARMICHAEL, Stokely (Kwame Ture) & HAMILTON, Charles. (1967), Black power: Politics of liberation in America. Nova York, Vintage Books. Ed. bras.: (2021), Black power: A política de libertação nos Estados Unidos. São Paulo, Jandaíra.), confesso que raramente o utilizo. Embora o termo tenha sido revolucionário na altura em que surgiu e eu tenha mantido alguns dos seus elementos na minha perspectiva estrutural, o conceito tinha algumas deficiências que acredito ter abordado na minha teorização.

Embora o conceito de racismo estrutural tenha ganhado destaque no discurso público no Brasil, ele tem encontrado críticas recentemente. Os defensores frequentemente o empregam para sublinhar a natureza generalizada e universal do racismo no Brasil, enquanto os detratores argumentam que é excessivamente amplo e genérico. Qual a sua perspectiva sobre a aplicação desse conceito em países como o Brasil?

Esta não é uma questão exclusiva do Brasil, pois a mesma polêmica está acontecendo na França, no Reino Unido e em muitos outros países. Em todos esses países, um segmento da intelligentsia, políticos proeminentes e comentadores sociais criticaram a chamada importação de conceitos como racismo estrutural ou sistêmico e antirracismo, bem como a utilização da tradição da Teoria Crítica da Raça. Isto não é surpreendente, uma vez que todos estes lugares geraram versões daquilo que rotulei no meu Racismo sem racistas (Bonilla-Silva, [2003] 2020) como a ideologia racial do “racismo color-blind”, logo, eles não conseguem reconhecer que os seus problemas raciais são sistêmicos. Na França, por exemplo, o proeminente acadêmico Pierre André Taguieff argumentou numa entrevista recente ao Telos que aqueles que usam o termo “antirracismo” no país estavam envolvidos em “racismo antibranco”.

Mas “não se pode tapar o sol com uma peneira”. A ordem racial do Brasil, bem como a do Reino Unido, da França e das nações que jogam a carta da inocência racial, é na verdade mais antiga do que a ordem racial dos Estados Unidos. Como formações raciais, nós, na América Latina, somos pelo menos cem anos mais velhos que os Estados Unidos. O racismo na Europa, bem como no Brasil, Porto Rico, Colômbia, Venezuela, Cuba (sim, o socialismo não substituiu a dinâmica racial histórica desta nação), e cada Estado-nação na região é real e profundo. Dito isto, há duas questões a ter em mente. Em primeiro lugar, aqueles que criticam a utilização do conceito de racismo estrutural nas nossas sociedades preferem geralmente o enquadramento limitado do racismo como preconceito. A resposta à sua visão sobre o racismo - e eles acreditam que a importância do preconceito tem diminuído nas nossas sociedades ao longo dos anos - é simples. Se a raça não importa, por que é que as massas negras nos nossos países estão atrás em quase todos os indicadores sociais? Por que é que as pessoas de cor nas Américas são mais pobres, menos instruídas, mais segregadas e mais propensas a experimentar o sistema de justiça criminal como um sistema de controle social e punição, em vez de um sistema que lhes proporciona segurança? Os fatos da vida nas nossas sociedades indicam claramente que algo sistêmico está produzindo diferenças nos resultados entre brancos e não brancos. A negação não substitui a análise e uma compreensão clara das coisas.

Em segundo lugar, e isto é muito importante - as práticas teóricas, analíticas e empíricas desenvolvidas nos Estados Unidos que utilizamos devem ser destiladas e reformuladas para se adequarem às nossas realidades. Por exemplo, não podemos simplesmente utilizar perguntas de questionário desenvolvidas nos Estados Unidos nos nossos instrumentos sem calibração adequada. Também devemos estar sempre conscientes de que o nosso “racismo estrutural” tem algumas diferenças importantes em relação ao dos Estados Unidos. Estou oficialmente dizendo que é uma pena que as teorias raciais tenham sido desenvolvidas nos Estados Unidos quando, na verdade, as nossas ordens raciais são mais antigas e mais típicas da organização racial em países de todo o mundo. As teorizações raciais teriam sido mais robustas e abrangentes se tivessem surgido das nossas sociedades. É por isso que digo aos meus alunos que, se decodificarmos com clareza e especificidade como a raça estrutura a vida em países como México, Brasil, Peru ou Porto Rico, compreenderíamos melhor o mundo feito pela raça desde 1492.

No Brasil, há um debate contínuo sobre o papel da história da escravidão no país na perpetuação do racismo contemporâneo. Como você percebe os processos de continuidade e transformação do racismo na história dos Estados Unidos e do mundo como um todo?

Este é um grande debate também nos Estados Unidos e está ligado à discussão sobre reparações. É claro que a prolongada escravização dos africanos (e devemos sempre lembrar que o Brasil foi a última nação das Américas a acabar oficialmente com a sua escravatura), bem como a desapropriação de terras e o genocídio cometido contra os povos indígenas foram a base econômica para o desenvolvimento dos nossos Estados-nação. Sem as terras dos povos indígenas e o trabalho dos povos indígenas e dos africanos, os europeus nas Américas teriam perecido. E a “instituição peculiar”, que alguns dos nossos historiadores afirmaram erradamente ser “paternalista” ou “benevolente” na nossa região, não só foi duradoura (cerca de trezentos anos no Brasil), mas continuou em muitas formas. Em Porto Rico, por exemplo, os senhores de escravos eram compensados pela perda de propriedades e os ex-escravos celebravam contratos de três anos com os seus antigos senhores e não tinham direitos políticos. No Brasil, a relação senhor/escravo continuou sem o título, enquanto os brancos continuavam no comando dos fundamentos do sistema político.

Os longos tentáculos do legado da escravidão podem ser vistos claramente em toda a região. Por exemplo, as áreas de hiperconcentração de negros continuam gravemente subdesenvolvidas e foram praticamente abandonadas pelo Estado. Na Colômbia, a costa do Pacífico é claramente muito mais pobre do que o resto do país e está sujeita a formas extremas de exploração por parte de empresas mineiras e madeireiras, bem como à influência nefasta dos cartéis internacionais de tráfico de drogas e de seres humanos. Em Porto Rico as áreas predominantemente negras, como Loiza e os municípios adjacentes, não são tão desenvolvidas como o resto das áreas costeiras e metropolitanas e parecem estar muito atrás do resto do país. Na Costa Rica, cidades da região atlântica, como Limón e Tamarindo, com históricas populações negras e afro-caribenhas, estão anos atrás do nível de desenvolvimento de San José (embora os americanos e europeus brancos ricos estejam a avançar na criação de bolhas de desenvolvimento branco gentrificado). E em toda a região, nas áreas urbanas para onde os negros migraram maciçamente após a abolição da escravatura, eles tendem a concentrar-se em “villas miserias” ou favelas e bairros pobres, onde estão sujeitos à negligência e à hipervigilância do Estado.

Contudo, como cientista social, acredito na necessidade de fazer afirmações historicamente específicas. Argumentei que a nossa situação atual não é apenas um “legado da escravatura”, mas o produto da complexa interação entre o nosso passado racial e o nosso presente racial. Por exemplo, depois do fim da escravatura nos Estados Unidos, suportamos cem anos de Jim Crow. Esse sistema terminou praticamente no final da década de 1960, mas foi substituído pelo “novo racismo”. Caracterizei o novo racismo como o conjunto de práticas e mecanismos raciais pós-Direitos Civis que aparentemente se apresentam como não raciais, onde a “discriminação sorridente” é a nova norma. Por exemplo, no passado, as pessoas negras e pardas foram excluídas dos bairros brancos através de acordos habitacionais, das ações das associações de bairro no Norte e dos Conselhos de Cidadãos no Sul, e pela violência da KKK, das multidões brancas e de indivíduos brancos. À medida que muitas destas práticas se tornaram ilegais e os costumes do país mudaram após o Movimento dos Direitos Civis, surgiram novas técnicas sofisticadas de exclusão. Os corretores de imóveis orientam as pessoas por raça para bairros diferentes, ao mesmo tempo que afirmam que são color-blind, cegos à cor, e que as considerações raciais não importam em seus negócios. Os brancos em algumas localidades também abrem mão da publicidade de suas propriedades que estão à venda e confiam no “boca a boca”. Essa prática garante que suas casas tendam a ser vendidas para outros brancos.

No Brasil, tal como nos Estados Unidos, temos de combater os dois, tanto os legados da escravatura como as múltiplas práticas contemporâneas de exclusão racial. Portanto, como dizem os americanos, podemos “caminhar e mascar chiclete ao mesmo tempo”.

Uma parte significativa da sua carreira foi dedicada ao estabelecimento de instituições como a Associação Americana de Sociologia (American Sociological Association - ASA), onde atuou como presidente de 2017 a 2018. Como você vê o papel político dos sociólogos na luta contra o racismo?

A ASA foi criada em 1905 e fui seu 109º presidente em 2017-2018. Naquele ano, também atuei como presidente da Sociedade de Sociologia do Sul (Southern Sociological Society). Mas antes de servir como presidente dessas duas organizações, eu era uma referência na disciplina, pois tinha feito várias intervenções políticas desde o início da minha carreira. Por exemplo, em 1999, publiquei junto com Cedric Herring um artigo no Footnotes, o boletim informativo da ASA, intitulado “Adoraríamos contratá-los, mas…: A sub-representação dos sociólogos de cor e suas implicações”. Esse artigo gerou muita discussão, pois mostramos que os principais departamentos de sociologia dificilmente tinham professores negros e, mais significativamente, delineamos os mecanismos específicos usados para limitar a probabilidade de serem contratados. Algum tempo depois, publiquei uma carta aberta representando a Seção de Minorias Raciais e Étnicas da ASA, questionando o processo pelo qual um candidato negro que tinha sido aprovado pelo Comitê de Publicações acabou por não ser selecionado como editor da nossa principal revista, a American Sociological Review. Durante a intervenção dos Estados Unidos no Iraque, escrevi um artigo com um colega opondo-nos à invasão e delineando o resultado provável. Curiosamente, a elite sociológica atacou-nos numa declaração assinada por vários ilustrados sociólogos, alegando que não estávamos “qualificados” para fazer comentários sobre este assunto, pois não tínhamos o “conhecimento” necessário. Um ano depois, quando quase todas as nossas previsões se tornaram realidade, tive o prazer de escrever outro artigo intitulado “Estávamos certos!”. Desta vez, não recebemos uma resposta coletiva da elite sociológica.

Assim, acredito firmemente que é possível ser um cientista social sério e parcimonioso e ter uma vida política engajada. A minha posição é semelhante à delineada há muito tempo pelo economista Gunnar Myrdal, autor do clássico livro An American dilemma. No entanto, estou perfeitamente consciente de que alguns acadêmicos acreditam que os cientistas sociais devem ser neutros, imparciais e deixar que os dados e os fatos falem por si. No entanto, historicamente, esta postura objetivista e neutra implicou a defesa do status quo. Os “fatos” nunca falam por si e geralmente devem ser explicados de maneira cuidadosa. Muitas vezes os principais acadêmicos publicam relatórios ou artigos em que sublinham taxas diferenciais de encarceramento por raça ou dados sobre diferenças de Q.I. por raça. Estes “fatos” divulgados ao público sem a devida calibração reforçam as perspectivas racistas sobre o crime e aquela coisa mal definida e ainda pior medida a que chamamos “inteligência”. Esta posição objetivista também permite que os estudiosos escondam as suas políticas e preconceitos. Por exemplo, Max Weber argumentou, em “Objectivity in social science and social policy”, que os cientistas sociais tinham de ser tão claros nos seus métodos “que até um chinês os pudesse compreender”. (Nos últimos quinze anos, os estudiosos examinaram detalhadamente a sinofobia de Weber e o seu sentimento antinegro.)

Meu trabalho, ao contrário do de alguns dos meus colegas, não é escolástico. Estudo o racismo e as formações raciais não apenas para compreender as formas intricadas como a raça é importante, mas porque quero acabar com o impacto pernicioso de todas estas coisas na sociedade. Como um porto-riquenho negro que suporta o racismo em “carne propria”, tanto em Porto Rico como nos Estados Unidos, defendo descaradamente políticas públicas e uma política que façam avançar a bola no terreno racial. Dado que o populismo conservador se tornou uma força social extremamente influente no mundo, não tomar uma posição política pública contra o racismo, o sexismo e as políticas neoliberais desenfreadas é simplesmente injusto.

No Brasil, temos legislação contra o racismo que impõe penas de prisão para atos discriminatórios. No entanto, estas sanções raramente são aplicadas porque os acusados muitas vezes escondem as suas motivações racistas. Como podemos abordar eficazmente o racismo institucional à luz de tais complexidades?

O desenvolvimento de leis antidiscriminação é importante e é um resultado dos movimentos sociais no Brasil, na Colômbia e em outros países da região, como foi o caso dos Estados Unidos. Mas as vitórias legais, por mais importantes que sejam, não são o mesmo que uma mudança prática na forma como as coisas funcionam. Nos Estados Unidos, alcançamos com sucesso a legislação antidiscriminação na década de 1960, mas a base para classificar certos comportamentos como “discriminatórios” baseou-se em ações do tipo Jim Crow. Isto significa que, desde a década de 1970, para que os casos de discriminação racial tenham hipótese de ganhar, as provas devem ser claramente racistas e evidentes (por exemplo, alguém tem de dizer ou fazer coisas que são inequivocamente racistas, como usar a “N-word”). Na prática, dado que a maior parte da discriminação na nova era do racismo se tornou sofisticada, encoberta e aparentemente não racial, a maior parte da discriminação sutil contemporânea não é considerada discriminação pelos tribunais.

Este parece ser o caso também no Brasil, pois acredito que o seu país, assim como outros na região têm a sua versão do novo racismo em vigor. Na Colômbia, onde trabalhei algum tempo como especialista da Fulbright, aprendi que, quando os negros entram em algumas lojas chiques, os balconistas fazem declarações peculiares através dos seus sistemas de PA (por exemplo, “Cinco en la tienda”) para que os funcionários saibam que uma pessoa negra está na loja e que deveriam monitorá-lo. Em Porto Rico, quando voltei ao hotel El Convento, em Old San Juan, depois da meia-noite, durante uma visita há alguns anos, o segurança me parou e perguntou para onde eu estava indo. Eu disse a ele: “Para o meu quarto” e imediatamente perguntei: “Como é que você não impediu minha esposa e meu cunhado que acabaram de entrar?” (Eles são palestinos e provavelmente foram considerados brancos pelos guardas). Em empregos, eles ainda publicitam em muitos anúncios na região que “se require buena presencia”, uma forma codificada de afirmar que estão procurando candidatos brancos ou com aparência branca. Estas novas práticas ajudam a manter o privilégio dos brancos de uma forma aparentemente não racial, uma vez que têm sempre uma negação plausível (“O que há de racista em pedir aos candidatos que tenham buena presencia, visto que o trabalho é como recepcionista num hotel?”).

A questão então nos Estados Unidos, no Brasil e noutros países latino-americanos é a seguinte: como podemos mudar a forma como a lei determina o que conta como discriminação? Precisamos continuar a levar aos tribunais casos que envolvam discriminação sofisticada até que alguns sejam considerados discriminação e as penas adequadas sejam impostas aos perpetradores. Criar precedentes legais sobre este assunto é fundamental! Para fazer avançar esta agenda, iremos envolver muitos procuradores progressistas e antirracistas na apresentação de acusações em casos como os que mencionei acima. O movimento também precisará educar o público e envolver o nosso próprio povo sobre a nova natureza da discriminação. Eu componho os que acreditam que que quanto mais classificarmos como racismo ou nos organizarmos para a ação quando “grandes eventos” acontecem (um exemplo do primeiro nos Estados Unidos é o assassinato de George Floyd, e um exemplo do último no Brasil é a discriminação vivida pelo produtor musical afro-americano H. L. Thompson em um hotel Hilton no Rio de Janeiro em 2022), menos enfrentaremos a maior parte do racismo que encaramos atualmente. Os ativistas e os acadêmicos progressistas devem destacar e ilustrar a natureza mutável da discriminação e o seu impacto fundamental na determinação dos resultados. Se, como sugeri, o Brasil tem uma versão do novo racismo em vigor, é preciso estudá-lo, descobrir suas manifestações em diversas áreas e desenvolver abordagens para combatê-lo. Concentrar-se no monstro antigo pouco fará para eliminar o monstro novo e aparentemente mais amigável. Afinal de contas, o novo e amigável monstro do racismo pode ter um rosto sorridente, mas é em grande parte responsável pelo nosso status de segunda classe.

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  • 1
    . Versão em português traduzida por Gabriel Delphino.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2024
  • Aceito
    12 Maio 2024
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