Resumo
O chamado “paradigma das desigualdades raciais”, inaugurado por Carlos Hasenbalg, respondeu questões decisivas acerca da permanência das disparidades entre negros e brancos no Brasil e pautou novas agendas, desenhos de pesquisa e formas de análise das desigualdades raciais. Este artigo constrói alguns apontamentos críticos à forma de tematização das desigualdades raciais a partir deste paradigma, especialmente ao foco no mercado como esfera de observação, e aponta potencialidades da retomada deste objeto pela sociologia contemporânea das relações raciais, renovada pela perspectiva das interseccionalidades e pela emergência de novas temáticas.
Palavras-chave: Desigualdades raciais; Sociologia das relações raciais; Estratificação; Interseccionalidade
Abstract
The so-called “paradigm of racial inequalities”, inaugurated by Carlos Hasenbalg, answered decisive questions about the permanence of disparities between blacks and whites in Brazil and guided new agendas, research designs and forms of analysis of racial inequalities. This article builds some critical notes on the way in which racial inequalities are thematized based on this paradigm, especially the focus on the market as a sphere of observation, and points out the potential for retaking this research object by the contemporary sociology of racial relations, renewed by perspective of intersectionalities and the emergence of new themes.
Keywords: Racial inequalities; Sociology of race relations; Stratification; Intersectionality
Introdução1
A publicação de Discriminação e desigualdades raciais no Brasil, de autoria de Carlos Hasenbalg (2005), em 1979, é um dos mais importantes marcos da história da sociologia das relações raciais em nosso país, sendo reconhecido como o momento de estabelecimento do “paradigma das desigualdades raciais”. Os trabalhos de Hasenbalg, juntamente com Nelson do Valle Silva, proporcionaram metodologias, descobertas e análises que resolveram importantes contendas no debate sobre desigualdades raciais no Brasil e inauguraram novas linhas de investigação sociológica nesta temática.
É uma marca dos trabalhos destes autores o emprego de abordagens típicas do campo da sociologia da estratificação (Ribeiro, 2018, p. 7), no qual Hasenbalg e Silva figuram igualmente como referências incontornáveis. As desigualdades - um atributo básico de sociedades humanas - como objeto de investigação sociológica têm a sociologia da estratificação como seu principal campo de pesquisa e teorização2. No que tange às desigualdades raciais, em especial, a adoção de abordagens, métodos e desenhos de pesquisa deste campo de pesquisas rendeu enormes desenvolvimentos para investigações, com resultados robustos e precisos que têm sido fundamentais para a justificação das políticas públicas para a população negra, implementadas nas últimas décadas.
Não obstante, este texto pretende apontar algumas limitações das perspectivas e técnicas dos estudos de estratificação para a investigação das desigualdades raciais, que se tornam mais evidentes a partir da consideração da produção mais recente da sociologia das relações raciais, bem como das agendas políticas dos movimentos antirracistas contemporâneos. O foco da crítica aqui desenvolvida incide, principalmente, na excessiva ênfase no mercado (de trabalho, em especial), nas formas de inserção dos indivíduos nele e em desenhos de pesquisa pautados pela mensuração de variáveis mercadológicas. Não se pretende, com isso, sugerir um abandono da observação do mercado ou da utilização das avançadas técnicas de pesquisa quantitativas, mas um alargamento do escopo do que se entende por desigualdade racial e uma diversificação das formas de investigá-la.
No dia 13 de maio de 2021, em meio à pandemia de covid-19 e contrariando uma série de recomendações pelo isolamento, organizações do ativismo negro foram às ruas vocalizando o slogan “Nem bala, nem fome, nem covid. O povo negro quer viver!”. De traz para frente, o bordão remete aos riscos desproporcionais de morte por covid-19 enfrentados pela população negra, ao agravamento da insegurança alimentar, uma antiga mazela da tragédia social brasileira ligada ao retorno da taxa de pobreza a níveis da década de 1990 (Prates et al., 2021), e ao recrudescimento da ocorrência de mortes violentas de pessoas negras, notadamente as mortes de jovens negros por forças policiais. Trata-se de uma série de privações enfrentadas, histórica e estruturalmente, pela população negra, que passa ao largo de debates sobre desigualdades, centrados nas formas de inserção nos mercados. São direitos fundamentais relativos a possibilidades de fruição da própria vida.
Por outro lado, no que concerne à literatura da sociologia das relações raciais, os recentes balanços bibliográficos da produção das últimas décadas (Campos e Gomes, 2016; Barreto et al., 2017; Barreto et al., 2021) apontam uma queda na tematização das desigualdades raciais. Ao passo em que ocorre uma significativa diversificação temática, com crescimento de pesquisas sobre ações afirmativas, políticas públicas, movimentos sociais, relações internacionais, saúde, violência, masculinidades negras e, notadamente, sobre a intersecção entre gênero e raça.
Neste artigo, tratarei, primeiramente, do “paradigma das desigualdades raciais” e seus vínculos com o campo dos estudos de estratificação social; em seguida, apontarei algumas de suas limitações, à luz de tendências recentes da sociologia das relações raciais que nos sugerem a reflexão sobre desigualdades raciais em enquadramentos pautados por referenciais para além do mercado. Termino este texto sugerindo formas promissoras de abordagem das desigualdades que podem ser mais desenvolvidas em investigações sociológicas.
A virada de paradigma na sociologia das relações raciais
O campo da sociologia das relações raciais é um dos mais tradicionais da sociologia brasileira. Seus trabalhos clássicos foram marcados por debates sobre a relação (ou oposição) entre raça e classe. A discussão sobre se as desigualdades e hierarquias da sociedade brasileira seriam devidas a distinções raciais ou de classe social sempre foram centrais para tratar das características da nossa estratificação, do papel e importância da raça na nossa formação nacional, nas relações cotidianas entre os indivíduos e no processo de modernização em nosso país.
Um importante exemplar da primeira geração deste campo de pesquisas foi o trabalho de Donald Pierson ([1942] 1971) que proclamou a sociedade brasileira como uma “sociedade multirracial de classe”. Segundo esta perspectiva, tratar-se-ia de uma sociedade racialmente variada na qual os grupos raciais não chegavam a configurar castas, ou seja, indivíduos competiriam igualmente no mercado e haveria possibilidades de ascensão social para negros.
A geração seguinte tem como marco a obra A integração do negro na sociedade de classes, de Florestan Fernandes ([1965] 1978). Neste momento, são reconhecidas as desvantagens e discriminações sofridas pela população negra, mas elas são explicadas como “arcaísmos do passado”. Com o desenvolvimento do capitalismo e da industrialização, a sociedade brasileira estaria em processo de modernização, e estas disfuncionalidades remanescentes do passado escravista seriam superadas com o avanço da história, na medida em que a população negra fosse integrada ao moderno regime de classes sociais.
Os trabalhos de Carlos Hasenbalg e de Nelson do Valle Silva a partir do final da década de 1970 ensejaram uma mudança de paradigma de interpretação na sociologia das relações raciais ao demonstrarem a permanência (e, até mesmo, o aumento) das desigualdades raciais ao longo do século XX. Ou seja, o capitalismo brasileiro preserva uma estrutura de subordinação da população negra que persiste ao longo do tempo, a despeito da modernização.
Além disso, ambos os autores forneceram uma chave de análise das imbricações entre raça e classe para a reprodução das desigualdades ao longo das gerações, com a teoria do ciclo de desvantagens cumulativas. Esta atenção às vantagens e desvantagens acumuladas pelos indivíduos ao longo das suas trajetórias como definidoras das oportunidades de realização socioeconômica é própria às perspectivas da sociologia da estratificação. Outra particularidade do campo da estratificação trazida por Hasenbalg e Silva diz respeito aos desenhos de pesquisa com aplicação de métodos multivariados de pesquisa quantitativa. Através destes, passou a ser possível distinguir os efeitos da raça daqueles de variáveis relativas à classe e origem social (dentre outras) sobre os resultados de realização socioeconômica. Deste modo, foi possível estimar o quanto das desigualdades seriam decorrentes de discriminações ou outros aspectos relativos à raça em comparação com outros fatores causais, sem, contudo, aprofundar a descrição da própria discriminação ao do racismo. Tais formas de abordagem tornaram-se paradigmáticas, não apenas pelo impacto das descobertas para a sociologia, mas também porque estabeleceram as bases dos estudos sobre desigualdades raciais que doravante se desenvolveram.
Com base no “paradigma das desigualdades raciais”, foi estabelecido que parte significativa das desigualdades entre negros e brancos seria efetivamente racial e não desdobramento das desigualdades de classe, como se aventava até então. Entretanto, argumentaremos mais adiante que, por mais que se tenha demarcado a significância da raça, a classe continuou a ter uma posição de proeminência nas análises. Neste ponto, convém demarcar que a discussão de Hasenbalg ([1979] 2005), pautada por teorias sociológicas sobre os processos de modernização capitalista e industrialização, é ainda guiada por uma preocupação com a formação de uma “sociedade de classes” no Brasil e com a integração da população negra nesta. Em contraste com autores mais recentes que pautam a construção social da raça (Quijano, 2005) ou do gênero (Federici, 2017) como parte dos fundamentos da formação da modernidade capitalista.
A sociologia da estratificação
Carlos Costa Ribeiro (2018), em seu lapidar levantamento das contribuições de Hasenbalg e Silva para a sociologia brasileira, apregoa:
As contribuições de Hasenbalg e Valle Silva se deram principalmente por sua filiação aos estudos de estratificação e mobilidade social, que é internacionalmente reconhecida como uma das principais áreas de pesquisa empírica quantitativa na sociologia (p. 19).
A sociologia da estratificação representa um campo de pesquisa coeso, consolidado e que exibe constantes avanços. Em balanço bibliográfico dos estudos recentes da área, Ribeiro e Carvalhaes (2020) destacam, por exemplo, o “caráter cumulativo das pesquisas, a sofisticação da relação entre desenhos de pesquisa e teoria, a atualização constante dos recursos técnicos mobilizados e o permanente escrutínio crítico”. Os autores afirmam ainda que esta deveria servir de exemplo para outras áreas de especialização da sociologia.
As pesquisas sobre estratificação descrevem os aspectos das desigualdades e buscam explicar sua persistência a despeito dos valores igualitários modernos. A história da teoria da estratificação é, em grande parte, a história dos debates sobre os contornos das hierarquias de classe, status e prestígio nas sociedades industriais avançadas. Não obstante o reconhecimento do caráter multidimensional das desigualdades, a referência às classes sociais é onipresente nos debates deste campo: as principais teorias sociológicas caracterizam os sistemas de estratificação através de classes discretas ou estratos cujos membros são dotados de níveis similares de ativos ou recursos. É recorrente o emprego da expressão “análise de classe” para designar a própria investigação realizada pelos autores deste campo. Guimarães (1999) aponta que a chamada análise de classe propõe que a classe social seja o fundamento da explicação e interpretação da estrutura social e suas transformações, uma dimensão holística na estruturação da desigualdade. Devemos notar, contudo, que predomina um uso bem específico do conceito de classes sociais, que esmiuçamos a seguir.
Apesar de haver significativa diversidade nos referenciais teóricos e empíricos dos estudos contemporâneos de estratificação, prevalecem as abordagens chamadas de neomarxistas e neoweberianas. Ambas se caracterizam pela elaboração de esquemas de posições sociais, ou melhor, sistematizações de categorias delimitadas e hierarquizadas segundo os critérios determinados pelas respectivas filiações teóricas. Tanto os neomarxistas como os neoweberianos tomam o mercado de trabalho como foco observacional para a localização das classes.
São delimitados conjuntos de posições na estrutura produtiva e no mercado de trabalho, e posições suficientemente comuns entre si (que contrastam com outras) são identificadas com o intuito de apontar o grau de poder social dos indivíduos que nela se inserem. Assim, são elaborados esquemas de posições de classe enquanto categorias ocupacionais, visando captar as divisões produzidas pelo mercado e pelo processo produtivo e o impacto delas sobre fenômenos sociais diversos (Ribeiro e Carvalhaes, 2020, p. 5).
Uma das grandes preocupações dos autores era constituir esquemas de classes que fossem operacionalizáveis em pesquisas empíricas com dados quantitativos. Daí resultaram grandes avanços baseados na sofisticação instrumental, mas com sacrifício de discussões teóricas mais aprofundadas e da incorporação de dimensões que escapam à abordagem dos esquemas de posições sociais3.
As elaborações destes esquemas supõem a existência de certos bens considerados como socialmente valiosos ou desejáveis, vinculados a determinadas posições sociais. Ou seja, ocupar uma dada posição social implicaria o acesso a um “pacote” destes bens. A definição deste “pacote de bens” varia segundo distintas tradições teóricas, mas, em geral, inclui propriedade, rendimentos, status, conhecimentos, círculos de sociabilidade etc. A desigualdade é estudada a partir da alocação diferencial de indivíduos nestes esquemas posicionais, ou esquemas de estratificação social. As classes são, então, entendidas como categorias posicionais destes esquemas que representam as posições ocupacionais hierárquicas atreladas a conjuntos de bens socialmente valorizados, sintetizando, assim, diferentes dimensões das desigualdades.
Eric Olin Wright, no balanço conclusivo de seu Approaches to class analysis (2005), distingue, dentre um conjunto de referenciais salientes nas diferentes elaborações do conceito de classe social, o de chances de vida como aquele que tem presença mais constante nas diferentes abordagens. Aparentemente muito ampla, tal noção tem uma acepção muito específica: trata-se das diferentes chances de um indivíduo acessar bens, recursos e ativos socialmente desejáveis e escassos, portanto valorizados no mercado e restritos a determinadas posições socioeconômicas. Nesse sentido, membros de uma mesma classe comungariam de semelhantes chances de vida. Assim, segundo a ideia de chances de vida, a classe é entendida como determinante das oportunidades de acesso a recursos (que podem incluir, segundo a abordagem empregada, uma ampla gama, como posições no mercado de trabalho, ativos geradores de renda ou outros ativos econômicos, credenciais educacionais, recursos culturais, simbólicos etc.), que moldam suas oportunidades, estratégias e realizações na vida. Ou seja, em uma lógica circular, a posição de classe de origem de um indivíduo contribui para definir as oportunidades de realização de posicionamento de classe, e os recursos para tal realização coincidem com o “pacote” de bens socialmente desejáveis. Ou, segundo o próprio Olin Wright, “what you have determines what you get” (2005, p. 186).
A distribuição das chances de vida ocorre na esfera do mercado, de acordo com recursos acumulados pelos indivíduos ao longo de seus ciclos de vida (como propriedades, recursos materiais, educação, habilidades e outros ativos), havendo também a interferência dos chamados atributos adscritos, como raça e gênero. Assim, os estudos questionam em que medida indivíduos com origem em variadas posições sociais teriam oportunidades iguais de acumular recursos para competir no mercado e, portanto, mudar de posição. Ou seja, as chances de vida estão atreladas não só a uma ideia normativa de igualdade de oportunidades, como também a uma noção liberal de subjetividade que preconiza indivíduos (abstratos) universalmente iguais que competem no mercado portando ativos e recursos acumulados ao longo da vida4. Deste acúmulo de recursos resulta sua posição na estratificação. Há, portanto, uma universalização de uma ideia de classe advinda do acúmulo de recursos para competição no mercado enquanto principal eixo estruturante da constituição das desigualdades. As pesquisas averiguariam, então, os montantes de recursos acumulados pelos indivíduos e em que medida estes teriam oportunidades equânimes nesta competição. Convém ressaltar que as desigualdades, tal como concebidas neste esquema, restringem-se a desigualdades averiguáveis (mensuráveis) na esfera do mercado, daí o forte enfoque no mercado de trabalho dado por estes estudos.
Em consonância com tais referenciais, pesquisas do campo de estratificação social, ou com forte vinculação a este, têm logrado análises rigorosas, com o emprego de sofisticadas técnicas estatísticas, daí resultando grande prestígio acadêmico e impacto no debate público (e na proposição de políticas públicas). Alguns exemplos são: as principais mudanças sociais das últimas décadas (Arretche, 2015), a queda da desigualdade de renda no início no século XXI (Souza e Carvalhaes, 2014), o peso dos 1% mais ricos na manutenção das desigualdades (Medeiros, Souza e Castro, 2015), a existência da propalada “nova classe média” (Scalon e Salata, 2012), os impactos da expansão educacional e da maior diversidade no ensino superior (Brito, 2017; Carvalhaes e Ribeiro, 2019), segregação residencial por raça e classe (França, 2022) etc. No que tange à questão racial, estas pesquisas têm apontado que as desvantagens educacionais configuram uma dimensão crítica para a inserção de negros no mercado e que as desigualdades entre negros e brancos são especialmente pronunciadas quando observamos estratos sociais médios e altos, revelando barreiras para a ascensão social de negros (Ribeiro, 2006; Osório, 2009). Tais resultados de pesquisas tiveram papel bastante relevante para a justificação das ações afirmativas no ensino superior, bem como para a implementação de cotas no serviço público e as mais recentes iniciativas de fomento à diversidade nas empresas privadas.
Os limites do mercado
Nesta seção, construirei uma crítica aos limites do escopo da sociologia da estratificação, com enfoque nos sujeitos que não são ou são apenas parcialmente incorporados nos estudos de estratificação. Mais precisamente, quais (ou quanto de) desigualdades não são verificadas e quais sujeitos não são incluídos nos modelos. Trata-se, aqui, de apontar os problemas advindos de se assumir o mercado e a esfera pública como principais arenas de manifestação e investigação das desigualdades.
A maior parte dos desenhos de pesquisas tomam o mercado de trabalho e, portanto, o emprego, como esfera de observação das desigualdades sociais, bem como ocupação e renda do trabalho como principais variáveis dependentes, num contexto como o brasileiro no qual grande parcela da população possui vínculos de trabalho informais, intermitentes ou precários. A literatura de estratificação reconhece esta insuficiência, como podemos notar nos encaminhamentos desta problemática realizados por Carvalhaes (2015).
O principal ponto levantado como estruturador das classes é o mercado de trabalho e como as pessoas nele se inserem. Essa simples afirmação não é trivial para o contexto brasileiro e latino-americano. Incapaz de expandir as relações salariais para um contingente significativo da população, o modelo de desenvolvimento de nosso e de outros países do continente é marcado por significativas clivagens, sendo uma das principais o eixo formalidade × informalidade […]. Sobreposto a essa situação, ainda há um intenso processo de desemprego recorrente para significativas parcelas da população, apresentando características específicas que são capazes de se posicionar no mercado de trabalho apenas de forma intermitente e provisória […] ou então recorrendo a processos de intermediação do trabalho que impõem sérios limites à interpretação clássica do estabelecimento dos vínculos no mercado de trabalho […] (Carvalhaes, 2015, p. 681).
Em seu artigo, contudo, Carvalhaes (2015) argumenta, com algumas ressalvas, pela eficácia dos esquemas de categorias sócio-ocupacionais como metodologia de diagnóstico das desigualdades na sociedade brasileira. Por outro lado, Barbosa (2023), em sua defesa de um maior engajamento sociológico no estudo das desigualdades de renda, aponta falhas dos esquemas de classe para a explicação das desigualdades de rendimentos, concluindo que “disparidades expressivas permanecem mal compreendidas mesmo quando comparamos indivíduos que, a princípio, ocupariam as mesmas posições estruturais” (Idem, p. 7).
Deve ser ponderado, contudo, que, dado que estamos criticando uma abordagem das desigualdades que tem o mercado de trabalho como referência, a proposta de Barbosa (2023) de centrar a averiguação sociológica das desigualdades na variável renda é bem-vinda como um grande avanço, na medida em as análises podem incluir uma série de rendimentos não oriundos do trabalho. Não obstante, a crítica aqui pretende ir mais além ao incluir questionamentos àquilo que é definido como trabalho, bem como aos próprios limites do mercado.
Há tempos os estudos de gênero têm problematizado as divisões entre esfera pública e privada e, mais especificamente, criticado a diferenciação entre trabalho produtivo - remunerado, valorizado e exercido na esfera pública - e trabalho reprodutivo - majoritariamente não remunerado, pouco valorizado e realizado preponderantemente na esfera doméstica (Delphy, 2015; Biroli, 2018). Tal problematização, além de colocar em pauta as distinções entre as noções de trabalho e emprego, recai de forma contundente em nossa discussão sobre os estudos de estratificação.
Estudos sobre desigualdades com foco na população ocupada desprezam uma parcela de quase metade da população (em idade ativa, ou seja, teoricamente apta a participar de atividades econômicas) que está fora da força de trabalho, na qual há forte sobrerrepresentação de mulheres negras. Essas pessoas são classificadas como inativas (isto é, não participam da atividade econômica), segundo os termos técnicos das pesquisas amostrais e censitárias, apesar de em grande parte desempenharem trabalhos domésticos, de cuidado e/ou não remunerados.
A crise econômica decorrente da pandemia de covid-19 reforçou este quadro com um salto na taxa de inatividade (de 39% para 45%) e queda na taxa de ocupação para menos da metade (ou 47%) da população (em idade ativa) (Corseuil et al., 2021), percentuais que remontam às décadas de 1960 e 1970 (Guimarães, Barone e Brito, 2015). Em 2019, imediatamente antes do contexto da pandemia, do total de inativos, 14,5% eram homens brancos, 20,5% homens negros, 28% mulheres brancas e 37% mulheres negras.
Ademais, estudos sobre desigualdades que têm como universo a população ocupada tornam-se especialmente problemáticos num contexto histórico pós “sociedade salarial”, no qual se verifica um crescimento mundial do trabalho precário e de mercados informais (Castel, 2015). A noção de “sociedade salarial” tem sido pautada por autores da sociologia do trabalho (como, por exemplo, Braga, 2017) como uma norma político-social na qual o Estado atuaria como mediador dos conflitos do capitalismo, ao promover proteção trabalhista vinculada à ampliação de direitos sociais, representando a figura do trabalhador formal um ideal de cidadão integrado; isto é, vislumbra-se uma promessa da inclusão social via trabalho subjacente à sociedade salarial. No Brasil, a constituição histórica dessa “sociedade salarial” foi não apenas tardia como errática (Cardoso, 2010). Presentemente, em um cenário econômico mundial pós reestruturação produtiva, há uma perspectiva de recrudescimento da crise da sociedade salarial, com significativa redução do número de empregos qualificados, empurrando os trabalhadores para ocupações desprotegidas, sub-remuneradas, informais e inseguras, chanceladas por mudanças em legislações (Cardoso e Azais, 2019).
Embora o trabalho e os direitos sigam exercendo papéis centrais no mundo das práticas sociais, o conflito social se situa hoje representado centralmente na expansão e progressiva tematização da “violência urbana”, das “drogas” e da “marginalidade”, que constroem sujeitos por definição não integráveis (Feltran, 2014, p. 496).
As análises contemporâneas acerca da “questão social” (Telles e Cabanes, 2006, por exemplo) têm dado forte ênfase em debates sobre ilegalidades e violência, chamando atenção para temas como a agudização da insegurança, a disseminação do armamentismo e da militarização, a ampliação do encarceramento, a criminalização da pobreza e a violação de direitos civis. Nesta constelação temática são preponderantemente negras as vítimas, bem como a representação e estigmatização dos “sujeitos não integráveis”. Neste ponto, convém arrematar a presente seção com a delimitação do mercado proposta por Barbosa (2023):
O lastro do dinheiro, da renda e dos mercados é a ampla confiança social nos Estados-Nação, que garantem as moedas e as instituições reguladoras. O avanço dos Estados e dos mercados é também o avanço do dinheiro como prerrogativa, mesmo entre anônimos. O tipo ideal do “mercado” é o modelo de relação social aberta, na qual nenhuma barreira de entrada estaria estabelecida com base em critérios adscritivos. No entanto, pode-se argumentar que, mesmo neste tipo puro, há barreiras de entrada, pois quem não possui a contraparte da troca não pode participar da relação (p. 4).
Ou seja, a possibilidade de uma integração ao mercado5 requer, antes, um reconhecimento pleno de uma prerrogativa de cidadania e de igual condição de humanidade, nos levando a questionar fundamentos das desigualdades que precedem ao mercado6.
Além do mercado, ainda no paradigma? Propostas advindas de Hasenbalg e Silva
Os trabalhos de Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva nos propõem, também, uma série de caminhos e campos de análise para investigações da constituição das desigualdades raciais para além do mercado. Iniciemos esta seção atentando para uma longa citação de Hasenbalg, que nos oferece importantes pistas.
[…] isso nos leva a colocar o problema em termos do papel da raça na alocação de pessoas a posições sociais e das oportunidades diferenciais de mobilidade social vertical dos dois grupos raciais.
[…] como resultado da discriminação do passado, cada nova geração de não brancos está em posição de desvantagem porque se origina desproporcionalmente de famílias de baixa posição social. Mas, em acréscimo a isso, […] a filiação racial deverá interferir tanto nos processos de acumulação de (des)vantagens pelos filhos quanto em suas subsequentes carreiras como adultos. Isso implica que mesmo controlando pela posição social das famílias de origem, filhos de pais não brancos acumularão menos recursos competitivos que os filhos de pais brancos - incluindo níveis de habilidade, educação e aspirações e a própria adscrição racial. Por outro lado, uma vez que uma geração nova ou coorte de idade inicia o ciclo de vida adulta, o racismo e a discriminação racial continuarão a interferir no processo de mobilidade intrageracional, de tal forma a restringir as realizações dos não brancos, relativamente aos brancos da mesma origem social. […]
Além dos efeitos diretos do comportamento discriminatório, uma organização social racista limita também a motivação e o nível de aspirações dos não brancos. Quando são considerados os mecanismos sociais que obstruem a mobilidade social ascendente das pessoas de cor devem ser acrescentados às práticas discriminatórias dos brancos - sejam elas abertas ou polidamente sutis - os efeitos de bloqueios resultantes da internalização, pela maioria dos não brancos, de uma autoimagem desfavorável. A forma complexa como esses dois mecanismos funcionam e se reforçam mutuamente leva normalmente negros e mulatos a regularem suas aspirações de acordo com o que é culturalmente imposto e definido como o “lugar apropriado” para as pessoas de cor (Hasenbalg, [1979] 2005, pp. 208-209).
No excerto acima, Hasenbalg parte de um léxico muito típico da sociologia da estratificação na formulação do problema: “papel da raça na alocação de pessoas a posições sociais e das oportunidades diferenciais de mobilidade social vertical”. Em seguida, visando a explicação para a permanência da maior parte da população negra em posições sociais mais baixas e da persistência das barreiras à mobilidade, o autor coloca algumas hipóteses muito promissoras que, ainda hoje, carecem de maior aprofundamento na investigação sociológica. Cada nova geração tem um ponto de partida marcado por uma série de (i) desvantagens herdadas; esta desigualdade inicial terá o acréscimo do (ii) acúmulo de desvantagens no ciclo de vida que é transmitido às gerações subsequentes (“mesmo controlando pela posição social das famílias de origem, filhos de pais não brancos acumularão menos recursos competitivos que os filhos de pais brancos”); este ciclo intergeracional de desvantagens cumulativas é alimentado pela (iii) discriminação racial e pela (iv) regulação de aspirações que afligirão os sujeitos não brancos.
Os potenciais inexplorados do estudo da discriminação são objeto de aprofundamento do artigo de Luiz Augusto Campos, presente neste dossiê. Portanto, nos deteremos um pouco mais aqui no acúmulo de desvantagens no ciclo de vida e na questão da regulação das aspirações. Esta última hipótese, assaz auspiciosa, que foi a mais negligenciada pela sociologia das relações raciais desde então (uma exceção notável é o trabalho de Jesus, 2006), pode ser ainda mais frutífera se articulada com algumas abordagens em ascensão na produção sociológica contemporânea.
Hasenbalg introduz a hipótese da regulação de aspirações com uma formulação - “uma organização social racista limita também a motivação e o nível de aspirações dos não brancos” - que pode ser lida à luz dos debates recentes em torno do racismo estrutural. Isto é, uma estrutura social racista implica a constituição de subjetividades racializadas. Nas palavras de Silvio Almeida:
A ênfase da análise estrutural […] concebe [os sujeitos racializados] como parte integrante e ativa de um sistema que, ao mesmo tempo que torna possíveis suas ações, é por eles criado e recriado a todo momento. […] a vida cultural e política no interior da qual os indivíduos se reconhecem enquanto sujeitos autoconscientes e onde formam os seus afetos é constituída por padrões de clivagem racial inseridos no imaginário e em práticas sociais cotidianas (Almeida, 2019, p. 34, 42).
Essa concepção da formação de subjetividades como parte de uma estrutura racista também é premissa dos estudos sobre branquitude que visam a descrever a “experiência da ideia de raça na constituição do próprio sujeito [branco]” (Schucman, 2014, p. 84); também pode ser intuída a partir das assertivas de Hasenbalg ([1979] 2005) quando este menciona a “autoconfiança […] decorrente de formar parte de um grupo que goza de supremacia estrutural” (p. 205).
O ciclo intergeracional de acúmulo de desvantagens, por sua vez, tem sido objeto de muitas pesquisas sobre desigualdades raciais. Quero dar ênfase, aqui, ao aspecto contextual da herança das desvantagens e especialmente a dimensões em torno do ciclo de vida que são críticas para a constituição das desigualdades raciais, mas que não (necessariamente) estão atreladas ao mercado. A importância destas dimensões é indicada em diversas passagens da coletânea Origens e destinos, organizada por Hasenbalg e Silva (2006), aquele com menor ênfase em desigualdades raciais dentre os livros publicados por ambos. O projeto visa um diagnóstico das “desigualdades na distribuição das diversas dimensões do desenvolvimento social” em capítulos “ordenados numa sequência que reflete as etapas da transmissão das desigualdades sociais entre gerações ao longo do ciclo de vida individual e familiar” (p. 22).
Os capítulos abordam temas como: o aumento da expectativa de vida e a queda da mortalidade infantil associados à condição nutricional, habitacional, saneamento e educação; capital social operacionalizado a partir do tamanho e das formas de organização das famílias; situação da primeira infância, saúde e sobrevivência de menores de cinco anos; impactos da maternidade adolescente no quadro das desigualdades; interesse de jovens pela afirmação da negritude vinculada a demandas de cidadania e percepções de privação; impactos dos homicídios na pirâmide etária e na expectativa de vida da população e suas consequências para as experiências familiares; seletividade marital em sua articulação com a reprodução das desigualdades.
Gostaria de salientar aqui a presente vitalidade dos debates sobre violência e saúde na sociologia das relações raciais. É interessante, neste ponto, aludir à bibliografia sobre desigualdades raciais em acesso à saúde, adoecimento e mortalidade infantil (Chor, 2013; e Li et al., 2021), nas políticas públicas de saneamento, com foco no emprego do conceito de “racismo ambiental” (Santos e Jesus, 2023), e a estudos que dão destaque à própria ação do Estado como indutor dessas desigualdades (Reinehr, 2019; Werneck, 2016).
A violência é um tema em expansão na sociologia das relações raciais (Barreto et al., 2021), da mesma forma que se verifica a chamada virada antirracista na sociologia da violência (Sinhoretto e Morais, 2018). A isso se soma o fato de o “genocídio da juventude negra” tornar-se uma pauta inescapável do ativismo e, consequentemente, das preocupações estatais (Ramos, 2021). Os estudos sobre violência, ao recorrentemente apontar a desproporcional vitimização de jovens negros, têm descortinado uma dimensão brutal das desigualdades que passa ao largo dos estudos de estratificação. Cerqueira e Moura (2014), por exemplo, estimam os impactos da letalidade violenta para as taxas de expectativa de vida de homens negros. Muitos nem mesmo vivem o suficiente para participar do mercado de trabalho.
Tais linhas de pesquisa nos impelem a reflexões que vão além das desigualdades de oportunidades, dizem respeito às severas desigualdades raciais no que se refere ao risco de morte precoce: por questões de saúde ou de violência. Esse risco de morte não é considerado pelas mensurações das chances de vida, mas fatores como estes certamente geram importantes impactos sobre os ciclos de acúmulo de desvantagens.
Assim, desigualdades objetivadas através da investigação das condições de existência dos indivíduos no mercado podem ser distorcidas pela falta de acesso ou pelas formas precárias de vínculo com o mercado, mas, principalmente, por privações no acesso a condições básicas de fruição da vida. Assim, se o modo de incorporação de gênero e raça nos estudos de estratificação pode colocar em evidência a segregação ocupacional ou a discriminação salarial, ilumina pouco sobre a divisão sexual do trabalho doméstico ou sobre a especial vulnerabilidade de homens negros à violência. Tratar raça a gênero como eixos estruturantes, mais do que adendos, requer uma real incorporação de esferas que não o mercado na constituição das desigualdades.
Interseccionalidade contra a proeminência da classe
Os estudos de estratificação têm operacionalizado as dimensões de raça e gênero em seus modelos, averiguando em que medida impactariam as chances de vida em comparação com variáveis que operacionalizam outros ativos e recursos, como educação, classe de origem etc. Os desenhos de pesquisa, ao buscarem apontar os efeitos diferenciais de classe, origem social, raça, gênero etc. sobre os resultados de realização socioeconômica, suscitam análises que, em sua maioria, não aprofundam a imbricação destes distintos marcadores, ou seja, em que medida a raça participa da construção social da classe etc.
Além disso, há um entendimento de que existiria um eixo estruturante de estratificação - aquele que determina as chances de vida segundo recursos adquiridos ao longo da vida (como realização educacional ou experiência de trabalho) -, e as variáveis de raça e gênero mensurariam discriminações que deturpam a competição entre os indivíduos descorporificados (abstratos) no mercado. Assim, as diferenças exógenas ao mercado são reduzidas e sintetizadas na mensuração da discriminação. Gênero e raça como “variáveis adscritas” representariam deformidades que distorcem o “processo tal como deveria ser”.
Ao se reduzirem tais dimensões a uma medida de discriminação7, são desconsiderados todos os processos históricos e contextos sociais envolvidos na construção social da raça e do gênero. Isso quer dizer que não se trata de consideração da raça e do gênero como eixos específicos estruturantes, mas de sua subordinação como acessórios do eixo de estratificação de classe. A crítica à hierarquização de eixos de estruturação de desigualdades, incluindo-se aí a subordinação de todos os outros à classe, é um dos pontos de partida das perspectivas interseccionais. Dentre os principais objetivos da interseccionalidade, destacam-se a necessidade de dar conta de um conjunto variado de opressões sem hierarquizá-las e o reconhecimento da impossibilidade de separar opressões que não são unicamente raciais, sexuais ou de classe (dentre várias outras possíveis)8.
A noção de interseccionalidade foi enunciada pela primeira vez por Kimberlé Crenshaw em 1989, visando a evidenciar as múltiplas dimensões de opressão sofridas por trabalhadoras negras9. As experiências das trabalhadoras negras não seriam suficientes nem adequadamente analisadas por uma perspectiva centrada apenas na raça (nas condições da população negra), nem no gênero (nas condições da mulher). A proposição de Crenshaw reverbera críticas veiculadas principalmente pelas feministas negras (mas não só) ao feminismo (mas também aos movimentos negros) (Collins, 2015). Trata-se de revelar a multiplicidade de experiências de sexismo vividas por diferentes mulheres e a existência de posições sociais que não sofrem de marginalização ou discriminação por corporificarem a própria norma, como a masculinidade, a heteronormatividade ou a brancura. Isso implica também que a dominação masculina negra deve manifestar formas distintas da dominação masculina branca e que os homens negros não alcançam os benefícios do patriarcado branco. Assim, a perspectiva interseccional conclama uma especial atenção às diferentes formas de dominação, à diversidade de categorias da diferença com suas variações internas, as dinâmicas de produção das categorias e, principalmente, as interações entre elas (Hancock, 2007; Vigoya, 2016; Collins, 2019).
Assim, levar em consideração as intersecções implica compreender que elementos de gênero participam da construção social da raça, e vice-versa, e que ambos participam da construção social da classe, e vice-versa10. O gênero cria classe quando as diferenças de gênero produzem estratificações nas relações de trabalho11. Ou então, representações de gênero são utilizadas para reforçar as construções sociais de raça, como quando os homens negros são hipermasculinizados, ou inversamente, como quando hierarquias entre feminilidade e masculinidade são criadas com base em critérios raciais (Vigoya, 2016). Diferentes eixos de relações sociais de dominação se constroem reciprocamente12.
Esta perspectiva impõe desafios significativos aos estudos de estratificação, na medida em que propõe a superação da conceituação aritmética das desigualdades como resultado da convergência, fusão ou adição de diferentes critérios de discriminação contra as mulheres. Soa excessivamente simplificadora a visão de que o capital disponível para mulheres e homens que entram neste “mercado” seja avaliado como o produto da soma de suas diferentes fontes de status, em uma escala unidimensional de valor. Ao contrário, devem-se incluir as articulações, intersecções e efeitos mútuos entre suas diferentes propriedades de gênero, classe e raça.
Podemos vislumbrar, então, uma perspectiva construtivista da estratificação, atenta a relações de poder articuladas e a processos classificatórios e de estabelecimento de fronteiras e de diferenciações sociais, as classes, raça e gênero como coletividades construídas através de práticas interseccionais de classificação e identificação social (Yuval-Davis, 2011). Mesmo trabalhos clássicos do “paradigma das desigualdades raciais” nos oferecem pistas nesse sentido. Por exemplo, Nelson do Valle Silva (1994) em “Uma nota sobre ‘raça social’ no Brasil” mostra, por exemplo, os impactos da posição socioeconômica para a classificação dos indivíduos segundo raça/cor. Indivíduos de posição social mais alta são clareados no momento da heteroidentificação: “as evidências aqui coletadas apoiam a ideia de que, no Brasil, não só o dinheiro embranquece, como, inversamente, a pobreza também escurece”13. O autor conclui que isso deve gerar variações na própria mensuração do efeito da raça nas desigualdades. Ambas as assertivas são verificadas em estudo mais recente de Leonardo Silveira (2019). Porém, as diferenças regionais impactam ainda mais nos modos de classificação racial.
À guisa de conclusão: alternativas empíricas
Precedendo quaisquer desigualdades de acesso à renda, ocupação ou outros ativos de mercado, antepõem-se dimensões mais fundamentais que incidem nas chances de vida, em seu sentido literal, isto é, são desiguais as possibilidades de viver. O que está em pauta é o reconhecimento de desigualdades não contempladas pelos estudos de estratificação e que demonstram que a vulnerabilidade social é, antes de tudo, corporal. A vulnerabilidade dos corpos é uma condição estruturante na existência e na atribuição de posições na sociedade, apartando vidas mais ou menos vivíveis. E esta é uma dimensão especialmente sensível para mulheres e negros (bem como outros grupos minorizados que não correspondem à norma cis, heteronormativa, patriarcal e branca). As desigualdades constatadas através do escrutínio das dimensões mercadológicas revelam um retrato muito parcial diante da evidência das desiguais oportunidades de fruição dos direitos humanos mais fundamentais.
Desta feita, à guisa de conclusão, aponto para a necessidade do desenvolvimento teórico e empírico de pesquisas sobre desigualdades de raça, gênero e classe (evitando a hierarquização entre estes eixos) que incorporem as chances de vida em seu sentido literal, mas sem abrir mão dos refinados avanços metodológicos trazidos pela perspectiva da estratificação.
Um exemplo de definição de desigualdade com escopo mais ampliado pode ser encontrado em Therborn (2011). Cabe, aqui, uma citação mais extensa:
Que tipos de igualdade são necessários para que cada um de nós seja humano em igual medida, com todos os nossos diferentes físicos e os nossos diferentes interesses e valores? Igualdade de capacidade [capability] para fazer as coisas que queremos é a resposta de Sen […] mas é demasiado filosófica para ser um alvo útil de investigação empírica e de políticas de mudança. […] podemos derivar três tipos de desigualdade: (1) Desigualdade vital, referindo-se às oportunidades de vida desiguais socialmente construídas dos organismos humanos. Isto está a ser estudado através da avaliação das taxas de mortalidade, esperança de vida, esperança de saúde (anos de vida esperados sem doenças graves) e vários outros indicadores de saúde infantil, como o peso à nascença e o crescimento corporal até uma determinada idade. Pesquisas sobre a fome também são utilizadas.
(2) Desigualdade existencial das capacidades ou graus de liberdade atribuídos às pessoas. […] várias das suas manifestações já foram e estão a ser estudadas: as mulheres reprimidas e confinadas pelo patriarcado e pelo sexismo, os povos colonizados pelos colonizadores, os imigrantes e as minorias étnicas, as pessoas com deficiências e deficiências, os homossexuais pelos heterossexuais intolerantes, as castas “poluentes” pelos superiores, castas, ocupantes dos escalões inferiores da maioria das hierarquias. Exemplos não faltam. E todos eles se referem a alocações desiguais de autonomia, reconhecimento e respeito pessoais, a negações de uma igualdade existencial das pessoas humanas. […]
(3) Desigualdade de recursos proporcionando aos atores humanos recursos desiguais para agir (Therborn, 2001, pp. 17-18).
Sugiro também a exploração de novas variáveis dependentes para a mensuração das desigualdades, com especial destaque para a variável tempo: os tempos das vidas de cada sujeito, como eles são utilizados e quanto eles são socialmente valorizados. Este enfoque no tempo pode ser encontrado em propostas teóricas vinculadas à chamada virada da mobilidade na teoria social (Vidal e Silva, 2023), mas também em diversos desenvolvimentos empíricos recentes. Em especial, pesquisas acerca de desigualdades de gênero que tratam dos tempos de trabalho doméstico e/ou não pago versus trabalho pago (Pinheiro e Medeiros, 2019). Fontoura et al. (2010) ressaltam, inclusive, uma crescente incorporação de questões acerca de usos do tempo em pesquisas amostrais nacionais do IBGE, em grande parte devida a demandas por partes de necessidades dos estudos sobre desigualdades de gênero14.
O foco no tempo permite a consideração de novas dimensões das desigualdades na medida em que, por um lado, está relacionada a dimensões caras ao debate da estratificação, que chamarei aqui de valor de troca do tempo, mas, principalmente, os estudos de usos do tempo nos possibilitam considerar o valor de uso do tempo. Trindade e Pavan (2022), ao tratarem da segregação entre diferentes grupos de classe, raça e gênero no espaço urbano, apontam, por exemplo, que classes mais altas “perdem menos tempo”, ao passo que mulheres negras trabalhadoras moradoras de periferias com dupla jornada “perdem mais tempo” e são menos recompensadas por essa perda15.
[…] a segregação urbana cria diversos obstáculos para que as classes populares encontrem tempo no seu cotidiano para se dedicar a outras atividades que não o trabalho e as tarefas gerais relacionadas à reprodução social (Trindade e Pavan, 2022, p. 8). (citação)
A estes tipos de usos do tempo, os autores contrastam usos do tempo relativos a encontros, trocas e formas de fruição da vida não determinadas pelas demandas econômicas e mercadológicas. Aqui, a ideia de chances de vida pode ser pensada como “chances de vida boa”16, “chances de vida livre” ou “chances de vida justa” etc. Outra vantagem de estudos sobre desigualdades com foco nos usos do tempo é o fato de esta modalidade de pesquisa fornecer material muito profícuo para análises sobre as diferenciações de gênero, raciais e de classe nos usos, apropriações e valorações do tempo, favorecendo discussões mais aprofundadas sobre a construção social destes marcadores, papéis e formas de hierarquização. Bons exemplos desta abordagem têm sido desenvolvidos no campo dos estudos de gênero (por exemplo, Fontoura e Araújo, 2016).
Este texto elaborou considerações críticas sobre o modo como o campo dos estudos de estratificação tem abordado o objeto de investigações desigualdades raciais. Esta forma de abordagem tornou-se preponderante graças a inovações e descobertas introduzidas na sociologia das relações raciais por Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva. Contudo, tanto produção recente da sociologia das relações raciais quanto o debate público contemporâneo sobre as questões raciais têm chamado atenção para importantes dimensões das desigualdades raciais não contempladas pela abordagem da estratificação. A perspectiva da interseccionalidade tem promovido críticas à ênfase na dominação por classe que repercutem na forma como os estudos de estratificação elaboram seus desenhos de pesquisa com forte ênfase nas hierarquias de mercado e pouco aprofundamento de discussões sobre a construção social da raça e sobre os mecanismos discriminatórios e de constituição subjetiva de aspirações. A eleição das esferas públicas e de mercado (de trabalho) como arenas preferenciais de observação das desigualdades tem sido desafiada pela erosão da “sociedade salarial” e por estudos sobre papéis de gênero, violência e saúde que evidenciam não apenas os limites do mercado como, principalmente, algumas raízes não mercadológicas das desigualdades raciais (e de gênero). É tarefa para as produções sociológicas teóricas e empíricas vindouras a proposição de novas definições e modos de operacionalização das desigualdades que incorporem as dimensões não mercadológicas no arcabouço de estudos das desigualdades.
De todo modo, a despeito de insistir na necessidade de maiores desenvolvimentos teóricos e operacionais no sentido de estabelecer parâmetros a partir dos quais as desigualdades devem ser investigadas e avaliadas, concluo este texto com uma sugestão de alternativa empírica para os estudos de desigualdades, inspirada por uma concepção literal da noção de “chances de vida”, que sejam pautados a partir de operacionalizações do tempo e seus respectivos valores (de uso e de troca). Esta abordagem tem potencial para permitir uma exploração sociológica das desigualdades que não seja pautada pela esfera do mercado, que não submeta à classe as outras formas de estruturação da dominação, que seja mais profícua para debates sobre a construção social da classe, da raça e do gênero e que leve em consideração dimensões da vida e das experiências dos sujeitos.
Referências Bibliográficas
- AGUIAR, Neuma. (2010), “Metodologias para o levantamento do uso do tempo na vida cotidiana no Brasil”. Revista Econômica, 12 (1).
- ALMEIDA, Silvio. (2019), Racismo estrutural. São Paulo, Pólen.
- ARRETCHE, Marta (org.). (2015), Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo, Editora Unesp.
- AZEVEDO, Thales de. ([1956] 1966), “Classes sociais e grupos de prestígio”. In: Cultura e situação racial no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
- BARBOSA, Rogério. (2023), “A Sociologia da desigualdade de renda”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 38 (111).
- BARRETO, P. C. S.; LIMA, M.; VIEIRA, A. L. C. & SOTERO, E. (2017), “Entre o isolamento e a dispersão. A temática racial nos estudos sociológicos no Brasil”. Revista Brasileira de Sociologia, 5: 113-141.
- BARRETO, P. C. S.; RIOS, F.; NEVES, P. S. C. & SANTOS, D. B. R. (2021), “A produção das ciências sociais sobre as relações raciais no Brasil entre 2012 e 2019”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais - BIB, 1: 1-35.
- BIROLI, Flávia (2018), Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo, Boitempo.
- BRITO, M. M. A. (2017), “Novas tendências ou velhas persistências? Modernização e expansão educacional no Brasil”. Cadernos de Pesquisa, 47 (163): 224-258.
- CAMPOS, Luiz Augusto & GOMES, I. (2016), “Relações raciais no Brasil contemporâneo: uma análise preliminar da produção em artigos acadêmicos dos últimos vinte anos (1994-2013)”. Revista Sinais Sociais, 11: 85-116.
- CARVALHAES, Flavio. (2015), “A tipologia ocupacional Erikson-Goldthorpe-Portocarero (EGP): uma avaliação analítica e empírica”. Sociedade e Estado (UnB), v. 30, p. 673-703.
- CARVALHAES, F. & RIBEIRO, C. A. C. (2019), “Estratificação horizontal da educação superior no Brasil: Desigualdades de classe, gênero e raça em um contexto de expansão educacional”. Tempo Social, 31 (1): 195-233.
- CASTEL, Robert. (2015), As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis, Vozes.
- CERQUEIRA, D. R. C. & MOURA, R. L. (2014), “Vidas perdidas e racismo no Brasil”. Revista Publicatio, 22: 73-90.
- CHOR, D. (2013), “Desigualdades em saúde no Brasil: é preciso ter raça”. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 29 (7): 1272-1275.
-
COLLINS, Patricia Hill. (August 2015), “Intersectionality’s definitional dilemmas”. Annual Review of Sociology, 41: 1-20. https://doi.org/10.1146/annurev-soc-073014-112142.
» https://doi.org/10.1146/annurev-soc-073014-112142. - COLLINS, Patricia Hill. (2019), Intersectionality as critical social theory. Durham, Duke University Press.
- COLLINS, Patricia Hill & BILGE, Sirma (2020), Interseccionalidade. São Paulo, Boitempo.
- CORSEUIL, Carlos et al. (2021), Comportamento do mercado de trabalho brasileiro em duas recessões: análise do período 2015-2016 e da pandemia de covid-19. Ipea, Nota técnica 92.
- CRENSHAW, Kimberlé Williams. (1989), “Demarginalizing the intersection of race and sex: A black feminist critique of anti-discrimination doctrine, feminist theory and anti-racist politics”. The University of Chicago Legal Forum 1989, article 8.
- DELPHY, Christine. (2015), “O inimigo principal: a economia política do patriarcado”. Revista Brasileira de Ciência Política, 17: 99-119.
- FEDERICI, Silvia. (2017), Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo, Elefante.
- FELTRAN, Gabriel de Santis. (2014), “Valor dos pobres: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo”. Cadernos CRH, 27: 495-512.
- FONTOURA, Natália & ARAÚJO, Clara (orgs.). (2016), Uso do tempo e gênero. Rio de Janeiro, Uerj.
- GORDON C. (2014), “Bem viver e propriedade: o problema da diferenciação entre os Xikrin-Mebêngôkre (Kayapó)”. Mana, 20 (1): 95-124.
- GRUSKY, David (org.) (2008), Social stratification: Class, race, and gender in sociological perspective. Philadelphia, Westview Press.
- GUIMARÃES, Antonio Sérgio. (1999), “Classes sociais”. In: MICELI, Sérgio (org.). O que ler na ciência social brasileira. São Paulo, Ed. Sumaré.
- GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. (nov. 2006), “O Brasil é um país racista?: Sim. O racismo como consequência”. Folha de S.Paulo. Opinião, São Paulo, 18: p. 3.
- GUIMARÃES, N. A.; BARONE, L. S. & BRITO, M. M. A. (2015), “Mercado e mercantilização do trabalho no Brasil (1960-2010)”. In: ARRETCHE, Marta (org.). Trajetórias das desigualdades no Brasil: como o Brasil mudou nos últimos 50 anos. São Paulo, Editora Unesp.
- HANCOCK, A-M. (2007), “Intersectionality as a normative and empirical paradigm”. Polit. Gender, 3: 248-55.
- JESUS, Rodrigo Ednilson. (2006), “O que ser aos trinta”: aspirações ocupacionais de jovens, negros e brancos, na cidade de Belo Horizonte. Belo Horizonte, dissertação de mestrado em Sociologia, Universidade Federal de Minas Gerais.
- KERGOAT, Deniele. (2010), “Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais”. Novos Estudos Cebrap, 86: 93-103.
- LI et al. (abr. 2021), “Social and racial inequalities in covid-19 risk of hospitalisation and death across São Paulo state, Brazil”. BMJ Global Health, 6 (4).
- MEDEIROS, M.; SOUZA, P. H. G. F.; CASTRO, F. Á. (2015), “O topo da distribuição de renda no Brasil: Primeiras estimativas com dados tributários e comparação com pesquisas domiciliares (2006-2012)”. Dados, 58 (1): 7-36.
- OSÓRIO, R. G. (2009), A desigualdade racial de renda no Brasil: 1976-2006. Brasília, tese de doutorado em Sociologia, Universidade de Brasília.
- PRATES, Ian; LIMA, Márcia et al (2021), “Desigualdades raciais e de gênero no mercado de trabalho em meio à pandemia”. Informativos Desigualdades Raciais e Covid-19, Afro-Cebrap, n. 7.
- QUIJANO, Aníbal. (2005), “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais - perspectivas latino-americanas. Buenos Aires, Clacso, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales.
- REINEHR, Jaciane Pimentel Milanezi. (2019), Silêncios e confrontos: a saúde da população negra em burocracias do SUS. 277p. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
- RIBEIRO, C. A. C. (2006), “Classe, raça e mobilidade social no Brasil”. Dados, 49 (4): 833-870.
- RIBEIRO, Carlos Costa. (2018), “Sociologia como ciência das populações: contribuições de Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva no Brasil”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais - BIB, 86: 7.
- RIBEIRO, Carlos Antonio Costa & CARVALHAES, Flavio. (2020), “Estratificação e mobilidade social no Brasil: uma revisão da literatura na sociologia de 2000 a 2018”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais - BIB, 92: 1-46.
- SANTOS, Izabela Penha de Oliveira & JESUS, Victor de. (2023), (“In)consequências da inadequação em saneamento na vida-morte da população negra brasileira”. Diálogos Socioambientais, 6 (17): 13-15.
- SINHORETTO, Jacqueline; DE SOUZA MORAIS, Danilo. (2018), “Violência e racismo: novas faces de uma afinidade reiterada”. Revista de Estudios Sociales, 64: 15-26.
- SCALON, C. & SALATA, A. (2012), “Uma nova classe média no Brasil na última década? O debate a partir da perspectiva sociológica”. Sociedade e Estado, 27 (2): 387-407.
- SCHUCMAN, Lia Vainer. (2014), “Sim, nós somos racistas: estudo psicossocial da branquitude paulistana”. Psicologia & Sociedade, 26 (1).
- SILVA, Nelson do Valle. (1994), “Uma nota sobre ‘raça social’ no Brasil”. Estudos Afro-Asiáticos, 26.
- SILVEIRA, Leonardo. (2019), Reclassificação racial e desigualdade: Análise longitudinal de variações socioeconômicas e regionais no Brasil entre 2008 e 2015. Belo Horizonte, tese de doutorado em Sociologia, Universidade Federal de Minas Gerais.
- SIQUEIRA, G. C.; GONÇALVES, B. S. & SANTOS, A. D. O. D. (2023), “Entre utopias desejáveis e realidades possíveis: noções de bem viver na atualidade”. Estudos Avançados, 37 (109): 125-144.
- SOUZA, P. H. G. F. de & CARVALHAES, F. (2014), “Estrutura de classes, educação e queda da desigualdade de renda (2002-2011)”. Dados, 57 (1): 101-128.
- TELLES, Vera da Silva & CABANES, Robert (orgs.). (2006), Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo, Associação Editorial Humanitas, IRD.
- THERBORN, Göran. (2011), “Inequalities and Latin America - From the enlightenment to the 21st century”. desiguALdades.net - Research Network on Interdependent Inequalities in Latin America. Berlin, Working Paper Series, n. 1.
- TRINDADE, T. A. & PAVAN, Í. L. (2022), “Segregação urbana e a dimensão socioespacial da divisão sexual do trabalho”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 37 (110).
- VIGOYA, Mara Viveros. (2016), “La interseccionalidad: una aproximación situada a la dominación”. Debate Feminista, 52: 1-17.
- WERNECK, Jurema. (2016), “Racismo institucional e saúde da população negra”. Saúde e Sociedade, 25 (3): 535-549.
- WRIGHT, Erik Olin. (2005), Approaches to class analysis. Cambridge (UK); Nova York, Cambridge University Press.
- YUVAL-DAVIS, Nira. (2011), “Beyond the recognition and re-distribution dichotomy: Intersectionality and stratification”. In: LUTZ, Helma; VIVAR, Maria Teresa Herrera & SUPIK, Linda. Framing intersectionality: Debates on a multi-faceted concept in gender studies. United Kingdom, Ashgate Publishing Limited.
-
1
Pela organização deste dossiê e pelos comentários, agradeço a Matheus Gato, Antonio Sérgio Guimarães e Luiz Augusto Campos. Os comentários deste último foram especialmente importantes para tornar este texto menos intempestivo e mais seguro. Aos colegas do Afro-Cebrap, que discutiram uma versão preliminar, agradeço as reações instigantes e sugestões preciosas. Devo mencionar, em especial, Mateus Almeida por uma ajuda com a bibliografia. Sou muitíssimo grato, por fim, a Virginia Costa pelo inestimável apoio e pelas trocas de ideias. Nestas pessoas não deve recair qualquer responsabilidade sobre falhas do texto. Alguns embriões das ideias aqui desenvolvidas foram publicados no jornal Nexo Políticas Públicas em 26 de julho de 2021 sob o título “As desigualdades que não cabem nos estudos de estratificação” (https://pp.nexojornal.com.br/ponto-de-vista/2021/07/26/as-desigualdades-que-nao-cabem-nos-estudos-de-estratificacao ).
-
2
Grusky, em seu monumental handbook intitulado Social stratification, afirma que “A convenção entre os sociólogos tem sido descrever os sistemas de estratificação em termos de classes ou estratos discretos cujos membros se presume terem níveis ou tipos de ativos semelhantes. […] A afirmação de que a desigualdade assume uma ‘forma de classe’ é uma das contribuições distintamente sociológicas para a medição da desigualdade” (Grusky, 2008, p. 44).
-
3
Por exemplo, os estudos de estratificação exploram pouco a construção histórica do atrelamento de certos indivíduos a certas posições, nem mesmo as variações que a avaliação social acerca de uma dada posição pode assumir dependendo do indivíduo que a ocupa.
-
4
Vislumbra-se aí uma padronização de um sujeito liberal, ou seja, uma normatividade liberal subjacente. Segundo Guimarães (2021): “as classes sociais como conceito teórico aplicável apenas a sociedades de indivíduos e de mercados contêm em si uma normatividade implícita. Isto é, espera-se que os indivíduos e os grupos sociais que eles formam ajam de acordo com uma certa racionalidade, instrumental ou não, que dê inteligibilidade à vida social. Essa racionalidade busca ser universal e única: todas as demais possibilidades de agrupamentos devem lhe ser subordinadas. Isso porque, baseando-se em mercados, herda-lhes o princípio de trocas de valores equivalentes e o pressuposto da igualdade e da liberdade individuais. Os demais grupos sociais não reuniriam tais virtudes normativas. […] as classes sociais, em sua ideologia, aspiram a ser a expressão maior da liberdade e da igualdade individuais” (p. 32).
-
5
Pode ser acrescentado ainda que: “buscar apenas os aspectos permanentes obscurece o fato de que a volatilidade pode ser constitutiva e também uma característica de interesse. É, entre outras coisas, um termômetro da instabilidade dos vínculos e, por conseguinte, das prerrogativas. Podemos pensar, por exemplo, na volatilidade de renda de trabalhadores por conta própria ou das camadas mais pobres […]. A inconstância é uma característica estrutural dos mercados informais. […] exemplo ilustrativo sobre como a experiência de encarceramento não apenas reduz, em média, a renda do trabalho, como também aumenta a variância, ou seja, sua inconstância. A volatilidade, ainda que passageira, pode gerar consequências duradouras” (Barbosa, 2023, p. 6).
-
6
Estou ciente da posição de Feltran (2014) de que o dinheiro (e o mercado) atinge(m) grupos para além dos limites dos direitos (e da cidadania). Contudo, mantenho a posição de que as formas de inserção (ou não) no mercado são variadas e desiguais segundo os diferentes grupos sociais.
-
7
“Na análise subsequente de diferenças inter-raciais de oportunidades de mobilidade vertical, as diferenças observadas serão causalmente imputadas à discriminação racial e à operação de mecanismos racistas mais gerais. Como na maioria das explicações baseadas em dados de pesquisa tipo survey, o comportamento discriminatório efetivo será introduzido como uma variável interveninente não mensurada na análise” (Hasenbalg, [1979] 2005, p. 210).
-
8
“Tanto a economia neoclássica aceita nos Estados Unidos quanto o pensamento social marxista mais frequentemente encontrado no cenário europeu consideram classe a categoria fundamental para explicar a desigualdade econômica. Ambas as explicações focadas somente na categoria de classe tratam raça, gênero, sexualidade, capacidade/deficiência e etnia como complementos secundários, isto é, como formas de descrever o sistema de classes com mais precisão. No entanto, ao sugerir que a desigualdade econômica não pode ser avaliada nem efetivamente resolvida apenas por meio da categoria de classe, as análises interseccionais propõem um mapa mais sofisticado da desigualdade social que vai além apenas da classe.” (Collins e Bilge, 2020, p. 22).
-
9
Em uma linguagem metafórica, a autora formulou a ideia de interseccionalidade como um cruzamento de vias de trânsito. Assim, a posição social do indivíduo seria o ponto onde as diferentes vias de opressão se cruzam (Collins, 2015).
-
10
“En su artículo ‘Dark Care, de la servitude à la sollicitude’ (2005), Elsa Dorlin muestra que la génesis de la feminidad moderna, tal como se construyó a lo largo del siglo XIX, debe buscarse no en la oposición a la masculinidad, sino en una doble oposición de raza y clase. Según Dorlin, la feminidad de las amas de casa (house wife), definida en términos de piedad, pureza, sumisión y domesticidad, no se oponía a la masculinidad del jefe de hogar, sino a la feminidad de la sirvienta doméstica negra (house hold), reputada por ser lúbrica, amoral, rústica y sucia. Dicho de outra manera, lo que constituyó el reverso de lo femenino fue una norma racializada de la domesticidad y no una hipotética masculinidad preexistente.” (Vigoya, 2016, p. 11).
-
11
Diferenças de gênero em uma mesma ocupação fundamentam não apenas desigualdades salariais, mas também o próprio conteúdo das atividades desempenhadas e avaliação social (status) daquelas atividades. Bons exemplos são oferecidos por Kergoat (2010, pp. 100-3). Cito, aqui, um deles: “Este imbricamento, este dinamismo, esta coprodução das relações sociais de classe, gênero e ‘raça’ podem ser encontrados de maneira paradigmática no trabalho de care […] a relação de classe reforçada pelos processos de naturalização, de racialização e de ‘generização’ do trabalho de care; a racialização, à qual os empregos domésticos estão particularmente sujeitos, reforça e legitima a precarização (e, portanto, as relações de classe) e a ‘generização’; a relação de gênero exacerba a relação de classe na medida em que a feminização dessas últimas é um fenômeno novo para o corpo social e, portanto, para o qual ainda não há uma resposta, e reforça as relações de raça pela sua naturalização” (pp. 102-103).
-
12
Kergoat (2010) afirma, ainda, que devemos considerar que as relações sociais (de classe, gênero e raça) são consubstanciais - geram experiências concretas que só podem ser separadas em diferentes eixos para fins de análise - e coextensivas - porque se coproduzem mutuamente.
-
13
Antonio Sérgio Guimarães (2006), em um artigo de jornal, ao se referir ao caráter variável das categorias de cor no Brasil, afirma que “Os nossos ‘grupos de cor’ são abertos, podem se alterar de geração a geração, podem conviver com certa mobilidade individual. São classes, no sentido weberiano. Temos e cultivamos, portanto, classes de cor”. Poderíamos lançar mão de insight análogo para questionar, não as categorias de cor, mas as próprias classes sociais: em que medida o que é chamado de classe (nas classificações nativas) no Brasil seriam senão “classes de cor”, mas não no sentido de grupos abertos, mas no sentido de “grupos de status” (ver, também, Azevedo, [1956] 1966).
-
14
Deve ser mencionado aqui o pioneirismo de Neuma Aguiar nas pesquisas de usos do tempo no Brasil. Essa pesquisadora é uma importante referência nos estudos de desigualdade de gênero e no campo da sociologia da estratificação social. Ver, por exemplo, Aguiar, 2010; Fontoura e Araújo, 2016.
-
15
“Ou seja, este processo está intimamente relacionado ao fator tempo: ao passo em que as classes mais privilegiadas moram em localizações nas quais os serviços essenciais à vida urbana estão acessíveis com maior facilidade, com as classes mais pobres acontece justamente o contrário, ou seja, elas são obrigadas a se deslocarem muito mais pela cidade para acessarem tanto os postos de trabalho quanto os equipamentos coletivos (escolas, creches, hospitais etc.), despendendo, portanto, uma maior quantidade de tempo” (Trindade e Pavan, 2022, p. 7).
-
16
Nesta chave, é possível vislumbrar potencialidades no desenvolvimento de concepções de desigualdade que tenham como referência a noção de bem viver, que adquiriu maior visibilidade a partir da incidência dos movimentos dos povos indígenas nas reformas constitucionais na Bolívia e Equador no início do século XXI. “Tal expressão pode ser compreendida como ‘conviver bem’, no sentido de respeito e complementaridade entre os seres humanos e desses com a natureza” (Siqueira, Gonçalves e Santos, 2023). Gordon (2014) defende que ela pode ser aproximada do conceito de convivialidade.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Set 2024 -
Data do Fascículo
May-Aug 2024
Histórico
-
Recebido
22 Mar 2024 -
Aceito
05 Jun 2024