Resumo
O conceito de experiência, conforme sugerido pelo pragmatismo, obriga a pensar a atividade conjuntamente com a passibilidade. O objetivo do artigo é fundamentar a centralidade desta última na criação artística e pensar sob que modalidades ela é vivida pelos pintores no gesto pictórico. A partir de uma pesquisa etnográfica efetuada numa instituição de apoio social e psiquiátrico onde decorre um ateliê de pintura com o fito de capacitar os seus utentes, concluímos que a passibilidade (i) pode voltar-se para o exterior durante o processo pictórico, ou (ii) para o interior, dando azo a um momento introspectivo que serve como mote para pintar. Demonstramos, assim, que passibilidade e atividade se encontram intrinsecamente acopladas na pintura.
Palavras-chave: Passibilidade; Pintura; Experiência; Introspeção
Abstract
The concept of experience, as suggested by pragmatism, forces us to think about activity together with passibility. The objective of the article is to substantiate the centrality of the latter in artistic creation and to think under what modalities it is experienced empirically by painters in the pictorial gesture. Based on ethnographic research carried out in a social and psychiatric support institution where there is a painting studio with the aim of empowering its users, we conclude that passibility (i) can turn outwards during the pictorial process, or (ii) towards the interior, giving rise to an introspective moment that serves as a motto for painting. We thus demonstrate that passivity and activity are intrinsically coupled in painting.
Keywords: Passibility; Painting; Experience; Introspection
Experiência e passibilidade: incursões teóricas
Pretendemos aferir sociologicamente as modalidades sob as quais a passibilidade se acopla ao gesto artístico de pintar. Visto partirmos do conceito de experiência e enfatizarmos analiticamente a criação artística (no caso pictórica) durante o seu acontecer concreto, isto é, ao observarmos atentamente os seus modos de realização práticos, pretendemos contribuir para, na medida do possível, colmatar uma lacuna amplamente diagnosticada (Acord e DeNora, 2008; De la Fuente, 2007; Menger, 2022) na literatura sociológica a respeito das Artes, a saber, justamente a escassez de estudos dedicados à experiência dos artistas durante as suas criações. Tal como proposto pelas sociologias pragmatistas, a análise da experiência dos artistas requer uma abordagem rente ao terreno, onde o primado da empírea obriga a levar a sério o que os atores fazem e dizem (Boltanski e Thévenot, 1991), pelo que avançamos com a descrição do contexto da pesquisa e das opções metodológicas, de modo a enquadrar os dados que, fiéis ao princípio abdutivo (Peirce, 1999), trazemos de imediato à liça para fundamentar a pertinência dos intentos almejados.
A pesquisa decorreu no Centro de Apoio Social do Pisão (Casp), instituição do Instituto de Segurança Social gerida pela Santa Casa da Misericórdia de Cascais. Situado na região da grande Lisboa, o Casp contabiliza cerca de 350 adultos/as em regime de internamento devido a patologia psiquiátrica e/ou deficit cognitivo, procurando assegurar as necessidades básicas de alimentação e higiene, os cuidados clínicos e farmacológicos adequados, mas também zelar pelo equilíbrio biopsicossocial dos seus residentes, favorecer os sentimentos de autoestima e autonomia e promover a sua reinserção na comunidade. Uma das apostas do Casp para realizar esta missão é o desenvolvimento de atividades artísticas, entre as quais a pintura. Neste sentido, o Casp conflui com a tendência registada nas últimas décadas no que concerne às políticas sociais implementadas, tendência, essa, segundo a qual se defende uma aproximação às populações em situação de vulnerabilidade mais atenta à subjetividade e à individualidade, bem como promotora da capacitação (Castel, 2009; Dodier e Rabeharisoa, 2006; Franssen, 2006). Destarte, pretendemos ainda com este estudo contribuir, por um lado, para a fundamentação da importância de desenvolver atividades artísticas em instituições nem sempre hospitaleiras para aqueles que nela residem, por outro lado, para a exploração e abertura de possibilidades de ação no contexto da aplicação prática dessas atividades.
A pesquisa consistiu numa etnografia de aproximadamente quinze meses, entre maio de 2020 e dezembro de 2021, com uma interrupção de três meses devido às restrições de acesso à instituição durante a pandemia, onde tivemos a oportunidade de observar diretamente o dia a dia da instituição e de conduzir conversas informais, tanto com os residentes como com os funcionários. As observações incindiram com especial acutilância no ateliê de pintura, no qual, uma vez por semana, durante duas horas, cerca de dez residentes se acham envolvidos, destacando-se particularmente o trabalho de Bonifácio e Leopoldo, pintores abstratos e protagonistas das anotações de diário de campo (DC) aqui vertidas.
Regressemos ao conceito de experiência. A ação de pintar não se reduz aos movimentos que o corpo executa para colorir as telas, tampouco ao somatório dos mesmos, na medida em que se introduz um intervalo de tempo entre o estímulo e a resposta (Mead, 2010; Dewey, 2012) que faz com que a experiência decorra na duração. Iminentemente temporal, a ação contém uma sequencialidade própria (Joas, 1996; Ogien, 2018), transbordando o hic et nunc da atividade (Quéré, 1997), assim abrindo espaço para a reflexividade, e com ela o sentido, bem como para uma concepção topológica e relativa do espaço e do tempo (Mol e Law, 1994; Resende e Carvalho, 2021).
Em conversa comigo, Bonifácio […] diz-me ainda que, quando está na sala a fazer outros trabalhos, vai sempre olhando para a tela que pintou para ver se ainda pode fazer algo nela posteriormente, tirando “fotografias mentais” que transporta consigo até a obra estar efetivamente concluída (Resende e Carvalho, DC, 5 jun. 2020).
Resulta notório que a experiência extravasa não só a sala a que a atividade está adstrita como também o intervalo temporal da sessão. As situações em que a ação decorre não são um recinto físico externamente determinável (Burke, 2000; Quéré, 1997), já que a dilatação espacial e temporal carreada no gesto de pintar remete para uma averiguação empírica: não tendo terminado a sua tela, Bonifácio guarda-a consigo até à sessão vindoura por intermédio de “fotografias mentais”, memorizando-a e assim podendo pensar nela na sua ausência física, ensaiando, antecipando e projetando desenvolvimentos.
A pintura, enquanto experiência, subsiste após o término da sessão, o que permite que o pintor chegue ao ateliê já com uma “imagem” formada na cabeça de antemão:
Bonifácio chega cerca de trinta minutos atrasado à sessão. A monitora diz-lhe que já não vale a pena começar. Nesse momento, o pintor bate com a mão na cabeça, dizendo que tem uma imagem na cabeça que precisa de pintar. [Acabando por lhe ser permitida a entrada], já sentado à mesa, Bonifácio diz à monitora que a imagem lhe “fugiu da cabeça” e que, portanto, já não “pode pintar” (Resende e Carvalho, DC, 19 jun. 2020).
Mas concentremo-nos no léxico empregado por Bonifácio, já que, revelador da relação mantida com a sua “imagem” mental, abre para o domínio da passibilidade. Repare-se que o vocabulário de motivos (Mills, 1940) convocado pelo pintor expressa um vínculo da ordem da necessidade: ele “precisa” de pintar a “imagem”. Simetricamente, se momentos depois ele não a pinta, não é por não querer ou estar cansado, mas por não “poder”, parecendo-nos crível deduzir que o pintor se acha submetido a algo que, pelo menos em parte, escapa à sua esfera de controle. Tendo a ideia, impõe-se que pinte; não a tendo mais, é impossível que o faça.
Explicando que afinal não pode pintar em virtude da ideia lhe “ter fugido da cabeça”, tudo indica que esse algo a que está submetido é justamente a “imagem” que transportava. Não foi simplesmente Bonifácio que perdeu a ideia; ao invés, foi a ideia que desertou. Para pintar não basta, pois, ter domínio técnico, vontade individual ou oportunidade. Há que ponderar este algo mais que, escapando ao controle do pintor, nos conduz à passibilidade.
Com efeito, a experiência não se confina à ação de um sujeito desengajado (Dewey, 2012), pese embora se reconheça que a ação é constitutiva da experiência (Zeitler e Barbier, 2012). Agir, longe de advir do indivíduo e/ou do meio ambiente, depende das transações, situadas e mais ou menos precárias, estabelecidas entre um e outro (Bidet et al., 2019). Os sujeitos não vivem dentro de um ambiente, tampouco vis-à-vis a ele, mas através dele (Quéré, 2020), tratando-se de um acoplamento ecológico (Ingold, 2000) concretizado por via da prática (Zeitler e Barbier, 2012).
Um componente ativo, indicativo dos efeitos da ação sobre o ambiente, e outro passivo, apontando para as marcas da ação do ambiente nos indivíduos, são indissociáveis, sendo esta dupla-afetação que constitui a experiência. Pretendemos, assim, resistir aos modelos ativistas que hipertrofiam a ação (Breviglieri, 2016; Joas, 1996), frisando os momentos em que a componente passiva opera. A unidade qualitativa da experiência repousa no equilíbrio entre o fazer e o sofrer (Bidet et al., 2019), nela se integrando os estados de imobilidade, descanso, receptividade ou afrouxamento que os atores atravessam no cotidiano.
Literatura recente na área das sociologias pragmatistas e fenomenológicas tem reportado casos em que a centralidade da passibilidade na experiência resulta evidente. Passemo-la em revista subdividindo-a em três linhas distintas, mesmo que complementares, de interpretação, posicionando-nos a seu respeito.
Uma primeira via tem enfatizado experiências em que a componente ativa se vê bloqueada pela passiva. Seja por se ter sofrido um trauma que impede a conversão do estímulo externo em ação (Stavo-Debauge, 2012), seja por se guardarem memórias cuja violência impede o discurso testemunhal (Pollak, 2000), seja ainda por acontecer os indivíduos se encontrarem num desamparo extremo (como os sem-abrigo) que esgotou os seus canais sensoriais e capacidades de agir (Breviglieri, 2016), estamos perante casos em que a componente passiva não é fonte de revigoramento da ação. Ora, se estes estudos têm o mérito de salientar devidamente a manifestação da passibilidade na positividade que lhe é própria, eles apontam, porém, para casos-limite. Os nossos dados, como se verá, apontam para outras direções, onde a passibilidade, longe de atrapalhar o desenvolvimento da experiência, potencia o ato pictórico.
Uma segunda via, concentrada na face benévola da passibilidade, ganha corpo na antropologia de Piette (2013), que, partindo da aptidão dos humanos para estarem simultaneamente presentes e ausentes, enaltece a distração enquanto abertura atencional como característica fundamental da ação, já que permite a concentração num aspecto da situação sem perder de vista o que está em redor, dando azo à revisão e ajustamento dos quadros da experiência, e constituindo, assim, a condição da vida coletiva. Mencione-se ainda o estudo de Bidet (2011) concernente à multiatividade: fitando várias atividades laterais à sequência principal da ação, a socióloga destaca o valor da coexistência de atividades, ou da alternância rítmica entre a concentração e o relaxamento, foco e desfoque cognitivo, para a inserção dos atores na existência.
Também Hennion (2011), a respeito da formação do gosto musical, demonstra como a passibilidade constitui uma dimensão indispensável da experiência dos amadores de música. Diz-nos o autor, convocando o conceito de paixão para problematizar a relação entre a música e os ouvintes, que o gosto implica um abandono destes, não obstante mediante procedimentos ativos e reflexivos, de modo a desencadear diferenças nos objetos musicais e engendrar a fruição. Ou ainda, por exemplo, Auray e Vétel (2013), para quem um dos regimes de engajamento (Thévenot, 2006) passa por uma relação exploratória com o entorno, e cujo curso depende da suscetibilidade curiosa dos indivíduos aos estímulos externos.
Ora, defendemos nas nas seções “A energia que venha que a envolvo na pintura” e “Ser afetado pela tela para continuar a pintar” que não só a passibilidade e a atividade estão enlaçadas na pintura, como também que a primeira potencia a segunda. Debruçando-nos na relação que os pintores mantêm com as telas enquanto pintam, problematizamos os vários procedimentos de que lançam mão para pôr a tela a gerar efeitos, os quais, afetando-os, servem de barômetro para avaliar e rever o progresso das obras. A passibilidade, que, como se percebe, não é distração, alheamento ou simples multiatividade, mais do que interromper a experiência, constitui-a.
Há ainda uma terceira via que vê nas experiências em que predomina a passibilidade um regime de engajamento em si próprio. Os trabalhos de Thévenot (2006) acerca do regime de envolvimento em familiaridade, ou os de Breviglieri (2012) acerca do “habitar”, assinalam a existência de modalidades de engajamento proximais que se confundem com o descanso e as quais residem fora da articulação simbólica, consistindo na instalação do corpo num ambiente familiar sob a forma de apego e fundando um núcleo de estabilidade e confiança (Breviglieri, 2012). Brahy (2014), por sua vez, acompanhou uma oficina de teatro, propondo um “regime de engajamento em presença”, primordialmente estético e sensorial, em que a coordenação da atividade dramatúrgica passa pela permeabilidade corporal e emocional, dependendo sobretudo da magnitude com que os atores se afetam mutuamente.
Não questionamos o fato de os estudos citados abrangerem com propriedade uma série de situações do cotidiano. Ademais, eles têm o mérito de mostrar que i) mesmo as experiências mais íntimas, pessoais ou solitárias são sociais, exigindo um ambiente devidamente equipado, e ii) o investimento na coordenação do curso da ação não passa necessariamente pela inteligibilidade mútua. Pois ali onde o interacionismo assume uma inteligibilidade simbólica que se vai desenvolvendo através do agir significativo de atores em permanente vigília, negociando e ajustando as suas perspectivas de modo a cooperarem (Goffman, 2011; Strauss, 1994), as abordagens mencionadas, lembrando que a reciprocidade é um resultado raro, acedem à emergência e cruzamento de perspectivas irredutivelmente heterogêneas (James, 1912; Mead, 2010), permitindo pensar situações em que essa assimetria é justamente a condição da coordenação da ação (Bidet et al., 2019; Breviglieri, 2016).
Os dados apresentados na secção “‘Deixar vir’ para começar a pintar” contribuem para esta reflexão. Centrada nos momentos em que os pintores, antes da primeira pincelada, confrontam a tela em branco, iniciamos uma discussão acerca do conceito de introspecção. É que aí os pintores, amiúde, adotam uma postura de aparente alheamento, colocando o que os rodeia entre parênteses e voltando-se para o seu interior, de forma a “deixar vir” (Despraz et al., 2006) a ideia para pintar. Trata-se, pois, de uma passibilidade face a si mesmo, a qual não se confunde com a comodidade dos regimes proximais, já que a introspecção exige um esforço e uma exposição ao desconhecido incompatíveis com o repouso, mas que tampouco se confunde com o regime em presença, visto ser voltada para dentro, e não para a afetação com os outros. Apesar de implicar um isolamento face aos outros e ao exterior (ambiente imediato), a introspecção, sem deixar de ser um fenômeno social, mostra que a inteligibilidade mútua baseada no agir significativo não é uma condição sine qua non para a coordenação da ação. Frisando o enlaçamento específico entre a atividade e a passibilidade durante a atividade dos artistas, pretendemos demonstrar que é possível pensar a criação artística sem incorrer, por um lado, no mito romântico da genialidade individual e solipsista, o qual coloca o ônus na atividade do criador, nem, por outro lado, na falácia sociologista, segundo a qual o artista seria passivo face a fatores sociais externos que conduziriam as suas criações.
A energia que venha que a envolvo na pintura
A destrinça das componentes ativa e passiva no gesto pictórico nem sempre é evidente. Quando questionado sobre o mote da sua tela, Leopoldo afirma que “não part[e] de nenhuma imagem”, que “os riscos [lhe] saem naturalmente da cabeça”, que “não pens[a] em nada à partida”2.
A monitora […] pergunta a Leopoldo “de que modo o seu trabalho tem a ver com a covid-19?” [durante a pandemia a instituição tem promovido a realização de trabalhos tendo a mesma por mote]. Responde-lhe Leopoldo que “não pint[ou] com nenhum intuito”. A partir daí, a monitora começa a interpretar a tela em função da pandemia […]. Leopoldo, ouvindo atentamente, concorda com a interpretação e diz que “não tinha pensado nisso”. De fato, nem antes nem depois da explicitação da monitora Leopoldo adiantou qualquer tipo de explicação, interpretação, sequer comentário do conteúdo da tela, muito menos ligando-o à covid-19 (Idem, 22 maio 2020).
Leopoldo dá a entender que pinta espontaneamente, sem plano predefinido, sequer uma intenção. Questionado pela monitora, o pintor não diz apenas que não pensou na pandemia para pintar, como lhe havia sido proposto, mas que não pensou em nada. Mais, não se vislumbra qualquer pejo de Leopoldo em reconhecer que não pensou no que lhe havia sido sugerido, sequer o cuidado de anexar uma justificação. Nem tal escusa é, de resto, reprovada pela monitora, que se limita a incentivar o pintor para o exercício proposto.
Esta ideia de que entre o pintor e a sua pintura não existe espaço suficiente para a atividade reflexiva é corroborada pelo dizer de Bonifácio: que pinta “o que sente cá dentro”3, “a [sua] vida e o [seu] meio”4, o “[seu] passado”5, as “[suas] vivências”6, o que “[sente] no momento”7. A proximidade é tal que o pintor e a tela quase se sobrepõem, sem que a ponderação e a deliberação se intrometam no gesto pictórico. O pintor assevera mesmo que se “pinta com a energia”8.
Tudo indicaria que a obra é o sentimento, tanto mais apreciável quanto menor a atividade voluntária do pintor. Contudo, e eis o paradoxo, ambos os pintores revelam uma elevada concentração, como se essa naturalidade invocada envolvesse trabalho, escolhas, decisões. Prova disso mesmo são as constantes hesitações experimentadas: impasses quanto ao rumo a seguir e subsequentes aconselhamentos junto da monitora, dúvidas quanto ao acabamento das telas, comparações com telas suas mais antigas, julgamentos quanto ao resultado final. Há, pois, espaço para a reflexividade. Leopoldo reforça frequentemente que pintar “não é fácil”, que “parece fácil, mas dá muito trabalho”9, procurando aprovação externa, perguntando se o seu trabalho está a “ficar fixe”10, mas também avaliando, ele mesmo, o que está a fazer, sentenciando que a tela “está a ficar muito forte”11, ou que “está mais ou menos, não está ao [seu] gosto”12. Bonifácio, por seu turno, afirma que a pintura “é uma luta do artista consigo próprio”13, expressando frequentemente incertezas quanto à conclusão das telas:
Dirigindo-se à monitora, Bonifácio diz: “só preciso de uma cor para terminar esta [referindo-se à tela], mas não sei qual é. Aplico mais verde ou cor-de-rosa?”. A monitora: “O que é que quer fazer do quadro? O que acontece se puser uma e outra?”. Bonifácio retorna: “Está para aqui uma confusão de pensamentos” […]. Bonifácio sente-se tentado a dar o trabalho por terminado, mas sente que não está optando por adiar esta decisão. No fim da sessão, diz-me que sente que falta algo e que quando começa a duvidar é porque a tela não está terminada (Idem, 1º set. 2021).
Percebe-se que a prática da pintura está longe de ser automática ou acrítica, como alguns enunciados dos pintores poderiam à partida fazer supor, abrangendo instâncias de (auto)avaliação e valoração, isto é, uma intencionalidade própria (Resende e Carvalho, 2020), cabendo-nos indagar qual o papel desempenhado nela pela passibilidade do pintor.
Ser afetado pela tela para continuar a pintar
Já com a tela praticamente preenchida de traços coloridos, Leopoldo perspectiva a tela ora desviado para um lado, ora para o outro. Por vezes, inclusivamente, olha alternadamente para trás, onde se encontra encostada à parede a sua tela concluída na sessão anterior, e para a frente, onde está montada no cavalete a sua atual. Termina a tela (Resende e Carvalho, DC, 12 jun. 2020).
O trecho apresentado é apenas um de muitos que revelam como os pintores vão avaliando a tela até a darem por concluída. Há, pois, uma interrupção do gesto de pintar, propriamente dito, sem que a experiência se rompa. Estando embrenhado na pintura, a dado momento Leopoldo sente a necessidade de suspender o braço e tomar um distanciamento relativamente à sua obra. Com a tela no cavalete, o pintor recua ligeiramente, perspectivando o estado em que se encontra o seu trabalho e as possíveis vias de prosseguimento. O corpo ajusta-se em função da tela, na medida em que a alteração do ponto de vista se repercute naquilo que efetivamente é visto.
Bonifácio adota um procedimento similar. Tendo a tela pousada em cima da mesa, circula pausadamente em seu redor, observando, ou então pega na tela e levanta-a até ao nível do olhar, aproximando-a ou afastando-a, variando o ângulo de visão, rodando-a.
Bonifácio chama-me e pergunta-me o que vejo na sua tela. Diz-me que não tem “intenção de lhe mexer mais”. Digo-lhe o que vejo. Ele escuta atentamente. Depois, pegando novamente na espátula, aplica-a na tela (alterando-a, pois a tinta ainda se encontra fresca), enquanto isso perguntando-me: “Então e se eu fizer assim?”. Afinal, vendo bem, a tela não está terminada, comunica-me. Partindo da minha leitura do seu trabalho, diz que irá fazer mais qualquer coisa na segunda-feira. Entretanto, chama a monitora para lhe perguntar o que ela vê na tela. A partir das duas leituras solicitadas, modifica ligeiramente aquilo que tinha programado fazer na segunda-feira. […]. Já perto do final da sessão, Bonifácio lembra-se de virar a tela na vertical (que tinha sido pintada na horizontal). Explica-me o que vê nesta nova posição: um olho, com a retina, a íris. Já a monitora diz que vê uma cara, com uma coroa, uma máscara. Bonifácio, contente, diz que, efetivamente, também vê tudo isso, pelo que não mexerá mais na tela. Está concluída (Resende e Carvalho, DC, 19 jun. 2020).
Os pintores sondam a variedade de respostas que a tela oferece multiplicando as “perguntas” que lhe dirigem: é um “diálogo” que os pintores entabulam para descobrir as possibilidades que se lhes afiguram na demanda do caminho mais apropriado. Esta exploração tem, no entanto, como correlato que os pintores se permitam que elas surtam os seus efeitos. Para isso, alteram as posições do corpo e da tela, multiplicando as perspectivas possíveis, mas também convocam obras passadas para estabelecer comparações. Distribuídas pelas paredes do ateliê, alternam o olhar entre o que estão a pintar e o que já pintaram. Além do uso do corpo, recorrem a outros objetos disponíveis na sala para colocarem as telas atuais a produzir efeitos, abrindo-as para motivos já pintados, técnicas já empregadas ou sentimentos já experimentados.
Também a interpelação de terceiros (pesquisador, monitores, pares) constitui uma modalidade de dar “voz” às telas. Suscitando a opinião dos presentes, os pintores transportam-se para outros pontos de vista, já não proporcionados pelo deslocamento do seu corpo, tampouco pela arregimentação de outros trabalhos, mas mediante a escuta do outro. Após o pesquisador, também a monitora comunica o que vê na tela, acabando Bonifácio não só por descobrir elementos até então insuspeitados como até por se identificar com a interpretação proposta. Note-se a importância da palavra, de um terceiro ou do próprio pintor, no gesto pictórico:
Enquanto me explica o seu quadro, Bonifácio fá-lo com a espátula em punho. Ela, a espátula, vai sendo deslocada ao longo da superfície da tela em função das suas explicações, servindo para apontar os detalhes que ele considera relevantes. Mas não só. Durante a explicação, a espátula serve também para acrescentar coisas à tela, para espalhar um pouco mais de tinta, para demarcar mais nitidamente uma região etc. À medida que vai explicando, Bonifácio vai, portanto, pintando em função dessa mesma explicação, tal como à medida que vai pintando, vai integrando as modificações operadas na tela nas suas explicações verbais (Resende e Carvalho, DC, 23 set. 2020).
Aqui percebemos mais uma técnica usada pelos pintores para as telas produzirem efeitos. Bonifácio, sentado em frente à tela, confronta-a com o discurso explicativo que elabora, tomando-a como sua interlocutora. E o que é fato é que a tela responde ao apelo. Porém, de forma imprevista. A tela recusa conformar-se à explicação que visava restituí-la, forçando a cedências. Se a palavra do artista ressoa na tela, também a tela resiste a ser inteiramente captada, obrigando Bonifácio a (con)ceder-lhe a “palavra” e, por essa via, ajustando os próximos passos.
Encontramo-nos no domínio da passibilidade: o sucesso destes procedimentos dos pintores para avaliar a evolução da tela implica que eles se permeabilizem face a ela. Estamos longe de uma atribuição unilateral de sentido a um objeto inerte. A tela atua, responde, sem o quê a dança conjunta dos pintores e das telas, o encontro com os seus trabalhos anteriores, a escuta e a proliferação de opiniões de pouco serviriam.
Assim sendo, torna-se compreensível que Bonifácio se surpreenda com a obra que acabou de pintar:
Logo de começo, a monitora pede aos vários participantes da sessão para assinarem as telas já concluídas, que se vão acumulando na sala. Bonifácio pega numa sua tela antiga e olha demoradamente para ela, girando-a, colocando-a em várias posições distintas, com um olhar investigador, parecendo, em certos momentos, surpreendido com o que vê, descobrindo motivos até então ignorados (Resende e Carvalho, DC, 3 jul. 2020).
Bonifácio vê-se incentivado pela monitora a voltar a telas pintadas outrora para as assinar. Primeiramente, vemo-lo fazer uma observação diligente e esmerada da tela. A certa altura, novos dados, até aí ignotos, ressaltam ao seu olhar, traduzindo-se numa alteração do seu rosto: numa fração de segundo, o olhar curioso e inquisidor, sofre uma descontração, fazendo emergir traços de espanto e admiração. O alívio da tensão investigativa, contudo, não desliga o pintor da tela, levando-o a um maravilhamento. Aqui, a vigília cognitiva dilui-se, dando lugar, não à letargia, tampouco à distração, mas à fruição, em que as posições de sujeito e de objeto se baralham momentaneamente. Não deixa de ser paradoxal que os efeitos mais intensos da tela advenham no ponto em que a mais laboriosa atividade e a passibilidade se cruzam (Gomart e Hennion, 1999). Foi necessária uma preparação cuidada para que, por um lado, a tela adquirisse “voz”, por outro, Bonifácio se suscetibilizasse: passibilidade e atividade potenciam-se mutuamente em prol da fruição e da surpresa.
Em suma, constatamos que a tela contém uma carga hermenêutica própria, constituindo, mais do que um objeto, um evento inesgotável, imprevisível e aberto (Quéré, 2006), reservatório de efeitos diferenciais que não cessam de acontecer, emissor de signos infraverbais que continuamente se transformam. Para tal, os pintores conduzem a atenção pela curiosidade e, consequentemente, agem em exploração: em vez de rasurar as contingências da sua atividade, disponibilizam-se-lhes, não as enfrentando como interrupções ou dispersões a colmatar, mas antes fazendo do inesperado a pedra de toque da sua atividade (Auray e Vétel, 2013).
“Deixar vir” para começar a pintar
Até aqui, focamos o durante do processo pictórico. Porém, a experiência da pintura não se circunscreve ao intervalo entre a primeira pincelada e a última, por isso nos debruçamos agora em alguns momentos precedentes ao ato de pintar, enfatizando o modo como os pintores descobrem o mote para começar. Ressalvamos que é de um mote que se trata, uma força em direção ao gesto de pintar, e não de uma ideia clara e distinta, ou um objetivo predefinido. O interesse recai sobre como os pintores descobrem o que os move a pintar.
Nossa hipótese inicial atribuiu a esse mote, enunciado por Bonifácio como “imagem”, uma certa resistência à volição do pintor. Pretendemos mostrar que essas ideias aparecem ao pintor sem que este as preveja inteiramente ou tematize reflexivamente, o que não invalida que haja um trabalho ativo dos pintores para se suscetibilizarem à vinda da imagem, à sua formação e desenvolvimento.
Considerem-se as ocasiões em que os pintores fazem por se desassociar do curso da ação do ateliê, suspendendo a sua participação ativa e colocando o que os rodeia entre parênteses, com vista a ensaiar um movimento introspectivo que evoque vivências passadas. Nem sempre os pintores chegam à sala cientes do que vão pintar, pelo quê observamos em detalhe os momentos em que, chegados ao ateliê, se preparam para começar a pintar.
Bonifácio coloca a tela em branco à sua frente, sobre a mesa. Sentado, olha-a, de mãos na testa, atenta e silenciosamente. A monitora põe a tocar no computador uma música. O pintor parece não dar por nada, em nada alterando a sua postura e rosto. Continua, durante alguns minutos, nesta postura absorta. Por vezes, alterna o olhar para a tela com olhares para cima, em direção ao teto. Outras vezes, fecha os olhos. O seu material de trabalho encontra-se à disposição, localizado ao lado da tela. A certa altura, a monitora aproxima-se de Bonifácio e pergunta-lhe se já sabe o que quer pintar, ao que ele responde: “Castanho”. Quando o tubo de tinta lhe chega às mãos, ele pergunta onde se encontram as luvas, indo buscá-las, calçando-as e iniciando a tela (Resende e Carvalho, DC, 15 set. 2021).
Note-se como os pintores, estando presentes na sala, exploram canais temporais alheios à cronologia linear. Posicionando a tela em branco na sua mesa de trabalho, já dotado dos seus materiais de pintura, Bonifácio não parte de imediato para a atividade. Pelo contrário, ocorre uma pausa, um lapso de tempo em que se abstrai do meio que o rodeia. Uma série de detalhes na postura do pintor indica, com efeito, uma ruptura com a “atitude (fenomenológica) natural”, deslocando a atenção do exterior para o interior (Despraz et al., 2006). Desde logo, o pintor tem um olhar compenetrado, mas sem alvo externo: olha para a tela, para o teto, por vezes cerra as pálpebras. A concentração é notória, mas ela não encontra um foco onde repousar. O olhar é tenso, mas apenas secundariamente direcionado, já que, sendo verdade que o foco se altera (a tela, o teto), não o é menos que essa variação não se repercute na expressão facial. O olhar desloca-se independentemente do exterior, votando à indiferença os objetos que visualmente vai encontrando. Trata-se de uma atenção aguda, contudo sem contrapartida externa. Verifica-se uma mudança de orientação da atividade cognitiva: o olhar volta-se para dentro, a atenção passa da percepção para a apercepção.
Poder-se-ia pensar que esta pausa anterior ao gesto pictórico se deveria a alguma dificuldade logística, ou a um compasso de espera pela resolução de algum problema. Acontece que Bonifácio não apenas tem o material à disposição. Mas mesmo admitindo que o pintor pudesse precisar de algo cuja localização lhe escapasse, a verdade é que, quando interpelado pela monitora, se limita a pronunciar a cor com que vai iniciar o seu trabalho, dando a entender que estivera, durante aqueles minutos, a pensar no assunto.
Bonifácio põe a tela em branco em cima da mesa. Debruça-se, de pé, sobre ela, inclinando-se apoiado com as mãos na mesa. Olha fixamente para a tela, coçando a cara regularmente ou ajeitando o barrete que tem na cabeça. Afasta-se ligeiramente da tela, endireitando-se. Desvia o olhar da tela, olhando em seu redor, mas sem fixar em nada. Começa a deambular, num espaço curto, em frente à mesa onde deixou a tela: dois passos para o lado, dois passos para o outro. Parece esperar qualquer coisa. Passam-se cerca de cinco minutos, até que o pintor diz à monitora: “Preciso de amarelo e vermelho” (Resende e Carvalho, DC, 11 nov. 2020).
Mais uma vez, o pintor ensimesma-se, desta feita de pé. Olha em seu torno aparentemente sem nada ver. Os seus movimentos têm uma cadência repetitiva e são autocentrados, despojados de significação face a terceiros: as mãos na testa, segurando a cabeça, figura pensativa, coçando-se ou remexendo no barrete, o movimento pendular, para um e outro lado. O próprio pintor parece executar esses gestos e movimentos pré-reflexivamente, constituindo um espaço introspectivo por via da adoção de um ritmo estritamente pessoal que lhe permita isolar-se.
Há, portanto, uma suspensão da percepção do exterior e da comunicação com os outros sem que o envolvimento na experiência sofra uma interrupção. Na verdade, a pintura já começou. Mas esta transição de um estado de vigília para a apercepção implica uma perda do controle social. Encetando um retorno a si mesmo, adotando uma intencionalidade voltada para os seus pensamentos e emoções, Bonifácio perde de vista a conduta dos outros e as contingências externas, vulnerabilizando-se. A conduta introspectiva carece, pois, de um ambiente de confiança e previsibilidade.
As músicas que estão a tocar são da escolha da monitora. Bonifácio critica a escolha, dizendo que “são muito pesadas”, e propõe outras. Bonifácio vai acenando negativamente com a cabeça, avaliando os passos que já deu na pintura que está a realizar. Uma segunda monitora diz-lhe que “em arte tudo se transforma, nada se destrói”. O pintor responde: “mas quando se está na rua, com barulho de carros, música pum-pum-pum…”, justificando o seu fracasso. Esta última monitora pede à sua colega para que coloque uma música mais calma. Bonifácio diz que não, fazendo um esgar com a cara e pedindo para se desligar o som. Passados uns instantes, a monitora pergunta-lhe como está a ir o trabalho, ao que ele riposta, depois de olhar algum tempo para a tela: “É melhor não continuar. Ah! Meu Deus!”. A monitora, preocupada, questiona: “O que se passa, Bonifácio?”. Resposta do pintor: “É o que está a acontecer” (Resende e Carvalho, DC, 18 nov. 2020).
A sala torna-se inabitável (Breviglieri, 2002) para o pintor, que nela não encontra um ambiente onde possa prosseguir o seu trabalho. Em primeiro lugar, porque a música não é adequada para se concentrar. Mas também, em segundo lugar, porque do exterior vem uma série de estímulos a que o pintor não consegue escapar. Estando a porta aberta, vê-se perturbado pela carrinha que se encontra junto à sala a ser descarregada, exasperando-o e forçando-o a colocar um ponto final nas suas tentativas. Não deixa de ser sintomático que, quando incentivado a explicar o que se passa, o pintor responda: “É o que está a acontecer”: a atmosfera tornou-se inospitaleira, há demasiadas coisas a acontecer para que ele possa recolher a si próprio.
Mesmo na experiência criativa há que contemplar a dimensão habitual da ação, visto que ela requer um ambiente familiar, no mínimo inofensivo, no seio do qual os pintores possam baixar os níveis de vigilância e dar largas à introspecção. Parece ser crucial uma certa facilidade e previsibilidade na relação com o meio ambiente para que os pintores se possam libertar da vigília e da suspeita, para então, aí sim, se concentrarem na sua atividade (Brahy, 2014).
Todavia, se este engajamento em familiaridade é um pré-requisito para a experiência pictórica, ele não se confunde com esta. O alheamento carece de um ambiente favorável, devidamente equipado, mas a passibilidade não se confunde com a facilidade que o corpo experimenta num espaço que é tomado por garantido. A concentração da atenção em si mesmo pode ser um exercício sinuoso, difícil, até angustiante. A dúvida acompanha a exploração interna, o resultado é sempre incerto, o inesperado está à espreita. A passibilidade introspectiva, pelo risco e exposição que comporta, está longe de ser cômoda.
Esta viagem introspectiva não se limita a inverter a atenção do ambiente externo para a interioridade. Até aqui, vimos traçar-se um deslocamento do foco da atividade: a abertura da atenção desassocia-se da percepção, perde as âncoras externas, as referências objetais, e dirige-se antes para os pensamentos e o estado emocional daquele mesmo que percebe. Contudo, se o percebido e o perceptor são o mesmo sujeito empírico, eles não coincidem inteiramente. Repare-se que, se redundassem, nada haveria a explorar. Posto isto, para que a reflexividade introspectiva permita prosseguir o curso da ação, é necessário que à alteração do foco da atividade se junte uma dimensão da passibilidade, o “deixar vir” (Despraz et al., 2006).
Tal como a ação é sequencial, também a introspecção comporta uma teleologia, mesmo que incerta: os pintores voltam-se sobre si para pintar o que “sentem”, as suas “vivências”, o seu “passado”. Ora, do vivenciado até ao gesto pictórico, o passo não é automático: a tela não é o sentimento dos pintores, mas uma sua expressão, de onde a pesquisa introspectiva, este mergulho afetivo no tempo com o intuito de fazer emergir no ateliê o que se sentiu outrora através de uma modalidade passiva da cognição.
Voltemos a Bonifácio. Ele alheia-se do ambiente externo, empreende um conjunto de gestos autocentrados, cria um ritmo pessoal, desfasado da azáfama do ambiente que o rodeia, para se inserir introspectivamente na situação (movimentos pendulares, cadência constante e repetitiva), até que, a certa altura, se limita a nomear as cores com que vai pintar. O fato de culminar com a declaração das cores que vai utilizar, seguindo-se o gesto pictórico, revela que os minutos antecedentes tinham um fito. O caráter certeiro da escolha das cores decorre precisamente daquilo que ele deixou vir à consciência durante os momentos imediatamente antecedentes. Tudo indica, pois, que os movimentos até aí efetuados consubstanciaram uma espera.
A espera traduz a passibilidade inerente à reflexividade introspectiva. Não se trata de uma espera por algo determinado, como quando se aguarda o amigo à hora combinada. Esta espera não tem objeto, é inquieta, visto dirigir-se à memória. O que Bonifácio espera e vem ao seu encontro não é, portanto, a mera ratificação de expectativas formadas de antemão. Pelo contrário, é uma espera não focalizada (por isso o olhar que nada vê), aberta, que remete para uma revelação possível (Despraz et al., 2006). A compenetração alheada do exterior manifestada pelo pintor nestes momentos não releva de uma distração, tampouco se esgota na atenção, mas de um estar à espreita do que virá, e que só virá na medida em que Bonifácio passe por este tempo vazio de conteúdo (Idem).
Se a introspecção se cingisse a uma modalidade ativa de abertura da atenção, somente voltada para o interior, a espera não teria sentido. Se, com efeito, tudo leva a crer que Bonifácio espera antes de pintar, então há que integrar na reflexividade introspectiva uma passibilidade do pintor face ao que está para aparecer e, aliás, justamente como condição desse aparecimento, já que é essa disponibilidade que evita que o pintor esmague o que está para vir com pensamentos e linguagens já disponíveis (Idem). Trata-se de um abandono ativo, através do qual o pintor já não apenas retorna a si, como também, e sobretudo, se abre a si de um modo renovado, uma vez que essa evocação é especificamente direcionada para pintar.
Esta passibilidade do pintor intrincada na atividade da pintura lança luz sobre o paradoxo da criação artística, já aludido por Derrida (2012). A invenção, nas suas palavras, é uma “possibilidade impossível”. Se se inventa o que se é capaz de inventar, se é, pois, desde o início possível inventar, então, em rigor, isso equivale a não inventar, na medida em que, tratando-se do desdobramento de uma potencialidade que o artista já detinha, nada de realmente novo é trazido. Da mesma maneira que, se a invenção é tornada possível por condicionantes já existentes, se ela é sua consequência, também não se poderá dizer com propriedade tratar-se de uma criação, a qual é, outrossim, um acontecimento que advém e interrompe, evento que divide irreversivelmente o tempo num antes e depois (Quéré, 2006), mais do que continua potencialidades ou condições já existentes. Dito de outro modo, se a criação é possível, não é criação: criar é fazer vir o que ainda não estava aí nem podia estar, tornar possível o que não era possível. Inventar o impossível: eis o paradoxo que, como temos procurado explicitar, é, mais do que um jogo retórico, uma experiência do impossível e do acontecimento (Derrida, 2012).
Por via da análise dos dados empíricos, o “deixar vir” do pintor afigurou-se-nos um ângulo de entrada profícuo para examinar a experiência encarnada e fenomenal deste paradoxo. Há um momento em que o pintor precisa que algo aconteça no seu interior para que possa dar começo ao gesto pictórico, mas esse algo que lhe acontece não advém simplesmente da sua vontade. O pintor atravessa um tempo de silêncio vazio de conteúdos determinados (Despraz et al., 2006), a sua atenção reflui dando lugar ao acolhimento, a sua soberania sobre o que advém dissipa-se. “Após terminar a sua tela, Leopoldo pergunta-me: ‘Se olhares para o quadro, vês que é trabalhoso, não vês?’. Instantes depois, já à saída da sala, comunica à monitora: ‘Entreguei o meu máximo, doutora. Dá muito trabalho. Mesmo que não fique bonito, fica a ideia’” (Resende e Carvalho, DC, 12 jun. 2020).
Regressamos ao paradoxo da atividade-passibilidade. Leopoldo havia dito que não “part[e] de nenhuma imagem” e que “os riscos [lhe] saem naturalmente da cabeça”, embora a sua pintura seja esforçada e custosa. Bem se vê, evidentemente, que a tela resulta de um investimento trabalhoso em que Leopoldo “de[u] o [seu] máximo”. Todavia, fazendo fé no que o pintor afirma, que não parte de nenhuma ideia ou imagem, como compreender que, independentemente do valor estético da tela, ele considere que esta contém uma ideia? Segundo o excurso que realizamos, podemos perceber que a chave se encontra no significado do não partir de nenhuma imagem. Decerto Leopoldo não parte de nenhuma imagem definida, a ideia adquirindo consistência e densidade ao longo da atividade da pintura. Mas, do nosso ponto de vista, o que o pintor diz é que ele não parte de nenhuma imagem construída voluntariamente por si. Ele recebeu-a progressiva e passivelmente, pelo que, sem embargo a sua mestria na realização da tela, a ideia perdurará, é-lhe inescapável.
Leopoldo chega à sala e olha para uma tela sua exposta na parede, dizendo que ficou “muito gira” e que quando olha para ela “nem acredita que foi ele que a fez”. Seguidamente, reforça: “Olho para os quadros e sinto que não é possível ter sido eu a fazê-los” (Resende e Carvalho, DC, 16 set. 2020).
Os paradoxos da atividade e passibilidade que subjazem à criação artística resultam evidentes, clamando por que os tomemos na sua positividade própria, mais do que os resolvamos com recurso a procedimentos lógicos. Leopoldo fica incrédulo quando observa as suas obras. Ele sabe que as telas são suas, provenientes da sua mão e do seu trabalho, e, simultaneamente, surpreende-se de as ter pintado. À maior proximidade, visto que a sua obra constitui o prolongamento material do seu gesto pictórico, mistura-se a estranheza, compreensível quando pensamos que o mote da sua atividade passou pela adoção de uma postura passível e receptiva que “deixou vir” - para pintar.
A passibilidade transportada nos gestos de pintar: considerações finais
Principiamos com uma breve reflexão a respeito do lugar da passibilidade na experiência dos pintores em contexto institucional. Observando a conduta dos mesmos nas situações concretas em que se veem na necessidade de coordenar o curso da ação, pudemos verificar que a experiência comporta uma dimensão de atividade e outra de passibilidade, sendo esta última imprescindível para compreender a atividade pictórica, contrastando e/ou completando as versões sociológicas construtivistas - que, sublinhando a atribuição de sentido na construção da realidade social, negligenciam a dureza do meio ambiente -, ativistas - que hipertrofiam a ação em detrimento da recetividade e suscetibilidade face ao meio ambiente, aos outros e a si mesmo -, ou interacionistas - que negligenciam os modos de experienciar o mundo aquém da articulação simbólica com o mundo. Estando perante uma população com a condição clínica conhecida, a qual - seja devido ao prolongado período de institucionalização, seja devido aos sintomas das próprias doenças - limita seriamente o acesso aos meios mais usuais de comunicação e expressão, pensamos que esta reflexão sobre a passibilidade permite contemplar a dignidade humana de modo mais plural e inclusivo, na medida em que abre para outras gramáticas de envolvimento na ação e de inserção na existência, situadas aquém da ação e articulação simbólicas. Nesta senda, identificamos duas modalidades distintas da passibilidade. Uma primeira, em que os pintores, no curso da pintura e para lhe dar sequência, submetem ativamente a tela a uma investigação exploratória minuciosa com o desígnio de gerar e acolher os efeitos por ela despoletados. Em todo caso, julgamos que os dados produzidos relativamente à experiência da pintura revelam algo mais. Chegamos assim a uma segunda passibilidade, anterior à primeira pincelada, em que os pintores esboçam um movimento introspectivo: primeiramente, voltando a atenção e a orientação cognitiva do exterior para o interior e, seguidamente, suscetibilizando-se à vinda de sentimentos e vivências já experimentados. Duas modalidades, estas, que julgamos cruciais para a compreensão da experiência criativa dos artistas em torno das suas pinturas, razão pela qual consideramos poder ser este estudo um subsídio interessante para abrir pistas para a reflexão sociológica - ainda incipiente - a respeito da criação artística.
Se a primeira modalidade de passibilidade referida vai ao encontro do que Auray e Vétel (2013) denominam ação exploratória curiosa, como também do que Hennion (2011) escreve a respeito da relação de suscetibilidade dos atores perante os efeitos dos objetos, e ainda da ideia de Brahy (2014) acerca da porosidade corporal e emocional que caracteriza a ação em presença, somente com a diferença de se dirigir, não à sintonização com um par humano, mas à tela, já a segunda modalidade de passibilidade que expusemos, por sua vez, não se deixa apreender inteiramente por estes contributos. Aqui, os pintores arriscam-se num mergulho interior em que vigora a ausência de conteúdos determinados. Podendo até falar-se de uma abertura curiosa: pelo menos numa primeira fase do “deixar vir”, ela orienta-se para o interior, em vez de ter nas referências externas âncoras do agir. Ademais, na introspecção está em causa um processo de subida à consciência para começar a pintar, mais do que um conjunto de procedimentos para fazer a tela, ou outro objeto externo, falar.
A introspecção afigurou-se-nos, pois, uma via para expandir e enriquecer o estudo sociológico acerca do lugar da passibilidade na experiência. Procuramos clarificar que aquela não é um fenômeno solipsista, subjetivista ou idealista, no qual os outros e o ambiente em que os atores se acham engajados não desempenhariam nenhum papel, mas sim relacional, situado e corporal, sendo empiricamente captável. Em contrapartida, pensamos ter mostrado que a introspecção também não é um fenômeno explicável por fatores sociais exógenos e a montante da criação artística, remetendo antes para as situações concretas em que os artistas coordenam o curso da sua ação. Os instrumentos analíticos das sociologias pragmatistas, subsidiadas pela fenomenologia, revelaram-se eficazes no evitamento, mais do que síntese, dos dualismos clássicos entre agência e estrutura, indivíduo e coletivo. Seguindo uma orientação pragmatista e fenomenológica, procurando compreender como a passibilidade é vivida pelos pintores de modo continuista e antidualista, há a registar que nenhuma destas duas modalidades provoca uma ruptura ou interrupção na experiência pictórica, antes a integrando organicamente. De resto, é justamente a variação rítmica do fluxo experiencial, sempre oscilante entre os polos da atividade e da passibilidade, que dispara diferenciais cognitivos e afetivos estimulantes da prática da pintura.
Dada o atual panorama no que às políticas sociais diz respeito, este aspecto afigura-se-nos de especial relevância. É que o crescente incentivo à subjetivação no trabalho realizado pelas instituições junto de populações em situação de vulnerabilidade tende amiudadas vezes a confundir-se com o fomento da construção reflexiva e narrativa da identidade. Ora, a partir do caso dos dois pintores mencionados, percebemos que é redutor associar o trabalho de subjetivação à articulação simbólica e à reciprocidade, constatando, por sua vez, a importância da espera silenciosa e da meditação introspectiva. Ademais, neste contexto que prima pela ativação e pela capacitação para a autonomia e para a responsabilização, sublinhamos ainda a importância da receptividade estética e da passibilidade, não como forças antagônicas da subjetivação, mas precisamente como modalidades de canalizar as emoções e as vivências para o curso da ação sem atender necessariamente à prestação verbal de contas, evitando as por vezes (e por maioria de razão na população aqui estudada) demasiadamente exigentes injunções da figura liberal clássica do sujeito autônomo. Por estas razões, pretendemos ter fundamentado o quão cruciais são estas atividades na vida cotidiana daqueles que se encontram em regime de institucionalização.
Referências Bibliográficas
- ACORD, Sophia Krzys & DENORA, Tia. (2008), “Culture and the arts: From art worlds to arts-in-action”. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, 619 (1): 223-237.
- AURAY, Nicolas & VÉTEL, Bruno. (2013), “L’exploration comme modalité d’ouverture attentionnelle. Design et régulation d’un jeu freemium”. Réseaux, 6 (132): 153-186.
- BIDET, Alexandra. (2011), “La multi-activité, ou le travail est-il encore une expérience?”. Communications, 2 (89): 9-26.
- BIDET, Alexandra et al. (2019), “Além da inteligibilidade mútua: a atividade coletiva como uma transação. Uma contribuição de pragmatismo ilustrado por três casos”. Trabalho & Educação, 28 (3): 13-34.
- BOLTANSKI, Luc & THÉVENOT, Laurent. (1991), De la justification. Les économies de la grandeur. Paris, Gallimard.
- BRAHY, Rachel. (2014), “L’engagement en présence: l’atelier de théâtre-action comme support à une participation sociale et politique”. Lien Sociale et Politiques, 71: 31-49.
- BREVIGLIERI, Marc. (2002), “L’horizon d’une plus habiter et l’absence du maintien de soi en public”. In: CEFAI, Daniel & JOSEPH, Isaac (Eds.). L’héritage du pragmatisme. Conflits d’urbanité et épreuves de civisme. La Tour d’Aigues, Éditions de l’Aube, pp. 319-336.
- BREVIGLIERI, Marc. (2012), “L’espace habité que réclame l’assurance intime de pouvoir. Un essai d’approfondissement sociologique de l’anthropologie capacitaire de Paul Ricœur”. Études Ricoeuriennes/Ricœur Studies, 3 (1): 34-52.
- BREVIGLIERI, Marc. (2016), “Pensar a dignidade sem falar a linguagem da capacidade de agir: uma discussão crítica sobre o pragmatismo sociológico e a teoria do reconhecimento de Axel Honneth”. Terceiro Milénio: Revista Crítica de Sociologia e Política, 6 (1): 11-34.
- BURKE, Tom. (2000), “What is a Situation?”. History and Philosophy of Logic, 21 (2): 95-113.
- CASTEL, Robert. (2009). La montée des incertitudes: travail, protections, statut de l’individu. Paris, Éditions du Seuil.
- DE LA FUENTE, E. (2007). “The new sociology of art: Putting art back into social science approaches to the arts”. Cultural Sociology, 1 (3): 409-425.
- DERRIDA, Jacques. (2012), “Uma certa possibilidade impossível de dizer o acontecimento”. Revista Cerrados, 21 (33): 231-251.
- DESPRAZ, Natalie et al. (2006), “A redução à prova da experiência”. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 58 (1): 75-86.
- DEWEY, John. (2012), Expérience et nature. Paris, Gallimard.
- DODIER, Nicolas & RABEHARISOA, Vololona. (2006), “Les transformations croisées du monde ‘psy’ et des discours du social”. Politix, 73 (1): 9-22.
- FRANSSEN, Abraham. (2006), “L’État social actif et la nouvelle fabrique du sujet”. In: ASTIER, Isabelle & DUVOUX, Nicolas (eds.). La société biographique: Une injonction à vivre dignement. Paris, L’Harmattan, pp. 75-115.
- GOFFMAN, Erving. (2011), Ritual de interação. Ensaios sobre o comportamento face a face. Petrópolis, Vozes.
- GOMART, Emilie & HENNION, Antoine. (1999), “A sociology of attachment: music, amateurs, drug users”. The Sociological Review, 47 (1): 220-247.
- HENNION, Antoine. (2011), “Pragmática do gosto”. Revista de Ciências Sociais da PUC-Rio, 8: 253-277.
- INGOLD, Tim. (2000), The perception of the Environment: Essays on Livelihood, Dwelling and Skill. Londres, Routledge.
- JAMES, William. (1912), Essays in radical empiricism. Nova York, Longmans, Green and Co.
- JOAS, Hans. (1996), The creativity of action. Cambridge, Polity Press.
- MEAD, George Herbert. (2010). Mente, Self e Sociedade. São Paulo, Ideias & Letras.
- MENGER, Pierre-Michel. (2022), “Sociologie du travail créateur”. L’Annuaire du Collège de France, 119: 621-650.
- MILLS, Charles Wright. (1940), “Situated actions and vocabularies of motive”. American Sociological Review, 5 (6): 904-913.
- MOL, Annemarie & LAW, John. (1994), “Regions, networks and fluids: anaemia and social topology”. Social Studies of Science, 24 (4): 641-671.
- OGIEN, Albert. (2018), Practical Action: Wittgenstein, pragmatism and sociology. Cambridge, Cambridge Scholars Publishing.
- PEIRCE, Charles Sanders. (1999), Semiótica. São Paulo, Perspectiva.
- PIETTE, Albert. (2013), “Au coeur de l’activité, au plus près de la présence”. Réseaux, 6 (182): 57-88.
- POLLAK, Michael. (2000), L’Expérience concentrationnaire, essai sur le maintien de l’identité social. Paris, Éditons Métailié.
- QUÉRÉ, Louis. (1997), “La situation toujours négligée?”. Réseaux, 5 (85): 163-192.
- QUÉRÉ, Louis. (2006), “Entre fait et sens, la dualité de l’événement”. Réseaux, 5 (139): 183-218.
- QUÉRÉ, Louis. (2020), “From inter-action to trans-action: Ecologizing the social sciences”. In: MORGNER, Christian (ed.). John Dewey and the notion of trans-action: A Sociological reply on rethinking relations and social processes. Springer Verlag.
- RESENDE, José Manuel & CARVALHO, José Maria. (maio 2020-dez. 2021), Diário de campo (DC). Centro de Apoio Social do Pisão (Casp), Cascais, Lisboa, Portugal.
- RESENDE, José Manuel & CARVALHO, José Maria. (2020), “Travessias de seres (in)capacitantes”. Terceiro Milênio: Revista Crítica de Sociologia e Política, 14 (1): 149-171.
- RESENDE, José Manuel & CARVALHO, José Maria. (2021), “Transitar no habitar e habitar transitando: nos rastos da experiência criativa de um pintor abstrato residente no Pisão”. Sociedade e Estado, 36 (2): 487-512.
- STAVO-DEBAUGE, Joan. (2012), “Le concept de ‘hantises’. De Derrida à Ricoeur (et retour)”. Études Ricoeuriennes/Ricoeur Studies, 3 (2): 128-148.
- STRAUSS, Anselm. (1994), “L’influence réciproque de la routine et de la non-routine dans l’action”. In: MENGER, Pierre-Michel & PASSERON, Jean-Claude (eds.). L’art de la recherche. Essais en l’honneur de R. Moulin. Paris, La Documentation Française.
- THÉVENOT, Laurent. (2006), L’action au pluriel: Sociologie des régimes d’engagement. Paris, Éditions La Découvert.
- ZEITLER, André & BARBIER, Jean-Marie. (2012), “La notion d’expérience, entre langage savant et langage ordinaire”. Recherche et Formation, 2 (70): 107-118.
-
1
. Texto escrito em português de Portugal; foi feita a atualização ortográfica.
-
A pesquisa que dá corpo ao presente texto está inserida no âmbito de um projeto de doutoramento financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), cuja bolsa tem a referência 2020.07755.BD.
-
2
. Resende e Carvalho, DC, 22 maio 2020.
-
3
.Idem, 5 jun. 2020.
-
4
.Idem, 19 jun. 2020.
-
5
.Idem, 29 jul. 2020.
-
6
.Idem, 5 maio 2021.
-
7
.Idem, 21 abr. 2021.
-
8
.Idem, 26 jun. 2020.
-
9
.Idem, 22 maio 2020.
-
10
.Idem, 5 jun. 2020.
-
11
.Idem, 5 jun. 2020.
-
12
.Idem, 29 jul. 2020.
-
13
.Idem, 19 jun. 2020.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Set 2024 -
Data do Fascículo
May-Aug 2024
Histórico
-
Recebido
07 Nov 2023 -
Aceito
20 Maio 2024