Open-access Sociologia histórica e interpretação do racismo no Brasil

Historical sociology and interpretation of racism in Brazil

Resumo

Este artigo examina as contribuições da chamada sociologia histórica ou processual para análise do racismo no Brasil a partir de quatro conceitos centrais: revolução, reprodução, formação e evento. O argumento central é que a análise processual dos acontecimentos, nas diferentes abordagens selecionadas, oferece algumas alternativas para enfrentar o principal obstáculo enfrentado no campo da sociologia do racismo: explicar conjuntamente a formação das desigualdades raciais e sua produção social na interação e sociabilidade entre os agentes. Sugere-se que o objetivo específico da sociologia histórica neste campo de pesquisa é a racialização da experiência social do tempo, isto é, a constituição de temporalidades racializadas.

Palavras-chave: Sociologia histórica; Racismo; Raça; Desigualdade; Temporalidades racializadas

Abstract

This article examines the contributions of so-called historical or processual sociology to the analysis of racism in Brazil, based on four central concepts: revolution, reproduction, formation and event. The central argument is that the processual analysis of events, in the different approaches selected, offers some alternatives for tackling the main obstacle faced in the field of the sociology of racism: jointly explaining the formation of racial inequalities and their social production in the interaction and sociability between agents. It is suggested that the specific objective of historical sociology in this field of research is the racialization of the social experience of time, that is, the constitution of racialized temporalities.

Keywords: Historical sociology; Racism; Race; Inequality; Racialized temporalities

Introdução

Um paradoxo notável, presente na sociologia do racismo praticada no Brasil contemporâneo, é que a sofisticação das ferramentas estatísticas e matemáticas para mensurar e observar a constituição e a reprodução das assimetrias econômicas, políticas e sociais entre os nomeados grupos de cor, em especial brancos e negros, se fez às custas de sua dissociação analítica daqueles contextos de interação em que os fenômenos do preconceito e da discriminação racial podem ser observados ou historicamente reconstruídos. Conforme declarou o sociólogo Carlos Hasenbalg, pesquisador que liderou a agenda de investigações sobre estratificação e desigualdades raciais no último quartel do século XX, um dos obstáculos enfrentados em sua abordagem é que “a discriminação não é observada diretamente. Ela é inferida a partir da análise da disparidade de resultados sociais dos grupos de cor, controlada pelas variáveis relevantes” (Hasenbalg, 2005, p. 260). Palavras que subsomem o principal obstáculo enfrentado nesse campo nas duas primeiras décadas do século XXI: explicar conjuntamente a formação das desigualdades raciais, os mecanismos que as produzem na interação e a sociabilidade entre as pessoas.

As disputas políticas em torno da questão racial intensificaram ainda mais esse problema, pois a crítica ao mito da democracia racial, a luta do movimento negro por ações afirmativas e a denúncia do assombroso morticínio de jovens e crianças negras pela polícia militar ganharam expressão pública por meio do uso reducionista e simplista de noções como “racismo estrutural” e “racismo institucional”. Numa frase: usos que enfatizam o caráter sistêmico da desigualdade racial sem interrogar os processos históricos singulares, as instituições e os agentes sociais que a configuram rotineiramente na vida social. Desta feita, a louvável eficácia política da circulação de tais categorias no mercado editorial, na mídia televisiva e nas redes sociais teve o efeito inesperado de conferir à ideia partilhada de racismo um sentido essencialista de totalidade, transformando em explicação aquilo que deveria ser o começo de nossas de perguntas. Ou seja, se o racismo é estrutural, resta explicar como ele se estrutura na família, no mundo da arte, na universidade, na política, isto é, nos diversos domínios da ação social; descrever quais os mecanismos específicos e próprios pelos quais o mesmo se reproduz em cada campo particular; revelar a feição singular dessa “estrutura” em cada uma das esferas da vida. Análises cujos esforços de pesquisa e resultados são bem mais lentos, exigem a colaboração entre os pesquisadores, e um programa duradouro de investigações.

A retomada de uma sociologia histórica nesse campo de pesquisa, no Brasil, desenvolveu-se como uma resposta a esse ambiente político no qual esses estudos emergiram nas últimas duas décadas, bem como a alguns obstáculos teóricos e metodológicos enfrentados pela teoria da estratificação social e da desigualdade, que havia liderado a agenda de pesquisas sobre o racismo no país1. Conforme argumentou Antônio Sérgio Guimarães, esse novo contexto exigia uma mudança de orientação nas investigações sobre o tema:

Há, pois, que se superar a defasagem criada entre os estudos de interação social e os de estrutura social, entre aqueles da cultura e os da sociedade. Um hiato que ganhou contornos disciplinares, cada vez mais rígidos, com a separação entre a sociologia e a antropologia, e o crescente interesse de ambas em estudar os mesmos territórios. Essa tarefa também é difícil porque requer que elaboremos uma narrativa mais densa, circunscrevamos com maior precisão o tempo e os eventos a serem tratados em nossos estudos, o que, ainda que esteja na origem de nossa tradição disciplinar, nos desabituamos a fazer na sociologia (Guimarães, 2008, pp. 102-103, grifos meus).

Os recursos analíticos e conceituais da chamada sociologia histórica ou processual são particularmente adequados a esse desafio2. A ênfase em processos sociais complexos, envolvendo agentes particulares, movimentos políticos e sociais, instituições, em contextos de mudança social ou visando a explicar a continuidade cultural, obriga o analista a reconstruir as combinações entre os contextos de interação e constituição dos atores com a reconfiguração das estruturas sociais3. Também se faz necessário explicar o significado das transformações analisadas do ponto de vista das pessoas que as vivenciaram, assim como o seu lugar na história social de uma comunidade, uma região, um país, ou mesmo suas consequências para a história mundial ou global. É precisamente a relevância da decifração do significado cultural de raça em contextos específicos que me leva a falar aqui de “interpretação do racismo”. O presente artigo se propõe a demonstrar como diferentes abordagens identificadas com a sociologia histórica lidaram com o problema de como formas rotineiras de interação e sociabilidade e a incorporação dos esquemas de classificação se conectam à formação das estruturas sociais e à reprodução das desigualdades raciais.

De um modo geral, os estudos sociológicos sobre relações raciais no Brasil têm lançado mão daquilo que se chama, no jargão universitário, de “recorte histórico”. Trata-se de um modo de delimitação temporal dos eventos analisados que não implica as preocupações analíticas que cercam a análise processual nem a conceituação precisa das categorias temporais de explicação utilizadas. Eu diria mesmo que o tempo não chega a ser propriamente social nestas abordagens, flui progressivamente, “naturalmente”, em linha reta. Não possuem assim a densidade semântica e a riqueza imagética que as ciências sociais imprimiram aos conceitos temporais. Esta é uma das razões pelas quais o presente artigo não trata do amplo conjunto de pesquisas sobre raça no qual a história é relevante. Uma outra razão, bem mais importante, é que o racismo enquanto fenômeno social não ocupa um lugar proeminente na agenda dos pesquisadores dedicados à questão racial no contexto brasileiro4.

Neste sentido, o presente artigo dedica-se a um conjunto muito limitado de investigações que privilegiaram a análise de contextos recuados no tempo e se destacam pelo controle heurístico do uso de algumas categorias temporais como revolução, reprodução, formação e evento. Esses quatro conceitos-chave imprescindíveis ao vocabulário das ciências sociais organizam as seções do texto e serão mobilizados para interrogar como a imaginação sociológica do tempo constitui a interpretação do racismo no Brasil.

Embora as perspectivas aqui observadas estejam organizadas numa certa cronologia, vale enfatizar que as mesmas não “superam” ou “resolvem” os problemas colocados pelas demais, sendo, na maioria dos casos, abordagens contemporâneas e, sob alguns aspectos, complementares. Cada uma delas nos permite formular a seu modo o argumento de que o objeto específico da sociologia histórica neste campo de pesquisa é a racialização da experiência social do tempo, isto é, a constituição de temporalidades racializadas.

Revolução

Na tradição brasileira, a construção de uma sociologia histórica das relações raciais foi uma das marcas da escola paulista de sociologia e, em particular, dos trabalhos pioneiros de Florestan Fernandes. Algumas das justificativas que balizaram o trabalho sociológico nesse campo por muitos anos foram formuladas no projeto de pesquisa intitulado “Raça e sociedade: o preconceito racial em São Paulo”. Esse texto fundamentou as hipóteses do livro clássico Brancos e negros em São Paulo (1951), escrito em colaboração com Roger Bastide. Um dos pontos mais interessantes desse projeto de pesquisa para o leitor contemporâneo é o modo como o autor justifica o recurso a uma explicação histórica:

Na verdade, a noção de preconceito racial pertence àquela categoria de termos sociológicos cuja delimitação conceitual depende da plena adequação do vocábulo à realidade ou situação particular investigada. Os resultados da crítica a esse conceito são interessantes, pois demonstram que as possibilidades dos procedimentos básicos de conceptualização, utilizados na sociologia, variam de acordo com a natureza dos fenômenos investigados. Tanto a conceptualização pela abstração do geral, quanto a conceptualização pela abstração do específico apresentam sérias limitações: ambas salientam como essencial o que é somente uma implicação do fenômeno, o modo de consciência social e de tratamento recíproco; a conceptualização pela abstração da função, por sua vez, colide com a impossibilidade criada pelo fato de não ser o preconceito racial um componente imediato da estrutura social: em consequência, ele possui não uma, mas diversas funções manifestas ou latentes. Daí a necessidade do procedimento histórico, de conceptualização pela particularização - usado de maneira indiscriminada por alguns sociólogos e repelido da mesma maneira por outros - o qual permite operar com o conceito combinando a plasticidade à precisão (1976, pp. 292-293).

Observe-se que é em meio a uma linguagem funcionalista que Florestan Fernandes justifica a importância da explicação histórica do preconceito racial. Uma vez que esse fenômeno apresenta diversas funções sociais “latentes ou manifestas”, analisá-lo exige um rigoroso exercício de contextualização. Mas há outra justificativa ainda mais decisiva: “os padrões de comportamento a ele associados [ao preconceito racial] exprimem, pois, maneiras de estar ligado no todo e pelo todo social. Embora não seja um simples epifenômeno da vida social, o preconceito racial reflete todas as flutuações e transformações de importância que se operam nas referidas situações sociais” (Fernandes, 1976, p. 291). Nesse sentido, um dos principais interesses que as relações entre grupos sociais categorizados como “raças” apresentam para uma sociologia histórica é serem um índice relevante da mudança ou da reprodução dos padrões sociais. Ao chamar a atenção para a importância do tempo como fator que permite visualizar e descrever as regularidades sociais, passadas e presentes, que se exprimem no fenômeno do preconceito racial, a explicação pode combinar os contextos de interação e sociabilidade, nos quais o fenômeno é observável, com uma interpretação empiricamente fundamentada sobre a formação histórica das estruturas sociais, relacionando atitudes, valores e práticas à constituição das desigualdades raciais.

É precisamente esse exercício que tomou fôlego no livro Brancos e negros em São Paulo, mais especificamente num capítulo inteiramente redigido por Fernandes intitulado “Cor e estrutura social em mudança”. Para o autor, a persistência da correlação entre cor e status no pós-abolição, numa cidade em franco processo de industrialização, indicava os limites do avanço da ordem social capitalista. Mas agora o preconceito de cor havia mudado de significado, pois se era fenômeno normal, em termos durkheimianos, numa sociedade escravista dividida em castas e estamentos, no novo contexto, fazia persistir uma estratificação racial que truncava a plena emersão de uma sociedade de classes. A ênfase do autor em analisar o preconceito de cor como uma herança do passado, que se tornou mais forte em obras posteriores, tem feito os sociólogos contemporâneos desprezarem os seus muitos achados e insights acerca dos sentidos contemporâneos do racismo no tempo presente de sua interpretação, como nas primorosas linhas que seguem:

A família patriarcal entrara em desintegração, concomitantemente com a ordem senhorial, perdendo a sua função classificadora e a sua importância política. Talvez por isso mesmo o problema da cor se tornou mais grave para os componentes das famílias tradicionais paulistas. Uma orientação demasiado democrática na aceitação dos indivíduos de cor, quer através do casamento, quer com habitués das reuniões sociais familiares, poderia ser interpretada como sinal de decadência. Daí a firmeza com que se mantiveram, nos momentos de crise econômica, política e social, atitudes de rejeição que não possuíam mais, com a desagregação simultânea da ordem senhorial e da família patriarcal, nem o significado nem as funções sociais anteriores (Fernandes, 2008, p. 144, grifos meus).

A análise de Florestan Fernandes é tanto mais rica quanto mais sua atenção se dirige à especificidade e à variação dos significados e funções do preconceito racial para os diferentes grupos sociais ao longo da história. Chamo atenção para este aspecto não apenas para me contrapor ao senso comum erudito segundo o qual, para o autor, a expansão da ordem social capitalista iria gradualmente destruir o racismo5. Mas porque penso que foram descobertas dessa natureza que fizeram sua sociologia das relações raciais tão fecunda para a organização de uma agenda de pesquisa bem mais ampla sobre a forma e as características das mudanças sociais no Brasil. A reflexão sobre a questão racial lhe colocava imediatamente o problema do ritmo desigual das transformações sociais em distintos domínios da ação social, como a esfera da política institucional, do mercado e o plano societário das relações humanas. Assim, um dos dilemas do processo de modernização social no país é que, enquanto a ordem social competitiva se expandia no campo do mercado, havia profundas resistências autoritárias ao aprofundamento da democracia no universo político, e as relações entre as pessoas eram dominadas por códigos arcaicos e tradicionalistas de conduta, desde a vida familiar e íntima às relações e interações públicas entre os indivíduos. Numa autocrítica aos seus próprios esforços na década de 1950 - em especial, àqueles reunidos no livro Mudanças sociais no Brasil - Florestan Fernandes afirmou:

As distorções do nosso “superego nacional” são tão profundas que eu próprio tinha como certo que essas contradições se explicariam, sociologicamente, em termos de hipóteses clássicas. Pensava que o dilema social brasileiro estaria em ajustar as esferas da sociedade brasileira, que não se transformaram ou que se transformaram com menor intensidade, às esferas que se alteraram com maior rapidez e profundidade (Fernandes, 1976, p. 210).

A consciência desse problema foi um passo necessário para que o autor desse início à reelaboração da questão das características das mudanças sociais no país - o entrave à modernização equilibrada das diferentes esferas da vida social - como o dilema das especificidades da revolução burguesa no Brasil. Esse reenquadramento cheio de consequências analíticas e políticas que marcariam toda a obra e a intervenção pública de Florestan Fernandes nos anos da ditadura militar (1964-1985) começou a tomar forma em A integração do negro na sociedade de classes ([1965] 2008a, 2008b). Com efeito, aquilo que era formulado como a questão da “cor numa estrutura social em mudança” em Brancos e negros em São Paulo é teoricamente reconstruído e categorizado como “O negro e a revolução burguesa”, título de uma das primeiras seções do livro.

A reinterpretação da questão racial brasileira a partir da análise do significado da revolução burguesa numa nação periférica, onde o capitalismo foi forjado pelo colonialismo e a escravidão, alargava e muito a relevância sociológica das relações de força entre os grupos raciais para a compreensão da modernidade no Brasil e no mundo. E algumas de suas possibilidades ainda não foram exploradas plenamente pela sociologia do racismo. Em primeiro lugar, o conceito de revolução burguesa e o foco nos processos sociais que a engendraram diferencialmente em várias partes do ocidente metropolitano e colonial permitem a realização de uma sociologia do racismo comparativa e macro-histórica, capaz de transcender os limites do nacionalismo metodológico. Este exercício não é realizado na referida tese, mas a comparação histórica e tipológica entre a revolução burguesa na França e no Brasil realizada em A revolução burguesa no Brasil (1974) mostra que seu aparato conceitual permite uma investigação dessa natureza. Em segundo lugar, o conceito de revolução burguesa direciona a análise para as lutas em torno da expansão dos direitos políticos e sociais dos grupos racialmente subordinados, isto é, coloca o problema da relação entre raça e capitalismo sem reduzi-lo à sua dimensão econômica, conferindo destaque aos processos políticos e às disputas simbólicas e culturais.

O uso do conceito de revolução também implicava a elucidação das diferentes temporalidades com que os grupos sociais haviam vivenciado e imaginado o sentido do tempo e da história após o fim da escravidão e a instituição da República, segundo o autor, momentos de inflexão da revolução burguesa no país. O diálogo do texto com os documentos de época ou com a fala de seus informantes destaca esse aspecto, como a seguinte passagem sobre o modo como os setores mais aristocráticos e paternalistas infundiam significado àquelas transformações: “O seguinte testemunho, de uma informante anciã de família ilustre, documenta essa perspectiva. ‘Eu acho que os negros eram mais felizes no tempo da escravidão, especialmente quando tinham senhores bons’” (2008, p. 100). Um depoimento de um interlocutor negro, por sua vez, afirmava: “com o decreto de 13 de Maio de 1888 começou verdadeiramente, para a gente negra, o drama insolvido até hoje, drama de aspetos tragicômicos, que tem mantido o homem negro no mais fundo dos porões da degradação […] embora com liberdade” (2008, p. 108). Depoimentos que revelam a racialização da experiência social do tempo. A combinação de diversas metodologias, como a exploração de dados quantitativos e censitários, a pesquisa de arquivo e a realização de entrevistas, permitia a interpretação processual dos discursos coletados e analisados.

Um dos pontos altos da análise sobre como a imaginação do tempo constitui as práticas sociais de pessoas e grupos é desenvolvido na seção sobre os movimentos negros no começo do século XX. Nas palavras do autor: “a concepção do mundo e da história que eles iriam difundir trazia consigo a marca da ‘negridade’ - ou seja, uma compreensão do passado, do presente e do futuro coerente com a perspectiva social e com os anseios de justiça da ‘gente negra’” (Fernandes, 2008, p. 98, grifos meus). Uma compreensão que revelava a posição ambivalente da gente negra em meio ao processo de modernização social e político. Por um lado, tratava-se do grupo mais evidentemente clivado das oportunidades concorrenciais de ascensão social típicas de uma sociedade de classes. Mas também daqueles cujo protesto contra o preconceito racial os tornava um dos principais agentes da revolução burguesa no país, exigindo um contrato social no qual o exercício social da cidadania prescindisse da referência à origem nobiliárquica, linhagem de sangue e cor. Conforme notou Fernandes, a utopia de uma “segunda abolição” condensou essa percepção da história:

A noção de “raça espoliada”, de “espoliação secular”, de “raça secularmente desprezada e espoliada” atravessa os espíritos e ressurge em quase todos os debates. […] Em suma, tratava-se de “uma luta de redenção e de afirmação de direitos”. O “negro” pretendia se elevar à condição de “raça” livre, autônoma e respeitada, projetando-se no processo histórico como agente de uma revolução social que abortara. Ele não retoma a ideologia do abolicionismo, construída pelos “brancos” e para os “brancos”. Elabora ele mesmo os seus mitos, avaliações e aspirações sociais, tentando dar à segunda Abolição o conteúdo de uma afirmação do “negro” para o “negro” dentro da ordem social estabelecida (Fernandes, 2008, pp. 120-121).

Por todas essas razões, muito do interesse que uma obra como A integração do negro na sociedade de classes ([1965] 2008a, 2008b) ainda exerce sobre os cientistas sociais é que Florestan Fernandes nos faz assistir à evolução de uma estrutura social, em conjunto com a interação e a sociabilidade dos agentes, suas ideologias e seus valores. Por um lado, temos uma visada histórica do desmantelamento do escravismo em São Paulo e do modo como ele afeta a estratificação de grupos sociais, limitando alternativas de ascensão social para negros e mulatos, gerando novas oportunidades ocupacionais e estatutárias para os imigrantes, possibilitando a modernização dos investimentos da fração burguesa da velha elite senhorial e estimulando o conservadorismo de sua fração tradicionalista, incrustada no Estado. Por outro lado, ouvimos madames piedosas, lamentando o fim da tutela sobre seus antigos escravos; as histórias de vida de mulheres e homens negros, cujo esforço pessoal é barrado pelo pauperismo generalizado; a ação dos movimentos sociais, denunciando o preconceito de cor, tentando suplantar, sem recursos, a persistência dos privilégios senhoriais e sendo engolfados pelas contradições próprias ao capitalismo; a consolidação do mito da democracia racial - uma espécie de má consciência entre brancos que, assim, naturalizam os privilégios herdados do passado - como ideologia nacional; e uma utopia entre os negros que buscam, na mitigação da violência que marcava as relações de sociabilidade vigentes no período da escravidão, uma alternativa para um contrato social cada vez mais igualitário. Em suma, trata-se de um esforço no qual a explicação sociológica processual, histórica, firma seu sentido no vínculo entre cultura e sociedade.

Reprodução

As questões colocadas pelo trabalho de Florestan Fernandes orientaram o desenvolvimento do campo de estudos sobre raça nas ciências sociais brasileiras ao longo da segunda metade do século XX, suscitando uma ampla revisão e crítica de algumas de suas premissas teóricas e metodológicas, bem como dos seus efeitos na interpretação dos dados empíricos. Os problemas centrais diziam respeito tanto à análise da reprodução do racismo quanto ao lugar da agência e ao protagonismo de grupos subordinados ao longo da história. Entretanto, o conjunto de soluções e alternativas apresentadas atuaram no sentido de dissociar o que havia de melhor no modelo processual de explicação desenvolvido em A integração do negro na sociedade de classes: a conexão entre a rotina de interações cotidianas entre pessoas, a formação histórica de esquemas de ação e categorias de percepção social e a construção e persistência das desigualdades raciais.

Em parte, isso foi um resultado do deslocamento da fundamentação empírica da teoria social do racismo, que caminhou de uma sociologia histórica para uma sociologia quantitativa da desigualdade e da estratificação social. O marco fundamental dessa virada é o livro seminal de Carlos Hasenbalg, Discriminação e desigualdades raciais no Brasil (1979), seguido por uma série de artigos importantes, vários deles em parceria com Nelson do Vale e Silva, publicados nos anos 1980 e 1990 na revista Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Candido Mendes no Rio de Janeiro. Uma parte dessa colaboração foi reunida nos livros Estrutura social, mobilidade e raça (1988), Relações raciais no Brasil contemporâneo (1992) e Origens e destinos: desigualdades sociais ao longo da vida (2004).

Uma das principais contribuições do chamado “paradigma das desigualdades raciais” foi sofisticar e refinar a análise sobre como o racismo se reproduz em sociedades capitalistas modernas. A ênfase no legado do escravismo, na “persistência do passado” - ainda que considerada relevante para aspectos centrais como a concentração demográfica da população negra em áreas rurais e o analfabetismo maciço - é deslocada para compreender os significados mais contemporâneos da opressão racial. A história é considerada, mas não ocupa um lugar central na explicação. Por outro lado, o tratamento da dominação e exploração racial existentes em sociedades multirraciais capitalistas não é observado apenas como parte do conflito de classes, da proletarização desproporcional da gente negra, pois não beneficia apenas os proprietários dos modos de produção, mas todos aqueles classificados como brancos. Raça aparece como uma variável independente tanto do ponto de vista da exploração econômica, das posições no mundo de trabalho e suas lógicas internas de dominação quanto da distribuição do prestígio e das recompensas simbólicas existentes entre os grupos sociais.

Em termos simples: os capitalistas brancos beneficiam-se diretamente da (super) exploração dos negros, ao passo que os outros brancos obtêm benefícios mais indiretos. A maioria dos brancos aproveita-se do racismo e da opressão racial, porque lhe dá uma vantagem competitiva, vis-à-vis a população negra, no preenchimento de posições na estrutura de classes que comportam as recompensas materiais e simbólicas mais desejadas. Formulado mais amplamente, os brancos aproveitaram-se e continuam a se aproveitar de melhores possibilidades de mobilidade social e de acesso diferencial a posições mais elevadas nas várias dimensões da estratificação social. Essas dimensões podem ser consideradas incluindo elementos simbólicos, mas não menos concretos, tais como a honra social, tratamento decente e equitativo, dignidade e o direito à autodeterminação (Hasenbalg, 2005, p. 122).

O autor sustenta esse argumento inferindo a discriminação racial, visto que outras variáveis relevantes não são suficientes para explicar a existência e a persistência da desigualdade entre brancos e não brancos. Mas, uma vez que o método utilizado não permitia descrever empiricamente a discriminação, Carlos Hasenbalg também investe nos aspectos ideológicos do racismo e na importância da regulação das aspirações dos grupos racialmente subordinados para explicar a rigidez da desigualdade racial. No Brasil, há o dito popular: “O negro sabe o seu lugar”. Nas últimas décadas do século XX, Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle-Silva sofisticaram ainda mais o modelo de análise apresentado em Discriminação e desigualdades raciais, com base em métodos multivariados de pesquisa quantitativa, capazes de capturar os efeitos próprios da raça com relação a outras variáveis importantes para a realização socioeconômica dos indivíduos. A parceria também resultou na elaboração da teoria dos ciclos de vantagens e desvantagens cumulativas distribuídas entre os indivíduos a cada geração, tornando possível visualizar a desigualdade social a partir da trajetória de pessoas singulares.

Essa perspectiva mais complexa de análise sobre a reprodução da desigualdade colocava todo um novo conjunto de perguntas: Como os brancos pobres se aproveitam do racismo na sociedade capitalista? Em que ramos do mercado é possível visualizar os brancos obtendo vantagem competitiva sobre os negros? Isso acontece da mesma maneira em todos os setores? Como os elementos simbólicos entram em jogo? Como é possível conectar a disputa pela honra social, pelo tratamento equitativo na descrição empírica da construção da desigualdade? Como são incorporados os esquemas de classificação que regulam as aspirações sociais? Perguntas que exigem a descrição empírica da discriminação ou a reconstrução histórica dos processos de racialização.

O paradigma das desigualdades raciais também deixou intocado o problema da agência dos grupos subordinados. Florestan Fernandes subestimou enormemente as formas de ação e resistência dos escravizados e argumentou, sobre o período do pós-abolição, que o pauperismo generalizado da gente negra fazia com que suas ações sociais fossem ineficazes e/ou corroborassem com o aprofundamento de suas mazelas e obstáculos. Mesmo no caso dos movimentos sociais no meio negro, a luta contra o preconceito de cor é considerada insuficiente para o enfrentamento de uma série de contradições que afligem a população negra numa sociedade de classes. Embora o autor jamais tenha subestimado a dimensão da agência negra que, para o período pós-abolição, ocupa um lugar central em momentos chave de sua explicação - destacam-se nesse ponto a análise da exploração financeira e sexual da mulher negra pelo homem negro e a análise dos movimentos sociais no meio negro -, esta não opera no sentido de aumentar a margem de autonomia e autodeterminação do grupo racialmente dominado, sendo parte relevante do processo de reprodução da desigualdade.

As pesquisas conduzidas por Carlos Hasenbalg não possuíam arcabouço teórico ou metodológico para descrever a agência dos grupos subordinados, seja como parte da reprodução do racismo ou como forma de atenuar ou transformar as mazelas da realidade social. E o mais decisivo do ponto de vista do seu próprio argumento: não oferece uma caracterização adequada do trabalho de dominação social e racial, da agência dos de cima. No que tange às elites brancas capitalistas e a seus aliados de outras classes e grupos, infere-se que são praticantes da discriminação e/ou beneficiários diretos ou indiretos da desigualdade. Assim, neste ponto, o autor deu contornos ainda mais rígidos às formulações de Florestan Fernandes: “desde o fim do escravismo, as iniquidades raciais têm persistido sem o recurso de formas severas de repressão. Assim, a tímida resposta branca às formas de protesto racial é indicativa da modesta ameaça colocada pelos negros ao status quo racial” (Hasenbalg, 2005, p. 234). Em passagens dessa natureza, temos a sugestão de que as estruturas sociais seriam capazes de se autorregular sistemicamente, sem a concorrência dos agentes em contextos circunscritos no tempo. Não há espaço para discutir o problema da ausência de “formas severas de repressão”, que as pesquisas contemporâneas sobre o pós-abolição obrigam revisar e formular novas hipóteses; desejo apenas registrar que esse modelo explicativo não conecta adequadamente sua análise da desigualdade a uma interpretação convincente sobre a interação entre as pessoas e a incorporação dos esquemas de classificação social que avalizam e legitimam a discriminação.

Uma abordagem mais complexa sobre as estratégias de dominação organizadas pelas elites e sua relação com a agência dos grupos subordinados e seu lugar na história surgiu entre os historiadores da escravidão. Um esforço nessa direção já estava na obra de historiadores negros, vide o clássico Rebeliões na senzala (1945), de Clóvis Moura, e nos diversos escritos pioneiros de Beatriz Nascimento, como “Por uma história do homem negro” e o conjunto seminal de seus escritos sobre os quilombos no Brasil6. Trabalhos que se perguntavam em que medida as pessoas negras haviam feito a sua própria história - incluindo-se aí a própria escrita historiográfica - apesar de todas as coerções escravistas e raciais. Mas esta perspectiva ganhou um arcabouço teórico e metodológico mais sólido a partir dos anos 1980 com a recepção brasileira dos trabalhos de Eugene D. Genovese e E. P. Thompson7. Isso tornou possível descrever o imenso trabalho da dominação senhorial frente à capacidade de auto-organização de pessoas escravizadas e suas rebeliões8, a formação e peculiaridades de suas famílias então consideradas inexistentes ou irrelevantes9, suas visões sobre a liberdade e a escravidão, a mobilização de regras costumeiras e do próprio paternalismo senhorial para aumentar a própria autonomia sob a escravidão10, a mobilização da lei e suas brechas para a conquista da alforria11, suas conexões e redes sociais com homens e mulheres livres, o processo complexo de tornar-se livre e a posição singular dos libertos numa sociedade escravista12, a trajetória de pessoas negras no pós-abolição e os significados da raça13, realizando narrativas densas sobre as interações rotineiras e os conflitos cotidianos.

Neste campo, o problema é que a valorização da ação das pessoas comuns, da gente escravizada ou liberta, de sua luta constante por autonomia pessoal e, em alguns casos, coletiva, por vezes, desvaloriza a força das coerções e restrições sociais14. Por outro lado, a agência dos grupos subordinados, em suas diversas escalas, é frequentemente observada apenas na chave da contestação da ordem social escravista, da ampliação da liberdade - palavra que campeia solta em alguns dos principais títulos na matéria -, seja pela ação direta ou pela articulação de valores culturais que passam ao largo do registro senhorial. Se for permitida alguma caricatura, é possível dizer, de um modo geral, que o povo “erra” muito pouco nessas descrições em que parece haver algo de redentor em cada ação que vem dos de baixo. Questões acerca das consequências indesejadas ou inesperadas da ação social e do modo com que tomam forma na história, o colaboracionismo ativo e consciente de pessoas oriundas de estratos subalternos com o status quo dominante, e o mais importante: como as relações de poder dentro de grupos e comunidades exploradas e subordinadas podem aprofundar a experiência da desigualdade - tema dileto da grande literatura de escritoras negras como Alice Walker e Toni Morrison - não são usualmente formuladas neste registro de narração e análise.

Dito isso, não é exagero sublinhar que um dos principais desafios para a sociologia histórica do racismo no Brasil era como construir e mobilizar narrativas densas e complexas sobre a agência e a interação dos indivíduos, exemplarmente desenvolvidos na historiografia da escravidão e do pós-abolição, para enfrentar as questões colocadas pelo paradigma da desigualdade racial. Tal exercício pode ser observado no trabalho de Karl Monsma, A reprodução do racismo: fazendeiros, negros e imigrantes no oeste paulista (1880-1914), publicado em 2016. A pesquisa é fruto de mais de dez anos de investigação e de colaboração com outros pesquisadores como Oswaldo Truzzi e, mais recentemente, Rogério de Palma15. O autor visa a compreender as diferenças de mobilidade social e oportunidades entre imigrantes e negros no oeste paulista no período pós-abolição. O argumento central do livro é que a internalização do racismo pelos imigrantes foi central para a perpetuação das desigualdades raciais no oeste paulista. O sociólogo retoma assim, para a investigação de zonas interioranas e não metropolitanas, algumas das questões elaboradas por Florestan Fernandes acerca do ambiente urbano e industrial da capital paulista. Mas intenta oferecer uma explicação alternativa tanto ao sociólogo paulista como a seus críticos, boa parte deles historiadores. Nas palavras do autor:

A maior parte dos críticos de Fernandes, porém, “só” pesquisa a escravidão, derrubando uma parte central do seu argumento sem desenvolver uma explicação alternativa das dificuldades dos negros depois da abolição [para o caso paulista]. Ao não focalizar o período pós-abolição esses historiadores não abordam outras duas afirmações centrais de Fernandes: 1) que os empregadores tinham preconceito contra os negros e os discriminavam, quase sempre preferindo o imigrante quando este era disponível; 2) que os imigrantes substituíram os negros nos setores mais dinâmicos da economia paulista e das profissões que apresentavam mais oportunidades para a mobilidade social, relegando os negros, tanto os libertos quando os nascidos livres, às margens da economia: atividades instáveis, com poucas oportunidades para a formação de pecúlio, tais como o trabalho ocasional ou venda ambulante de lanches, ou ainda empregos que implicavam a dependência pessoal, como o serviço doméstico (Monsma, 2016, pp. 24-25).

Monsma também deve muito aos novos problemas colocados por George Reid Andrew no livro Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). O historiador demonstrou que as baixas taxas de mobilidade social dos filhos de libertos e outros negros no oeste paulista, quando comparada aos imigrantes, não se explicavam pela inaptidão ou pela baixa competitividade dos negros às novas condições de trabalho no pós-abolição. Ao contrário, eram justamente o maior conhecimento das formas de trabalho e o fato de estarem estabelecidos no território de longa data que os tornavam mais resistentes a um regime de produção e disciplinamento da mão de -obra que os remetia à experiência do cativeiro. Os imigrantes, por sua via, presos a contratos de trabalho anuais e familiares, estavam inicialmente mais vulneráveis à exploração de fazendeiros e empreiteiros, mas, ainda assim, o racismo das elites políticas e econômicas alargou suas oportunidades de vida.

O diferencial da análise de Monsma, nesse quadro, é sua atenção ao problema da violência e seus significados para os diferentes grupos sociais e a narração detalhada das interações e conflitos entre negros e imigrantes como parte central da explicação sobre a reprodução da desigualdade. A seleção de uma região interiorana também lhe permitiu repensar os significados raciais da imigração para além do projeto de branqueamento da nação veiculado por elites culturais e políticas urbanas. Junto à expectativa de que europeus pobres seriam gente pacata e submissa, “os fazendeiros queriam inundar o mercado de trabalho com estrangeiros, em parte, para controlar e disciplinar os libertos, muitos dos quais seriam forçados, pela falta de opções, a se empregarem nas fazendas como colonos ou camaradas, morando e trabalhando lado a lado com imigrantes” (Monsma, 2016, p. 340). Do ponto de vista metodológico destaca-se o trabalho com arquivos, o manuseio de fontes primárias como inquéritos policiais, processos criminais e a correspondência policial, além de dados censitários regionais, quase nunca utilizados por sociólogos brasileiros interessados na matéria, mas indispensável para a demonstração explicativa do significado das interações sociais em uma sociologia que se queira histórica.

A análise sobre a centralidade da violência para as relações sociais nas fazendas e nas pequenas cidades do Oeste Paulista, com destaque para o município de São Carlos, aponta que em contextos de pouca institucionalização do estado, com forças policiais diminutas e vulneráveis, a intimidação e a violência física são um recurso importante para diferentes grupos sociais. Tanto para as elites agrárias disciplinarem e oprimirem os trabalhadores, caso mais frequente, como para os subordinados resistirem à exploração econômica e lutarem pela expressão pública de sua dignidade e honra social. Mas o viés racial do exercício da violência não é explícito à primeira vista, porque a elite branca nativa era relativamente coesa e não precisou mobilizar racialmente brancos pobres nacionais ou estrangeiros para manter o seu poder econômico e político. Formas severas de repressão foram colocadas em prática para intimidar e ensinar aos negros o seu devido lugar subalterno, como testemunham os diversos conflitos nos últimos anos da escravidão e no imediato pós-abolição; todavia, prescindiram da construção de uma solidariedade racial branca que atravessasse as linhas de classe. Na visão das elites cafeeiras, imigrantes e outros brancos pobres precisavam conhecer o seu lugar de classe, a despeito do prestígio da cor.

Casos raros de violência racial em que se colocaram em suspenso as diferenças de classe foram os episódios de linchamentos contra negros acusados de crimes graves, vários deles sem provas, que puseram em questão a ordem racial, como a violação e o estupro de mulheres brancas. Esses eventos pouco frequentes mas significativos, a que não faltou o expediente da mutilação de corpos e sua exposição pública em árvores e praças, “eram maneira de aterrorizar e intimidar os outros negros, ajudando a coibir sua ‘impertinência’ e mantê-los ‘no seu lugar’, ao mesmo tempo que esses rituais sangrentos fortaleciam a identidade coletiva e a unidade dos brancos” (Monsma, 2016, p. 143). A interpretação desses eventos mais episódicos ganha relevância em conjunto com a farta documentação mobilizada pelo autor acerca da rotina de interação e conflitos cotidianos entre fazendeiros, administradores, negros e imigrantes. As fontes policiais disponíveis para o período de 1889-1914 informam que “as brigas entre brasileiros brancos e negros resultaram em quatro vezes mais mortes de negros que de brancos, e italianos mataram negros nove vezes mais que negros mataram italianos” (Monsma, 2016, p. 275).

Embora o autor conceda muita atenção para as relações dos imigrantes e da gente negra com a velha elite senhorial brasileira, tema de dois longos capítulos, seu foco é explicar como as tensões entre europeus recém-chegados e os antigos trabalhadores negros foram determinantes para a reprodução da desigualdade racial. Em suas palavras:

Os inquéritos e processos sugerem que, nas suas interações cotidianas, europeus e brasileiros não brancos muitas vezes travavam lutas de classificação. Os negros negavam a significância hierárquica da cor e insistiam em se classificar da mesma maneira que os europeus - como trabalhadores, cristãos, homens e mulheres, pais ou filhos, ou simplesmente seres humanos. Os imigrantes, por outro lado, tendiam a perceber a cor como uma forma-mestre de categorização, prevalecendo sobre todos os outros, e de enfatizar suas associações hierárquicas, ligando a pele escura com características consideradas negativas, como estupidez, paganismo, preguiça ou alcoolismo. Esquemas alternativos de classificação, enfatizando a classe social, profissão, idade, gênero, escolarização ou cidadania, poderiam colocar muitos negros e imigrantes nas mesmas categorias, ou até favorecer os negros. Portanto, europeus, especialmente europeus pobres, afirmavam a importância fundamental da identidade racial (Idem, p. 261).

Com efeito, nas fontes policiais é possível notar os imigrantes exigindo deferência hierárquica de pessoas negras, diferenciando-se delas através da violência e da discriminação racial, valendo-se de preconceitos e estereótipos arraigados para valorizar sua posição social. Assim, em franca luta simbólica com os negros, europeus pobres vão reivindicando e conquistando a extensão dos privilégios estatutários dos brancos brasileiros aos seus descendentes. Segundo o autor, dois fatores combinados teriam contribuído para transformar a disputa por classificação em chances reais de mobilidade social para esses europeus: a enorme composição demográfica desse grupo nas fazendas e pequenos municípios do Oeste paulista e a constituição de uma elite entre os imigrantes. Esses dados lhes permitiram, em poucos anos, a construção de densas redes informais de solidariedade, o domínio de certos empregos urbanos em lojas, fábricas e oficinas, e a sustentação de identidades étnicas que possibilitavam a ação coletiva e o estabelecimento de fronteiras raciais frente à gente negra. Uma vez que as diferenças econômicas no acesso à terra e à educação não eram inicialmente tão significativas entre os dois grupos, o autor mostra o quanto a ação cultural da elite imigrante no combate aos preconceitos contra europeus pobres propiciou sua “mobilidade simbólica”, ampliando os seus espaços sociais legítimos de atuação.

Nesse sentido, o trabalho de Monsma é muito bem-sucedido ao reintegrar os agentes e suas interações à explicação sobre a formação e a reprodução das desigualdades raciais, e elucida como a sociologia histórica pode ajudar a reformular alguns problemas centrais do campo de pesquisa sobre racismo no Brasil16. Uma contribuição notável da abordagem em torno da reprodução da desigualdade é que a racialização da experiência social do tempo pode ser inferida de forma cumulativa, a partir do modo como grupos definidos raças podem acumular vantagens e desvantagens econômicas e sociais ao longo da história. Entretanto, é apenas pela integração dos agentes a esse modelo explicativo que o problema da “cumulatividade” de capitais pode ser reformulado e interrogado como uma história social do processo não planejado e heterogêneo de acumulação.

Uma crítica ao empreendimento de Monsma é que sua descrição e interpretação teórica das disposições e ações sociais são realizadas de modo a substancializar os grupos analisados. Nas diversas passagens do livro, “negros” e “italianos” como que preexistem ao conjunto das relações sociais que deveriam constituí-los enquanto um coletivo. Eles apenas “interagem”, mas não se transformam em “negros” ou “italianos” ao longo dos processos sociais descritos. Esse problema é particularmente importante para o contexto analisado, pois como reconhece o autor: “no estado de São Paulo, após a abolição, entretanto, a significância das diferenças étnicas e de cor entre os pobres não estava fixa e duradoura. Tudo estava em processo de negociação e redefinição” (Monsma, 2016, p. 261). São precisamente estas redefinições e negociações de fronteiras entre os classificados “pretos”, “mulatos”, “libertos”, “brancos”, “italianos”, “imigrantes” que não possuem relevância para a análise dos casos empíricos apresentados no livro.

O modo como o autor lança mão da categoria habitus racial explicita ainda mais esse problema, além de truncar sua explicação sobre a internalização do racismo pelos imigrantes. A ausência no livro de uma história social das classificações de grupo e a transformação dos seus significados nos últimos anos da escravidão e no pós-abolição tornam difícil o entendimento da formação, transmissão e incorporação das disposições sociais entre os europeus recém-chegados. Aliás, Monsma usa livremente em seu texto, como termos intercambiáveis, as expressões “habitus escravista” e “habitus racial”, como se o processo de racialização dos grupos e suas transformações no período discutido não precisassem ser explicados e demonstrados. Assim confundidas, as disposições racistas se reduzem a uma constante atualização de disposições escravistas. Essas dificuldades colocam a seguinte questão: Como explicar e descrever a persistência da desigualdade racial ou aquelas mudanças que ampliam as chances de ascensão e os direitos sociais e políticos de coletivos racialmente subordinados enquanto processos sociais criativos e imprevisíveis de fabricação material e simbólica dos grupos e suas fronteiras raciais?

Formação

Uma boa estratégia para compreender como a sociologia do racismo tem enfrentado esse problema no contexto brasileiro é cotejar o trabalho desenvolvido por Antonio Alfredo Sérgio Guimarães, talvez o mais influente autor neste campo de pesquisa nas últimas duas décadas17. A investigação sobre os processos de fabricação de grupos já compunha sua agenda de pesquisa desde os seus estudos sobre constituição das classes sociais na Bahia ainda nos anos 1980, caso que radicalizava a disjunção entre a estrutura econômica e a determinação da identidade social dos grupos, suas formas de consciência, ação e organização política. Daí a pergunta:

Como, então, se formam as classes, já que elas não estão dadas, para todo o sempre, pela estrutura econômica, necessitando apenas ganhar a consciência de si, conforme a antiga interpretação “marxista”? Sem a pretensão de avançar uma resposta, mas tão somente para introduzir os elementos teóricos […], diremos que: (a) as classes são produtos de lutas sociais históricas e concretas; (b) o resultado dessas lutas depende do que Wright (1980) chama de capacitação de classe, ou seja, dos recursos ideológicos (uma teoria, uma tradição cultural), dos recursos organizacionais (modos de articulação de recursos financeiros disponíveis para serem utilizados pelas classes); (c) essa capacitação delimita, primeiramente, a formação social dos interesses de classe e, em segundo lugar, a sua capacidade de exercer uma liderança política, cultural e moral sobre outras classes e facções de classe; (d) fica claro, então, que as classes se organizam, se desorganizam e se reorganizam num processo constante (Guimarães, 1987, p. 59).

Chamo atenção para a especificidade dessa teorização sobre as classes, pois foi com o conjunto de questões nela proposta que o autor problematizou a sociologia das relações raciais e os achados do paradigma da desigualdade racial, quando migrou para esta área de pesquisa. O que acontece quando compreendemos os grupos raciais interrogando sua constituição a partir das lutas históricas e sociais concretas, sua capacitação pelos recursos ideológicos e organizacionais, suas chances de exercer a liderança política e, o mais decisivo, que isto implica a redefinição constante destes coletivos? O problema é que, à diferença dos estudos sobre classe, não havia na sociologia brasileira um conceito analítico de raça, nem muito menos uma teoria dos processos que a formavam, e, portanto, a mera substituição de classe por raça na citação acima apenas agravaria os problemas teóricos. Como explicou Paul Gilroy para o caso britânico:

Os processos de “raça” e formação de classe não são idênticos. O primeiro não é redutível ao segundo, mesmo quando se tornam mutuamente emaranhados. O próprio vazio dos significados raciais, o sentido em que “raça” não tem sentido, contém um aviso de que sua vitalidade e volatilidade políticas podem aumentar à medida que as práticas e ideologias que a compõem se tornam menos estáveis e mais contraditórias. A evolução do racismo, das formas vulgares para as formas culturais descritas por Fanon, introduziu uma nova variedade que enfatiza a diferença complexa em vez da simples hierarquia. Assim, o racismo britânico de hoje, ancorado no declínio nacional e não na expansão imperial além-mar, não procede necessariamente através de noções facilmente aparentes de superioridade e inferioridade. A ordem das relações de poder racial tornou-se mais sutil e evasiva do que isso (Gilroy, [1987] 2002, p. 37)18.

Com efeito, as pesquisas sobre raça desenvolvidas por sociólogos negros no campo dos estudos culturais ingleses tiveram profunda influência sobre Guimarães, em particular o conjunto de palestras ministradas por Stuart Hall na Universidade Harvard em 1993, nas quais apresentou sua famosa preleção “Race: The sliding signifier”19. A atenção destes pesquisadores à operação discursiva da raça - como sistema de representação e organização de práticas - oferecia alternativas às dificuldades presentes na teoria da estratificação social para explicar as especificidades do racismo brasileiro. Nas palavras do autor: “por acharem que sua teoria deva se aplicar a todas as sociedades multirraciais da América […] acabam por negar a originalidade das condições em que se dão as relações raciais no Brasil” (Guimarães, 2008, p. 99). Problema visível no tratamento teórico das diversas categorias nativas de cor nestes estudos que aparecem apenas como realidades aparentes e formas distorcidas de percepção social, que nos impedem de ver a pujança da desigualdade racial à medida que esta é tanto mais visível nos dados quanto mais os classificados brancos podem ser distinguidos de todos os outros grupos de cor. Tal abordagem não permite interrogar o significado racial das categorias nativas de cor e as lutas simbólicas de classificação e desclassificação social nas quais está implicada a constituição dos grupos sociais.

Não sem razão, parte importante da pesquisa de Guimarães desde Racismo e antirracismo no Brasil (1999) notabilizou-se em fundamentar sociologicamente um conceito analítico de raça que permitisse capturar o significado cultural do simbolismo das cores enquanto categorizações de grupo, assim como observar seus efeitos como princípio de diferenciação e hierarquização social. A aplicação dessas ideias veio no livro Classes, raças e democracia (2002), em que fica patente que os desafios dos sociólogos neste campo deveriam ser ampliados da dedicação quase exclusiva à análise das relações e sobreposições entre raça e classe para examinar também a importância das cores na construção das ideologias e dos imaginários nacionais; na distribuição desigual dos direitos políticos e civis, e não apenas dos capitais econômicos e simbólicos; o papel dos movimentos sociais na construção das fronteiras culturais entre grupos pensados como raças nas sociedades democráticas.

Essa nova agenda de investigação e o ambiente político das últimas duas décadas radicalizaram ainda mais a importância da história em suas análises. O engajamento do sociólogo na defesa das ações afirmativas para negros no país o contrapôs àqueles cientistas sociais, antropólogos em sua maioria, para os quais o uso de categorias raciais na execução de políticas públicas era uma perigosa descaracterização da cultura brasileira, que seria marcada por: uma sociabilidade rotineira entre diferentes grupos raciais; a valorização ritualizada da mestiçagem; um sistema múltiplo e volátil de classificação de cor; e, sobretudo, um ideário nacional de democracia racial que, para além da denegação do racismo, denotava a importância do antirracialismo como valor típico dos brasileiros. Assim, a polêmica em torno das cotas para negros nas universidades públicas no começo deste século explicitou a recusa do conceito moderno de racismo, como princípio de estruturação da desigualdade social, em parte significativa das ciências sociais brasileiras, bem como no campo midiático e jornalístico.

O confronto a essas posições redirecionou o trabalho de Guimarães para uma sociologia histórica da emergência das categorias e noções que organizam o debate sobre a questão racial - mestiçagem, negritude, preconceito de cor, raça, democracia racial, entre outras - e seus porta-vozes na sociedade civil, no mundo acadêmico e no campo político. Essa guinada é visível numa série de artigos sobre temas mais variados, como o uso das classificações de cor e raça na imprensa negra paulista no pós-abolição, sobre as formas como intelectuais negros imaginaram a comunidade nacional, a sistematização das retóricas negras de inclusão, a análise do significado do mito da democracia racial para as lideranças negras na Segunda República (1946-1964) e a emergência de políticas étnicas negras ao longo do processo de democratização brasileira e sua institucionalização a partir dos governos de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Talvez não seja um exagero retomar os termos de Erick O. Wright, que havia sido orientador do sociólogo brasileiro nos tempos de Wisconsin, e caracterizar esses estudos como análises sobre a “capacitação” - a tradição cultural e, em menor grau, os recursos organizacionais - da mobilização política negra no último século.

Desse modo, o autor sintonizou os seus interesses de pesquisa com a crítica da juventude negra universitária ao status quo racial no mundo acadêmico e ao eurocentrismo dos currículos nas ciências sociais. Guimarães trabalhou ativamente no recrutamento desses estudantes para a pesquisa na pós-graduação, estimulando-os a elaborarem narrativas densas, capazes de circunscrever com maior precisão no tempo os eventos, focadas em indivíduos ou em um grupo restrito de agentes, em análises que se esforçavam por reintegrar cultura e sociedade na sociologia do racismo20. Daí seus esforços por estabelecer uma agenda de pesquisas sobre a trajetória e o pensamento social de intelectuais negros a partir de textos seminais como “Intelectuais negros e formas de integração nacional” (2004), que, junto à organização da publicação fac-símile do jornal Quilombo (1948-1950) e à progressiva recepção do livro de Paul Gilroy, O Atlântico negro (2001), marcam a inflexão do campo nessa direção.

O resultado desse trabalho foi recentemente reunido no livro Modernidades negras: a formação racial brasileira (1930-1970), no qual a produção cultural de ativistas e intelectuais negros é investigada com o fito de compreender a mobilização pública de classificações culturais empenhadas na fabricação material e simbólica de grupos raciais. Muito diferente do que líamos em Classes, raças e democracia, temos que o problema dos efeitos do preconceito e da discriminação para a constituição de coletivos racializados e suas relações com a estrutura de classes e o campo político é deslocado para um outro tipo de pergunta: Quais contextos históricos permitem a formação e a transformação de grupos socialmente representados como classes, etnias, nações ou raças? Na contramão das análises sobre a reprodução do racismo nas quais a demonstração da persistência da desigualdade torna estanques as fronteiras sociais e raciais entre grupos, o autor adverte: “não podemos, porém, supor que tais identidades e tais sujeitos estejam para sempre formados, sob pena de transformarmos tais identidades em qualidades, em essências individuais de uma determinada formação social” (Guimarães, 2021, p. 43). Tal enfoque exige bem mais que uma conceituação analítica de raça, conforme apareceu em Racismo e antirracismo no Brasil, pois também torna imprescindível uma história social dos processos de racialização e das formas de contestação da ordem racial. Nas palavras do autor:

A classificação racial, ao tempo que constitui raças, recria as bases materiais das desigualdades sociais. Assim, o agrupamento das pessoas em raças é usado para humilhar, agrupar e excluir, para monopolizar recursos escassos em grupos dominantes, fenômeno que se tornou clássico referir como racismo no plano institucional e da estrutura social. A racialização de seres humanos, contudo, origina invariavelmente um movimento concomitante e relacional, de mobilização dos oprimidos na resistência à desumanização e na reivindicação pela igualdade de direitos e oportunidades de vida. Esses dois movimentos foram referidos por Omi e Winant (1983) como formação racial. Assim, por exemplo, em formações raciais nas Américas, no Brasil mais recentemente, negros e indígenas conquistaram o direito legal de, através de políticas públicas de inclusão - cotas raciais e étnicas - garantirem para si o acesso a postos de trabalho, a vagas escolares e outras oportunidades de vida. A raça passou a ser, pois, para essas pessoas, uma identidade que lhes permite ser um coletivo em luta pela garantia de oportunidades de direitos.

Em suma, fronteiras simbólicas raciais são erigidas para organizar e hierarquizar a sociedade, mas também usadas pelos dominados para resistir à opressão, ou seja, para lhes garantir igualdade de oportunidades de vida A “raça-para-os-outros” pode se transformar em “raça-para-si” (Guimarães, 2021, pp. 27-28).

A vantagem dessa perspectiva é que a noção de formação racial exige que o analista descreva a constituição das estruturas em relação às diferentes modalidades de agência individual e coletiva21. A racialização da experiência social do tempo aparece, nesta abordagem, pelo caráter histórico e imprevisível da constituição de coletivos racializados e pela demonstração de que as formas de exploração e dominação racial implicam a hierarquização das possibilidades de “fazer a história” bem como a vigência de distintos esquemas culturais para imaginá-la. A temporalidade vivenciada e articulada por cada grupo social e suas formas específicas de simbolizar o curso dos acontecimentos constituem as disputas pelo significado da raça.

Assim, a mobilização dos oprimidos contra os efeitos da racialização, suas formas de imaginar suas comunidades e negociar a expressão pública da identidade social, não coincide necessariamente com a linguagem cultural que avaliza a dominação racial. É uma probabilidade histórica entre outras que a “raça-para-os-outros” venha a se tornar “raça-para-si”, pois as estratégias para enfrentar a humilhação e a desumanização racial podem abrigar outras maneiras de fabricar o grupo e construir solidariedade e pertencimento. Neste ponto, é fecunda a hipótese de trabalho que Guimarães construiu sobre intelectuais negros e ativistas abolicionistas no fim do século XIX. Neles, o desejo de livrar-se do preconceito de cor e do estigma da escravidão deu vazão a “um ideal de fraternidade e solidariedade nacional que pensava os crioulos, pardos e mestiços como simplesmente brasileiros” (Guimarães, 2021, p. 64). Ao invés de instituírem o negro como “raça oprimida”, transformaram-no num tipo nacional por excelência, demandando tratamento igualitário e o direito ao pleno exercício da cidadania.

Duas observações críticas podem ser feitas ao empreendimento que tomou forma em Modernidades negras. A primeira delas diz respeito à relação entre as hipóteses aventadas e a capacidade das fontes mobilizadas em demonstrá-las. Se o objetivo teórico desse programa de investigações é fazer com que a análise histórica da fabricação material e simbólica das raças tenha o mesmo alcance interpretativo que a sociologia tradicionalmente conferiu às classes sociais - isto é, uma categoria teórica que nos permita relacionar os conflitos sociais concretos ao desenvolvimento histórico de uma sociedade -, o material empírico mobilizado por Guimarães precisava ir além dos recursos ideológicos dos grupos e seus porta-vozes. É preciso se perguntar acerca do alcance das práticas simbólicas de elites culturais urbanas - a despeito de sua capacidade de impor categorias e classificações a partir do estado e da sociedade civil - para nos explicar a vasta arena de lutas sociais concretas que produzem os grupos. Em algumas passagens do texto, o leitor se ressente da desproporção entre o conjunto inspirador das hipóteses de trabalho, o rigor da elaboração teórica, e sua demonstração, embora se destaque o uso criativo da historiografia atual na sustentação dos argumentos.

Por outro lado, fica implícito que, para o autor, as formações raciais são compreendidas no âmbito de uma formação nacional. Entretanto, sua análise sobre a noção de modernidade negra e o importante capítulo da “democracia racial revisitada”, cheio de fontes novas e originais, transbordam e muito as fronteiras do estado-nação, gerando uma tensão entre parte dos achados empíricos e a formulação teórica. Sem desprezar as coerções do estado-nação e a especificidade das tradições culturais e ideológicas dos grupos sociais de uma certa região, como caracterizar uma arena internacionalizada de produção e instituição social de raças? O reducionismo das explicações em torno da “influência norte-americana”, do “imperialismo às avessas”, que prevalecem no senso comum erudito sobre a mobilização política negra contemporânea, e sua tradição intelectual e cultural exigem uma sociologia processual em que a explicação sobre a produção e circulação de classificações culturais racializadas possa ser observada numa escala global, sem perder de vista os diversos significados locais em que são particularmente agenciadas22.

Evento

Nesta última seção, desejo compartilhar alguns problemas de pesquisa relativos ao uso heurístico da teoria dos eventos históricos, tal como formulada originalmente nos trabalhos de Marshall Sahlins e, posteriormente, desenvolvida por William H. Sewell Jr, para uma sociologia histórica do racismo no Brasil. Embora essa perspectiva ainda seja pouco mobilizada pelos pesquisadores desse campo de estudos, penso que seu arcabouço conceitual permite enfrentar alguns dos principais desafios analíticos na matéria, tais como o processo imprevisível de constituição de grupos, a relação entre as classificações nativas de cor e as práticas de categorização racial, e o modo como as estruturas constituem a agência social.

Mas, antes de apresentar os conceitos, farei a descrição sucinta do caso empírico e das questões que orientaram a aplicação da teoria. Trata-se de um conjunto de acontecimentos envolvendo a reação dos negros à proclamação da República no Brasil em 15 de novembro de 1889. O decreto de abolição do cativeiro havia sido sancionado pela monarquia fazia pouco mais de um ano, e a mudança na forma de governo por meio de um golpe militar suscitou temores e desconfianças na gente comum quanto aos direitos recém conquistados. Incidentes conflituosos envolvendo negros e republicanos ocorreram em diversas partes do país, mas foram particularmente graves na cidade de São Luís do Maranhão, onde ocorreu o chamado Massacre de 17 de Novembro.

Naquele dia, uma grande multidão, cerca de 2 a 3 mil pessoas, conforme as fontes, descritas como “libertos”, “homens de cor”, “cidadãos do 13 de maio” e “ex-escravos”, saiu às ruas numa passeata em protesto contra as notícias sobre a proclamação da República. Na visão dessa gente, a mudança de governo vinha para restaurar a escravidão no país. Os manifestantes percorreram as ruas do centro da cidade, dirigindo-se ao edifício do jornal republicanoO Globo, que havia marcado uma conferência para o fim do dia. Uma tropa de linha formada por doze soldados fortemente armados de fuzil foi destacada para proteger a sede do periódico, mas isso não intimidou os manifestantes, que ameaçavam atacar os seus dirigentes. O pelotão realizou uma descarga de fuzil contra a multidão, deixando, segundo números oficiais, quatro mortos e vários feridos.

Minha hipótese de trabalho era que esses acontecimentos se mostravam relevantes para compreender como uma sociedade dividida entre cidadãos e escravizados reorganizou suas hierarquias sociais, políticas e econômicas no pós-abolição, de modo a valorizar simbolicamente o uso de classificações raciais como meio de fabricação de grupos. Problema que obrigava a refazer, noutros termos, a questão inicial de Florestan Fernandes sobre o significado da cor numa estrutura social em mudança, tendo em vista o contexto do norte agrário brasileiro. Por outro lado, a análise do próprio fuzilamento e da violência ocorrida nos dias seguintes parecia elucidar alguns dos contextos e práticas que produzem pessoas e grupos enquanto raças na rotina de interações cotidianas. Para lidar com esses problemas, valia a pena considerar o Massacre de 17 de Novembro como um evento nos termos de Marshall Sahlins: uma atualização única de um ou mais esquemas culturais em conjunturas nas quais são submetidos a riscos, reavaliações e transformações através das práticas sociais. Em suas palavras:

[…] um evento não é apenas um acontecimento característico do fenômeno, mesmo que, enquanto fenômeno, ele tenha forças e razões próprias, independentes de qualquer sistema simbólico. Um evento transforma-se naquilo que lhe é dado como interpretação. Somente quando apropriado por e, através de um esquema cultural, é que adquire significância histórica. […] O evento é a relação entre um acontecimento e a estrutura (ou estruturas): o fechamento do fenômeno em si mesmo enquanto valor significativo, ao qual se segue sua eficácia histórica específica. […] O outro movimento que talvez seja mais original é o de interpor um terceiro termo entre a estrutura e o evento: a síntese situacional dos dois em uma “estrutura da conjuntura”.

O que quero dizer com “estrutura da conjuntura” é a realização prática das categorias culturais em um contexto histórico específico, assim como expressa na ação motivada dos agentes históricos, o que inclui a microssociologia de sua interação (Sahlins, 2003, pp. 14-15).

A proposição de que um evento só se torna historicamente significativo quando apropriado por esquemas culturais é analiticamente produtiva para o caso investigado. Com efeito, o protesto e seu desfecho violento no dia 17 de novembro se devem em parte ao modo como os entendimentos sobre os significados do cativeiro e da liberdade foram colocados em prática na conjuntura de um golpe de estado. Os incidentes de São Luís também se adequam à formulação mais restrita que Sewell Jr. impôs à concepção acima, qual seja, que os eventos são “(1) uma sequência ramificada de ocorrências que (2) é reconhecida como notável por seus contemporâneos, e que (3) resulta de uma transformação durável de estruturas” (2017, p. 231). Com efeito, o Massacre de 17 de Novembro é uma sequência de acontecimentos que articula dois eventos que transformaram duradouramente as estruturas econômicas, sociais e políticas brasileiras: a Abolição e a República23.

Por outro lado, a formulação teórica segundo a qual o tempo só se faz história por meio de apropriações simbólicas acena para dificuldades de outro tipo quando se trata de uma sociologia histórica do racismo, pois o processo de interpretação que transforma os acontecimentos num evento culturalmente relevante também é permeado por coerções de ordem racial que são visíveis nas fontes, nos arquivos, e nos seus muitos silêncios. Isto é, a raça constitui as disputas simbólicas para definir o estatuto mesmo dos acontecimentos, seu lugar na história e em nossa memória coletiva.

Conforme argumentou Trouillot em sua análise sobre a percepção da Revolução Haitiana no discurso dos observadores europeus, quando categorias e esquemas culturais racializados entram em jogo na interpretação de uma determinada conjuntura, não é raro que os acontecimentos possam ser descritos como um não evento. A descrença na capacidade de pessoas negras escravizadas organizarem uma insurreição geral, exigirem direito de autodeterminação e fundarem um estado moderno em pleno caribe colonial fez com que a Revolução Haitiana entrasse para a história “com a característica peculiar de ter sido inconcebível, mesmo enquanto acontecia” (Trouillot, 2016, p. 125). Problemas dessa natureza exigem cautela para utilizar o critério, proposto por Sewell Jr, segundo o qual a definição teórica de evento inclui o reconhecimento daquela sequência de ocorrências como acontecimentos notáveis pelos contemporâneos. Uma das implicações da análise histórica do racismo é que parte significativa dos eventos que precisam ser interpretados é daqueles em que “um ato de acaso ou desastre produziu uma divergência ou uma aberração em relação ao curso esperado e usual de invisibilidade e a catapultou do subterrâneo para a superfície do discurso” (Hartman, 2021, p. 107).

Nesse sentido, a racialização da experiência social do tempo constrange e integra as condições de possibilidade para conhecer determinados eventos históricos. Uma das principais características das fontes e análises que descreviam os conflitos de São Luís eram os silenciamentos, as rasuras, a verdadeira batalha simbólica para estabelecer se houve mesmo algo que se poderia chamar de massacre durante a Proclamação da República. Conforme uma influente interpretação do episódio, a frieza com que o então novo regime foi recebido na região se deveu à “circunstância de, na boca do povo, ter ocorrido tal incidente, aliás sem maior gravidade, como se houvera sido um massacre - os fuzilamentos do dia 17, dizia-se” (Meireles, 2001, p. 269). Outro historiador foi ainda mais enfático: “o incidente dos pretos criou certa importância na boca do povo, transformando-se em O Massacre de 17 de Novembro” (Lima, 2010, p. 33). O notável desprezo dessas declarações pela forma como a gente comum deu significado à história, pelas formas orais de conhecimento e interpretação da realidade, explicita o conflito entre diferentes temporalidades na elaboração cultural dos eventos.

Com efeito, nos relatos elaborados por negros - caso do escritor Astolfo Marques e do cantador de boi Zé do Igarapé -, a violência manifesta no dia 17 de novembro não se restringiu ao fuzilamento, sendo associada a outros incidentes nos quais a raça foi explicitamente colocada em ação. Tal conjugação conferiu sentido à ideia de “massacre” na interpretação dos acontecimentos que se espalhou de boca pela cidade para a irritação das novas autoridades republicanas e, depois, da historiografia tradicional. Acontecimentos marcantes foram as amputações sumárias ocorridas no Hospital da Santa da Casa. O pai do brincante popular estava entre os manifestantes e teve seu braço amputado. “Foi cortado pela República”, recordou Zé do Igarapé, que ainda lembrava as palavras do médico a seu pai: “Em barulho de branco, preto não se mete” (Gato, 2020, p. 124). No romance A nova aurora (1913), o escritor Astolfo Marques também reproduz essa mesma frase, após narrar em tom indignado a violência das amputações: “Quem se mete em coisas de brancos tem a mesma tristíssima sorte aqui desses teus companheiros” (Marques, 1913, p. 77). Nesse sentido, podemos observar a própria violência operando como forma suprema de categorização racial e fabricação de grupos como raças.

A questão das formas de tortura contra os suspeitos de integrarem o protesto corrobora essa interpretação. Nas palavras de Astolfo Marques: “o detido, pela menor queixa, era conservado a pão e água, quando lhe davam, por mais de 24 horas; e, antes de posto em liberdade, se infligiam […] indecorosos castigos, dos quais os menores se limitavam à aplicação de dúzias e dúzias […] de bolos (palmatoadas) e a raspagem dos cabelos” (Marques, 1913, p. 84). Denúncias na imprensa relataram que Maria da Paz Rubin teve a cabeça raspada por se meter em brigas de rua. “A operação foi tão bem-feita que lhe deixou várias escoriações ligeiras no couro cabeludo, tendo sido medicada pelo dr. Henrique Alvares Pereira” (A Pacotilha, 19 de dezembro de 1889, p. 2). Outras mulheres como Clara Maria da Conceição, residente da rua da Misericórdia, e uma Joaquina, moradora da rua do Mercado, sofreram raspagem de seus cabelos e sobrancelhas. O chamado “raspa coco” era uma das formas de humilhar publicamente escravos fugidos nos últimos anos do cativeiro. Mas desta vez, cravava no corpo: a conversão do estigma da escravidão numa marca de categorização racial.

Outro aspecto que a análise dos eventos permite reinterpretar é o problema da cor numa sociedade em mudança. Quando olhamos para a lista de mortos pelo fuzilamento que passaram pelo Hospital da Santa Casa, temos que os manifestantes são classificados como de cor preta ou parda (Gato, 2020, p. 13). Dado que o massacre ocorreu pouco mais de um ano e meio depois da Abolição, esse registro não informa se estes homens eram pessoas escravizadas ou livres em 13 de maio de 1888. Questão importante, tanto porque uma das razões para o protesto teria sido o “medo da escravidão”, como do ponto de vista do sentido nativo das classificações de cor na experiência dessas pessoas. Conforme nos explica Hebe Mattos: “a noção de cor, herdada do período colonial, não designava, preferencialmente, matizes de pigmentação ou níveis diferentes de mestiçagem, mas buscava definir lugares sociais, nos quais etnia e condição social estavam indissociavelmente ligadas” (2013, p. 106). Deste modo é que “preto” era uma classificação rotineira para designar gente escravizada e/ou africana que prescindia de referências à cor da pele. Mas o processo de emancipação implicou o fortalecimento do uso de tais categorizações de grupo contra negros e mestiços livres, alterando o significado das cores de modo a intensificar a permeabilidade das fronteiras entre a escravidão e a liberdade para a gente comum.

O conjunto de anúncios do primeiro semestre do ano Abolição é ilustrativo. Categorias racializadas como “moleque” e “negrinha” não possuíam sentidos unívocos e eram geralmente utilizadas para classificar crianças, adolescentes e jovens sob a escravidão. Isso é flagrante no anúncio da fuga de um “moleque” no qual a menção à cor preta assinala sua posição social como escravo (figura 1 - anúncio 9). O problema é que nos últimos anos do cativeiro o campo semântico dessas categorias é ampliado para designar serviçais livres, recrutados para o desempenho de tarefas costumeiramente executadas por gente escravizada (figura 1 - anúncios 1, 2 e 4). A menção explícita à “cor” reforça os padrões hierárquicos a serem colocados em prática nas relações de trabalho, bem como o “tipo social” considerado adequado para a execução de certos serviços, caso da “preta cozinheira” que se alugava e da “mulatinha de 14 anos” anunciada dois dias antes da abolição (figura 1 - anúncios 6 e 8). Mas há casos em que o estatuto social da pessoa, a menção uma criada “livre”, traz implícita a referência à cor e conforma um certo estereótipo sobre as trabalhadoras (figura 1 - anúncio 3).

Figura 1:
Anúncios de trabalho, primeiro semestre de 1888. Recortes dos jornais Pacotilha (1888), Diário do Maranhão (1888) e O Paiz (1888).

Neste sentido, a plasticidade e a imprecisão das categorias de cor, visíveis nos anúncios acima e que tanto perturbam os analistas à cata de “definições objetivas” para identificação racial, são constitutivas de sua força simbólica como recurso à dominação racial. As cores podem abrigar diversos significados numa mesma conjuntura histórica, incorporar novos sentidos sem desclassificar inteiramente os valores passados. É um falso problema a antinomia ainda existente na literatura especializada, para a qual a análise do racismo deve considerá-lo ou como uma persistência do passado ou a partir de suas expressões mais atualizadas24. O pós-abolição brasileiro evidencia que as classificações de cor legitimavam, ao mesmo tempo, a persistência de uma cultura da escravidão nas interações rotineiras entre pessoas, assim como se tornaram portadoras das ideias contemporâneas de raça acerca da existência de uma hierarquia natural - mensurável cientificamente pela biologia dos corpos e transmitida ao longo das gerações - entre os seres humanos. A análise dos contextos de mudança torna nítidas essas ambivalências, pois dá a ver ideias novas ganhando expressão por meio de categorias antigas e velhas maneiras de pensar e agir se perpetuando com a mais recente das nomenclaturas.

Por fim, vale a pena enfatizar que uma das principais contribuições da análise dos eventos para a sociologia do racismo, como tentei demonstrar acima, é nos dar a ver a fabricação dos grupos sociais como raças no campo mesmo das práticas sociais que os instituem simbólica e materialmente, além de explicitar a racialização da experiência social do tempo. Entretanto, a principal limitação dessa abordagem são os óbices, intrínsecos ao método, para capturar a constituição de grupos na longa duração, em termos macro-históricos. Por vezes, ao analisar eventos, os transformamos numa espécie de emblema de um conjunto de relações sociais. Tal iconização da história - visível na seleção de acontecimentos violentos - pode assumir o efeito paradoxal de tornar estática nossa percepção das desigualdades, congeladas pela força do exemplo empírico. Que nos diga o efeito simbólico do assassinato de George Floyd como representação do racismo em nossa época. Nesse sentido, quando dissociada de uma abordagem sobre a formação das estruturas sociais, a análise de eventos corre o risco de perder de vista os caminhos lentos, longos e heterogêneos com que a raça se configura na história.

Considerações finais

Os analistas que se debruçam sobre o fenômeno do racismo no Brasil têm enfrentado obstáculos teóricos e metodológicos para explicar e descrever conjuntamente a relação entre as rotinas de interação na vida cotidiana, a formação de esquemas culturais racializados e a configuração das desigualdades raciais. Os usos da história na teoria social do racismo, a aplicação heurística de conceitos como revolução, reprodução, formação, evento, dentre outros que constituem a imaginação sociológica do tempo, oferecem alternativas a esse problema, por meio de relatos e descrições nos quais divisamos as estruturas constituindo as práticas dos agentes sociais e, por vezes, sendo remodeladas por meio da ação.

Tais perspectivas, cada qual com os ganhos e as desvantagens teóricas e metodológicas descritos acima, se tornam analiticamente fecundas quanto mais conseguem descrever o processo não planejado de fabricação material e simbólica dos grupos sociais como raças e a vasta arena de lutas por recursos e prestígio que instituem suas condições de possibilidade social. Questões candentes como a interseccionalidade das categorias de classe, gênero e raça na constituição de grupos sociais, o processo de racialização das ocupações no mercado de trabalho, a história social da criminalização da gente negra, a análise comparada de trajetórias familiares de ascensão e descenso social entre diferentes grupos de cor, a globalização de categorias racializadas de percepção, e a formação de territórios racialmente segregados na cidade e no campo são alguns dos temas que podem ser, por esta via, ampliados e renovados.

Neste sentido, o desafio analítico enfrentado pela sociologia histórica do racismo tem sido explicar e demonstrar a reprodução transformada das desigualdades ao longo do tempo e sua relação com a constituição dos grupos sociais enquanto raças. Mas seu objeto específico, não formulado por outras abordagens, é a racialização da experiência social do tempo, a constituição de temporalidades racializadas que informam a distinção entre os grupos sociais. A interpretação processual dos acontecimentos permite demonstrá-los pela investigação dos severos limites impostos aos grupos subordinados interessados em abolir as hierarquias raciais estatutárias em sociedade modernas burguesas (revolução); com a análise da história social da acumulação desigual de capitais econômicos e simbólicos entre negros e brancos ao longo do tempo (reprodução); pelo estudo do caráter não planejado e histórico da constituição de grupos imaginados através de classificações raciais (formação); ao observar como as estruturas sociais informam a luta social pelo sentido cultural dos eventos históricos, as disputas simbólicas sobre a memória social de uma determinada coletividade e os seus muitos silêncios (evento). Perspectivas que revelam como a diversidade das experiências sociais do tempo, as temporalidades racializadas imprimem significado aos fenômenos analisados. E que sua descrição científica não está isenta da luta social para estabelecer o seu significado político e cultural.

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  • 1
    . No livro Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica, do sociólogo norte-americano Edward Telles (2003), o problema da dissociação entre estrutura social e agência é levado ao paroxismo, por meio da sugestão de que a análise sociológica deveria separar de modo rigoroso o enfoque sobre os cotidianos e as desigualdades sociais, utilizando dois conceitos: relações sociais horizontais e relações sociais verticais. Tal estratégia tentava lidar com a combinação “brasileira” entre uma sociabilidade que favorece o contato entre indivíduos categorizados em cores e raças diferentes e a assombrosa rigidez da desigualdade social no país. Mas nesse ponto, o autor não convenceu seus pares, que tentavam lidar justamente com o problema do vínculo entre ambas as relações.
  • 2
    . Nos termos de Abbott: “Uma abordagem processual começa por teorizar o fazer e o desfazer de todas estas coisas - indivíduos, entidades sociais, estruturas culturais, padrões de conflito - instante a instante, à medida que o processo social se desenrola no tempo. O mundo da abordagem processual é um mundo de eventos. Indivíduos e entidades sociais não são elementos da vida social, mas são padrões e regularidades definidos em linhagens de eventos sucessivos. São momentos de uma linhagem, momentos que moldarão a próxima iteração de eventos, mesmo que retrocedam ao passado. A abordagem processual, em suma, é fundamentalmente, essencialmente histórica. Todos os microelementos com os quais as outras abordagens começam são eles próprios macroestruturas na abordagem processual. Sua estabilidade é algo a ser explicado, não presumido”; “A processual approach begins by theorizing the making and unmaking of all these things - individuals, social entities, cultural structures, patterns of conflict - instant by instant as the social process unfolds in time. The world of the processual approach is a world of events. Individuals and social entities are not the elements of social life, but are patterns and regularities defined on lineages of successive events. They are moments in a lineage, moments that will themselves shape the next iteration of events even as they recede into the past. The processual approach, in short, is fundamentally, essentially historical. All the micro-elements with which the other approaches begin are themselves macrostructures in the processual approach. Their stability is something to be explained, not presumed.” (Abbott, 2016, pp. IX-X).
  • 3
    . A esse respeito ver: Monsma, Salla e Teixeira, 2018, p. 70.
  • 4
    . Ver neste dossiê: “Racismo no Brasil: de hipótese à premissa, sem passar por objeto”, de Luiz Augusto Campos.
  • 5
    . Sigo neste ponto a análise de Fernando Henrique Cardoso: “É curioso que frequentemente se atribua a Florestan Fernandes, nessa matéria, o que ele não pensava. Ao reducionismo atual no qual uns veem em tudo diferenças de classes (educação e renda) e outros as identidades raciais, nosso autor opunha uma visão bem mais rica e complexa. Não via no preconceito e na discriminação a causa das desigualdades: ‘A escravidão e a dominação senhorial deram origem a um regime misto de castas e estamentos, em que os níveis sociais prevaleceram sobre as linhas de cor. Estas existiram, mas como consequência daqueles, ou seja, como produto natural da posição ocupada pelos representantes das raças em contato no sistema de relações econômicas’ (p. 150). E sua convicção nessa direção era tão forte que acreditava que se a tendência à integração estrutural com base em uma sociedade capitalista de classes se perpetuasse ela faria com que a antiga correlação entre cor e posição social perdesse significado e ponto de apoio estrutural. Não por isso, entretanto, desapareceria o preconceito. Basta ver o que acontece nos Estados Unidos de hoje, acrescento eu” (Cardoso, 2008, p. 13).
  • 6
  • 7
    . Para uma análise dessa recepção ver: Lara, 1995, pp. 43-56.
  • 8
    . Um livro clássico neste tema é: Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, de Reis, 2003. Para um conjunto de pesquisas recentes neste campo, ver: Revoltas escravas no Brasil, de Reis e Gomes, 2021.
  • 9
    . Um livro central neste campo é: Na senzala uma flor: Esperanças e recordações na formação da família escrava - Brasil Sudeste, século XIX, de Slenes, 1999.
  • 10
    . A este respeito ver: Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte, de Chalhoub, 1990. Outro livro marcante desta tradição de pesquisa é: Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas (1830-1880), de Machado, 1987.
  • 11
    . Neste tópico ver: Azevedo, 1999; Azevedo, 2010.
  • 12
    . Um conjunto de pesquisas neste tema foi reunido em: Machado, 2015; Schwarcz e Machado, 2018.
  • 13
    . Ver as diferentes pesquisas reunidas em: Gomes e Domingues, 2014; Gomes e Domingues, 2011. Dois outros trabalhos importantes neste tema são: Albuquerque, 2009; Fraga Filho, 2006.
  • 14
    . A este respeito ver: Chalhoub, 2010, pp. 203-210. As críticas do autor ao livro Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX (2008), de João José Reis, se aplicam a um grande conjunto de trabalhos neste campo. Uma outra faceta de problemas foi apontada por Angela Alonso, ao apontar que os estudos sobre a agência dos escravizados e libertos não dão atenção à força coercitiva dos conflitos que se desenrolam na esfera política institucional. Ver Alonso, 2014.
  • 15
    . Um artigo que explicita a construção de uma agenda coletiva de pesquisa é: “Em busca de um padrão de subalternidade de populações negras no oeste paulista no pós-abolição”, de Truzzi, Palma e Monsma, 2023.
  • 16
    . A força política do texto também se expressa de maneira contundente: “Não é somente o Estado brasileiro que tem uma dívida com a população negra, senão toda a população branca, inclusive os imigrantes europeus, que participaram ativamente na exclusão dos negros” (Monsma, 2016, p. 247).
  • 17
    . Ver Campos, 2016, pp. 85-116.
  • 18
    . “The processes of ‘race’ and class formation are not identical. The former is not reducible to the latter even where they become mutually entangled. The very emptiness of racial signifiers, the sense in which ‘race’ is meaningless, contains a warning that its political vitality and volatility may increase as the practices and ideologies which comprise it become less stable and more contradictory. The evolution of racism from vulgar to cultural forms described by Fanon has introduced a new variety which stresses complex difference ratherthan simple hierarchy. Thus today’s British racism, anchored in national decline rather than imperial expansion overseas, does not necessarily proceed through readily apparent notions of superiority and inferiority. The order of racial power relations has become more subtle and elusive than that.” (Gilroy, 2002 [1987], p. 37).
  • 19
    . Em setembro de 1993, Guimarães iniciou um frutífero estágio de pós-doutoramento no Program of Afro-American Studies da Universidade de Brown, a convite de Anani Dzidziyeno. O autor pôde assistir presencialmente, em abril de 1994, às preleções de Stuart Hall na Universidade de Harvard, que fica próxima da cidade de Providence. Sobre suas pesquisas naquele momento, ele afirma: “a minha tarefa seria, mais uma vez, dar ‘carne e vida’ a uma estrutura. Como operariam os mecanismos de discriminação que explicam a manutenção das desigualdades raciais no Brasil, fato inquestionável, descoberto por Carlos e Nelson? Como conciliar a diferença de prestígio social entre ‘pardos’ e ‘pretos’, observada no cotidiano, e sua quase completa identidade de posição estrutural em termos de oportunidades de vida? Como, finalmente, conciliar a operação de mecanismos de discriminação racial, reivindicada por Carlos e Nelson, com a ausência de ‘raças’ no discurso nativo, tal como observado pelos antropólogos? O ano passado em Brown foi sobretudo o ano de descoberta do Cultural Studies enquanto gênero cientifico. De fato, influenciados pelo pós-estruturalismo e pelo desconstrutivismo francês, autores negros britânicos, como Paul Gilroy, e afro-americanos, como Louis Gates Jr., levaram a análise do discurso erudito a um novo patamar de compreensão e de elaboração. Muito me serviram estes autores na análise que comecei a fazer do desenvolvimento dos estudos de relações raciais. Eles me ensinaram, sobretudo, ser impossível compreender identidades raciais isoladamente de outras formas de identidade, principalmente as identidades nacionais, regionais, de classe e de gênero. Do mesmo modo, tais identidades poderiam ser analisadas enquanto discursos, o que me levava de volta a minha influência gramsciana (aliás, o grande precursor desses estudos, Stuart Hall, fizera caminho análogo, utilizando-se de Gramsci para a análise de discursos hegemônicos)” (Guimarães, 2003, p. 45).
  • 20
  • 21
    . Outros usos desta abordagem conduzidos por interlocutores do autor se encontram em: Alves, 2019. Ver também: Hayashi, 2023.
  • 22
    . Para uma abordagem que caminha nessa direção ver: Flavia Rios, “Os protestos antirracistas de 2020 na América Latina”, em: https://www.youtube.com/watch?v=da5fzWB09v4, consultado em 02/04/2024.
  • 23
    . Nos termos de Sewell Jr., uma das principais características dos eventos históricos é produzirem mais eventos, dado o caráter gradual e irreversível dos acontecimentos e a desarticulação das estruturas que organizam a rotina comum das interações. “Se as estruturas são múltiplas e sobrepostas, segue-se que qualquer transformação da estrutura tem o potencial de provocar desarticulações e rearticulações das estruturas sobrepostas e contíguas.” (2017, p. 255). É neste sentido preciso que o Massacre de 17 de Novembro articula os eventos da Abolição e da República. Embora minha análise tenha sempre em foco a teoria do evento de Sahlins, que me parece mais ampla e não está condicionada à “transformação das estruturas”, o caso se adequa à conceituação de Sewell Jr., para quem os eventos “rearticulam estruturas, transformam culturas, foram crucialmente moldados pelas condições locais, permeados de emoções poderosas, atos de criatividade coletiva, pontuados por rituais improvisados e produziram mais acontecimentos” (2017, p. 258). Também retenho de Sewell Jr. sua crítica à insuficiência da noção antropológica de estrutura, como sistema de categorias simbólicas, para uma sociologia histórica dos eventos. Diante de fenômenos como o racismo, precisamos de um conceito de estrutura capaz de articular, simultaneamente, a vigência de esquemas culturais, a distribuição de recursos e as formas de exercício do poder.
  • 24
    . Ver o tópico: “Relações raciais como arcaísmo do passado: as teses de Florestan Fernandes”, em: Hasenbalg, 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    03 Abr 2024
  • Aceito
    22 Abr 2024
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