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Uma teoria do vínculo social: a sociologia de Serge Paugam1 1 . Esta resenha se beneficiou das discussões promovidas no curso Temas de Sociologia Contemporânea: as Formas e os Fundamentos da Solidariedade Humana, ministrado pelo professor Serge Paugam, na Universidade de São Paulo, durante os dias 1º e 17 de agosto de 2023. Agradeço ao PPGS/USP, aos demais coorganizadores, representados pela professora Nadya A. Guimarães, aos colegas de classe e ao professor Paugam a possibilidade de construir diálogos tão instigantes como os que compartilhamos durante aqueles dias.

Paugam, Serge. . L’attachement social: formes et fondements de la solidarité humaineFrança: Seuil, 2023640

O livro mais recente de Serge Paugam, L’attachement social: formes et fondements de la solidarité humaine2 2 . Este texto segue discussões anteriores e traduz o termo “L’attachement social” como vínculo social. Para mais informações, conferir a segunda nota de rodapé do texto de Paugam (2017). , publicado em 2023 e ainda indisponível em português, oferece uma abordagem aprofundada e atualizada de temas que o autor tem explorado desde o início de sua carreira. Esses temas estão centrados na questão do vínculo social e da solidariedade humana3 3 . Em 2018, Paugam concedeu uma entrevista publicada na Revista Plural em que explora os argumentos centrais desse livro ainda no processo de construção (Serra e Bicudo, 2019). . Se de início as seiscentas páginas já chamam a atenção do/a leitor/a, o que realmente surpreende é a densidade do conteúdo desenvolvido ao longo da obra. O modo como Paugam mobiliza uma extensa e atualizada bibliografia, a maturidade com que revisa seus próprios argumentos e teses, a amplitude do estudo comparativo transnacional e, o mais notável, a construção de uma teoria sociológica coesa, fundamentada conceitual, metodológica e epistemologicamente, reafirmam os traços de uma obra sociológica madura. Ademais, o autor apresenta uma leitura generosa e analítica de textos fundamentais da sociologia, desde os clássicos como Durkheim, Mauss, Elias e Bourdieu, aos inúmeros contemporâneos com quem estabelece diálogos temáticos.

É com esse espírito generoso e analítico que o autor começa o livro. A primeira parte da obra é dedicada a uma discussão sociológica sobre o conceito de vínculo social a partir da produção de Émile Durkheim – a grande influência dos seus trabalhos4 4 . Esse debate está publicado no Brasil no texto “Durkheim e o vínculo aos grupos: uma teoria social inacabada” (Paugam, 2017). . Além de selecionar e organizar as principais ideias e publicações, Paugam oferece uma leitura original e sistemática sobre o pensamento durkheimiano. Para ele, a obra de Durkheim (1999, 2000, 2004, 2008) está orientada por uma grande questão sociológica: como os indivíduos, cada vez mais autônomos, continuam vivendo em sociedade? (Durkheim, 1999DURKHEIM, Émile. (1999), Da divisão do trabalho social. São Paulo, Martins Fontes.). Ou, em outros termos, como, apesar da diferenciação e individualização que caracteriza as sociedades modernas, a vinculação ao coletivo é possível? Entender o caminho percorrido por Durkheim em busca de respostas a essa pergunta é a porta de entrada para Paugam fundamentar a sua própria teoria do vínculo social.

Assim, segundo o autor, ao se afastar de uma teoria da evolução da solidariedade – determinada pelo conceito de solidariedade mecânica e orgânica –, Durkheim avançou rumo a uma teoria do vínculo social. Nesse percurso, o papel dos grupos e a pluralidade de laços sociais e morais a eles vinculados ganharam mais importância. Por isso, na visão de Paugam, o desenvolvimento da obra de Durkheim oferece um terreno fértil para tratar da solidariedade como um fundamento antropológico da vida social, com base na diversidade de vínculos sociais e das moralidades que os sustentam.

A influência decisiva de Durkheim é claramente captada no enquadramento analítico desenvolvido por Paugam. Para o autor do livro, as sociedades estão baseadas em quatro tipos de laços sociais, que, apesar de não serem os únicos, sintetizam as principais relações às quais estamos vinculados. Esses laços têm duas naturezas distintas: os de origem, aos quais estamos ligados desde o nascimento (família e pátria), e os eletivos, desenvolvidos ao longo do processo de socialização (casamento, associativismo, categorias profissionais etc.). Os principais laços sociais são representados em quatro tipos de vinculação social que, por sua vez, representam quatro formas de moralidades: o vínculo de filiação, orientado pela moral doméstica; o vínculo de participação eletiva, relacionado à moral associativa; o vínculo de participação orgânica, regido pela moral profissional; e o vínculo de cidadania, ligado à moral cívica. Os variados vínculos proporcionam aos indivíduos proteção e reconhecimento necessários para a sua existência social. Esse é o principal esquema analítico do autor, que vem sendo defendido desde trabalhos anteriores (Paugam, 2017).

Os dois elementos centrais, proteção e reconhecimento, são as bases do conceito de laços sociais. Para Paugam, proteção “refere-se a todos os recursos que um indivíduo pode mobilizar diante dos riscos da vida (recursos familiares, comunitários, profissionais, sociais etc.)” (2023b, s/p, tradução livre), enquanto reconhecimento está relacionado “à interação social que estimula os indivíduos, fornecendo-lhes a prova de sua existência e de seu valor diante dos outros” (idem). Eles podem ser sintetizados nas ideias de “poder contar com” (proteção) e “contar para” (reconhecimento). Paugam retoma a herança dos debates sobre solidariedade e Estado de Bem-Estar Social, em especial com Esping-Andersen (1991)ESPING-ANDERSEN, Gosta. (1991), "As três economias políticas do Welfare State". Lua Nova: Revista de Cultura e Política, 24: 85-116. e Robert Castel (2015)CASTEL, Robert. (2015), Metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. São Paulo, Editora Vozes., para as discussões sobre proteção. Do lado do reconhecimento, a conversa é estabelecida com Axel Honneth (2003)HONNETH, Axel. (2003), Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo, Editora 34.. Apesar de reconhecer a importância da proposta de Honnet, Paugam considera que ela é demasiadamente teórica, e, por isso, adota uma linha mais empirista e operacional dessas ideias.

Assim, proteção e reconhecimento, ou a ausência deles, são as bases das conexões entre os quatro laços sociais, que não devem ser pensados isoladamente. A sociedade, para Paugam, é na verdade o oposto disso. Ela é tecida no intercruzamento dos diferentes laços sociais que vinculam indivíduos e grupos uns aos outros. Para o autor:

Em cada sociedade, esses quatro tipos de laços constituem o tecido social que preexiste aos indivíduos e a partir do qual eles são chamados a tecer seus vínculos com o corpo social através do processo de socialização. O que chamo de vínculo social corresponde, pois, ao processo de entrelaçamento destes quatro tipos de vínculos, tanto ao nível de cada indivíduo como ao nível da sociedade, uma vez que é neste último nível que hierarquizam as normas sociais e jurídicas a que os indivíduos são obrigados a obedecer (Paugam, 2023bPAUGAM, Serge. (2023b), “La structuration des sociétés modernes. La vie des idees”. La vie des idees. Disponível em https://laviedesidees.fr/La-structuration-des-societes-modernes, consultado em 29/09/2023.
https://laviedesidees.fr/La-structuratio...
, s/p, tradução livre).

Essa interconexão é representada através da ideia de um mosaico, ilustrada na capa do livro. Na imagem, pontas de quadrados se interligam, e as sobreposições entre elas formam losangos. Os quadrados são a representação dos laços sociais, e a união deles a formação do tecido social, baseada nos quatro principais tipos de vínculo social. Mas o mosaico também é uma boa representação das periferias do tecido social, caracterizadas pelas pontas dos quadrados não interligados, ou seja, a representação de vínculos deficitários. Com base na representação dessas pontas soltas e de vínculos que não se constituem, Paugam desenvolve as partes seguintes do livro: a parte 2, voltada para a questão das desigualdades sociais, e a parte 3, para as lutas sociais.

A segunda parte do livro aprofunda a ideia de que, sendo os laços sociais desiguais em sua própria constituição, a teoria do vínculo social é capaz de explicar as desigualdades sociais. Ou seja, a possibilidade de manter laços de proteção e reconhecimento ao longo da vida tem relação direta com as estruturas de desigualdade de cada sociedade. Para sustentar essa ideia, Paugam apresenta alguns casos. Vejamos um exemplo. Na França há uma correlação entre a escolaridade e os laços sociais. O que significa que, quanto maior a escolarização, maior a chance de o indivíduo manter laços fortes de proteção e reconhecimento através dos vínculos familiares, eletivos, orgânicos e cidadãos. Assim, uma trama de desigualdades se reproduz através de vínculos sociais.

Empenhado em dar dinamicidade à teoria dos vínculos e à explicação da reprodução das desigualdades, o autor propõe um sistema de diferenciação dos tipos de laços sociais. Paugam chama de “laços que libertam”5 5 . Para evitar que essa expressão soe como paradoxal, o autor propõe uma breve reflexão sociológica sobre liberdade, através do diálogo entre autores como Hayek, Aron e Simmel, argumentando que a coesão social pode gerar uma liberdade positiva, resultando em laços que libertam. aqueles que têm sucesso em promover a proteção e o reconhecimento dos indivíduos. Quando existem, esses laços geram vínculos positivos entre indivíduo e sociedade. No entanto, as relações que não produzem proteção suficiente, ele chama de “laços que fragilizam”. Comum, por exemplo, entre famílias pobres, em que o laço de filiação é insuficiente para garantir a sobrevivência da família. Quando os laços falham na promoção do reconhecimento, ele denomina de “laços que oprimem”. Para ficarmos no caso da família, isso acontece quando os pais são capazes de prover a reprodução material dos filhos, sem com isso reconhecerem suas identidades sexuais e de gênero, por exemplo. Agora, na ausência de proteção ou reconhecimento, os laços são rompidos, e o indivíduo se desprende do tecido social.

Com base nesse enquadramento analítico dinâmico, o autor retoma suas discussões sobre desqualificação social. Anteriormente, Paugam (2003)PAUGAM, Serge. (2003), A desqualificação social ensaio sobre a nova pobreza. São Paulo, Educ-Editora da PUC-SP. havia defendido a tese de que a pobreza seria um processo de desqualificação social, caracterizado não apenas por privações de ordem material, mas também pelo estigma, pela regulação social, pela exclusão e por condições sócio-históricas que fortalecem uma relação de dependência entre os pobres e a sociedade em geral. O que não estava suficientemente explicado nessa tese, segundo o próprio autor, é que a desqualificação social constitui um processo de desproteção – “não poder contar com” – e, ao mesmo tempo, um processo de não reconhecimento – “não poder contar por”. Assim, o autor oferece uma explicação mais sistemática e dinâmica sobre a desqualificação social, agora caracterizada por três fases: fragilidade (falta de proteção), dependência (ausência de reconhecimento) e ruptura (inexistência de laços).

Essas diferentes dinâmicas que os vínculos sociais podem assumir geram resultados em aberto, que podem ir desde a falta de recursos, autoconfiança e comportamentos depressivos, como no caso da desqualificação social, até as várias formas de luta e resistência social, tema da parte 3 do livro. Nesse momento Paugam propõe uma explicação para as lutas sociais, bem como para seu sucesso ou fracasso, através da teoria da vinculação social. Encontramos, nessa etapa do livro, um excelente exemplo de uma abordagem sociológica das disputas sociais que prioriza as formas de coesão em detrimento de uma perspectiva dos conflitos. Vejamos.

A busca de Paugam por uma teoria social dinâmica também pode ser ilustrada em sua preocupação com as lutas sociais. Isso é, se a fragilidade dos laços pode colocar o indivíduo em risco ou em uma relação de opressão, o fortalecimento e a defesa dos laços podem gerar resultados positivos, o que significa que, apesar das dificuldades de mudança nos sistemas sociais, os resultados das dinâmicas estão sempre abertos. O processo de fortalecimento dos laços sociais, segundo Paugam, pode ser observado nas lutas sociais. Em diálogo com George Simmel (2011)SIMMEL, Georg. (2011), "O conflito como sociação". Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, 10 (30): 568-573., Lewis Coser (1982)COSER, Lewis. (1982), Les Fonctions du conflit social. Paris, PUF. e Alain Touraine (1966)TOURAINE, Alain. (1966). La conscience ouvrière. Paris, Seuil., o autor propõe um enquadramento que trate das lutas sociais a partir da relação do grupo internamente, com seus opositores e com a sociedade de maneira geral. Sua questão-chave é entender como os vínculos sociais, de naturezas diversas, ajudam a explicar o sucesso ou não de uma luta social. Para isso, ele propõe uma análise de três casos: uma greve de sapateiros no interior da França, no início do século XX; uma ação trabalhista movida por trabalhadores altamente especializados contra a empresa Molex, no início do século XXI; e o movimento contemporâneo dos coletes amarelos, que fugia a grandes organizações modernas como partidos ou sindicatos e se baseava no descontentamento de um grupo diverso da sociedade francesa atual.

Paugam apresenta uma densa descrição histórica e sociopolítica de cada movimento; contudo, sua reprodução é inviável aqui. Sintetizo algumas conclusões de sua análise. Observa-se que os dois primeiros casos – greve dos sapateiros e ação trabalhista – são lutas trabalhistas tradicionais, enquanto o movimento dos coletes amarelos se opõe ao Estado e às elites que o governam. A greve dos sapateiros reivindicava direitos trabalhistas em um contexto pré-salarial, já as lutas mais recentes buscavam defender os direitos conquistados e denunciar as injustiças em uma sociedade marcada pela crescente insegurança. O mais importante, no entanto, é que nos três casos a durabilidade do movimento e o sucesso alcançado em relação a seus objetivos estão fundamentados na expansão dos vínculos mobilizados; ou seja, todos começam em determinado vínculo (os dois primeiros no laço orgânico e o último no laço de cidadania), baseado em uma moralidade específica, da qual deriva sua legitimidade de reivindicação e através da qual expandem suas alianças, especialmente com políticos e estância republicanas. Nesse sentido, a vitória do movimento representa a expansão e o fortalecimento dos laços sociais, bem como a consolidação de determinada moralidade. Em síntese, para a teoria do vínculo social, o sucesso de uma luta social está associado à capacidade de fortalecer os vínculos sociais com a sociedade.

Na quarta e última parte do livro, Paugam apresenta os resultados da investigação comparativa transnacional que coordenou. Seu objetivo maior era testar empiricamente o enquadramento teórico-analítico construído até então. Baseado no pressuposto nacionalista durkheimiano, o autor define uma sociedade como um estado-nação e, com isso, propõe uma pesquisa sobre a variação dos padrões de vínculos sociais e solidariedade humana através de diferentes sociedades. A pesquisa comparou 34 países, com dados provenientes dos anos de 2014 e 2015. Para isso, ele contou com equipes regionais localizadas em diferentes partes do globo, inclusive no Brasil6 6 . Parte dos resultados relacionados ao Brasil pode ser verificada em Guimarães, Paugam e Prates (2020). . O principal critério de seleção dos casos e dos indicadores foi a disponibilidade e a confiabilidade dos dados. Paugam não desconsidera os limites desse tipo de seleção e análise, e reconhece a necessidade de estudos que aprofundem as diferenças regionais de cada país e as variações de indicadores que sintetizam os laços sociais. No entanto, entende que, apesar de o processo ser caracterizado por lacunas e limites, que se justificam pela própria natureza da análise comparativa transnacional, os padrões encontrados nos resultados são convincentes e reforçam a teoria.

Ao trabalhar com índices para cada tipo de vínculo social, que variam de 0 a 1, sendo 0 fraco e 1 forte, a pesquisa demonstra níveis demarcados para cada tipo de vínculo social. Com base na metodologia de classificação hierárquica ascendente, esses índices foram agrupados em tipos-ideais de regimes de vinculação que, por sua vez, representam cinco formas de moralidades que imperam nas sociedades atuais.

De maneira muito sucinta, o resultado da pesquisa comparativa foi a classificação de cinco tipos-ideias de regimes de vínculos sociais. O primeiro deles, o Familista ++, se caracteriza pelo forte vínculo de filiação (0,72), enquanto os índices para os outros três tipos de vínculo são muito baixos. Esse grupo inclui sete países, todos da América Latina (Chile, Colômbia, Peru, El Salvador, Guatemala, México e Nicarágua). O segundo regime é uma variação do primeiro e se chama apenas Familista. Nesse caso, o índice de vínculo familiar é um pouco mais baixo que o do grupo anterior, mas, ainda assim, permanece mais alto em comparação com os demais vínculos. Inclui a maior diversidade de áreas culturais, ao todo onze países (Argentina, Brasil, Estônia, Polônia, Hungria, Grécia, Espanha, Japão, Coreia do Sul, África do Sul e Turquia). Já o regime Organicista é caracterizado pela predominância do índice de vínculo orgânico (0,84) em comparação aos demais. É composto por quatro países (França, Itália, Eslovênia e Uruguai). O tipo Voluntariado é determinado pela força dos laços de participação eletiva (0,91), pela relevância médio do índice de vínculo de cidadania (0,61) e pela fraqueza dos demais. Abrange quatro países (Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia e Grã-Bretanha). O regime Universalista é definido pela força do índice de cidadania (0,81), considerando ainda a força mediana dos demais vínculos, com exceção do vínculo de filiação, que está próximo de 0. Compõem esse grupo oito países (Dinamarca, Noruega, Finlândia, Suécia, Holanda, Alemanha, Suíça e Austrália).

Os quatro tipos de laço social são organizados, dessa forma, em cinco formas de regime de vínculo social. Essa distribuição justifica-se pela configuração específica da força de cada laço em determinado grupo de países; ou seja, apesar de os dois primeiros serem caracterizados pela predominância dos vínculos de filiação, a força que esse laço exerce no primeiro grupo, bem como a configuração com os demais, é consideravelmente diferente em relação ao segundo grupo, o que justifica a separação.

De maneira analítica, Paugam propõe uma relação entre os resultados encontrados e outras formas de avaliação transnacionais, como o índice de desenvolvimento econômico, a porcentagem de população pobre, o índice de proteção social e a percepção de importância dos direitos. O resultado demonstra sobreposições dos piores índices de desenvolvimento, pobreza, cobertura social e grau de civismo com os grupos familistas. Por sua vez, os índices melhoram na mesma proporção em que se avança para os demais regimes, seguindo a ordem organicista, voluntarista e universalista. O próprio autor reconhece que é tentador interpretar as variações de regimes de vínculo social como a expressão de uma transformação a longo prazo dos fundamentos da solidariedade; contudo, ele alerta:

Não se trata de estágios, mas de evoluções contrastantes, sob a influência de uma pluralidade de fatores em um esquema determinístico. A questão sociológica agora é saber como esses fatores contribuem para manter os diversos países em um determinado regime e até que ponto pode ocorrer uma transformação (Paugam, 2023b, s/p, tradução livre).

Nessa parte final do livro, Paugam dedica capítulos específicos para aprofundar as explicações sobre cada tipo de regime. Darei atenção pontual às suas discussões sobre o regime familista, dado que engloba o Brasil e a América Latina.

Ao explicar as diferenças entre os sistemas familistas, Paugam retoma as teorias sobre as formas de organização familiar na passagem entre as sociedades pré-modernas e modernas, afirmando que diferentes formas de organização familiar coexistiram em ambos os momentos e que a solidariedade familiar está particularmente presente em contexto de vulnerabilidade e pobreza, como o latino-americano. Ademais, o autor argumenta que, nessas regiões do globo, o familismo, como moral, está presente em instituições e práticas cotidianas que extrapolam a arena familiar. Um exemplo desse significado é que a família é descrita como célula base da sociedade em diversas constituições dos países latino-americanos. Além disso, essa moral pode ser observada nos espaços públicos e políticos através das relações de compadrio e clientelismo. O autor também afirma que a moral familiar é reforçada pela forte crença entre os latino-americanos de que a desigualdade social e a pobreza são advindas de causas naturais e por isso não podem ser evitadas, se não pelo apoio da própria família, que deve se esforçar para sair da condição de pobreza. Desse modo, ele oferece respostas interpretativas para a relação entre o regime familista e os altos níveis de desigualdade e pobreza na América Latina.

A densidade do enquadramento teórico enfrenta, no final do livro, os desafios do confronto com a realidade empírica. Impressionam a quantidade e a qualidade dos dados mobilizados e, ainda mais, os resultados padronizados que reafirmam o argumento teórico sobre tipos de regime de vinculação social. Diferente de outras comparações transnacionais, é sociologicamente rico o modo como Paugam constrói sua análise: é com base nas formas de solidariedade e vinculação que as sociedades são classificadas, diferentemente de classificações sistêmicas, como a de Esping-Andersen (1991)ESPING-ANDERSEN, Gosta. (1991), "As três economias políticas do Welfare State". Lua Nova: Revista de Cultura e Política, 24: 85-116.7 7 . Paugam (2023) aprofundou essas comparações em publicação recente. .

No entanto, não deixa de causar incômodo a uma leitora latina o modo como as avaliações seguem orientações morais e pressupostos de progresso que, ora ou outra, aparecem na análise. As tentativas constantes de não dar um tom evolucionista às formas de regime são ignoradas em certos momentos da investigação. Parte desse incômodo justifica-se, por exemplo, no modo como o autor explica a construção do regime familista, privilegiando referências que dizem respeito à história europeia, quando se trata de um regime propriamente latino-americano. Além disso, as explicações sobre a correlação entre os níveis de pobreza e desigualdade e o regime familista deixam em aberto um certo tipo de interpretação que culpabiliza os mais pobres por sua condição. Apesar de o próprio autor reconhecer o problema dicotômico nas pesquisas sobre pobreza, ora estruturalistas demais, ora excessivamente individualistas, Paugam não oferece respostas interpretativas suficientes para a relação entre pobreza, desigualdades e os regimes familistas.

Ainda que se elenquem limites na proposta, o livro é um exemplar excepcional e imperdível para os interessados no diálogo com a sociologia. Dos/as iniciantes aos/às seniores, as contribuições e os insights de Paugam representam o que há de mais contemporâneo e vigoroso na escola sociológica iniciada por Durkheim.

Referências Bibliográficas

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  • HONNETH, Axel. (2003), Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais São Paulo, Editora 34.
  • PAUGAM, Serge. (2003), A desqualificação social ensaio sobre a nova pobreza São Paulo, Educ-Editora da PUC-SP.
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  • SERRA, Pedro Martins & BICUDO, Marcus de Campos. (2019), "Desigualdades e laços sociais: por uma renovação da teoria do vínculo: Entrevista com Serge Paugam". Plural, 26 (1): 208-232. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2019.159915
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  • SIMMEL, Georg. (2011), "O conflito como sociação". Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, 10 (30): 568-573.
  • TOURAINE, Alain. (1966). La conscience ouvrière Paris, Seuil.

Notas

  • 1
    . Esta resenha se beneficiou das discussões promovidas no curso Temas de Sociologia Contemporânea: as Formas e os Fundamentos da Solidariedade Humana, ministrado pelo professor Serge Paugam, na Universidade de São Paulo, durante os dias 1º e 17 de agosto de 2023. Agradeço ao PPGS/USP, aos demais coorganizadores, representados pela professora Nadya A. Guimarães, aos colegas de classe e ao professor Paugam a possibilidade de construir diálogos tão instigantes como os que compartilhamos durante aqueles dias.
  • 2
    . Este texto segue discussões anteriores e traduz o termo “L’attachement social” como vínculo social. Para mais informações, conferir a segunda nota de rodapé do texto de Paugam (2017)PAUGAM, Serge. (2017), "Durkheim e o vínculo aos grupos: uma teoria social inacabada". Sociologias, Porto Alegre, 19 (44): 128-160. https://doi.org/10.1590/15174522-019004405
    https://doi.org/10.1590/15174522-0190044...
    .
  • 3
    . Em 2018, Paugam concedeu uma entrevista publicada na Revista Plural em que explora os argumentos centrais desse livro ainda no processo de construção (Serra e Bicudo, 2019SERRA, Pedro Martins & BICUDO, Marcus de Campos. (2019), "Desigualdades e laços sociais: por uma renovação da teoria do vínculo: Entrevista com Serge Paugam". Plural, 26 (1): 208-232. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2019.159915
    https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099....
    ).
  • 4
    . Esse debate está publicado no Brasil no texto “Durkheim e o vínculo aos grupos: uma teoria social inacabada” (Paugam, 2017PAUGAM, Serge. (2017), "Durkheim e o vínculo aos grupos: uma teoria social inacabada". Sociologias, Porto Alegre, 19 (44): 128-160. https://doi.org/10.1590/15174522-019004405
    https://doi.org/10.1590/15174522-0190044...
    ).
  • 5
    . Para evitar que essa expressão soe como paradoxal, o autor propõe uma breve reflexão sociológica sobre liberdade, através do diálogo entre autores como Hayek, Aron e Simmel, argumentando que a coesão social pode gerar uma liberdade positiva, resultando em laços que libertam.
  • 6
    . Parte dos resultados relacionados ao Brasil pode ser verificada em Guimarães, Paugam e Prates (2020).
  • 7
    . Paugam (2023) aprofundou essas comparações em publicação recente.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    01 Out 2023
  • Aceito
    02 Dez 2023
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