Resumo
Se o racismo se tornou um tema totalmente legitimado no debate público contemporâneo, a sua investigação sociológica deixa às vezes a desejar. Se é natural e até mesmo desejável que o racismo brasileiro seja uma premissa dos movimentos políticos que buscam denunciá-lo, o mesmo não deveria ser válido para a pesquisa sociológica interessada em entender suas dinâmicas. Neste texto, destacamos as orientações gerais dos autores deste dossiê no sentido da produção de uma sociologia do racismo brasileiro atenta a seus mecanismos empíricos de funcionamento, impactos sociais e lógicas internas. Para tal, destacamos a centralidade de uma noção implícita ou explícita de raça nos processos de racialização e tratamento diferencial.
Palavras-chave: Racismo; Raça; Sociologia; Relações raciais; Discriminação racial
Abstract
If racism has become a fully legitimized theme in contemporary public debate, its sociological investigation is sometimes left unexplored. If it is natural and even desirable that Brazilian racism be a premise for the political movements that seek to denounce it, so too should it be natural and valid to pursue sociological research interested in understanding its dynamics. In this text, we highlight the general orientations of the authors of this collection toward the aim of producing a sociology of Brazilian racism attentive to its empirical mechanisms, social impacts, and internal logic. To this end, we highlight the centrality of an implicit or explicit notion of race in the processes of racialization and differential treatment.
Keywords: Racism; Race; Sociology; Race relations; Racial discrimination
À época da institucionalização da Sociologia como disciplina no Brasil, o racismo parecia restrito apenas aos Estados Unidos - segregação racial, linchamentos, preconceitos e discriminações - e derivado de um erro conceitual científico - o conceito biológico de raças humanas, com capacidades, instintos, habilidades morais e intelectuais diferentes. O antissemitismo europeu, mesmo depois do caso Dreyfus, continuava a ser entendido mais no plano da intolerância religiosa e étnica que no racial. Apenas com a ascensão do nazifascismo na Europa e a execução de seu projeto insano de extermínio da raça judia, viu-se que o racismo era muito mais amplo e de efeitos muito mais abrangentes do que se imaginara. Ainda assim, manteve-se a crença ilusória de que desmistificar o conceito de raça biológica seria suficiente para erradicar o racismo.
No nosso século, o crescimento exponencial das migrações para os países europeus, que se constituíram nos séculos passados em metrópoles coloniais, assim como o desenvolvimento capitalista da agricultura em outras partes do mundo, expulsando do campo populações de origem mestiça, ameríndia ou africana, já assentadas ou reassentadas desde o período colonial, acabaram por solapar o imaginário nacional de países da América Latina e da Europa. O racismo voltou a florescer rapidamente nesses países, agora sem que as raças biológicas fossem evocadas, sendo mesmo evitadas ou denegadas. Um racismo sem raças, pensaram alguns, enfim um objeto propriamente sociológico.
O fato é que o racismo passou a ser, não apenas um assunto jornalístico, ou jurídico, como em meados do século XX, mas um objeto da pesquisa e da reflexão sociológica. Ou quase.
Exatamente o que queremos discutir neste dossiê da Tempo Social é esse “quase”. Se o racismo como objeto se tornou totalmente legitimado no debate público contemporâneo brasileiro, a sua investigação sociológica deixa às vezes a desejar, certamente contaminada pela força da evidência política e discursiva mobilizada pelos movimentos voltados para o seu combate. Para dizer de modo cru: se é natural e até mesmo desejável que o racismo brasileiro seja uma premissa dos movimentos políticos que buscam denunciá-lo, o mesmo não deveria ser válido para a pesquisa sociológica. A luta contra o racismo depende de uma compreensão do seu funcionamento e dinâmicas na sociedade, daí a importância de que a pesquisa acadêmica não o pressuponha. Na verdade, como objeto de investigação, o racismo é um fenômeno que não se mostra tão explícito nem tão simples.
Não nos parece gratuito que a produção bibliográfica sobre o conceito de racismo tenha se proliferado nos últimos anos justamente em setores do debate acadêmico mais atentos ao debate público. Intelectuais das mais diversas abordagens têm se esforçado em expor para um público maior sínteses esquemáticas do racismo, ora visto como uma propriedade das estruturas sociais (Almeida, 2019), ora como uma forma social oriunda da escravidão (Sodré, 2023), ora como um dispositivo (Carneiro, 2023), dentre outras. Trabalhos que possuem o mérito de transformar o racismo num problema social legítimo perante a opinião pública e crucial para a realização da democracia. Contudo, o caráter teórico e sintetizante dessas abordagens não rompe com o racismo enquanto premissa, ao contrário: estende-o para visões totais sobre seus mecanismos e efeitos na sociedade.
Nosso intuito aqui é bem distinto. Mais do que pressupor o racismo e, a partir disso, desenvolver teorias sociais sobre sua ubiquidade social, queremos refletir teórica e empiricamente sobre as minúcias e os mecanismos de sua produção, reprodução e transformação sociais. Mais do que desenvolver uma teoria total do racismo, buscamos definir suas fronteiras conceituais e impactos empíricos com base em investigações sociológicas atentas às suas complexidades. O racismo tem várias formas de manifestação como doutrinas e discursos (ideologia), atitudes e valores (preconceito), discriminação (tratamento diferencial), segregação espacial e social, instituições, organizações e estruturas, o que exige a utilização de diversas formas de observação, a depender do modo como se manifesta. Algumas diretas, como em textos, quando podemos empregar a análise textual e discursiva; ou como comportamentos explícitos, quando podemos usar a observação participante, ou os relatos documentais. Algumas indiretas, como quando só podemos observar as consequências diferenciais entre grupos raciais, ou quando temos que desenvolver modelos para a exclusão de alternativas explicativas. A compreensão empírica é teoricamente como todas essas dimensões se articulam na prática; depende mais hoje de pesquisas sobre o racismo do que de sínteses totalizantes.
O que nos faz usar o conceito de racismo para analisar essas doutrinas, atitudes, valores, comportamentos, instituições, estruturas são, entretanto, dois elementos que devem ser evidenciados pela análise: (1) alguma noção implícita ou explícita de raça como orientação da ação, justificativa, lógica discursiva, ou essência identitária; (2) o processo de racialização, ou seja, práticas sociais e simbólicas de formação e fechamento de grupos com fronteiras simbólicas ou desigualdades que remetem à ideia de raça.
Nesse sentido, também queremos nos distinguir de abordagens teóricas, mais fortes na academia europeia, mas não apenas, que tomam o racismo como sinônimo de qualquer essencialização social mais forte. Essa perspectiva dissocia o conceito de racismo de concepções implícitas ou explícitas de raça, o que retira da categoria qualquer especificidade. Nessa direção, pode-se falar em “racismo da inteligência” (Bourdieu, 1993), “racismo de classe” (Mauger, 2011), racismo cultural ou racismo sem raças (Balibar e Wallerstein, 1991; Balibar, 2013) e até mesmo “racismo de gênero” (Souza, 2021). Esses exemplos já sugerem que, nesse emprego estendido, racismo deixa de ser uma categoria analítica para se tornar uma metáfora de uso indistinto.
Assim, em nossa perspectiva, poucos equívocos podem ser tão grosseiros quanto a pretensão de conceptualizar a dominação racial e, a um só tempo, rechaçar o uso analítico do conceito de raça: único que poderia descrever em termos precisos o sentido subjetivo das ações sociais que orientam tal trabalho de dominação. Mas o último livro de Loic Wacquant, A dominação racial, demonstra que esse modo de pensar estranhamente ainda encontra recepção no meio acadêmico - o que nos diz mais sobre os limites políticos da pesquisa sobre racismo que sobre os alcances da sociologia nesta matéria.
Ao contrário, procuramos dar uma definição precisa de raça, em conformidade com os avanços do construcionismo racial na filosofia (Glasgow, 2019; Haslanger, 2019; Bessone, 2020), mas mantendo, ao mesmo tempo, a herança weberiana da teoria da ação social, justamente para proporcionar a investigação empírica ao nível dos agentes e não apenas das estruturas sociais. Os textos reunidos aqui fazem um esforço conjunto para assentar as bases do que seria um estudo sociológico do racismo no Brasil sem, contudo, inflacionar o conceito em teorias totais ou metáforas indistintas. Fazemos a crítica da ausência de um objeto ou problemática que possa ser cientificamente investigado; investimos no modo como definir com mais propriedade o que é raça e o que é racismo; refletimos sobre a história de sua problematização nas ciências sociais; examinamos as bases de uma sociologia histórica da racialização; discutimos os estudos de desigualdades raciais; apresentamos análises empíricas do racismo em instituições jurídicas.
O leitor terá, portanto, a oportunidade de se defrontar com textos que, sem negar seu engajamento político, teorizam sobre o racismo como objeto de pesquisa, procuram demonstrar a sua existência em casos concretos, a forma como opera e como pode ser observado.
O primeiro texto do dossiê, de Luiz Augusto Campos, trata justamente da marginalidade do tema do racismo nas pesquisas empíricas sobre raça no Brasil. Embora o campo seja antigo e prolífico, ainda são raras as pesquisas dedicadas a compreender e explicar as dinâmicas concretas dos mecanismos de discriminação racial no mercado de trabalho, nas relações afetivas, espaços de lazer etc. Para Campos, isso se deve ao sucesso talvez excessivo do modelo analítico proposto por Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva no fim da década de 1970 e amplamente utilizado ainda hoje. Esse modelo tomava o racismo como hipótese a ser testada via diferentes estudos quantitativos que, quase sempre, indicavam e permanecem indicando disparidades raciais injustificadas. Mas como seus formuladores já mostravam, tais estudos servem mais para coletar evidências das consequências imputáveis ao racismo do que para descobrir suas dinâmicas concretas. Apesar desse alerta, o racismo passou de hipótese de pesquisa a premissa inconteste sem que, antes, fosse tomado como objeto de investigação. O artigo de Campos busca apontar as linhas gerais de uma Sociologia da discriminação racial a partir dos poucos estudos empíricos nacionais que trabalham nessa direção.
Antonio Sérgio A. Guimarães, no segundo artigo deste dossiê, faz um apanhado histórico do interesse da sociologia internacional, particularmente a brasileira, em conceituar e estudar o racismo. Ao refletir sobre a nossa sociologia, demonstra o seu imbricamento com problemas nacionais norte-americanos e europeus, e o modo como fomos caudatários das suas teorizações. Tal contextualização permite que Antonio Sérgio atualize suas reflexões sobre o conceito de raça, para defini-lo de maneira mais rigorosa, ao explicitar os elementos presentes na ideia de raça. Desenvolve, assim, a sua concepção anterior, weberiana, que se baseava apenas no sentido subjetivo da ação social. Por outro lado, a partir do conceito maussiano de fato social total, e seguindo Etienne Balibar, explora como o racismo pode ser definido como um derivado da ideia de raça, ainda que prescindindo às vezes da sua enunciação nominal. Tal conceito, portanto, pretende ser analítico e operacionalmente útil para estudar formas de racismo contemporâneo, que se expressam em instituições e estruturas sociais, aparentemente sem agência humana imediata, mas referidas a grupos sociais racializadores e racializados.
O artigo “Sociologia histórica e interpretação do racismo no Brasil”, escrito por Matheus Gato, apresenta como diferentes abordagens históricas do racismo se deram pelo uso e controle heurístico de conceitos temporais como revolução, reprodução, formação e evento. Todos esses conceitos buscam explicar como a formação de esquemas racializados de classificação se conecta à formação das estruturas sociais e à reprodução das desigualdades sociais. O autor argumenta que o desafio da sociologia histórica do racismo tem sido descrever e explicar o processo não planejado de constituição de grupos sociais enquanto raças, bem como das hierarquias que lhes conferem um sentido em diversos domínios da ação social. Mas cujo objeto específico são diferentes formas de racialização da experiência social do tempo.
Outra crítica ao modo como a Sociologia brasileira vem lidando com o tema do racismo no Brasil mira especificamente a chamada sociologia da estratificação social. Em sua contribuição para o dossiê, Danilo França questiona as premissas das pesquisas quantitativas que se tornaram base para o modo como entendemos os efeitos materiais do racismo no país. De maneira geral, tais estudos seriam excessivamente dependentes de estruturas de classe próprias de sociedades salariais, calcadas numa divisão social do trabalho estável e formalizada, algo que nunca existiu completamente no Brasil e se torna cada vez mais raro no mundo. Ademais, esse paradigma focalizaria excessivamente no conceito de “chances de vida”, demonstrando que o modelo contrafactual e ideal que ele pressupõe não incorpora dimensões como a extrema violência racial existente no Brasil. Como aposta, França discute como abordagens interseccionais seriam mais sensíveis à pluralidade de inter-relações entre raça, classe, gênero etc. para uma sociologia mais complexa do racismo.
Por sua vez, o texto “‘Sementes do mal’: essencialização e agência na sustentação do racismo em unidades socioeducativas do Rio de Janeiro”, redigido por Juliana Vinuto, toma como fio condutor a naturalização de representações coletivas sobre adolescentes que cumprem medida socioeducativas de internação no Estado do Rio de Janeiro, para problematizar as noções de “racismo estrutural” e “racismo institucional”. A autora demonstra que a dimensão da agência dos profissionais de segurança frente ao conjunto de atitudes e valores expressos pelos jovens é um componente fundamental para compreender a operação do racismo no contexto estudado e suas especificidades.
O artigo de Luiz Lourenço e Luiz Gamboa sobre a seletividade racial das prisões preventivas decretadas a partir de audiências de custódia em Salvador, Bahia, ilustra exemplarmente as dificuldades de se explicitar o racismo presente em agentes públicos e instituições. Por um lado, a população que vai às audiências é quase unicamente negra - preta ou parda de origem afro-brasileira; por outro, juízes e operadores do direito professam preconceitos explicitamente essencializadores e naturalizadores contra essa população, ainda que neguem qualquer preconceito racial contra ela. Dada a composição racial dessa população, é impossível observar tratamento diferencial entre negros e brancos. Não há brancos. É como se os juízes estivessem diante de sujeitos de uma nova “classe perigosa”, de caráter e índole que creem ser intrinsecamente má, socialmente nociva. A missão desses operadores é defender a sociedade, não os direitos dos indivíduos. Estaria o racismo presente apenas na seletividade racial dessa nova “classe perigosa”? Se não, como encontrar evidência empírica para o racismo desses agentes públicos?
O dossiê conta ainda com duas contribuições adicionais. Luiz Augusto Campos e Marcia Lima entrevistam Eduardo Bonilla-Silva, importante sociólogo e formulador da noção de racismo estrutural. Professor da Universidade de Duke e ex-presidente da Associação Americana de Sociologia, Bonilla-Silva aborda diferentes temas na entrevista, desde a sua polêmica teoria segundo a qual estaríamos vivendo tempos de um “racismo sem racistas”, até os retrocessos da pauta antirracista depois de um breve período de avanços quando do brutal assassinato de George Floyd. Gabriel Delphino, por seu turno, encerra o dossiê com uma resenha do livro Dispositivo de racialidade de Sueli Carneiro, obra recém publicada que retoma suas reflexões sobre sua tese de doutorado.
Esperamos que todas essas contribuições aqui reunidas em forma de dossiê ajudem a fortalecer no Brasil a reflexão sobre um tema tão central quanto o racismo, mas que ainda merece debates acadêmicos mais intensos e sofisticados.
Referências Bibliográficas
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BESSONE, M. (2020), “Que gênero de grupo são as raças? Naturalismo, construtivismo e justiça social” (D. M. M. Silva, Trad.). Plural, 27 (2): 331-354. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2020.179829.
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- SOUZA, Jessé. (2021), Como o racismo criou o Brasil. Rio de Janeiro, Estação Brasil.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Set 2024 -
Data do Fascículo
May-Aug 2024
Histórico
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Recebido
24 Jun 2024 -
Aceito
26 Jun 2024