Acessibilidade / Reportar erro

Uma exploração das políticas de intercâmbio artístico de brasileiros com os Estados Unidos na Guerra Fria

Jaremtchuk, Dária. . Políticas de atração: Relações artístico-culturais entre Estados Unidos e Brasil (1960-1970)São Paulo: Editora Unesp, 2023

O livro Políticas de atração: relações artístico-culturais entre Estados Unidos e Brasil (1960-1970) é resultado de anos de pesquisa da professora de história da arte Dária Jaremtchuk, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (Each) da Universidade de São Paulo. No trabalho, ela mergulha em documentos oficiais do governo estadunidense e brasileiro, além de correspondências, entrevistas e acervos pessoais de artistas, para retraçar estratégias do governo estadunidense, além da iniciativa privada norte-americana, tanto para divulgar a arte contemporânea produzida no país pela América Latina no período, como para amenizar as críticas ao “imperialismo” americano por parte da elite cultural brasileira.

No período logo após a Revolução Cubana, um dos diagnósticos do Serviço de Informação Norte-Americano (Usis) – braço local nos países latino-americanos da United States Information Agency (Usia) – foi o de que havia uma má imagem dos Estados Unidos, ligada à ideia de imperialismo e reforçada pelas ideologias de esquerda. Para reverter essa impressão, a estratégia da política externa envolvia a promoção de uma arte norte-americana de fração mais intelectualizada1 1 . O professor da Duquesne University, Greg Barnishel, em “Cold War Modernists: Art, Literature, and American Cultural Diplomacy” (2015), cunha essa estratégia como parte do “Modernismo da Guerra Fria”, que trazia o modernismo de sua base mais radical para o liberalismo individualista americano. (diferentemente, por exemplo, da década de 1930 com a Aliança para o Progresso e a exportação de produtos da indústria cultural ligada sobretudo a Hollywood) e também a atração de artistas, jornalistas e funcionários de museus para os Estados Unidos, para que frequentassem o circuito artístico do país, em especial em Nova York. A ideia desse projeto era que voltassem aos seus países de origem e falassem bem do circuito artístico e do programa de viagens – o que, como Jaremtchuk mostra, funcionava com sucesso dentre os brasileiros.

Como destaca Marcelo Ridenti no também recente “O segredo das senhoras americanas” (2022), livro que trata do mesmo contexto de intercâmbios entre intelectuais, porém com maior destaque à cena universitária, é impossível pensar na Guerra Fria Cultural sem tratar da internacionalização e da circulação de artistas e intelectuais entre os países e universidades. Esse é também o contexto que explica o termo, cunhado pela professora Jaremtchuk, de “políticas de atração”. Trata-se de

[…] um conjunto de estratégias colocadas em prática por setores do governo estadunidense no ambiente artístico e cultural brasileiro nas décadas de 1960 e 1970. Os propósitos eram explícitos: reverter – dentro da América Latina e não apenas do Brasil – a imagem negativa dos Estados Unidos e tornar o país referência hegemônica no campo artístico. Para chegar a esses resultados, foram lançados projetos e atividades específicas, dentre os quais os intercâmbios pessoais e institucionais, a organização de eventos literários, artísticos e culturais, a promoção do aprendizado da língua inglesa, as traduções de livros, os festivais de teatro e a circulação de exposições culturais e mostras de arte (p. 20).

É esse emaranhado que a autora desenrola a partir de uma localização das instituições que atuavam nessas políticas e trânsitos, além de seus principais agentes, financiadores, artistas beneficiados e relacionamentos com a diplomacia cultural. São grupos como o de jornalistas especializados na crítica de arte; artistas e curadores de museus conectados com o circuito de modernização encampado principalmente pelo Museum of Modern Art de Nova York (o MoMA); instituições como o Instituto Brasil-Estados Unidos (Ibeu), a Organização dos Estados Americanos (OEA); o The Inter-American Foundation in the Arts e o Center for Inter-American Relations (Ciar), além dos vínculos com as três principais fundações estadunidenses, ligadas às famílias Rockefeller, Carnegie e Ford, através das quais se exercia a política externa voltada para a cultura1 1 . O professor da Duquesne University, Greg Barnishel, em “Cold War Modernists: Art, Literature, and American Cultural Diplomacy” (2015), cunha essa estratégia como parte do “Modernismo da Guerra Fria”, que trazia o modernismo de sua base mais radical para o liberalismo individualista americano. . Outro foco da autora também é no escritório do Brazilian-American Cultural Institute (Baci) – um dos pontos altos da pesquisa, que se concentra nas atividades da diplomacia brasileira nos Estados Unidos e no papel central de José Menache Neinstein, que participou da criação e comandou a instituição dos anos 1970 até o seu fechamento, em meados dos anos 2000.

O livro está dividido em quatro capítulos, que mostram não apenas a “atração” de brasileiros, mas também estratégias de exportação da arte americana, através de exposições itinerantes que circulavam em várias cidades do Brasil, e de maior valorização da arte latino-americana por parte de curadores estadunidenses. Aqui, o principal polo a se conquistar naquele período era o Rio de Janeiro, ainda a capital cultural do país e local de encontro dos artistas nacionalmente. E lá, a “meca” das artes era Nova York. O livro aponta, no entanto, que o lugar conquistado pelos brasileiros ali era ainda muito pouco expressivo: um subgrupo dos “artistas latino-americanos”, numa época em que as galerias e grandes museus ainda só se interessavam, praticamente, pela arte europeia e norte-americana.

O livro

Na primeira parte da publicação, Jaremtchuk explora o que ela chama de “políticas de atração” para o meio artístico brasileiro. O alvo da política externa americana não eram apenas os artistas, mas também, considerando-se a grande influência da imprensa escrita naquele período, os jornalistas e críticos, além de curadores e funcionários de outras áreas dos museus. Em toda a obra, a discussão é feita a partir de casos que ilustram como funcionam as negociações e trânsitos daquele período.

Nesse primeiro capítulo, ela recompõe as viagens dos jornalistas Roberto Pontual e Jayme Maurício aos Estados Unidos. A análise é interessante pois, ao mostrar a diferença entre os textos pré e pós viagem, Dária Jaremtchuk consegue de certo modo medir o grau de influência do programa nos textos. Fica nítido que Maurício, então funcionário do Correio da Manhã, passou de textos mais críticos a reportagens em tom mais laudatório sobre a arte americana. Já Pontual, diz a autora, não aderiu à arte daquele país de forma tão entusiasmada. Mas ela conclui que “nos dois casos, nota-se uma maior difusão de padrões da arte dos Estados Unidos, mesmo que por vezes seu viés fosse crítico” (p. 64).

Ela também estuda as viagens de Walter Zanini (então diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo) e os relacionamentos travados por ele. Em 1970, por exemplo, ele foi a convite do Departamento de Estado norte-americano visitar museus como o Guggenheim, a Corcoran Gallery of Art e a National Gallery. A partir de viagens como essa, a autora resgata as trocas de cartas com diretores de museus norte-americanos e tentativas de trazer exposições e artistas que estavam em alta no circuito estadunidense.

Fossem feitas por jornalistas ou curadores, as viagens ganhavam espaço na imprensa brasileira num tom de colunismo social e de status, o que reforça o argumento da pesquisa. Além disso, a autora prova com documentos (especialmente da Bureau of Educational and Cultural Affairs Historical Collection, localizados na University of Arkansas Library) que havia avaliações do projeto por parte do Departamento de Estado americano, e a intenção de que ajudassem a divulgar uma imagem mais positiva dos Estados Unidos na América Latina.

Na segunda parte do livro, Jaremtchuk mostra que não se tratava apenas de “atração” para os Estados Unidos, mas do intercâmbio e da exportação também das tecnologias museológicas desenvolvidas naquele país, sobretudo a partir da principal instituição desse tipo naquele período, o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA).

Apesar de ter sido criado em 1952, o International Program do MoMA intensificou visivelmente o seu trabalho na América Latina a partir da década de 1960, o que vai de acordo com a tendência da concentração da Guerra Fria Cultural na América Latina depois da Revolução Cubana. Dária Jaremtchuk também revela que, apesar de ser um trabalho relativamente coordenado entre MoMA e o Departamento de Estado, havia uma série de divergências entre os operadores de cada instituição. Mas localmente existia uma espécie de confusão entre funcionários e diretores de instituições, que confundiam o papel de cada uma das entidades, demonstrando a proximidade desse relacionamento. No Brasil, diz a autora, o principal entrave para a consolidação da política de itinerância das exposições era o financiamento do transporte de obras (por isso, privilegiaram-se a fotografia e a litografia, obras mais baratas de serem deslocadas) e a liberação das obras na alfândega.

O terceiro capítulo fala das instituições americanas que atuavam nas “políticas de atração” e seus circuitos, que demonstram ligações com empresas do setor privado e o envolvimento delas nas “políticas de atração”. Além disso, a autora analisa bolsas como as Guggenheim e o papel da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da The Inter-American Foundation for the Arts e do Center for Inter-Amercian Relations (Ciar) – estas duas últimas ligadas à família Rockefeller – para a promoção de exposições de brasileiros nos Estados Unidos e a promoção de intercâmbios e bolsas.

Prêmios como os do Ibeu (Institutos Brasil-Estados Unidos), instituição forte no Rio de Janeiro, ou do International Telegraph foram alguns dos que estimularam viagens de artistas brasileiros para os Estados Unidos. Antonio Maia, Raimundo Colares e Ivan Freitas foram alguns dos beneficiados nestas láureas. O que a autora observa é que, além de amenizar o antiamericanismo, “as viagens parecem ter servido de modelos para que outros artistas quisessem repetir a experiência”. Nada disso parece ter sido casual, principalmente quando se conhecem as prerrogativas das agências estadunidenses, como se pode ler no relatório da Usia: “Desde que a imprensa brasileira continue a estar disponível e receptiva para divulgar materiais de orientação política do Usis, o Posto acredita que suas operações de imprensa sejam um instrumento efetivo” (p. 188).

Na parte final do capítulo, Jaremtchuk analisa o caso de dois artistas vencedores da bolsa Guggenheim. O estudo é interessante para pensar as dinâmicas de circulação transnacionais: embora as viagens representem prestígio e mudança de status nacionalmente, a lembrança dos artistas do período em que passaram nos Estados Unidos é de exclusão e isolamento. Embora houvesse um interesse em promover “políticas de atração” de latino-americanos, a autora mostra que existia de fato pouco investimento numa inclusão desses artistas no circuito artístico americano. Ou seja: ao pensarmos em histórias cruzadas (Werner e Zimmermann, 2012WERNER, M. & ZIMMERMANN, B. (2012), "Pensar a história cruzada: entre empiria e reflexividade". T.E.X.T.O.S. DE H.I.S.T.Ó.R.I.A Revista do Programa de Pós-graduação em História da UnB, 11 (1-2): 89-128.), as viagens valiam mais pelo capital adquirido no retorno ao país, e não para uma inserção no campo artístico estadunidense.

O último capítulo explora o papel do Brazilian-American Cultural Institute (Baci), instituição sobre a qual pouco se estuda. Esse órgão funcionava na embaixada brasileira em Washington desde 1961 e em 1964 recebeu o nome oficial, a partir da decisão do então embaixador Roberto de Oliveira Campos. O Baci ganhou caráter de uma entidade cultural sem fins lucrativos na lei americana (non-profit organization), em tese independente da embaixada, sujeita às leis dos Estados Unidos e administrada por um conselho misto, que incluía industriais das multinacionais (dentre eles, David Rockefeller, então diretor do Chase Manhattan Bank) envolvidas no circuito das “políticas de atração”.

Ainda financiada pela embaixada, a ideia é que a instituição se tornasse independente e vivesse com patrocínios de empresas tanto brasileiras como americanas, interessadas em fomentar o circuito entre os dois países, o que nunca aconteceu de forma tão pujante, como mostra a autora. Um dos trunfos dessa parte do texto é trazer os documentos do Arquivo do Itamaraty em Brasília, que mostram, por exemplo, o interesse em 1965 em uma “grande ofensiva cultural brasileira naquele país” (p. 246), após um diagnóstico de que “a tendência dos últimos anos na política internacional das artes plásticas é para a supremacia de Nova York em detrimento de Paris” (Ibidem).

A posição do Baci entre Brasil e Estados Unidos é outro achado do trabalho, por demonstrar o lugar em falso que a instituição ocupava tanto no contexto do Brasil como no dos Estados Unidos. Apesar da posição favorável aos americanos por parte da ditadura brasileira, a partir dos anos 1970 são os americanos que buscam distanciar-se das ditaduras na América Latina, influenciados pelos protestos por direitos civis e contra a Guerra do Vietnã. Assim, a autora mostra que parte dos membros influentes do conselho do Baci deixou a instituição a partir desse período. Já do lado brasileiro havia, por um lado, o incentivo para que se fizessem exposições de artistas brasileiros no exterior, e de outro a censura, a partir de uma lista de restrições do Serviço Nacional de Informação (SNI), que bloqueava alguns dos relacionamentos com artistas. Isso, no entanto, era burlado pela diplomacia mais progressista através da concessão da Ordem Rio Branco, que possibilitava remover os nomes da relação do SNI (p. 258). Também vale destaque a pesquisa em torno do diretor-presidente José Nenstein, que comandou a instituição de 1970 até o seu fechamento em 2006.

O livro de Dária Jaremtchuk se insere no circuito de trabalhos como os de Ridenti (2022)RIDENTI, Marcelo. (2022), O segredo das senhoras americanas: intelectuais, internacionalização e financiamento na Guerra Fria cultural. São Paulo, Editora Unesp., Elizabeth Cancelli (2017)CANCELLI, Elizabeth. (2017), O Brasil na Guerra Fria Cultural: O pós-guerra em releitura. São Paulo, Intermeios., também com Gustavo Mesquita e Wanderson Chaves (2020), Nunez (2021)NUNEZ, German Alfonso (2021), "Melhor acender uma vela do que maldizer a escuridão: o boicote da representação estadunidense à X Bienal de São Paulo, entre dominantes e dominados". Modos: Revista de História da Arte, Campinas, SP, 5 (2): 272-291., Fléchet (2017)FLÉCHET, Anaïs. (2017), Madureira chorou… em Paris. A Música Popular Brasileira na França do século XX. São Paulo, Edusp. e outros autores que têm problematizado visões mais nacionalistas da cultura no período da ditadura. Ela também abre caminhos para outras investigações que esmiúcem financiamentos, relacionamentos e agências nas artes do Brasil. O estudo é inovador por ir a fundo nos grants oferecidos a artistas brasileiros, nas dificuldades enfrentadas pelos artistas uma vez nos Estados Unidos, e nos meandros das administrações das instituições e organizações civis que promoviam essas viagens, exposições e itinerâncias.

Referências Bibliográficas

  • CANCELLI, Elizabeth. (2017), O Brasil na Guerra Fria Cultural: O pós-guerra em releitura São Paulo, Intermeios.
  • CANCELLI, Elizabeth; MESQUITA, Gustavo & CHAVES, Wanderson. (2020), Guerra Fria e Brasil: Para a agenda de integração do negro na sociedade de classes. São Paulo, Alameda Editorial.
  • FLÉCHET, Anaïs. (2017), Madureira chorou… em Paris. A Música Popular Brasileira na França do século XX São Paulo, Edusp.
  • NUNEZ, German Alfonso (2021), "Melhor acender uma vela do que maldizer a escuridão: o boicote da representação estadunidense à X Bienal de São Paulo, entre dominantes e dominados". Modos: Revista de História da Arte, Campinas, SP, 5 (2): 272-291.
  • RIDENTI, Marcelo. (2022), O segredo das senhoras americanas: intelectuais, internacionalização e financiamento na Guerra Fria cultural. São Paulo, Editora Unesp.
  • WERNER, M. & ZIMMERMANN, B. (2012), "Pensar a história cruzada: entre empiria e reflexividade". T.E.X.T.O.S. DE H.I.S.T.Ó.R.I.A Revista do Programa de Pós-graduação em História da UnB, 11 (1-2): 89-128.

Nota

  • 1
    . O professor da Duquesne University, Greg Barnishel, em “Cold War Modernists: Art, Literature, and American Cultural Diplomacy” (2015), cunha essa estratégia como parte do “Modernismo da Guerra Fria”, que trazia o modernismo de sua base mais radical para o liberalismo individualista americano.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    22 Jan 2024
  • Aceito
    22 Fev 2024
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: temposoc@edu.usp.br