Open-access A TRAJETÓRIA DO VOUCHER COMO MECANISMO DE GOVERNANÇA DO TURISMO NO PARQUE NACIONAL DOS LENÇÓIS MARANHENSES

VOUCHER'S PATH AS A MECHANISM OF TOURISM GOVERNANCE IN LENÇÓIS MARANHENSES NATIONAL PARK

LA TRAYECTORIA DEL VOUCHER COMO MECANISMO DE GOBERNANZA TURÍSTICA EN EL PARQUE NACIONAL DE LENÇÓIS MARANHENSES

Resumo:

O voucher constitui um sistema de governança, inicialmente, desenvolvido em Bonito (MS) e, a posteriori, replicado em diversos destinos brasileiros, por assegurar a qualidade da experiência do turista, lucratividade às empresas e conservação ambiental. Este estudo objetivou compreender o funcionamento do voucher digital (VD) em Barreirinhas (MA) - principal destino de acesso ao Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses (PNLM) - a partir das mudanças implementadas após sua experiência com o voucher único. Adicionalmente, foram levantados potenciais melhorias para o VD. Metodologicamente, trata-se de uma investigação qualitativa, exploratória e de caráter transversal, junto a nove atores sociais do turismo ligados aos poderes público e privado, e/ou associações de classe. A coleta de dados lançou mão de um roteiro semiestruturado, o qual norteou entrevistas em profundidade, realizadas entre agosto de 2020 e fevereiro de 2021. Posteriormente, empregou-se a técnica de Análise de Conteúdo. Os resultados apontam que, no funcionamento do VD, os visitantes têm autonomia na escolha das agências que ofertam os passeios. As agências se responsabilizam pela emissão do VD e coleta de dados dos clientes, fato que exige investimentos em tecnologias e mão de obra. A municipalidade, por meio do VD, assegura a arrecadação e responde pelo controle dos acessos ao PNLM, e pelo gerenciamento/custeio do VD. Para o incremento do VD, sugere-se implementar novas funcionalidades e promover mudanças na governança local. Conclui-se que o VD, embora apresente problemas que demandam soluções, contribui, efetivamente, com a governança do turismo ao gerar dados que auxiliem no planejamento/gestão do destino, ao estimular a formalização de empresas e devolver o protagonismo às agências na condução dos passeios ao PNLM.

Palavras-chave: governança; turismo; voucher único; voucher digital; Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses

Abstract:

The voucher is a governance system, initially developed in Bonito (MS) and subsequently replicated in several Brazilian destinations, to ensure the quality of the tourist experience, business profitability and environmental conservation. This study aimed to understand the functioning of the digital voucher (DV) in Barreirinhas (MA) - the main access destination to the Lençóis Maranhenses National Park (PNLM) - based on the changes implemented after its experience with the single voucher. In addition, possible improvements for the DV were proposed. Methodologically, this is a qualitative, exploratory and cross-sectional research with nine tourism social actors linked to public and private powers, and/or class associations. A semi-structured script was used for data collection, which guided the in-depth interviews conducted between August 2020 and February 2021. Subsequently, the Content Analysis technique was used. The results indicate that, in the operation of the DV, visitors have autonomy in choosing the agencies that offer the tours. The agencies are responsible for issuing the DV and collecting customer data, a fact that requires investment in technology and manpower. The municipality, through the DV, ensures the collection and is responsible for access control to the PNLM, and for the management/cost of the DV. To increase the DV, it is suggested to implement new functionalities and promote changes in local governance. It is concluded that the DV, although presenting problems that require solutions, contributes effectively to tourism governance by generating data that help in the planning/management of the destination, by stimulating the formalization of businesses, and by giving back the leading role to the agencies in the management of trips to the PNLM.

Keywords: Governance; Tourism; Unique Voucher; Digital Voucher; Lençóis Maranhenses National Park

Resumen:

El voucher es un sistema de gobernanza, desarrollado inicialmente en Bonito (MS) y, posteriormente, replicado en varios destinos brasileños, para garantizar la calidad de la experiencia turística, la rentabilidad de las empresas y la conservación del medio ambiente. Este estudio tuvo como objetivo comprender el funcionamiento del voucher digital (VD) en Barreirinhas (MA) - principal destino de acceso al Parque Nacional de Lençóis Maranhenses (PNLM) - a partir de los cambios implementados tras su experiencia con el voucher único. Además, se plantearon posibles mejoras para el VD. Metodológicamente, se trata de una investigación cualitativa, exploratoria y transversal con nueve actores sociales del turismo vinculados a los poderes público y privado, y/o asociaciones de clase. Para la recolección de datos se utilizó un guión semiestructurado, que guió las entrevistas en profundidad realizadas entre agosto de 2020 y febrero de 2021. Posteriormente, se empleó la técnica de Análisis de Contenido. Los resultados indican que, en la operación del VD, los visitantes tienen autonomía para elegir las agencias que ofrecen los tours. Las agencias son responsables de la emisión del VD y de la recogida de datos de los clientes, hecho que requiere inversión en tecnología y mano de obra. El ayuntamiento, a través del VD, asegura la recaudación y es responsable del control de acceso al PNLM, y de la gestión/coste del VD. Para aumentar el VD, se sugiere implementar nuevas funcionalidades y promover cambios en la gobernanza local. Se concluye que el VD, aunque presente problemas que exigen soluciones, contribuye, efectivamente, con la gobernanza turística al generar datos que ayudan en la planificación/gestión del destino, al estimular la formalización de empresas y al devolver el protagonismo a las agencias en la conducción de los viajes al PNLM.

Palabras clave: Gobernanza; Turismo; Voucher Único; Voucher Digital; Parque Nacional de los Lençóis Maranhenses

INTRODUÇÃO

A competitividade empresarial vem sendo estudada há muito (Dwyer & Kim, 2003) e encontra respaldo em ferramentas para incremento da governança de destinos (Fuentes, 2011; Pulido-Fernández & Pulido-Fernández, 2018), sobretudo quando se fala de espaços naturais com forte interesse turístico (Jacobi & Sinisgalli, 2012). No entanto, compor estratégias de governança eficazes, que promovam a ampla participação de atores nas tomadas de decisão (Marinho, 2014), torna-se um desafio passado (Paskaleva-Shapira, 1999) e presente (Siakwah, Musavengane, & Leonard, 2020).

Quando se reconhece um modelo de governança exitoso, é comum que se observe a busca pela sua replicação em diferentes realidades (Silva et al., 2020). Desse modo, traz-se a experiência de Bonito (MS), a partir do voucher, um sistema de controle dos fluxos turísticos para acessar os atrativos do território, assegurando a preservação dos ecossistemas, o equilíbrio na carga de circulação e a segurança comum. Em razão de diferenciais competitivos como gestão compartilhada entre poder público e iniciativa privada, com suporte tecnológico (Grechi, Lobo, & Martins, 2019), Bonito angariou, por meio desse mecanismo de governança, ampla notoriedade enquanto destino ecoturístico de excelência (Souza & Trevelin, 2016). Nesse rastro, diversas localidades brasileiras vêm se desafiando para operacionalizar seu voucher e para obter os ganhos socioeconômico-ambientais advindos dessa ferramenta, a exemplo de Búzios (RJ), Jalapão (TO) e Barreirinhas (MA).

Nesta última cidade, principal destino de acesso ao Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses - PNLM - (Silva et al., 2020), a replicação do voucher de Bonito se estruturou em duas fases: em 2011, quando o voucher único, no formato impresso, foi suspenso, devido a problemas como fiscalização deficiente e custos elevados às agências; em curso desde 2018 e em substituição à primeira versão, o voucher digital (VD) vem gerando, concomitantemente, preocupação às agências que operam passeios, e esperança quanto à sustentabilidade dos negócios e dos ecossistemas visitados (Silva & Ribeiro, 2018).

Cabe esclarecer que, em Barreirinhas, a replicação do voucher de Bonito já foi estudada por Costa, Silva e Nascimento (2012), e Silva et al. (2020), com foco nos seus pontos positivos e negativos, além das razões para a sua criação, e análise preliminar da transição entre os dois sistemas: único e digital. Aqui, pretende-se avançar em relação aos trabalhos anteriores, norteado pelo objetivo de compreender o funcionamento atual do VD em Barreirinhas (PNLM), a partir das mudanças implementadas após o voucher único, além de levantar potenciais melhorias para a sua operacionalização.

Este estudo justifica a sua importância com base nas recomendações de pesquisa de Santos e Pereira (2018) para aprofundar olhares sobre a governança do turismo no cenário nacional. Ademais, Silva et al. (2020) aconselharam compreender a operacionalização do VD e as suas contribuições à governança do turismo no PNLM, a partir do olhar de diferentes atores, incluindo organizações públicas, entidades da sociedade civil organizada, empresas, entre outros. Ressalta-se que as análises aqui pretendidas podem suscitar contribuições à governança nos Lençóis Maranhenses, em especial, àquelas voltadas ao incremento do sistema digital em curso na localidade. Ademais, ressalva-se que este trabalho é um dos produtos advindos de pesquisa vinculada a um projeto desenvolvido na região do PNLM e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA).

O VOUCHER E A GOVERNANÇA EM DESTINOS TURÍSTICOS

A “governança” é um termo considerado polissêmico e se refere a variados temas e setores - governança corporativa, pública, ambiental, etc. - e trata da convergência de como se estruturam poder, formas de diálogo e interação de diferentes atores sociais (Marinho, 2014). A governança extrapola o conceito de governo ou governabilidade e foca na ampliação da participação de diferentes atores/setores sociais na esfera decisória (Fuentes, 2011). Há muito, debates sobre governança vêm sendo relacionados desde as políticas públicas até o desenvolvimento sustentável (Costa et al., 2012), incluindo o setor turístico (Pulido-Fernández & Pulido-Fernández, 2018; Santos & Pereira, 2018).

A governança remete à definição de regras e critérios comuns para a tomada de decisão, responsabilidades e limites de autonomia, os quais direcionam a ação coletiva (Roth et al., 2012). Abarca instituições governamentais, todavia envolve mecanismos formais ou informais de caráter não governamental, que fazem com que pessoas e organizações, em suas áreas de atuação, apresentem uma determinada conduta e satisfaçam suas necessidades (Costa et al., 2012). A governança, nesse sentido, demanda alianças entre diferentes atores em um dado território para que dilemas de ação coletiva sejam resolvidos em detrimento a interesses meramente particulares (Olson, 1990). A governança contribui na estruturação de arranjos que favoreçam a comunicação eficaz e a participação social (Jacobi & Sinisgalli, 2012). Adicionalmente, favorece o desenvolvimento e a implementação de regulamentos, gestão de conflitos e aperfeiçoamento dos valores coletivos (Pulido-Fernández & Pulido-Fernández, 2018), com vistas à inclusão social e à transparência nas ações, a fim de se compreender o desenrolar das estratégias e seus efeitos (Siakwah et al., 2020).

No entanto, os esforços de governança em Unidades de Conservação (UCs), em especial em parques nacionais, encontram adversidades na sua implementação e no alcance dos objetivos pretendidos. Como exemplos, têm-se a limitação de recursos humanos e financeiros (Botelho & Rodrigues, 2016), e conflitos de uso entre moradores, gestores e/ou prestadores de serviços turísticos, sobretudo em territórios com maior interesse de visitação (Silva & Ribeiro, 2018). Corrobora esses pensamentos a atual agenda da política de áreas protegidas, em que se nota uma redução significativa no orçamento público, a qual compromete o manejo sustentável desses espaços (OPAP, 2020). Nesse sentido, a administração pública brasileira vem buscando compor arranjos institucionais que facilitem a atuação de organizações privadas na gestão da visitação (Rodrigues & Abrucio, 2020). Estas medidas são estimuladas pela potencial contribuição econômica do turismo para as UCs e para as localidades receptoras (Souza & Simões, 2019). No entanto, verifica-se a dificuldade de estruturar ferramentas inovadoras de governança que desenvolvam o turismo em bases mais sustentáveis (Paskaleva-Shapira, 1999).

No âmbito da gestão de destinos, a governança vem sendo discutida, almejando coordenação, participação e cooperação de diferentes atores em prol de objetivos compartilhados (Santos & Pereira, 2018). O intuito de sobreviver, enquanto produto turístico competitivo, conduz cidades turísticas a perceberem que competir com eficiência demanda maior articulação em conjunto (Arruda, Oliveira, & Mariani, 2014). Assim, reforça-se a cooperação entre diversos agentes da cadeia produtiva do turismo que favoreça ampla participação e integração na tomada de decisões (Paskaleva-Shapira, 1999). A cooperação é apontada, também, como estratégia sine qua non à sobrevivência das empresas turísticas de pequeno porte (Silva et al., 2020), a fim de que elas obtenham vantagens mútuas e fortaleçam a sua competitividade. Algumas das benesses das alianças abrangem o acesso, e o compartilhamento de informações e conhecimento de mercado, produtos, processos, tecnologias, entre outros (Costa et al., 2016). Entretanto, a cooperação empresarial pode apresentar problemas para administrar as alianças, motivando a saída de alguns de seus participantes, logo, comprometendo o seu efetivo funcionamento (Chen, 2008).

Desse modo, emergem propostas de governança para a gestão eficaz das áreas protegidas: planos de manejo e conselhos gestores com foco no manejo ambiental; parcerias público-privadas - como as concessões - para administrar a visitação com transparência; comunicação que favoreça a confiança interorganizacional e a participação social (Rodrigues & Abrucio, 2019, 2020). Esse reforço à participação comunitária, por meio de conselhos consultivos e/ou redes socioprodutivas, vem sendo amplamente debatido em diversas realidades brasileiras, demonstrando que, locais onde se fragilizou/reduziu o envolvimento comunitário, a gestão dos bens públicos foi inadequada e vulnerabilizou os esforços de proteção ecossistêmica (Araújo & Simonian, 2016; Espada & Vasconcellos Sobrinho, 2015; Reis & Queiroz, 2017; Santos & Bacci, 2017). Recentemente, verificou-se uma taxa de turismo sustentável em Jijoca de Jericoacoara (CE), voltada à arrecadação, a partir do intenso fluxo turístico, com vistas a melhorias para o próprio município (Pinho, 2019).

Neste estudo, a ênfase é no instrumento do voucher digital (VD), ferramenta inspirada no modelo de governança de Bonito, cujo êxito garantiu a esta cidade o reconhecimento como um dos destinos ecoturísticos mais importantes do mundo (Souza & Trevelin, 2016) que, por conseguinte, motivou outras destinações brasileiras a buscarem a sua adaptação, a exemplo de Brotas (SP), Cairu (BA) (Grechi et al., 2019), Barreirinhas (MA) (Silva et al., 2020), Arraial do Cabo (RJ) e Búzios (RJ) (Lopes, 2020) e, mais recentemente, Parque Estadual do Jalapão (TO) (Rede Pará, 2022), conforme prospectado, anteriormente, por Abreu e Freitas (2016).

O voucher constitui uma articulação empresarial voltada a organizar a distribuição e o controle de acesso às atrações turísticas, além de assegurar ao visitante a prestação dos serviços por agentes qualificados e responsáveis (Camargo et al., 2011). A fragilidade dos ecossistemas em Bonito, diante da elevação no fluxo turístico, gerou a inquietação local para que se estabelecessem limites diários de visitação que considerassem a capacidade de resiliência dos atrativos (Lobo & Moretti, 2008). Nesse sentido, o voucher conjuga qualidade na experiência ao turista, lucratividade às empresas e conservação ambiental (Costa et al., 2012).

Na sua versão inicial, em 1995 (Souza & Trevelin, 2016), o voucher era impresso e entregue pela Prefeitura de Bonito a/ao: atrativo, guia responsável pela visitação, visitantes/turistas, agência contratada e órgão municipal de arrecadação de tributos para recolhimento do ISSQN (Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza). A partir de 2010, o voucher adquiriu seu formato digital, podendo ser acessado diretamente pelas agências, por meio de software específico, o que garantiu celeridade e economia de custos, e passou a gerar informações sobre o turismo local (Arruda, Mariani, & Caleman, 2014). Atualmente, o voucher de Bonito consegue controlar o fluxo de visitantes, por meio do bloqueio na venda de ingressos aos atrativos, logo que atingem a sua capacidade de carga (Velasquez, 2016). Assim, evita-se a superlotação e se mitiga os impactos negativos aos ecossistemas, corroborados pela obrigatória visita acompanhada de guias qualificados. Ademais, proporciona que a municipalidade realize e controle a arrecadação de impostos nos atrativos/agências (Camargo et al., 2011). Acima de tudo, o voucher surgiu como um instrumento de arrecadação e de controle da visitação (Abreu & Freitas, 2016).

A governança institucional é conduzida pelo Conselho Municipal de Turismo (COMTUR), o qual favorece o envolvimento de atores relacionados ao setor na tomada de decisão sobre o turismo (Vieira, 2003), a exemplo de representantes de agências de passeios, empresas hoteleiras, guias de turismo, atrativos, produtores rurais e poder público local (Arruda, Mariani et al., 2014). Os segmentos costumam se organizar em associações representativas (Grechi et al., 2019), o que se alinha ao objetivo de ampliar a participação social na gestão do destino (Fuentes, 2011) e reduzir conflitos de interesse (Vieira, 2003). A arrecadação proveniente das atividades do turismo é direcionada ao Fundo Municipal de Turismo para que, a posteriori, seja aplicada em prol de melhorias ao setor no local (Arruda, Oliveira, & Mariani, 2014).

Em suma, o voucher constitui uma ferramenta de governança que controla a visitação com eficácia, por meio da venda de ingressos de maneira unificada aos atrativos (Lobo & Moretti, 2008), visando a coibir o oportunismo dos agentes de mercado na prática de preços abusivos (Arruda, Mariani, & Caleman, 2014). Aqueles que não cumprem com as regras estabelecidas estão sujeitos a sanções penais (Camargo et al., 2011). A excelência do modelo de Bonito se explica, portanto, por um conjunto de elementos: sistema de autogestão, associativismo, configuração sistêmica do turismo, gestão compartilhada (público-privada) e participação ativa dos stakeholders locais (Grechi, Lobo, & Martins, 2019).

Cabe a ressalva de que o voucher de Bonito demandou um esforço conjunto - entre empresários, gestores públicos e profissionais do turismo - de décadas para se chegar ao formato que se tornou referência em governança no Brasil (Souza & Trevelin, 2016). Ao longo do tempo, questões ligadas a problemas em licenciamentos ambientais e no excesso de visitação, além da informalidade dos prestadores de serviço e baixa cooperação local, criaram obstáculos para que a sua operacionalização atingisse os seus propósitos de criação, em especial, a proteção dos ecossistemas visitados (Arruda, Mariani, & Caleman, 2014; Barbosa & Zamboni, 2000; Lobo & Moretti, 2008; Souza & Trevelin, 2016).

Em Barreirinhas, alvo da presente investigação, a replicação desse modelo de governança a sua realidade já foi estudada por Costa, Silva e Nascimento (2012) e Silva et al. (2020) - voucher único e digital, respectivamente - com olhares das agências de passeios/empresas de hospedagem locais restritos aos pontos positivos e negativos advindos dessa experiência, razões para a sua criação, e análises preliminares da transição entre as duas ferramentas. Neste estudo, avança-se, no sentido de explorar, mais a fundo e com base em outros atores sociais, o funcionamento do VD em si, as melhorias oferecidas à governança do turismo, ademais de aportar contribuições gerenciais ao incremento dessa ferramenta no PNLM.

Convém lembrar que a primeira medida para adaptar o voucher de Bonito a Barreirinhas emergiu, em 2011, de uma ação cooperada entre empresários locais, sobretudo agências de receptivo, para fins de ordenamento do mercado informal, visando a coibir ou eliminar a atuação de agentes considerados “clandestinos” na comercialização de passeios ao PNLM (Costa et al., 2012). Os empresários se organizaram em rede, interligados por um instrumento de governança comum - o voucher único - viabilizado pela venda de passeios, por meio da emissão de um comprovante impresso a ser conferido por fiscalização ao se acessar o Parque (Silva et al., 2020).

O insucesso da primeira replicação pode ser explicado em função de uma série de motivos, como fiscalização deficitária - favorecendo a continuidade dos “informais” - custos elevados às agências no preenchimento dos vouchers, carência de informação e de transparência sobre a aplicação do montante arrecadado, entre outros. Em pouco mais de um ano após sua implementação, a operacionalização foi suspensa (Costa et al., 2012). Contudo, a percepção positiva de que o voucher único poderia gerar benefícios à governança do turismo conduziu a novos esforços conjuntos - entre associações empresariais, Sebrae, poder público, etc. - em favor do seu aprimoramento (Silva & Ribeiro, 2018). Esse ensejo se alinha ao entendimento de que a prestação de serviços turísticos precisa incorporar tecnologias que ofereçam maior agilidade, precisão das informações, transparência de dados, e facilidade no acesso à informação e aquisição de produtos e serviços, principalmente de forma remota (Austregésilo, Melo, & Soares, 2020).

Assim, em 2017, foi instituída a “Lei do Voucher” (Decreto n. 762/2017), regulamentando o voucher digital, padronizado, com discriminação dos atrativos naturais e de uso obrigatório por turistas nos locais de visitação (Prefeitura Municipal de Barreirinhas, 2017). Os objetivos centrais de sua criação foram de gerar dados relacionados ao fluxo de visitantes, arrecadar impostos municipais e incrementar a governança do turismo local. Desde então, a comercialização dos passeios ao PNLM é formalmente estabelecida para venda exclusiva pelas agências. Contudo, na transição do voucher único para o digital, verificou-se a continuidade de problemas que motivaram a sua criação, como a competição com informais e os preços desregulados dos passeios (Silva et al., 2020).

Diante desse cenário, o presente estudo busca avançar na compreensão sobre o VD, uma vez que esta ferramenta segue sendo uma aposta local para organizar a oferta de passeios ao PNLM, mas, dessa vez, incorporando tecnologias ao seu funcionamento. Destaca-se que, assim como ocorrido em Bonito, o voucher de Barreirinhas vem passando por mudanças as quais requerem tempo para que resultem em um formato ideal que compatibilize os interesses socioeconômicos e ambientais pretendidos. Ao menos, assim esperam os atores envolvidos.

METODOLOGIA

Este estudo se configura como qualitativo, exploratório e de caráter transversal, pautado também em pesquisas junto a documentos/legislações oficiais para complementação das análises (Flick, 2009). O universo da pesquisa abrange os atores sociais do turismo de Barreirinhas (MA), os quais se envolveram diretamente nas experimentações da migração do sistema de voucher único para a sua versão digital. Nesse sentido, utilizou-se a técnica da bola de neve para se chegar a potenciais respondentes da pesquisa com conhecimento aprofundado sobre o tema de discussão. Para a determinação amostral, utilizou-se como critério de escolha a adesão voluntária à pesquisa dentre os indivíduos do grupo de interesse (por conveniência), abarcando, ao fim, nove entrevistados ligados à iniciativa privada, poder público e/ou associações de classe (Quadro 1). Essa diversidade de atores investigados atende às sugestões de pesquisa de Silva et al. (2020) para colher percepções de profissionais para além daqueles atuantes no meio empresarial.

Quadro 1
Caracterização da amostra

Barreirinhas foi escolhida justamente por ter experimentado tanto os formatos do voucher único quanto o digital, oferecendo a possibilidade de investigar diferenças operacionais e práticas entre essas ferramentas, em razão da existência de estudos anteriores (Costa, 2009; Costa, Silva, & Nascimento, 2012; Silva & Ribeiro, 2018; Silva et al., 2020). A cidade conta com uma população estimada em 63.891 pessoas (IBGE, 2023a) e se situa a 252 km da capital maranhense, São Luís (Figura 1). Destaca-se pela exuberância de seus atrativos naturais, em especial, o Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses (PNLM) e o rio Preguiças. Este possui quase 135 km de extensão, onde são realizadas diversas atividades, como os passeios náuticos e a pesca esportiva. O PNLM é considerado o maior campo de dunas e de lagoas interdunares de água doce do Brasil, que se estendem por seus 155 mil hectares (ICMBio, 2023). No local são desenvolvidas práticas de contemplação, caminhadas, camping, banhos nas lagoas, kitesurf, etc. Por este conjunto de características, o PNLM é o principal destino indutor do turismo no estado (Silva & Ribeiro, 2018).

Figura 1
Localização de Barreirinhas (MA) e Bonito (MS)

Ressalva-se, ainda, que Barreirinhas faz parte da lista dos 65 destinos indutores brasileiros (MTur, 2008), sendo um dos 12% de cidades com melhor desempenho na economia nacional do turismo (MTur, 2019). Além disso, faz parte de um dos destinos centrais da Rota das Emoções, roteiro turístico integrado que abrange 15 cidades do Maranhão, Piauí e Ceará, cujos atrativos principais são, respectivamente, os parques nacionais dos Lençóis Maranhenses e de Jericoacoara, e APA do Delta do Parnaíba (Silva, Hoffmann, & Costa, 2020). O fluxo de visitantes que acessou, por Barreirinhas, as principais atrações turísticas do PNLM (Circuito Lagoas), totalizou 66.996 pessoas, no ano anterior ao início da pandemia da covid-19 (Prefeitura Municipal de Barreirinhas, 2019). No entanto, os números da visitação no PNLM, em 2019, foram bem superiores, correspondendo a 151.786 pessoas e posicionando os Lençóis Maranhenses na décima posição entre os parques nacionais mais visitados do Brasil (ICMBio, 2020).

Cabe destacar, outrossim, algumas informações sobre o município de Bonito (MS), uma vez que a sua experiência do voucher inspirou Barreirinhas na busca de um modelo ideal de governança do turismo (Silva et al., 2020). Bonito apresenta uma população estimada em 22.401 pessoas (IBGE, 2023b) e se localiza na região da Serra da Bodoquena, a 270 km da capital sul-mato-grossense, Campo Grande (Figura 1). O destino é reconhecido por sua maturidade enquanto produto turístico, bem como pelo seu potencial internacional de atratividade (Grechi, Lobo, & Martins, 2019). Os seus principais atrativos - os quais favorecem práticas de ecoturismo e de turismo de aventura - englobam cachoeiras, grutas, trilhas, balneários e diversas atividades, como flutuação em aquários naturais, boiacross, cicloturismo, pesca esportiva, arvorismo, mergulho, rapel, passeio a cavalo e de bote, dentre outras (SECTUR Bonito, 2023). A demanda de visitantes, em 2021, foi de 205.460 pessoas (OTEB, 2021) e, até novembro de 2022, o Observatório do Turismo e Eventos de Bonito-MS já havia contabilizado 251.758 visitantes, um recorde histórico para o município (OTEB, 2022).

Para a coleta de dados, utilizou-se um roteiro semiestruturado contendo categorias e subcategorias preestabelecidas com base na literatura específica (Quadro 2). As entrevistas em profundidade - enquanto técnica de coleta indicada para pesquisas com amostras menores (Veal, 2011) - foram gravadas, com consentimento dos sujeitos da pesquisa, entre os meses de agosto de 2020 e fevereiro de 2021, por meio dos aplicativosGoogle Meet,Skype,WhatsAppeZoom, consoante à preferência dos investigados. O horizonte temporal da coleta e o quantitativo de entrevistados foram influenciados pela pandemia da covid-19, a qual exigiu a pesquisa, exclusivamente, no formato remoto, a fim de que fossem evitados deslocamentos e contatos sociais. A partir das gravações, procedeu-se à transcrição dos áudios, a qual resultou em um corpus de 19.848 palavras e 54 páginas. Posteriormente, empregou-se a técnica da Análise de Conteúdo (Bardin, 2016) para refinamento das subcategorias preestabelecidas, o que resultou na codificação de variáveis para cada categoria/subcategoria contida no instrumento de coleta.

Quadro 2
Categorias e subcategorias da pesquisa

RESULTADOS E DISCUSSÕES

De antemão, a respeito do funcionamento do VD (Quadro 3), constatou-se que ele possibilita a autonomia dos clientes na escolha da agência que opera os passeios, porquanto a venda dos serviços ocorre presencialmente ou pelos canais virtuais próprios das empresas. Isso exige que as agências criem os seus diferenciais competitivos para atrair clientes, cabendo, nesse sentido, ampliar a sua atuação e visibilidade em mídias digitais (Silva et al., 2021), aproveitando-se do engajamento crescente dos consumidores nesses canais virtuais (Rocha, Clavé, & Zucco, 2022), sobretudo no contexto da covid-19 (Saputra et al., 2022).

Quadro 3
Funcionamento do voucher digital

Essa captação de clientes em Barreirinhas é estratégica, pois mesmo após implementar o VD, os visitantes seguem sendo abordados, na entrada da cidade, para ofertas de passeios. Isso é entendido, por muitos investigados, como uma prática agressiva e inadequada, típica de “clandestinos”, ou popularmente chamados de “piratas” em tempos passados, que prejudica seus negócios e motivou, em parte, a busca por uma nova governança do turismo local (Silva, Hoffmann, & Costa, 2020). O depoimento do Entrevistado C, a seguir, corrobora o exposto: “permanece aquela forma de captação de cliente [...] dos meninos de rua [...] a gente pede para parar, mas os caras já trabalham lá faz bastante tempo e não tem mais como retirar [...] tem agência que trabalha associada a eles”.

A emissão do VD é de responsabilidade das agências que, depois de impressos, são entregues aos guias/condutores que se responsabilizam pela apresentação nas guaritas de acesso ao PNLM. Recentemente, constatou-se que o VD também pode ser cadastrado em uma pulseira entregue ao cliente, ficando a seu critério o formato que prefere usar para provar que pagou pelo passeio. Em outros termos, “quem não quiser utilizar [...] pois, por vezes, exige mais paciência para retransmitir as informações do sistema para a pulseira [...] a agência (pode) logo imprimir o voucher [...] é um critério individual” (Entrevistado B).

Essa incorporação de tecnologias à governança de destinos tem sua importância reconhecida na literatura específica, dado o seu potencial de facilitar a experiência de visitação para empresas, viajantes e profissionais do setor (Austregésilo et al., 2020). No entanto, em Barreirinhas, as tecnologias vêm exigindo ajustes, pois a lentidão na transmissão dos dados para a pulseira - possivelmente em razão de deficiências na infraestrutura comunicacional do município (Silva & Ribeiro, 2018) - tem ocasionado insatisfação aos visitantes - e também aos prestadores de serviço - resultando no abandono do dispositivo (pulseiras) pelas agências e na preferência daqueles pela impressão do VD. Alguns investigados mencionaram, ainda e a este respeito, que as pulseiras eram comumente perdidas pelos visitantes, gerando prejuízos financeiros às agências.

Reforçou-se a necessidade de coletar dados pessoais dos clientes para preencher o VD. Este procedimento é útil tanto para comprovar que o cliente pagou pelo serviço em si, quanto para gerar dados de visitação que auxiliem na governança do destino (Arruda, Mariani, & Caleman, 2014), a exemplo do perfil e procedência dos viajantes. Na experiência do voucher único, não havia esta possibilidade (Costa et al., 2012). Entretanto, os dados produzidos ainda não são trabalhados e transformados em conhecimento mercadológico, o que gera insatisfação nos associados ao sistema e limita uma das potenciais contribuições do VD (Arruda, Oliveira, & Mariani, 2014), conforme exposição do Entrevistado A: “se eu conseguisse trabalhar com os dados [...] poderíamos direcionar as ações do município [...] fazer uma política de marketing [...] essa ferramenta contribui muito para a gestão pública, mas, para isso, precisa ser melhorada”. Em adição, alegou-se certa reticência de alguns visitantes para informarem seus dados pessoais, por subentenderem que se trata de uma “burocracia desnecessária” (Entrevistado F). Aqui cabe maior esclarecimento das agências sobre os porquês dessa solicitação, ratificando que a governança sem transparência gera conflitos prejudiciais ao bom funcionamento dos arranjos estabelecidos (Siakwah, Musavengane, & Leonard, 2020).

Em outro aspecto, ressalva-se que as agências devem cumprir exigências legais para aderirem ao VD, circunstância que obrigou muitos prestadores “clandestinos” a se legalizarem (Silva et al., 2020), lembrando que, historicamente, Barreirinhas apresenta elevada informalidade laboral no turismo (Costa, 2009), similarmente a outros destinos brasileiros (Ipea, 2018). Os requisitos necessários à atuação regularizada são variados e envolvem de CNPJ a alvarás de funcionamento e sanitários (Prefeitura Municipal de Barreirinhas, 2017). Essa formalização foi um dos efeitos considerados positivos desde a experiência do voucher único (Costa et al., 2012), consolidado e com maiores exigências agora com o digital. É o que se observa no discurso subsequente: “essa parte da regularização fiscal das empresas é um ponto positivo, gerada pela formalização dos prestadores” (Entrevistado A).

Notou-se, adicionalmente, que o VD, nos mesmos moldes de Bonito (Grechi, Lobo, & Martins, 2019), devolveu o protagonismo às agências na operacionalização dos passeios, respeitando a lógica de ordenamento do setor. Corroborando este entendimento, alegou-se que o que o VD “trouxe de bom foi especificar a função das agências [...] elas é que têm essa atribuição de fazer o passeio [...] a pousada até vende passeios, mas não executa [...] vende, mas precisa passar para alguma agência” (Entrevistado F). Nesse rastro, o VD fomentou a organização em rede das agências locais, resultando na criação da AVBTUR, a qual reproduz uma ação cooperada que favorece a tomada de decisão conjunta (Paskaleva-Shapira, 1999) e a competitividade do destino (Arruda, Oliveira & Mariani, 2014).

Sob outra vertente, o estímulo à legalização de “clandestinos” e à abertura de novas agências por prestadores de outros segmentos - hospedagem, A&B, etc. - foi compreendido como prejudicial à qualidade dos serviços locais, ao menos no curto prazo, em virtude da falta de conhecimento e de experiências para operar os passeios. A fala do Entrevistado E ratifica esta ideia: “houve uma corrida para abrir agências [...] pousadas que vendem (passeios), e estão ameaçadas de não poder mais vender, abriram agências [...] muita gente que nunca viajou [...] e tem como referência o turismo de mata-mata”.

De maneira oposta, Silva et al. (2020) advertiram que esta formalização seria favorável ao incremento das empresas, porquanto a intensificação da concorrência fomenta a melhoria na prestação dos serviços. Na perspectiva longitudinal, esses ganhos tendem a aparecer, embora se alegue localmente que o diferencial competitivo de muitas agências se fundamente nos preços praticados, o que poderia resultar, de fato, em piora nesses serviços, pois obstaculiza que muitas agências cobrem pelos passeios em valores que assegurem a lucratividade dos seus negócios (Arruda, Mariani, & Caleman, 2014). É o que se nota a seguir: “a mentalidade aqui é [...] ‘vamos fazer o melhor preço para roubar o cliente do outro’ [...] criando um ambiente de trabalho terrível onde as bases são sacrificadas [...] o próprio turista fala: ‘esse passeio aqui é muito barato’” (Entrevistado E).

O VD propicia a arrecadação de impostos/tributos, constituindo este o interesse central por parte da municipalidade (Abreu & Freitas, 2016). Cabe destacar que a “Lei do Voucher Digital” regularizou este mecanismo como o instrumento oficial para recolher o ISSQN dos que oferecem passeios, algo que não se conseguiu realizar em momento anterior na região do PNLM (Silva & Ribeiro, 2018). Considerando que a venda de ingressos aos atrativos é de responsabilidade exclusiva das agências locais, proporciona-se, assim, um controle maior da Prefeitura sobre o pagamento por esses serviços, coibindo a sonegação fiscal, como em Bonito (Camargo et al., 2011). Aqui, evidencia-se a reclamação do Entrevistado B, a respeito da falta de transparência do poder público municipal quanto à aplicação dos valores arrecadados, causa já identificada por Silva et al. (2020). Alega-se que os recursos do Fundo Municipal de Turismo (FUMTUR) não estão sendo reinvestidos em prol de uma melhor estruturação do turismo. Isto gerou uma ação empresarial junto ao Ministério Público e corrobora o pensamento de que a governança sem transparência, ocasiona conflitos prejudiciais ao funcionamento das alianças estabelecidas (Pulido-Fernández & Pulido-Fernández, 2018; Siakwah et al., 2020).

Outro quesito para o funcionamento do VD concerne à necessária utilização de equipamentos tecnológicos por agências, guias e visitantes. Nesse aspecto, são requeridos investimentos em tecnologias obrigatórias à adesão ao VD (Arruda, Mariani et al., 2014). Por outro lado, verificou-se a insatisfação de muitos empresários, devido aos custos de impressão e com pessoal para operar o sistema. A reclamação subsequente evidencia o exposto: “quem está na prática [...] alimentando os dados do sistema é quem está no front de venda, ou seja, as agências [...] isso gera custo alto [...] precisa mais uma pessoa que fique ali disponibilizada” (Entrevistado I). Investir na operacionalização do VD fomenta uma antiga insatisfação local, porquanto se exigia, já na primeira versão, contratar mão de obra para preencher, manualmente, os vouchers (Costa et al., 2012). Mencionou-se, ainda, a falta de destreza das agências no manuseio das tecnologias, algo comum em pequenos negócios (Bella-Elliott et al., 2021), afora o receio de contaminação pela covid-19, a partir do compartilhamento das pulseiras com outros visitantes. Esta situação ilustra o indispensável senso de segurança a ser oferecido pelas empresas nesse contexto, ainda pandêmico (Golets et al., 2021).

Em outro aspecto, mencionou-se o controle eletrônico de acesso aos atrativos de responsabilidade do poder público municipal, realizado, atualmente, em três locais de verificação de acesso aos atrativos (guaritas), os quais são equipados com leitores de código de barras e QR Code. Embora os procedimentos de inserção de dados sejam os mesmos para as agências (Sebrae, 2020), verifica-se, aqui, um ponto de inquietação, haja vista que cada uma delas recorre ao procedimento de sua preferência para emitir o VD: código de barras impresso, QR Code impresso ou digital via celular, estes dois últimos de implementação recente. Em destinos como Arraial do Cabo (Lopes, 2020) e Bonito (Grechi et al., 2019), a comercialização remota já funciona a passos largos, sobretudo com o QR Code. Nesse ponto, cabe ressalva de que, a exemplo do que foi verificado em Costa et al. (2012) e Silva et al. (2020), permanece ineficaz a fiscalização de cobrança do VD, devido à carência de fiscais e a problemas no controle dos acessos ao PNLM, que não impedem os que burlam a lei de adentrarem-no por outras vias. Esta constatação esboça que o VD, em Barreirinhas, não atinge alguns dos seus objetivos centrais, como coibir o oportunismo na comercialização dos passeios (Arruda, Mariani et al., 2014) e punir os que desrespeitam as regras estabelecidas (Camargo et al., 2011).

Detectou-se, também, que o poder público municipal é o responsável principal pela gestão do VD. Citou-se o COMTUR, a Secretaria de Cultura e Turismo (SECTUR), a Secretaria Municipal de Administração (SEMAD), além da empresa licitada para administrar o sistema como os corresponsáveis pela sua gestão. Este exemplo segue os moldes de Bonito e consolida a parceria público-privada como estratégia importante para a gestão da visitação (Rodrigues & Abrucio, 2020), a qual deve considerar as regras estabelecidas para mitigar conflitos locais (Pulido-Fernández & Pulido-Fernández, 2018). Nesses termos, o poder público municipal custeia a manutenção do VD, a partir da arrecadação com a prestação dos serviços de passeios ao PNLM, pagando uma empresa terceirizada que oferece suporte às agências na utilização do sistema digital, diante de eventuais falhas na tecnologia e inabilidades em lidar com demandas operacionais e cotidianas do VD.

No entanto, permanecem embates entre o poder público e o empresariado na gestão do VD, isto porque, de modo semelhante ao observado desde a experiência do voucher único (Costa et al., 2012; Silva & Ribeiro, 2018), fala-se em uma falta de transparência nos montantes arrecadados e na aplicação deste recurso. O relato do Entrevistado G ratifica o exposto: “a gestão (do voucher) não é transparente para as agências. É um trâmite entre a empresa e a Prefeitura [...] as agências têm se mobilizado mais para [...] cobrar transparência do poder público”. Cabe lembrar que um dos princípios centrais da boa governança é a transparência nas ações entre as partes envolvidas (Drummond et al., 2006), sob pena de comprometer a confiança necessária ao funcionamento da cooperação interorganizacional nos destinos (Silva, Hoffmann, & Costa, 2020).

A partir das revelações acima, compreende-se a relevância de melhorias para o funcionamento do VD. O primeiro grupo de variáveis concerne a incrementos na governança do destino, enquanto as outras tratam de alterações nas funcionalidades do sistema digital (Quadro 4). Entre os principais avanços suscitados estão melhorar a fiscalização e segurança nas guaritas de acesso, posto que estes se mostram como problemas antigos que corroboram um sentimento de injustiça por parte dos que cumprem suas obrigações com o sistema de cobrança, desde a implementação do voucher único (Costa et al., 2012) até tempos presentes com o VD (Silva et al., 2020).

Quadro 4
Sugestões de melhoria para o voucher digital

Os investigados sugeriram, outrossim, o aproveitamento dos dados gerados para melhoria da governança local, cientes que é possível lançar mão das informações relativas à visitação para fins da tomada de decisão estratégica (Grechi et al., 2019), em especial, aquela que se relaciona à minimização dos impactos aos espaços sob proteção (Velasquez, 2016). Ademais, diante da cobrança de valores desproporcionais nos passeios - extorsivos por uns, sobretudo na alta temporada, e muito baixos por outros, em qualquer momento para atrair clientes - alvitrou-se regular a política de preços praticados pelas agências, como em Bonito (Arruda, Mariani et al., 2014). Sugeriu-se, ainda, uma prestação de contas sistematizada com aplicação da arrecadação em prol do turismo, pois muitos se sentem enganados quanto aos benefícios reais do VD. Aqui emerge, uma vez mais, a relevância da transparência nas ações de governança (Drummond et al., 2006; Rodrigues & Godoy, 2013) para que os membros da aliança se mantenham engajados na cooperação estabelecida (Chen, 2008).

Por fim, falou-se na implementação de novas funcionalidades no VD, a fim de que se explore, ao máximo, as possibilidades do sistema aos moldes de Bonito e que propicie ganhos de desempenho ao destino como um todo (Grechi et al., 2019; Souza & Trevelin, 2016). Parte das sugestões se refere à redução nos custos operacionais às agências (Arruda, Mariani et al., 2014; Lobo & Moretti, 2008), ao possibilitar o cadastro dos clientes no ato da compra. Note-se que as agências reclamam da necessidade de preencher os dados dos clientes exigidos pelo VD, em razão da celeridade necessária, especialmente em períodos de alta estação.

A ideia de dispor ao visitante informações em tempo real que o ajude, por exemplo, a decidir qual atrativo conhecer, com base no fluxo do dia da sua visita, poderia contribuir na distribuição da demanda pelos atrativos (Abreu & Freitas, 2016), mitigando a sobrecarga nos de maior interesse turístico (Velasquez, 2016). Para tanto, seria necessário o acesso livre às informações geradas pelo VD por parte de todos os interessados (agências, visitantes, gestores públicos, universidades, etc.), algo que se mostra relevante à gestão do destino como um todo.

Em complemento, falou-se em possibilitar venda direta aos visitantes pelo site, ou seja, a oportunidade de trabalhar com um sítio eletrônico que agilize a aquisição direta do VD, a exemplo do que já ocorre em outros destinos brasileiros (Grechi et al., 2019; Lopes, 2020), além da composição de uma fila online para democratizar as vendas do VD, de modo que todas as agências integradas ao sistema digital pudessem assegurar clientes de maneira equitativa. Traz-se um ponto de inquietação, a respeito dessa última recomendação, haja vista que a imposição de uma fila na comercialização dos passeios pode ser prejudicial à competitividade do destino. Isso porque as agências que mais se esmeram no desenvolvimento de suas vantagens competitivas, realizando investimentos em tecnologias e treinamentos, ver-se-iam desestimuladas ao seu constante aperfeiçoamento, porquanto a captação de clientes não ocorreria com base em seus diferenciais competitivos. Essa situação, per se, mostra-se contrária a uma das ideias-chave do voucher: a de garantir a prestação qualificada e responsável dos serviços (Camargo et al., 2011).

Por fim, apresenta-se o Quadro 5, comparativo, das duas experiências do voucher em Barreirinhas, o único e o digital. A partir da trajetória desse mecanismo de governança, ao longo dos últimos anos, entende-se que o VD possa encontrar um formato ideal que promova os ganhos socioeconômicos e ambientais esperados, após tantos esforços coletivos. As alianças em prol da estruturação da visitação devem seguir, atentando-se para as benesses de replicar as melhores práticas de gestão do turismo existentes em variados destinos.

Quadro 5
Comparação do funcionamento do voucher único e o VD

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo se norteou pelo objetivo de compreender o funcionamento atual do VD em Barreirinhas (PNLM), a partir das mudanças implementadas após o voucher único, além de levantar potenciais melhorias para a sua operacionalização. Esta pesquisa avança em relação a Costa et al. (2012) e Silva et al. (2020), no sentido de que estes se limitaram a olhares exclusivos das agências de passeios/meios de hospedagem locais, a respeito dos pontos positivos e negativos, e razões para a criação dos vouchers único e digital, respectivamente, além de análises preliminares da transição entre os dois sistemas.

Isso posto, conclusivamente, verificou-se que o VD oferece autonomia dos clientes na escolha das agências que ofertam os passeios, privilegiando aquelas que apresentam melhor diferenciação em seus serviços. As agências são responsáveis pela emissão dos vouchers e, por conseguinte, realizam a coleta de dados dos clientes para concluir o cadastro no sistema digital. Esta situação exige que essas empresas saibam utilizar tecnologias para operar o VD e que disponham de recursos humanos para tal. Quanto à autorização para oferecer passeios ao PNLM, o VD obrigou que as agências cumpram variadas exigências, como dispor de alvarás de funcionamento, ocorrência que estimulou a formalização de muitos “clandestinos”. Naquilo que se refere à municipalidade, o VD configura um importante instrumento de arrecadação sobre os serviços prestados, logo, a Prefeitura responde pelo controle eletrônico no acesso aos atrativos do PNLM, pela gestão e custeio do sistema digital, com suporte de uma empresa terceirizada que auxilia os agentes locais no manuseio da ferramenta. Nesse rastro, verificou-se, adicionalmente, que o VD aporta contribuições efetivas/potenciais à governança do turismo barreirinhense: gera dados de visitação que se mostram úteis ao planejamento e à gestão do destino; estimula a formalização dos prestadores de serviço, embora se fale na continuidade dos “piratas” abordando visitantes desde a entrada da cidade; e promove o ordenamento do setor, ao se estabelecer o protagonismo das agências na condução dos passeios ao PNLM.

A atenção ao funcionamento do VD explicitou problemas na sua operacionalização e que requerem soluções: a continuidade da concorrência desleal com “clandestinos” que praticam preços ora abusivos, ora aquém do necessário para arcar com serviços de excelência; o VD e as tecnologias que se propõem a incrementar a experiência de visitação vêm sendo motivo de insatisfação por parte de clientes e agências, em função da lentidão envolvida, seja por conta da dificuldade de transmitir os dados para o sistema, seja pela necessidade de preenchimento dos dados do visitante. Este descontentamento cresce à medida que os dados não são utilizados e/ou aproveitados para amparar decisões estratégicas sobre o destino.

Em adição, há quem compreenda que a abertura exponencial de novas agências prejudica a qualidade dos passeios, pois, historicamente, a concorrência local se estabelece por preço e desprestigia os operadores que lançam mão de qualidade e segurança como fator de competitividade. Agrava esta situação o fato de que o VD significou elevação nos custos operacionais, refletida nos investimentos em equipamentos, impressão - ainda que o voucher seja digital - e contratação de mão de obra. A lista de problemas sem solução atual para o VD se estende à continuidade nos conflitos entre poder público e iniciativa privada, motivados pela alegada falta de transparência quanto aos montantes arrecadados e aplicação destes em favor do turismo local. Ou ainda, falhas na fiscalização do VD, em especial, relativas às empresas que comercializam os passeios e aos acessos ao PNLM.

Por outro lado, a experiência com o VD em Barreirinhas e a compreensão de muitos investigados sobre o bom funcionamento do voucher de Bonito esclarecem possíveis melhorias no sistema digital, e elas abarcam desde a implementação de novas funcionalidades ao VD até mudanças na governança do destino. De posse dessas informações, são sugeridas algumas contribuições gerenciais para incremento do VD estudado. Inicialmente, recomenda-se o desenvolvimento de novas tecnologias (sítios eletrônicos, aplicativos, etc.) que facilitem a aquisição direta do VD pelos clientes, de modo que eles possam cadastrar, diretamente, seus dados pessoais, antecipando questões de seu interesse como horários de preferência da visita e necessidades específicas, como para pessoa com deficiência, idoso, etc. Esta ação promoveria maior celeridade na comercialização dos vouchers, facilitando o processo para consumidores e empresas. Constituir o VD como ferramenta de accountability, dispondo amplo, livre e gratuito acesso aos dados gerados. Essa seria uma forma de promover maior transparência relacionada à arrecadação do turismo e apaziguar conflitos históricos entre o poder público e o empresariado barreirinhense. A disponibilização dos dados gerados pelo sistema poderia ocorrer em canais oficiais da Prefeitura, do destino e/ou de entidades envolvidas (Sebrae, associações de classe, etc.). Recomenda-se, outrossim, o estímulo ao uso do VD em formatos que eliminem impressões em papel (QR Code, por exemplo), a fim de minimizar o impacto financeiro às empresas, além dos custos ambientais.

Outra recomendação gerencial importante trata da intensificação da fiscalização quanto ao cumprimento das exigências do VD junto às agências, com foco em eliminar a clandestinidade na comercialização, assim como o controle efetivo nos pontos de acesso ao PNLM. A experiência de Bonito ratifica a relevância da atuação de instituições fiscalizadoras e de instrumentos legais que consolidem uma gestão eficiente do voucher, porquanto estas medidas foram essenciais a sua configuração enquanto um modelo de referência no setor turístico brasileiro. Além disso, recomenda-se a definição de uma política de preços dos passeios que possibilite às agências a manutenção da qualidade da experiência, a oferta de uma visitação responsável e segura, e a garantia da sua sustentabilidade econômica. Concomitantemente, é fundamental a criação, e o aperfeiçoamento de mecanismos de monitoramento e controle, a fim de que se cumpra, indiscriminadamente, esta medida em prol da excelência na prestação dos serviços turísticos no PNLM.

A limitação deste estudo reside nas representações do setor produtivo e quantitativo de entrevistados, ainda que as técnicas de coleta/análises sejam indicadas para amostras menores e o trabalho de campo tenha ocorrido em momento de alta contaminação da covid-19. Ademais, limita-se quanto ao lócus de pesquisa - Barreirinhas (MA) - e à ferramenta de governança estudada: VD. Diante disso, a agenda de pesquisa se direciona a: ampliar a amostra e os atores do setor produtivo do turismo com conhecimento/experiência junto ao VD; realizar estudos quantitativos sobre vouchers em outras realidades brasileiras; pesquisar a experiência do VD com visitantes; compor estudos comparativos sobre destinos que implementaram o voucher inspirado em Bonito; desenvolver estudos longitudinais sobre vouchers; aprimorar o processo de operacionalização, por meio de análise estratégica de melhores práticas internacionais (benchmarking); reconhecer novos comportamentos dos consumidores (turistas) frente às novas tecnologias; avaliar as reais (atuais) e as potenciais (futuras) contribuições do VD nos processos de planejamento, monitoramento e avaliação das visitações em áreas protegidas.

AGRADECIMENTOS

À Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA) pelo apoio financeiro para o desenvolvimento deste trabalho.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2022
  • Aceito
    22 Dez 2022
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