Resumo
Nas últimas décadas, a região Amazônica apresenta os maiores níveis de urbanização no Brasil. A cidade de Santarém-PA destaca-se devido ao intenso crescimento demográfico associado a um forte processo de recolocação da cidade dentro do cenário global, estabelecendo novas e imponentes lógicas de desenvolvimento, focadas na circulação de bens e desconexas das demandas das pessoas. Nós apresentamos uma discussão sobre o processo recente de urbanização na Amazônia, a partir da bacia do Igarapé “Bela Vista”, localizada na zona de maior expansão urbana da cidade. Para isso, foram realizadas pesquisas bibliográficas e documentais, análises espaciais baseadas em geoprocessamento e sensoriamento remoto, bem como trabalhos de campo e diálogos com habitantes e lideranças locais. Os elementos que constituem a bacia, como as ocupações espontâneas, os projetos de habitação popular e as paisagens naturais, são partes ilustrativas do mosaico que constitui a cidade amazônica. Os processos identificados − da marginalização à capitalização dos espaços públicos − também se aplicam ao contexto amazônico em maior escala. Por fim, nós discutimos conflitos entre visões coletivas e privativas de transformação do espaço, apontando o modo comunal do “ocupar amazônico” como uma estratégia de resistência, mesmo diante da eficiência dos processos de capitalização.
Palavras-chave:
Planejamento urbano; Territórios; Conflitos socioambientais; Estudos decoloniais; Geografia Urbana
Abstract
In recent decades, the Amazon region has presented the highest levels of urbanization in Brazil. The city of Santarém-PA stands out due to intense demographic growth associated with a strong process of relocating the city within the global scenario, establishing and imposing new development logics, focused on the circulation of goods and disconnected from people's demands. In this sense, it was presented a discussion on the recent process of urbanization in the Amazon, from the “Bela Vista“ stream basin perspective, located in the greatest urban expansion in the city. For this, bibliographical and documentary research, spatial analyses based on geoprocessing and remote sensing, fieldwork, and dialogues with inhabitants and local leaders were carried out. The elements that compose the basin, such as spontaneous occupations, popular housing projects, and natural landscapes, are illustrative parts of the mosaic that makes up the Amazon city. The processes identified, from marginalization to the capitalization of public spaces, also apply to the Amazonian context on a larger scale. Finally, we discuss conflicts between collective and private visions of transforming space, pointing out the communal “Amazonian way of occupying” as a strategy of resistance, even in the face of the efficiency of capitalization processes.
Keywords:
Urban planning; Territories; Socioenvironmental conflicts; Decolonial studies; Urban geography
Introdução
O processo de urbanização na Amazônia possui peculiaridades capazes de revelar outras dimensões da ocupação do território. Santos (2005)Santos, M. (2005). A Urbanização Brasileira. São Paulo: EDUSP. observa que, diferentemente das demais metrópoles brasileiras, na Amazônia podem ser observados períodos de decrescimento ao longo do século XX, associados com ciclos de exploração dos recursos naturais da região. Outros núcleos urbanos de expressão regional são constituídos a partir de projetos de exploração executados ou financiados pelo Estado a partir de estratégias desenvolvimentistas (Cardoso & Lima, 2009Cardoso, A. C. D. & Lima, J. J. F. A. (2009). A influência do governo federal sobre as cidades na Amazônia: os casos de Marabá e Medicilândia. Novos Cadernos NAEA, 12(1), 162-192.). Nas últimas décadas, a região Amazônica passa a apresentar os maiores níveis de urbanização no Brasil (Sathler et al., 2009Sathler, D., Monte-Mór, R. L., & Magno de Carvalho, J. A. (2009). As redes para além dos rios: urbanização e desequilíbrios na Amazônia brasileira. Nova Economia, 19(1), 10-39. http://doi.org/10.1590/S0103-63512009000100002.
http://doi.org/10.1590/S0103-63512009000...
), processo este raramente acompanhado de políticas urbanas e ambientais de planejamento.
A cidade de Santarém teve, dentro do último ciclo censitário (2010-2022), um crescimento demográfico anual de 1,43%, aproximadamente o dobro da média dos estados da região Norte (0,75%) e o triplo da média nacional (0,52%), no período (IBGE, 2023Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (2023). Censo Brasileiro de 2022. Rio de Janeiro: IBGE.). Este crescimento esteve associado a um forte processo de recolocação da posição da cidade dentro do cenário global, com inclusão de atividades ligadas ao comércio externo (agronegócio, mineração e turismo), que gerou commodificação de terras (Cardoso et al., 2020Cardoso, A. C. D., Oliveira, K. D., & Pinho, T. D. V. G. (2020). Mismatches between extended urbanization and everyday socioenvironmental conflicts in Santarém, Pará, Brazil. Sustainability in Debate, 11(1), 83-97. http://doi.org/10.18472/SustDeb.v11n1.2020.29468) e estabeleceu novas e imponentes lógicas de “desenvolvimento”, focadas na circulação de bens e desconexas das demandas das pessoas (Oliveira, 2006Oliveira, J. A. (2006). A cultura, as cidades e os rios na Amazônia. Ciência e Cultura, 58(3), 27-29.). Dentre as estratégias políticas adotadas para consolidação deste espaço produtivo, ocorre o estabelecimento da Região Metropolitana de Santarém no ano de 2012, incluindo os municípios de Belterra e Mojuí dos Campos, em um arranjo que mais se aproxima das “metrópoles de papel” da Amazônia, conforme discussão realizada por Santos et al. (2023Santos, R. V., Lima, G. V. B. D. A., & Lima, J. J. F. (2023). “Metrópoles de papel” na Amazônia: Horizontes lefebvrianos na produção do espaço em Macapá-Santana, Brasil. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, 25, e202302. http://doi.org/10.22296/2317-1529.rbeur.202302pt
http://doi.org/10.22296/2317-1529.rbeur....
). Nos últimos anos, tem se combinado a este apelo desenvolvimentista uma lógica preservacionista com foco na manutenção da floresta frente à crise climática (Becker, 2007Becker, B. K. (2007). A Amazônia e a política ambiental brasileira. In: Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial (pp. 209-229). Rio de Janeiro: Lamparina.) e ao alto potencial da bioeconomia como modelo alternativo de produção sustentável.
O município de Santarém possui a maior concentração demográfica do estado do Pará fora da região metropolitana de Belém. Sua posição na rede urbana amazônica é de forte centralidade, sendo referência dentro de uma extensa área, que inclui toda região do Tapajós, limitada ao sul pelo estado do Mato Grosso, e municípios da calha norte no oeste paraense, até as divisas com os estados Amazonas, Roraima e Amapá, e as fronteiras de Suriname e Guiana. A posição geográfica favorece um papel de lócus de integração da Amazônia oriental e o histórico de ocupação milenar faz com que estejam ali sobrepostas diferentes formas de ocupação do território, materializadas na cidade e nas suas zonas periurbana e ribeirinha (Gomes & Cardoso, 2019Gomes, T. V., & Cardoso, A. C. D. (2019). Santarém: o ponto de partida para o (ou de retorno) urbano utopia. urbe. Urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 11, e20170219. http://doi.org/10.1590/2175-3369.011.001.ao03.
http://doi.org/10.1590/2175-3369.011.001...
).
Nós apresentamos uma discussão a respeito do processo recente de urbanização na Amazônia a partir da cidade de Santarém, tendo como foco a expansão ocorrida na Zona Oeste da cidade e, mais especificamente, na bacia do Igarapé “Bela Vista” (Machado et al., 2022Machado, S. D. S., Ribeiro, B. O., Silva, A. C., Barros, D. S., & De Cortes, J. P. S. (2022). Problemas Socioambientais Associados ao Processo de Expansão Urbana na Microbacia do Igarapé do Juá, Santarém-PA. In Anais do XIII Sinageo. Juiz de Fora: UGB. ). Esta discussão tem o objetivo de apontar as especificidades do processo de reprodução do urbano amazônico, apontando o protagonismo da sociedade civil por meio de lutas pelo direito à cidade e os processos de apropriação destes espaços e de invisibilização da população periférica. São utilizados dados de diferentes fontes, como pesquisa bibliográfica e documental em materiais de mídia, análises espaciais baseadas em técnicas de geoprocessamento e sensoriamento remoto, trabalhos de campo e diálogos com habitantes e lideranças locais. A interpretação histórica e espacial do processo de ocupação nesta área ilustra etapas distintas de ocupação do espaço urbano comuns a outras realidades amazônicas e fornece um modelo conceitual que pode ser explorado em outros contextos, sem que se tenha a pretensão de esgotar a complexidade destes processos na região. Neste sentido, é apresentada pela primeira vez a delimitação da bacia hidrográfica do Igarapé “Bela Vista”. São explorados, ainda, aspectos narrativos e ideológicos que permeiam a ocupação concreta do espaço e os processos de formulação de políticas públicas e apropriação pela iniciativa privada, pela ótica do racismo ambiental. Por fim, são apresentados casos de conflitos entre a lógica comunitária, que permeia a ocupação espontânea ocorrida nas periferias, e a lógica do capital, que se apropria dos novos espaços urbanos, a partir de conversão de espaços comuns em privados.
Materiais e métodos
Foram utilizados dados coletados em campo entre 2018 e 2023, entrevistas com habitantes da área, lideranças sociais e autoridades do município, levantamento documental e bibliográfico, e realizadas análises espaciais baseadas em Sistemas de Informação Geográfica.
Na pesquisa documental, foram consultados os instrumentos de planejamento e gestão urbana de Santarém, como Plano Diretor Municipal (Santarém, 2018Santarém. (2018). Lei nº 20.534 29 de dezembro de 2018. Institui o Plano Diretor Participativo de Santarém. Santarém: Gabinete da prefeitura.), Plano Municipal de Saneamento (Santarém, 2019Santarém. (2019). Revisão do Plano Municipal de Saneamento Básico De Santarém - PA 2020 – 2023. Recuperado em agosto de 2023, de https://santarem.pa.gov.br/institucional/plano-diretor-e-planos-setoriais.
https://santarem.pa.gov.br/institucional...
) e demais legislações, como a lei de Criação da Área de Proteção Ambiental do Juá (Santarém, 2012Santarém. (2012). Lei nº 19.206 de 28 de dezembro de 2012. Cria a área de proteção ambiental do Juá, no município de Santarém, estado do Pará e dá outras providências. Santarém: Gabinete da prefeitura.). A análise da legislação municipal teve como objetivo verificar a presença e o reconhecimento do Igarapé “Bela Vista” e da sua microbacia nos documentos oficiais, assim como identificar o amparo jurídico para a promoção da preservação ambiental da área.
Entrevistas semiestruturadas foram conduzidas com habitantes, lideranças e autoridades para obter informações e compreender o processo de urbanização na bacia, os modos distintos de ocupação do território e as pressões da apropriação e capitalização de espaços comuns. Falas dos tomadores de decisão e da mídia em relação ao bairro Vista Alegre do Juá foram analisadas a partir de consulta aos arquivos de mídia local (Jornal Tapajós, 2023Jornal Tapajós. (2023). Encontro discute soluções para invasão de terras em Santarém. Recuperado em agosto de 2023, de https://globoplay.globo.com/v/11470352/.
https://globoplay.globo.com/v/11470352/...
; G1 Santarém, 2013G1 Santarém. (2013). Área de Preservação Ambiental do Juá deve ser ampliada. Recuperado em agosto de 2023, de https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/noticia/2013/11/area-de-preservacao-ambiental-do-jua-deve-ser-ampliada.html
https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/...
, 2022G1 Santarém. (2022). Santarém decreta situação de emergência em razão de danos provocados por alagamentos. Recuperado em agosto de 2023, de https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/noticia/2022/01/19/santarem-decreta-situacao-de-emergencia-em-razao-de-danos-provocados-por-enxurradas.ghtml
https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/...
).
Para realização das análises espaciais, foram utilizadas imagens dos satélites Landsat 5 para os cenários de 1990 e 1995, composições falsa cor (R5G4B3) com resolução de 30 metros e imagens dos satélites RapidEye e Planet para os cenários 2011 e 2017 com as resoluções espaciais de 6,5 e 3 metros, respectivamente. As imagens Landsat foram adquiridas através do portal Earth Explorer (https://earthexplorer.usgs.gov/) e as demais foram cedidas pelo Centro Municipal de Informação e Educação Ambiental de Santarém (Ciam). O limite da bacia foi extraído a partir do Modelo Digital de Elevação (MDE) gerado com imagens SRTM disponíveis no portal TOPODATA (2021)TOPODATA. (2021). Banco de dados geomorfométricos do Brasil. Recuperado em agosto de 2023, de http://www.dsr.inpe.br/topodata/
http://www.dsr.inpe.br/topodata/...
. O curso do Igarapé “Bela Vista” foi extraído a partir da imagem de satélite de 2017.
A bacia do Igarapé “Bela Vista” como microcosmo da cidade amazônica
A bacia do Igarapé “Bela Vista” corresponde a uma área ainda não formalmente reconhecida na cidade pelos pontos de vista social e do planejamento. Esta falta de reconhecimento se deve ao fato de o igarapé que a caracteriza, denominado provisoriamente de “Bela Vista”, ser amplamente reconhecido como um canal artificial de escoamento de esgoto sanitário, em função de falhas no planejamento do sistema de esgotamento sanitário e drenagem urbana do Residencial Salvação, situado à montante.
Nos últimos anos, esforços têm sido realizados para o reconhecimento deste igarapé como uma drenagem natural da cidade, porém, apesar de avanços importantes e de uma crescente mobilização social, ainda não foi atingido um status formal de reconhecimento frente ao poder público e aos instrumentos de planejamento. Este igarapé limita os bairros Vista Alegre do Juá, iniciado como ocupação urbana em 2015, e o loteamento Residencial Cidade Jardim, que começou a ser implantado em 2011, porém teve as obras embargadas em diferentes momentos em função da má condução dos processos de licenciamento ambiental. O igarapé deságua no Lago do Juá, uma importante área de pesca do município e é limitado pela Praia da Salvação, que constitui o último trecho não urbanizado ou degradado das típicas praias que caracterizam o baixo trecho do rio Tapajós. A parte leste da bacia é composta por bairros consolidados que também foram iniciados por processos de ocupação, mas já possuem reconhecimento formal e infraestruturas urbanas básicas instaladas.
A leitura da bacia do Igarapé “Bela Vista” como um microcosmo da cidade amazônica é justificada por serem ali representados, dentro de uma área relativamente pequena, elementos marcantes que podem ser encontrados em outros contextos de ocupação na região. A Figura 1 apresenta a área de estudos e os elementos que a caracterizam a partir da leitura proposta neste trabalho.
- Elementos de caracterização da bacia do Igarapé “Bela Vista”. (A) Localização da bacia na cidade de Santarém. (B) Diferentes tipologias de ocupação do espaço. (C) Vista aérea da área de estudos. (BC) Bairros Consolidados (Alvorada, Conquista e Elcione Barbalho); (SA) Residencial Salvação; (VA) Vista Alegre do Juá; (CJ) Loteamento residencial Cidade Jardim; (APA) Área de Proteção Ambiental do Juá; (PS) Praia da Salvação, e (LJ) Lago do Juá. Fonte: Autores.
O processo mais amplamente representado em termos espaciais e temporais é o de reprodução do tecido urbano a partir das ocupações espontâneas, representado pelos bairros mais antigos, como Alvorada, Conquista e Elcione Barbalho (Figura 1BC) e, mais recentemente, pelo bairro Vista Alegre do Juá (Figura 1B). Apesar de este ser o principal processo ligado à expansão da malha urbana nas últimas décadas na cidade de Santarém, é notável como permanece sendo representado e compreendido como um processo desordenado e, muitas vezes, criminoso. Reis et al. (2018)Reis, A. B. O., Pinho, E. R. P., Novak, F., Pereira, T. R., & Rodrigues, Y. S. (2018). As ocupações urbanas na Amazônia e os novos sujeitos coletivos: a atuação do Movimento dos Trabalhadores em Luta por Moradia na cidade de Santarém-PA. Terceira Margem Amazônia, 3(11), 72-86. apresentam uma discussão muito importante a respeito de como, através de processos como estes, é efetivada uma busca pelo direito à cidade, mesmo em condições precárias, na cidade de Santarém. Silva Rego & Cavalcante (2022) demonstram que, através dos movimentos sociais e, ao contrário do que predomina na opinião pública, estes processos são dotados de planejamento, lógicas de ocupação e escolha criteriosa das famílias, ainda que efetivamente estes elementos não sejam completamente materializados − ou mantidos − ao longo do processo de ocupação.
Outro elemento importante, que aparece especialmente nas últimas décadas na Amazônia, é a implantação de projetos de habitação popular massiva. Na área de estudos, o residencial Salvação representa este tipo de ocupação e apresenta algumas características já observadas e discutidas em outros casos (Rolnik et al., 2015Rolnik, R., Pereira, A. L. D. S., Moreira, F. A., Royer, L. D. O., Iacovini, R. F. G., & Nisida, V. C. (2015). O Programa Minha Casa Minha Vida nas regiões metropolitanas de São Paulo e Campinas: aspectos socioespaciais e segregação. Cadernos Metrópole, 17(33), 127-154. http://doi.org/10.1590/2236-9996.2015-3306.
http://doi.org/10.1590/2236-9996.2015-33...
). Assim, observa-se a pouca adequação à realidade amazônica, como, por exemplo, casas com aquecedores solares, o tamanho reduzido dos terrenos e a má condução do planejamento e da execução das obras, como no caso da falha nas obras do sistema de esgotamento sanitário, que faz com que parte do efluente coletado seja lançado sem tratamento no Igarapé “Bela Vista”. Neste sentido, pode-se dizer que o Residencial Salvação ilustra como o Estado executa obras de intervenção na Amazônia com pouca aderência à realidade local e, muitas vezes, com resultados indesejáveis, ainda que seja em áreas tão importantes e carentes como é a destinação de moradia popular (Santos, 2017Santos, B. A. (2017). As políticas de habitação e urbanização diante da mudança do clima: estudo da vulnerabilidade e da adaptação em Santarém – Pará (Dissertação de mestrado). Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília, Brasília, DF.).
Pelo ponto de vista dos agentes privados, há a implantação ainda não concluída do loteamento Residencial Cidade Jardim. Este empreendimento, com previsão de implantação há mais de uma década, foi embargado em diferentes momentos pelos Ministérios Públicos Estadual e Federal, em função da tramitação inadequada dos processos de licenciamento ambiental. Santarém também foi sede de um dos casos mais emblemáticos de sobreposição de interesses econômicos a legislação ambiental e impactos sociais na Amazônia, que foi a implantação do terminal portuário da empresa Cargill, no ano 2000. Este elemento demonstra como, em certas situações, a iniciativa privada conta com a dificuldade de reação do Estado para implementar estruturas sem que sejam corretamente avaliados seus impactos ou através de arranjos que permitam acelerar e/ou simplificar o processo de licenciamento, a despeito da presença de populações tradicionais e dos patrimônios materiais, imateriais e naturais presentes no território, como foi o caso da Cargill (Terra de Direitos, 2021Terra de Direitos. (2021). Cargill e violação de direitos no Tapajós, estudo completo Cargill. Recuperado setembro de 2023, de https://semlicencaparacargill.org.br/assets/estudo-completo-cargill-santarem.pdf
https://semlicencaparacargill.org.br/ass...
).
Por fim, há de se ressaltar os elementos naturais que compõem a bacia, especialmente na sua área de foz, com destaque para o Lago do Juá e para a Praia da Salvação. O Lago do Juá corresponde a um importante território pesqueiro para a população urbana de Santarém, especialmente nas últimas décadas, com a degradação de outros lagos tradicionais de pesca em função da urbanização. O aumento da pressão sobre os recursos pesqueiros nessa área tem gerado o tensionamento de conflitos ligados a pescadores de outras regiões, que passam a depender dos estoques do lago (Cardoso et al., 2018Cardoso, M. C., Silva, R. E., Silva, A. D. B. & Chiba, E. S. A. (2018). Pescadores artesanais, conflito de interesses e os recursos pesqueiros vistos como capital natural crítico: o caso do Lago do Juá em Santarém, Pará. Revista O Social em Questão, 21(40), 309-332.). Vale ressaltar que a atividade de pesca nesse lago é destinada principalmente para subsistência das famílias dos pescadores, que praticam em sua maioria a atividade com uma frequência diária (Corrêa et al., 2018Corrêa, J. M. S., Rocha, M. S., Santos, A. A., Serrão, E. M., & Zacardi, D. M. (2018). Caracterização da pesca artesanal no Lago Juá, Santarém, Pará. Revista Agrogeoambiental, 10(2), 61-74. http://doi.org/10.18406/2316-1817v10n220181116.
http://doi.org/10.18406/2316-1817v10n220...
).
Na tentativa de conter os processos de degradação e assoreamento, observados especialmente a partir da abertura dos terrenos destinados ao Residencial Buriti, foi aprovada em 2012 a criação da Área de Proteção Ambiental do Juá (APA do Juá). Esta unidade de conservação, no entanto, está praticamente toda contida dentro de outra categoria de restrição ambiental, que seria a própria Área de Proteção Permanente (APP) do Lago Juá. Dessa maneira, a efetividade da criação dessa UC vem sendo contestada e os próprios processos de gestão encontram-se praticamente paralisados (G1 Santarém, 2013G1 Santarém. (2013). Área de Preservação Ambiental do Juá deve ser ampliada. Recuperado em agosto de 2023, de https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/noticia/2013/11/area-de-preservacao-ambiental-do-jua-deve-ser-ampliada.html
https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/...
), tendo sido o Conselho Gestor instituído somente em 2017, através do Decreto Municipal 569/2017. Por fim, a Praia da Salvação compõe este mosaico de ocupações como uma área com enorme potencial paisagístico, turístico e econômico. Atualmente, as atividades turísticas nesta praia são organizadas em torno da Associação dos Vendedores Ambulantes da Praia da Salvação (AVAPS) e representam fonte de renda para famílias que vivem no bairro Vista Alegre do Juá. A Figura 2 apresenta alguns destes elementos paisagísticos que compõem a bacia do Igarapé “Bela Vista”.
- Elementos paisagísticos da bacia do Igarapé “Bela Vista”. (A) Praia da Salvação, com habitações tradicionais ao fundo. (B) Pescador no Lago do Juá. (C) Rua no Bairro Vista Alegre do Juá. (D) Casas do Bairro Residencial Salvação. Fonte: Autores.
Etapas do processo de urbanização da microbacia do Igarapé “Bela Vista”
A urbanização na microbacia do Igarapé “Bela Vista” tem início no final da década de 1980, com o espraiamento da cidade para oeste, seguindo a ocupação ao redor do Lago Papucu e ao longo da Avenida Fernando Guilhon. Esta etapa do processo de urbanização na cidade tem ligação com a consolidação a partir de eixos rodoviários, que incluem as rodovias Curuá Una (PA 370) e Santarém-Cuiabá (BR 163), em um movimento de interiorização e ligação com fluxos de escala nacional e internacional, alterando a lógica secular modulada pelos rios (Gomes & Cardoso, 2019Gomes, T. V., & Cardoso, A. C. D. (2019). Santarém: o ponto de partida para o (ou de retorno) urbano utopia. urbe. Urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 11, e20170219. http://doi.org/10.1590/2175-3369.011.001.ao03.
http://doi.org/10.1590/2175-3369.011.001...
).
Um importante meio de reprodução dos espaços urbanos foi através de ocupações realizadas em antigas fazendas situadas nos limites da cidade. O déficit e a lentidão dos programas habitacionais, associados com um êxodo rural intensificado a partir do final da década de 1990, em função da conversão de terras para monocultura no Planalto Santareno, levaram a um rápido processo de ocupação periférica, onde viriam a ser os bairros Conquista, Alvorada, Maracanã e Elcione Barbalho. Outro fator importante de crescimento é a posição hierárquica de Santarém na rede urbana regional, com função de polo de saúde, educação e serviços em geral, o que tende a atrair a população das cidades vizinhas. A combinação destes dois elementos − o déficit em políticas públicas e habitacionais e o crescimento populacional − leva à criação das ocupações periféricas, de forma similar a outras cidades amazônicas, como descrito por Costa & Oliveira (2007)Costa, D. P., & Oliveira, J. A. (2007). Conjuntos habitacionais e a expansão urbana de Manaus. Mercator (Fortaleza), 6, 33-47. para a cidade de Manaus.
Com a consolidação destas ocupações, alguns serviços urbanos básicos passam a atender às novas áreas, especialmente em fornecimento de energia elétrica, transporte público e coleta de resíduos sólidos. O acúmulo progressivo de serviços urbanos e a melhoria na acessibilidade a estes espaços, através do asfaltamento de vias principais, tende a valorizar os terrenos e imóveis, atraindo capitais imobiliários. Esta etapa de capitalização consolida a agregação das novas áreas ao tecido urbano, à medida que vão sendo reproduzidos padrões comuns do urbano, como lotes menores, construções em concreto, serviços diversificados, entre outros. Na bacia do Igarapé “Bela Vista”, os preços de terrenos em áreas bem urbanizadas e áreas de expansão podem superar a ordem de 10 vezes de diferença. O resultado desta valorização rápida tende a ser o aumento de custo médio de vida em áreas com maior acesso a serviços, expandindo e renovando o front de ocupação nas áreas periféricas. A Figura 3 ilustra estes processos de acordo com a observação da urbanização na microbacia do Igarapé “Bela Vista”.
- Ciclo de expansão urbana observado na cidade a partir da bacia do Igarapé “Bela Vista”. Fonte: Autores.
Na microbacia do Igarapé “Bela Vista”, a análise do histórico de ocupação e urbanização demonstra que a materialização destes processos no tecido urbano ocorre de maneira combinada e desigual. Deste modo, apesar de ser útil como modelo analítico, a identificação dos processos e sua conexão temporal com estágios sucessionais, que podem ser observados na maioria dos casos, é importante chamar a atenção para o modo com que essa cidade expandida vai sendo concretizada. A agência dos entes públicos e privados tem forte poder de direcionar e moldar a ocupação ao mesmo tempo em que fatores sociais e culturais imprimem identidade às novas áreas. A Figura 4 ilustra esquematicamente como os diferentes processos identificados manifestaram-se ao longo da ocupação da bacia em cenários dos anos 1990, 1995, 2011 e 2017, quando as áreas urbanizáveis já se encontravam quase totalmente destinadas. Essa ocupação ocorre de forma mais lenta a partir da década de 1990, adentrando pelo flanco leste da bacia nos bairros que viriam a se consolidar na década seguinte. No cenário de 2011, os bairros Alvorada, Elcione Barbalho e Conquista já se encontravam consolidados na parte central da bacia (Figura 1-BC), com os fronts de marginalização, urbanização e capitalização sendo deslocados para a borda sul da mesma.
- Etapas do processo de urbanização a partir da ocupação histórica na bacia do Igarapé “Bela Vista”. Setas indicam a direção dos processos e a sucessão das etapas. Fonte: Autores.
É possível observar como ocupações marginais são progressivamente urbanizadas a partir de eixos de referência (vias principais), o que facilita sua incorporação à dinâmica urbana e prepara os novos espaços para acolhimento de serviços mais complexos e para habitação da classe média, via processo de capitalização. É possível notar também como cerca de metade da área urbanizável da bacia tem uma ocupação mais dirigida ao longo da década de 2010, a partir dos projetos dos residenciais Salvação (SA) e Cidade Jardim (CJ), e como entre 2011 e 2017 a maior parte dos elementos que caracteriza a bacia é incorporada, incluindo também a APA do Juá e o bairro Vista Alegre do Juá.
Marginalização e racismo ambiental
O racismo ambiental é um conceito ligado a discriminação e injustiça ambiental relegadas a comunidades racializadas e com padrão socioeconômico bem definido. O termo, originado no final do século XX, descreve a forma como determinados grupos sociais, étnicos e raciais são desproporcionalmente afetados por problemas ambientais, e pode ser aplicado também na forma como a sociedade é desigualmente “sensibilizada” por eventos de desastres, por exemplo, em comunidades com recortes raciais e sociais distintos. O racismo ambiental surge da interseção entre o racismo estrutural e as questões ambientais, refletindo a maneira como comunidades marginalizadas são relegadas a viver em áreas degradadas e com qualidade ambiental reduzida (Acselrad et al., 2009Acselrad, H., Mello, C. C. A., & Bezerra, G. N. (2009). O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond.). Essa forma de opressão ambiental evidencia a desigualdade social e racial, reforçando a necessidade de abordar essas questões de forma integrada para alcançar padrões minimamente aceitáveis de justiça ambiental (Herculano, 2008Herculano, S. (2008). O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente, 3(1), 1-20.). Pelo ponto de vista da produção do conhecimento, há de se ter atenção para que sejam feitas contraposições com a “violência discursiva” com que os discursos de legitimação dessas situações de desigualdade buscam se impor (Harvey, 2004Harvey, D. (2004). Espaços de esperança. São Paulo: Edições Loyola.), uma vez que se trata de narrativas hegemônicas e amplamente aceitas em diversas esferas da sociedade.
Na microbacia do Igarapé “Bela Vista”, a materialização deste conceito pode ser percebida a partir de duas perspectivas, uma ambiental e outra social. O racismo, na perspectiva ambiental, atua no sentido de atribuir à ocupação do Bairro Bela Vista do Juá, a partir da perspectiva da “invasão”, responsabilidade quase que exclusiva por danos ambientais causados a partir do processo de ocupação, especialmente com a retirada da vegetação e a ocupação de áreas de preservação permanente nas proximidades dos cursos d’água. Estes discursos são amplamente difundidos e aceitos, especialmente a partir da mídia de massa, mas incluindo-se também nos níveis da sociedade local, de tomadores de decisão (Jornal Tapajós, 2023Jornal Tapajós. (2023). Encontro discute soluções para invasão de terras em Santarém. Recuperado em agosto de 2023, de https://globoplay.globo.com/v/11470352/.
https://globoplay.globo.com/v/11470352/...
) e da produção do conhecimento (Cardoso et al., 2021Cardoso, M. C., Alves, H. D. S., Costa, I. C. N. P., & Vieira, T. A. (2021). Anthropogenic actions and socioenvironmental changes in lake of Juá, Brazilian Amazonia. Sustainability (Basel), 13(16), 9134. http://doi.org/10.3390/su13169134.
http://doi.org/10.3390/su13169134...
).
Pela perspectiva social que ilustra o conceito, é observada a invisibilização da comunidade em relação à baixa qualidade ambiental da área, através da não incorporação do Bairro Vista Alegre do Juá nos instrumentos de planejamento urbano vigentes, como no Plano Diretor Municipal e no Plano Municipal de Saneamento Básico (Santarém, 2019Santarém. (2019). Revisão do Plano Municipal de Saneamento Básico De Santarém - PA 2020 – 2023. Recuperado em agosto de 2023, de https://santarem.pa.gov.br/institucional/plano-diretor-e-planos-setoriais.
https://santarem.pa.gov.br/institucional...
). Uma análise pormenorizada do processo de construção do Plano Diretor de Santarém e das estratégias utilizadas para burlar o caráter participativo − através da negação de decisões coletivas − é apresentada por Reis & Rodrigues (2019)Reis, A. B. O., & Rodrigues, Y. S. (2019). A luta pelo direito à cidade na Amazônia; o processo de revisão do Plano Diretor de Santarém-PA. Santarém: FASE.. Soma-se a esta invisibilização institucional, o descaso com a melhora nas condições ambientais, o que tem relação íntima com a responsabilização das famílias ocupantes pela degradação ambiental da área através da reprodução acrítica de discursos por interlocutores diversos. Este mecanismo, de forma implícita, contribui para que seja descartada qualquer menção à responsabilidade do poder público e da companhia de saneamento local (COSANPA) na geração da fonte de poluição e na não resolução em longo prazo deste problema. Ao mesmo tempo, a exemplo da urbanização observada na bacia do Igarapé do Tucunduba, em Belém (Tavares & Cardoso, 2023Tavares, A. C. M., & Cardoso, A. C. D. (2023). Ciclos de remoções em Belém (PA): a Bacia do Tucunduba e a reprodução da precariedade. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, 25(1), e202305. http://doi.org/10.22296/2317-1529.rbeur.202305pt), a combinação destes fatores ideológicos com os citados fatores de planejamento e político-administrativos, evidenciados pelo conteúdo dos planos diretores e ações do poder público, fortalece o processo de urbanização apresentado na Figura 3, perpetuando as condições para os atores marginalizados reproduzirem a parte braçal de expansão do tecido urbano.
Nesta perspectiva, um evento revelador foi registrado em janeiro de 2022, a partir do desabamento das obras de drenagem do bairro Residencial Salvação, o que impossibilitou o tráfego na Av. Fernando Guilhon, principal via de acesso da bacia, e uma das principais vias da cidade. Nesta ocasião, foram contratadas obras em regime de urgência para restabelecimento do tráfego e reconstrução da drenagem, com aumento da capacidade de fluxo hídrico. Mais uma vez, as palavras da autoridade máxima municipal revelam descaso com a transferência de problemas ambientais − como o assoreamento e a destinação de resíduos sólidos para o Igarapé “Bela Vista”, localizado à jusante −, consequentemente, para as famílias que ocupam as suas margens e para o Lago do Juá. O Quadro 1 ilustra as perspectivas de racismo ambiental observadas na área através de falas veiculadas pela mídia e do à época prefeito municipal de Santarém, então filiado ao partido Democratas (DEM).
- Falas ilustrativas do racismo ambiental na perspectiva dos tomadores de decisão e da mídia em relação ao Bairro Vista Alegre do Juá
Dialética do público-privado e capitalização dos espaços públicos
A trajetória do desenvolvimento urbano mostra que a ocupação inicial dos espaços periféricos se dá sob uma lógica de uso, segundo a qual elementos, como áreas verdes, espaços de criação e cultivo, e espaços de lazer e socialização, são valorizados, mantidos ou construídos. Essa lógica se aproxima do que Gomes & Cardoso (2019)Gomes, T. V., & Cardoso, A. C. D. (2019). Santarém: o ponto de partida para o (ou de retorno) urbano utopia. urbe. Urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 11, e20170219. http://doi.org/10.1590/2175-3369.011.001.ao03.
http://doi.org/10.1590/2175-3369.011.001...
denominam “urbanização cabocla”. Dentro dessa lógica, a ordem comunitária assume protagonismo, tanto na escala da comunidade como um todo, quanto na escala dos próprios terrenos, pensados de maneira mais ampla como espaço de acolhimento de “parentes”, de socialização, tomada de decisões e de produção, através de pomares, quintais produtivos e espaços para criação. Trata-se de uma reprodução, em menor escala, dentro do urbano, de diversos elementos que norteiam a ocupação nos moldes das comunidades amazônicas.
A Figura 5 apresenta um recorte que explicita a contraposição entre a chamada “lógica cabocla” amazônica, instalada nos estágios iniciais de ocupação periférica, e a lógica privativa típica dos espaços de capitalização, que representa a incorporação das áreas periféricas a espaços da classe média urbana. O polígono em vermelho apresentado na Figura 5 exemplifica o modo “caboclo” de ocupação (Figura 5A), instituindo praticamente uma pequena comunidade dentro do tecido urbano, com moradias irregularmente espaçadas dentro do terreno, arborização mantida e áreas comuns de interação entre as famílias que compartilham o espaço (Figura 5B), normalmente “parentes”, considerando também a acepção amazônica deste termo. A contraposição vem a ser a ocupação mais recente promovida através do processo de capitalização, que substitui as áreas previamente ocupadas por terrenos individuais, diminutos, com construções padronizadas e com contato mínimo com o ambiente de entorno, estabelecido pelos muros e cercas em todos os terrenos (Figura 5C). Este tipo de ocupação, normalmente expressão da “cidade moderna e mais avançada”, claramente representa retrocessos enormes em comparação com a ocupação “tradicional”, pela perspectiva da sustentabilidade, da adequação com o clima local e do estabelecimento de relações interpessoais e das famílias com o ambiente circundante.
- (A) Contradições entre o modo de ocupação tradicional (polígono vermelho), típico da fase de “marginalização” e repleto de elementos da ocupação em comunidades, e o modo de ocupação individual (polígono azul), característico da fase de “capitalização”. (B) Vista do nível da rua indicando espaço de estar comum (mesas na sombra) dentro do terreno. (C) Terrenos diminutos, murados e cercados indicam o avanço da cidade capitalizada em contraposição à ocupação “cabocla”. Fonte: Autores.
Em última instância, é possível estabelecer uma forte conexão entre os princípios estipulados dentro do urbanismo contemporâneo na ideia de cidades humanizadas (Gehl, 2013Gehl, J. (2013). Cidades para pessoas. São Paulo: Perspectiva.) com o modo amazônico de ocupar, enquanto o desenho “moderno”, que vem com a capitalização, parece representar justamente a cidade falida, que vem sendo repensada em grande escala nos países do norte global. Vale retomar aqui, pelo ponto de vista da sustentabilidade, as considerações feitas por Cardoso et al. (2020)Cardoso, A. C. D., Oliveira, K. D., & Pinho, T. D. V. G. (2020). Mismatches between extended urbanization and everyday socioenvironmental conflicts in Santarém, Pará, Brazil. Sustainability in Debate, 11(1), 83-97. http://doi.org/10.18472/SustDeb.v11n1.2020.29468, que estabelecem uma relação muito similar entre os conceitos de ecologia urbana e similares, e as práticas tradicionais de ocupação da Amazônia. Por fim, cabe ressaltar que o modo tradicional expressa, em diversos níveis, o conceito de “Bem Viver” (Acosta, 2016Acosta, A. (2016). O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Elefante.), no sentido em que reforça o fazer coletivo e fortalece os laços com práticas típicas da ocupação do espaço pelas matrizes indígenas e quilombolas, baseadas na noção de território e em uma relação distinta com os recursos naturais e com a vida, de maneira mais ampla. Este conceito, inclusive, tem embasado fortemente as discussões de diversos movimentos sociais na região de Santarém, incluindo aqueles ligados à questão urbana (Reis et al., 2019Reis, A. B. O., Pinho, E. R. P., Alves, L. N. S., & Rodrigues, Y. S. (2019). Cidades e Bem Viver na Amazônia. Santarém, PA: UFOPA.).
À medida que as estruturas da cidade avançam, acompanhadas do incremento nas estruturas urbanas e consequente valorização dos terrenos, a lógica “cabocla” vai sendo suprimida. Ao longo do trabalho desenvolvido na bacia do Igarapé “Bela Vista”, foi possível observar conversões de espaços comunitários em espaços privados, mas também movimentos de resistência a este processo, de modo a prover espaços de socialização. A dialética subjacente a este movimento é ilustrativa do conflito existente entre o modo de ocupar o espaço “amazônico” e os padrões homogeneizantes do território, que vão impondo a lógica do privado sobre estes espaços.
A Figura 6 ilustra este processo em diferentes situações, desde a etapa de planejamento até a ocupação efetiva dos espaços. O primeiro exemplo apresentado (Figura 6A) mostra o planejamento inicial da ocupação Vista Alegre do Juá, de acordo com planta desenvolvida pelo Movimento dos Trabalhadores em Luta pela Moradia (MTLM), responsável pela organização inicial do processo (Reis et al., 2018Reis, A. B. O., Pinho, E. R. P., Novak, F., Pereira, T. R., & Rodrigues, Y. S. (2018). As ocupações urbanas na Amazônia e os novos sujeitos coletivos: a atuação do Movimento dos Trabalhadores em Luta por Moradia na cidade de Santarém-PA. Terceira Margem Amazônia, 3(11), 72-86.). É possível notar que uma área equivalente a um quarto do território previsto para ocupação tinha destinação para áreas verdes, incluindo um parque (Parque do Juá) e áreas comunitárias, desmistificando a narrativa predominante de que o bairro Vista Alegre do Juá corresponde a uma “ocupação desordenada” ou realizada sem planejamento (ver Quadro 1). As estruturas apresentadas nas imagens das Figura 6B e 6C correspondem, respectivamente, ao galpão comunitário e à sede do movimento MTLM, em fotografias do ano de 2020. Na Figura 6D, ao centro da imagem, pode-se perceber uma das quadras de futebol − um dos elementos mais típicos das comunidades amazônicas − presentes no início da ocupação do bairro. Atualmente, tanto os espaços planejados quanto os equipamentos coletivos apresentados (Figuras 6B, 6C e 6D) foram convertidos em espaços privados.
- Conversões entre modos coletivos e privados de ocupar a cidade. Equipamentos coletivos no bairro Vista Alegre do Juá. (A) Plano inicial da ocupação do bairro. (B) Barracão comunitário. (C) Sede do Movimento dos Trabalhadores em Luta pela Moradia (MTLM). (D) Espaço reservado para campo de futebol em imagem de 2019. (E e F) Espaços comuns improvisados por moradores no Bairro Residencial Salvação. Fonte: Autores.
Por outro lado, também podemos observar que espaços de uso coletivo são demandados e criados, ainda que de forma improvisada, em situações em que não foram previstos. O caso do bairro Residencial Salvação é emblemático, neste sentido. É importante salientar que, no bairro − que poderia representar o modelo “planejado” e a ocupação ordenada do território −, equipamentos comunitários não foram previstos ou entregues junto à obra. A ausência de espaços públicos planejados na área do Residencial Salvação, no entanto, é parcialmente compensada com arranjos locais feitos pelos próprios moradores, como ilustrado nas Figuras 6E e 6F, que mostram áreas comunitárias de lazer e recreação instaladas em terrenos limítrofes. Desta forma, o tensionamento entre modos distintos de ocupação do território é concretizado no espaço urbano, a partir de processos de apropriação e capitalização de espaços comuns (sentido mais intenso de mudança), mas também enquanto soluções locais de resistência e implantação de áreas comunitárias em contextos nos quais não foram previstas.
Considerações finais
Compreender os processos que levam à reprodução do espaço urbano na Amazônia é fundamental para que se possam ser pensadas bases mais sólidas para conceitos ligados à ideia da sustentabilidade, considerando que uma das especificidades do urbano amazônico é justamente sua extensão para territórios não urbanos no sentido típico, bem como a interdigitação de lógicas distintas no espaço. Nós apresentamos elementos que contribuem com a elucidação destes processos a partir do caso concreto de ocupação da bacia do Igarapé “Bela Vista” durante as últimas décadas. Neste sentido, é introduzida pela primeira vez a área da bacia hidrográfica do Igarapé “Bela Vista” como uma forma de explicitar a materialidade físico-espacial do terreno e a existência do Igarapé Bela Vista como corpo hídrico natural; de fomentar a articulação das populações e coletivos que a ocupam, e de indicar aos tomadores de decisão a necessidade de considerá-la como espaço de planejamento. A partir dessa delimitação, são apresentados os elementos que nos levam a estabelecer a leitura proposta do urbano amazônico, tendo a bacia como microcosmo. Os processos observados e tipos de ocupação são partes ilustrativas do mosaico que vai constituir a cidade amazônica, com seus potenciais mas também com vícios, advindos em grande parte da forma como o processo colonizador, em sentido amplo, logrou reproduzir lógicas externas dentro do bioma. Com base na análise espaçotemporal da ocupação da bacia, propomos de forma esquemática uma sucessão de etapas que se inicia com a conscientização do déficit crônico de políticas habitacionais e urbanas na Amazônia, o que marginaliza populações que vão expandir o urbano, dando abertura para a chegada de infraestrutura básica e capitalização das novas terras. Este modelo pode ser testado em outros contextos dentro ou fora da Amazônia, e pode contribuir para compreender e intervir nestes processos, no sentido de fortalecimento de um planejamento contra-hegemônico, com enfoque e valorização dos territórios. O conjunto destes processos tem amparo em um sistema ideológico, com importantes reflexos na estrutura política e de planejamento, a qual, por um lado, marginaliza o processo de reprodução do espaço, propagando mecanismos de racismo ambiental, e, ao mesmo tempo, se aproveita da expansão da “cidade cabocla” para a conversão à lógica mercantil e a incorporação de novas áreas no tecido urbano. Por fim, são discutidos aspectos dialéticos deste processo, no sentido de evidenciar que a transformação do espaço envolve conflitos entre visões mais coletivas ou mais privativas, e que, ainda que o aparato que tende a capitalizar espaços públicos seja mais eficiente e violento em seu processo de conversão, alternativas podem ser reconhecidas no espaço, demonstrando a força de resistência do ocupar amazônico do espaço.
Os elementos identificados e apresentados na bacia do Igarapé “Bela Vista” reforçam a ideia exposta por outros autores e autoras de que é imperativo e urgente que mais do que reconhecer, é preciso valorizar a diversidade e a eficiência das práticas de ocupação do espaço amazônicas, no sentido de estabelecer outras trajetórias para as cidades amazônicas, mais adequadas às especificidades da região e ao cenário de fortes mudanças e crises que se apresenta para o século XXI.
Declaração de disponibilidade de dados
O conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste artigo está disponível no SciELO DATA e pode ser acessado em https://doi.org/10.48331/scielodata.BMIEBB .
-
Como citar:
Cortes, J. P. S., & Less, D. F. S. (2024). Elementos para a compreensão do contemporâneo urbano amazônico na Bacia do “Bela Vista”, Santarém, Pará. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, v.16, e20230369. https://doi.org/10.1590/2175-3369.016.e20230369
Referências
- Acosta, A. (2016). O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos São Paulo: Elefante.
- Acselrad, H., Mello, C. C. A., & Bezerra, G. N. (2009). O que é justiça ambiental Rio de Janeiro: Garamond.
- Becker, B. K. (2007). A Amazônia e a política ambiental brasileira. In: Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial (pp. 209-229). Rio de Janeiro: Lamparina.
- Cardoso, A. C. D. & Lima, J. J. F. A. (2009). A influência do governo federal sobre as cidades na Amazônia: os casos de Marabá e Medicilândia. Novos Cadernos NAEA, 12(1), 162-192.
- Cardoso, M. C., Alves, H. D. S., Costa, I. C. N. P., & Vieira, T. A. (2021). Anthropogenic actions and socioenvironmental changes in lake of Juá, Brazilian Amazonia. Sustainability (Basel), 13(16), 9134. http://doi.org/10.3390/su13169134
» http://doi.org/10.3390/su13169134 - Cardoso, A. C. D., Oliveira, K. D., & Pinho, T. D. V. G. (2020). Mismatches between extended urbanization and everyday socioenvironmental conflicts in Santarém, Pará, Brazil. Sustainability in Debate, 11(1), 83-97. http://doi.org/10.18472/SustDeb.v11n1.2020.29468
- Cardoso, M. C., Silva, R. E., Silva, A. D. B. & Chiba, E. S. A. (2018). Pescadores artesanais, conflito de interesses e os recursos pesqueiros vistos como capital natural crítico: o caso do Lago do Juá em Santarém, Pará. Revista O Social em Questão, 21(40), 309-332.
- Corrêa, J. M. S., Rocha, M. S., Santos, A. A., Serrão, E. M., & Zacardi, D. M. (2018). Caracterização da pesca artesanal no Lago Juá, Santarém, Pará. Revista Agrogeoambiental, 10(2), 61-74. http://doi.org/10.18406/2316-1817v10n220181116
» http://doi.org/10.18406/2316-1817v10n220181116 - Costa, D. P., & Oliveira, J. A. (2007). Conjuntos habitacionais e a expansão urbana de Manaus. Mercator (Fortaleza), 6, 33-47.
- G1 Santarém. (2013). Área de Preservação Ambiental do Juá deve ser ampliada. Recuperado em agosto de 2023, de https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/noticia/2013/11/area-de-preservacao-ambiental-do-jua-deve-ser-ampliada.html
» https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/noticia/2013/11/area-de-preservacao-ambiental-do-jua-deve-ser-ampliada.html - G1 Santarém. (2018). Ocupação na APA Juá causa danos ambientais; estudos para reintegração estão em fase final. Recuperado em agosto de 2023, de https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/noticia/ocupacao-na-apa-jua-causa-danos-ambientais-estudos-de-reintegracao-estao-em-fase-final.ghtml
» https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/noticia/ocupacao-na-apa-jua-causa-danos-ambientais-estudos-de-reintegracao-estao-em-fase-final.ghtml - G1 Santarém. (2022). Santarém decreta situação de emergência em razão de danos provocados por alagamentos. Recuperado em agosto de 2023, de https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/noticia/2022/01/19/santarem-decreta-situacao-de-emergencia-em-razao-de-danos-provocados-por-enxurradas.ghtml
» https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/noticia/2022/01/19/santarem-decreta-situacao-de-emergencia-em-razao-de-danos-provocados-por-enxurradas.ghtml - Gehl, J. (2013). Cidades para pessoas. São Paulo: Perspectiva.
- Gomes, T. V., & Cardoso, A. C. D. (2019). Santarém: o ponto de partida para o (ou de retorno) urbano utopia. urbe. Urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 11, e20170219. http://doi.org/10.1590/2175-3369.011.001.ao03
» http://doi.org/10.1590/2175-3369.011.001.ao03 - Harvey, D. (2004). Espaços de esperança São Paulo: Edições Loyola.
- Herculano, S. (2008). O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente, 3(1), 1-20.
- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (2023). Censo Brasileiro de 2022. Rio de Janeiro: IBGE.
- Jornal Tapajós. (2023). Encontro discute soluções para invasão de terras em Santarém. Recuperado em agosto de 2023, de https://globoplay.globo.com/v/11470352/
» https://globoplay.globo.com/v/11470352/ - Machado, S. D. S., Ribeiro, B. O., Silva, A. C., Barros, D. S., & De Cortes, J. P. S. (2022). Problemas Socioambientais Associados ao Processo de Expansão Urbana na Microbacia do Igarapé do Juá, Santarém-PA. In Anais do XIII Sinageo Juiz de Fora: UGB.
- Oliveira, J. A. (2006). A cultura, as cidades e os rios na Amazônia. Ciência e Cultura, 58(3), 27-29.
- Reis, A. B. O., & Rodrigues, Y. S. (2019). A luta pelo direito à cidade na Amazônia; o processo de revisão do Plano Diretor de Santarém-PA Santarém: FASE.
- Reis, A. B. O., Pinho, E. R. P., Alves, L. N. S., & Rodrigues, Y. S. (2019). Cidades e Bem Viver na Amazônia Santarém, PA: UFOPA.
- Reis, A. B. O., Pinho, E. R. P., Novak, F., Pereira, T. R., & Rodrigues, Y. S. (2018). As ocupações urbanas na Amazônia e os novos sujeitos coletivos: a atuação do Movimento dos Trabalhadores em Luta por Moradia na cidade de Santarém-PA. Terceira Margem Amazônia, 3(11), 72-86.
- Rolnik, R., Pereira, A. L. D. S., Moreira, F. A., Royer, L. D. O., Iacovini, R. F. G., & Nisida, V. C. (2015). O Programa Minha Casa Minha Vida nas regiões metropolitanas de São Paulo e Campinas: aspectos socioespaciais e segregação. Cadernos Metrópole, 17(33), 127-154. http://doi.org/10.1590/2236-9996.2015-3306
» http://doi.org/10.1590/2236-9996.2015-3306 - Santarém. (2012). Lei nº 19.206 de 28 de dezembro de 2012. Cria a área de proteção ambiental do Juá, no município de Santarém, estado do Pará e dá outras providências Santarém: Gabinete da prefeitura.
- Santarém. (2018). Lei nº 20.534 29 de dezembro de 2018. Institui o Plano Diretor Participativo de Santarém Santarém: Gabinete da prefeitura.
- Santarém. (2019). Revisão do Plano Municipal de Saneamento Básico De Santarém - PA 2020 – 2023 Recuperado em agosto de 2023, de https://santarem.pa.gov.br/institucional/plano-diretor-e-planos-setoriais
» https://santarem.pa.gov.br/institucional/plano-diretor-e-planos-setoriais - Santos, B. A. (2017). As políticas de habitação e urbanização diante da mudança do clima: estudo da vulnerabilidade e da adaptação em Santarém – Pará (Dissertação de mestrado). Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília, Brasília, DF.
- Santos, R. V., Lima, G. V. B. D. A., & Lima, J. J. F. (2023). “Metrópoles de papel” na Amazônia: Horizontes lefebvrianos na produção do espaço em Macapá-Santana, Brasil. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, 25, e202302. http://doi.org/10.22296/2317-1529.rbeur.202302pt
» http://doi.org/10.22296/2317-1529.rbeur.202302pt - Santos, M. (2005). A Urbanização Brasileira São Paulo: EDUSP.
- Sathler, D., Monte-Mór, R. L., & Magno de Carvalho, J. A. (2009). As redes para além dos rios: urbanização e desequilíbrios na Amazônia brasileira. Nova Economia, 19(1), 10-39. http://doi.org/10.1590/S0103-63512009000100002
» http://doi.org/10.1590/S0103-63512009000100002 - Silva Rego, J. C., & Cavalcante, M. M. A. (2022). Luta por espaço no processo de urbanização em Santarém/PA: análise do bairro Vista Alegre do Juá. Terra Livre, 1(58), 130-159. http://doi.org/10.62516/terra_livre.2022.2331
» http://doi.org/10.62516/terra_livre.2022.2331 - Tavares, A. C. M., & Cardoso, A. C. D. (2023). Ciclos de remoções em Belém (PA): a Bacia do Tucunduba e a reprodução da precariedade. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, 25(1), e202305. http://doi.org/10.22296/2317-1529.rbeur.202305pt
- Terra de Direitos. (2021). Cargill e violação de direitos no Tapajós, estudo completo Cargill. Recuperado setembro de 2023, de https://semlicencaparacargill.org.br/assets/estudo-completo-cargill-santarem.pdf
» https://semlicencaparacargill.org.br/assets/estudo-completo-cargill-santarem.pdf - TOPODATA. (2021). Banco de dados geomorfométricos do Brasil Recuperado em agosto de 2023, de http://www.dsr.inpe.br/topodata/
» http://www.dsr.inpe.br/topodata/
Editado por
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
31 Out 2023 -
Aceito
23 Jul 2024