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Segregação socioespacial, morfologia da expansão e fragmentação socioeconômica em cidades brasileiras de porte médio

Socio-spatial segregation, urban growth morphology and socioeconomic fragmentation in medium-sized Brazilian cities

Resumo

A segregação socioespacial é um processo que vem constituindo o espaço urbano, particularmente em contextos periféricos e de desigualdades socioeconômicas onde a restrição do contato aprofunda condições de uma urbanização desigual. Neste trabalho analisamos evidências empíricas quantitativas associadas a reflexões teórico-críticas sobre o processo de urbanização contemporânea adotando os conceitos de fragmentação e segregação para analisar 125 cidades brasileiras de porte médio, entre os anos 1985 e 2020, nas quais em 60% dos casos a expansão se deu em velocidades superiores ao crescimento populacional. Detalhamos estudo em Pelotas/RS e Blumenau/SC, às quais aplicamos índices espaciais locais de segregação (dissimilaridade e isolamento) buscando analisar a associação entre morfologia da expansão e indicadores locais de segregação. Para ambas as cidades observamos que os distintos padrões morfológicos de expansão ocorrem com certa estabilidade nos índices globais de dissimilaridade, cujas áreas de expansão urbana combinam e justapõem situações locais de isolamento socioeconômico para os extremos grupos de alta e baixa renda. Os resultados sugerem que a expansão urbana tem sido estruturada pela segregação socioespacial, cujos processos encontram na morfologia urbana interna mecanismos para garantir a separação e a restrição no contato entre grupos sociais distintos.

Palavras-chave:
Segregação socioespacial; Expansão urbana; Cidades médias

Abstract

Socio-spatial segregation is a process that has been constituted urban space, particularly in contexts of socioeconomic inequalities in which the restriction of contact deepens the condition of unequal urbanization. In this work we analyze quantitative empirical evidence associated with theoretical-critical reflections on the contemporary urbanization process, adopting the concepts of fragmentation and segregation to analyze 125 medium-sized Brazilian urban concentrations, between 1985 and 2020, in which in 60% of cases the expansion took place at a faster rate than population growth. We detail a study in Pelotas/RS ­and Blumenau/SC, to which we applied local spatial indices of segregation (dissimilarity and isolation) examining correlations with the morphology of the expansion areas (infill, edge and leapfrog). For both cities, we observed that the different morphological patterns of expansion occur with a certain stability in the global dissimilarity indices, whose areas of urban expansion combine and juxtapose local situations of socioeconomic isolation for the extreme groups of high and low income. The results suggest that urban expansion has been structured by fragmentation and segregation, contributing to hiding socio-spatial conflicts in peripheral urbanization through the separation and restriction of contacts between different social groups.

Keywords:
Socio-spatial segregation; Urban expansion; Medium-size cities

Introdução

Ao longo do século XX, as cidades se consolidaram como produto e meio de estruturação da sociedade capitalista (Harvey, 2005Harvey, D. (2005). A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume.; Lefebvre, 1968Lefebvre, H. (1968). O direito à cidade. São Paulo: Centauro Editora.; Singer, 1978Singer, P. (1978). Uso do solo urbano economia capitalista. In E Maricato. (Org.), A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial (pp. 21-36). São Paulo: Editora Alfa-Ômega.), que, sob o ponto de vista da forma urbana, tem como alternativas: (i) a expansão urbana horizontal, que amplia os limites e avança a borda da cidade sobre a paisagem natural e rural; ou (ii) o crescimento interno, mediante o acúmulo do capital nas áreas centrais, a substituição de edificações, o incremento de taxas construídas, a verticalização, a densificação e a ocupação de vazios (Reis Filho, 2006; Villaça, 1998). Tradicionais compreensões da segregação em cidades brasileiras e latino-americanas se baseiam na relação entre os centros urbanos, mantidos como lugares de poder, qualidade e acúmulo de privilégios às populações de alta renda, combinados à exclusão das classes socioeconômicas mais pobres às periferias (Villaça, 1998). Entretanto, contemporaneamente, observamos que populações de alta e baixa renda coexistem no espaço urbano periférico (Caldeira, 2011Caldeira, T. P. R. (2011). Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo (3. ed). São Paulo: Ed. 34, Edusp.; Sposito e Góes, 2013Sposito, M. E. B., & Góes, E. M. (2013). Espaços fechados e cidades: Insegurança urbana e fragmentação socioespacial. São Paulo: Editora UNESP.), onde imagens de condomínios fechados e favelas são espacialidades simbólicas de uma realidade em que grupos sociais distintos, apesar de estarem próximos ou adjacentes, têm seus contatos profundamente restritos (Caldeira, 1997Caldeira, T. P. R. (1997). Enclaves fortificados: a nova segregação urbana. Novos Estudos CEBRAP, 47, 155-176.; Janoschka, 2002Janoschka, M. (2002). El nuevo modelo de la ciudad latinoamericana: fragmentación y privatización. EURE (Santiago), 28(85). http://doi.org/10.4067/S0250-71612002008500002.
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; Marques, 2015Marques, E. (2015). Urban poverty, segregation and social networks in São Paulo and Salvador, Brazil. International Journal of Urban and Regional Research, 39(6), 1067-1083. http://doi.org/10.1111/1468-2427.12300.
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; Peres e Saboya, 2021Peres, O. M., & Saboya, R. T. (2021). Urban form and socio-spatial segregation in Santa Catarina Brazilian Cities. In Annual Conference Proceedings of the XXVIII International Seminar on Urban Form (pp. 269–281). Glasgow: University of Strathclyde. http://doi.org/10.17868/80146).

O estudo da segregação urbana compreende, portanto, não apenas a mera divisão e distanciamento social no espaço urbano, mas também uma estrutura espacial pela qual grupos de baixa renda são privados do acesso e convívio aos locais de maior qualidade e disponibilidade de serviços urbanos, enquanto as classes dominantes ocultam do seu próprio cotidiano o convívio com grupos sociais marcados pela pobreza e vulnerabilidade, invisibilizando os conflitos sociais e os problemas socioambientais (Park & Kwan, 2018Park, Y. M., & Kwan, M.-P. (2018). Beyond residential segregation: a spatiotemporal approach to examining multi-contextual segregation. Computers, Environment and Urban Systems, 71, 98-108. http://doi.org/10.1016/j.compenvurbsys.2018.05.001.
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; Boterman et al., 2021Boterman, W. R., Musterd, S., & Manting, D. (2021). Multiple dimensions of residential segregation. The case of the metropolitan area of Amsterdam. Urban Geography, 42(4), 481-506. http://doi.org/10.1080/02723638.2020.1724439.
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). Sob uma perspectiva teórica, passamos a compreender a segregação enquanto um processo dinâmico (Bell, 1954Bell, W. (1954). A probability model for the measurement of ecological segregation. Social Forces, 32(4), 357-364. http://doi.org/10.2307/2574118.
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; Freeman, 1978Freeman, L. C. (1978). Segregation in social networks. Sociological Methods & Research, 6(4), 411-429. http://doi.org/10.1177/004912417800600401.
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; Netto & Krafta, 1999Netto, V. D. M., & Krafta, R. (1999). Segregação dinâmica urbana: modelagem e mensuração. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, 1(1), 133. http://doi.org/10.22296/2317-1529.1999n1p133.
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), que, entretanto, tem seus estudos dedicados à segregação urbana advindos de concepções estáticas e de um conjunto de indicadores espaciais (Duncan & Duncan, 1955Duncan, O. D., & Duncan, B. (1955). A methodological analysis of segregation indexes. American Sociological Review, 20(2), 210. http://doi.org/10.2307/2088328.
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; Massey & Denton, 1988Massey, D. S., & Denton, N. A. (1988). The dimensions of residential segregation. Social Forces, 67(2), 281-315. http://doi.org/10.2307/2579183.
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; Reardon & O’Sullivan, 2004Reardon, S. F., & O’Sullivan, D. (2004). Measures of spatial segregation. Sociological Methodology, 34(1), 121-162. http://doi.org/10.1111/j.0081-1750.2004.00150.x.
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). São relativamente recentes os estudos que consideram as dimensões espacial e temporal na caracterização e medição da segregação urbana (Feitosa et al., 2007Feitosa, F. F., Câmara, G., Monteiro, A. M. V., Koschitzki, T., & Silva, M. P. S. (2007). Global and local spatial indices of urban segregation. International Journal of Geographical Information Science, 21(3), 299-323. http://doi.org/10.1080/13658810600911903.
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; Wong, 1993 Wong, D. W. S. (1993). Spatial indices of segregation. Urban Studies (Edinburgh, Scotland), 30(3), 559-572. http://doi.org/10.1080/00420989320080551.
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), e ainda mais recentes aqueles que vão além da localização residencial, passando a observar como a segregação se reflete sobre os indivíduos sociais, suas dinâmicas de mobilidade e possibilidades de acesso aos espaços e atividades (Lisboa & Feitosa, 2016Lisboa, F. S., & Feitosa, F. F. (2016). Para além da perspectiva residencial: a construção de índices de segregação dos espaços de atividades. Revista Brasileira de Cartografia, 68 (4), 797-813.; Netto et al., 2015Netto, V. M., Soares, M. P., & Paschoalino, R. (2015). Segregated networks in the city. International Journal of Urban and Regional Research, 39(6), 1084-1102. http://doi.org/10.1111/1468-2427.12346.
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; Park & Kwan, 2018Park, Y. M., & Kwan, M.-P. (2018). Beyond residential segregation: a spatiotemporal approach to examining multi-contextual segregation. Computers, Environment and Urban Systems, 71, 98-108. http://doi.org/10.1016/j.compenvurbsys.2018.05.001.
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; Saraiva & Barros, 2022Saraiva, M., & Barros, J. (2022). Accessibility in São Paulo: an individual road to equity? Applied Geography (Sevenoaks, England), 144, 102731. http://doi.org/10.1016/j.apgeog.2022.102731.
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; Santos & Saboya, 2023Santos, L. de S., & Saboya, R. T. (2023). Copresença e interação em espaços públicos: a restrição do contato entre indivíduos de grupos sociais diferentes. Paranoá, 34(34), 1-21. http://doi.org/10.18830/issn.1679-0944.n34.2023.03.
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).

Diante desse atual contexto, no presente trabalho procuramos considerar de modo integrado a morfologia, a estrutura social e o processo de segregação socioespacial como dimensões reveladoras de uma urbanização constituída para a manutenção e reprodução de realidades desiguais. Buscamos os conceitos de fragmentação e segregação para sustentar as análises da expansão horizontal das cidades. Desenvolvemos um trabalho empírico que investiga relações entre a forma da expansão urbana e o processo de segregação socioeconômica, no qual observamos: (i) a fragmentação e a descontinuidade morfológicas das áreas de expansão; (ii) as características socioeconômicas e as densidades dos fragmentos de expansão; e (iii) a localização da segregação socioeconômica nas áreas de expansão. Realizamos um estudo para concentrações urbanas brasileiras de porte médio, entre 100 e 500 mil habitantes, de 1985 e 2020, detalhando análises para Blumenau/SC e Pelotas/RS. Aplicamos medidas espaciais de segregação urbana (Feitosa et al., 2007Feitosa, F. F., Câmara, G., Monteiro, A. M. V., Koschitzki, T., & Silva, M. P. S. (2007). Global and local spatial indices of urban segregation. International Journal of Geographical Information Science, 21(3), 299-323. http://doi.org/10.1080/13658810600911903.
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), considerando a localização residencial e classificação socioeconômica dos dados do Censo de 2010.

Dedicamos o estudo às concentrações urbanas médias em contraposição às análises de segregação majoritariamente associadas às grandes cidades, tais como o trabalho de Barros e Feitosa (2018)Barros, J., & Feitosa, F. F. (2018). Uneven geographies: exploring the sensitivity of spatial indices of residential segregation. Environment and Planning. B, Urban Analytics and City Science, 45(6), 1073-1089. http://doi.org/10.1177/2399808318760572.
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, que analisou a sensibilidade de medidas espaciais de segregação em São Paulo e Londres. As cidades médias são espaços em transição (Sposito, 2007Sposito, M. (2007). Cidades médias: espaços em transição. São Paulo: Expressão Popular.), as quais experimentaram, em décadas recentes, taxas e velocidades de expansão superiores às grandes cidades, cuja lógica de urbanização, se não antecipadas e mitigadas, tendem a reproduzir as externalidades urbanas transcorridas nas metrópoles. O recorte temporal adotado entre 1985 e 2020 corresponde ao período de reabertura democrática do Brasil, a constituição de um movimento nacional pela reforma urbana e estabelecimento do marco legal do Estatuto da Cidade e planos diretores municipais desenvolvidos nas primeiras décadas dos anos 2000. Esse horizonte de análise de 35 anos da expansão urbana também está associado à disponibilidade de séries históricas de imagens de satélite e dados socioeconômicos detalhados na escala dos setores censitários. Cabe apontar também que o trabalho ocorre na iminência da divulgação dos dados do Censo realizado em 2022, a perspectiva de continuidade do estudo e avanços na compreensão das dinâmicas urbanas.

Contexto teórico

A estrutura socioespacial das cidades, baseada na constituição de uma centralidade política e áreas de entorno associadas à lógica de classes, se torna ainda mais característica em período pós-industrial, quando atratividade, disputas e conflitos sociais pelo espaço urbano central são combinados aos reflexos decorrentes da periferização, exclusão, gentrificação, marginalização, fragmentação e segregação, enquanto estratégias socioespaciais para o contínuo processo de reprodução do capital e a produção social do espaço urbano (Harvey, 2005Harvey, D. (2005). A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume.; Lefebvre, 1968Lefebvre, H. (1968). O direito à cidade. São Paulo: Centauro Editora.; Singer, 1978Singer, P. (1978). Uso do solo urbano economia capitalista. In E Maricato. (Org.), A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial (pp. 21-36). São Paulo: Editora Alfa-Ômega.; Smith, 1984Smith, N. (1984). Uneven development: nature, capital, and the production of space. Oxford: Blackwell.; Soja, 1989Soja, E. W. (1989). Postmodern geographies: the reassertion of space in critical social theory. Londres: Verso.). Dentre esses fenômenos, os conceitos de periferia, fragmentação e segregação são centrais para este estudo e serão tratados brevemente a seguir.

Periferia e fragmentação

“Periferia” é um termo de difícil definição (Arredondo, 2005Arredondo, I. A. (2005). De periferia a ciudad consolidada Estrategias para la transformación de zonas urbanas marginales. Bitácora Urbano Territorial, 9(1), 98-111.), pois se refere a um fenômeno que evolui e acumula um conjunto de associações teórico-conceituais ao longo do tempo, cuja conotação geométrica e morfológica original desperta interesse de disciplinas diversas, as quais passam a observar o fenômeno segundo lentes distintas, incorporando múltiplas facetas e enriquecendo seu entendimento enquanto fenômeno característico da urbanização contemporânea.

Em uma compreensão original, as periferias urbanas surgem do encontro da acumulação capitalista com a produção do espaço urbano, superpondo ao núcleo urbano preexistente, geralmente de estrutura concêntrica e compacta, um tecido urbano mais esgarçado, resultante do crescimento demográfico combinado com o êxodo rural e a implosão-explosão da morfologia tradicional, no que Monte-Mór (1994)Monte-Mór, R. (1994). Urbanização Extensiva e lógicas de povoamento: um olhar ambiental. In Santos, M. et. al. (Orgs.), Território, globalização e fragmentação (pp. 169-181.). São Paulo: Hucitec/Anpur. chamou de “urbanização extensiva”. Arredondo (2005)Arredondo, I. A. (2005). De periferia a ciudad consolidada Estrategias para la transformación de zonas urbanas marginales. Bitácora Urbano Territorial, 9(1), 98-111. aponta três características principais das periferias nesse contexto: distância do centro consolidado, dependência desse centro em termos de serviços, comércios e empregos, e deficiência de infraestrutura, redes de transporte e diversidade de usos do solo que atendam às necessidades cotidianas dos moradores. Kowarick (1979, pKowarick, L. (1979). A Espoliação Urbana. São Paulo: Paz e Terra.. 31) reforça esse entendimento ao sugerir que periferias são “aglomerados distantes dos centros, clandestinos ou não, carentes de infraestrutura, onde passa a residir crescente quantidade de mão de obra necessária para fazer girar a maquinaria econômica”. Além disso, nesses locais a atuação do Estado é mais fraca ou inexistente, abrindo oportunidades para inovações, improvisos e o surgimento de novas configurações (Vasconcelos, 2013Vasconcelos, P. de A. (2013). Contribuição para o debate sobre processos e formas socioespaciais nas cidades. In P. A. Vasconcelos, R. L. Corrêa, S. M. Pintaudi, & A. F. A. Carlos (Eds.), A cidade contemporânea: segregação espacial (p. 17-37). São Paulo: Editora Contexto. São Paulo: Studio Nobel.). Mesmo trabalhos mais recentes, como o de Kühn (2015)Kühn, M. (2015). Peripheralization: theoretical concepts explaining socio-spatial inequalities. European Planning Studies, 23(2), 367-378. http://doi.org/10.1080/09654313.2013.862518.
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, enfatizam a situação geométrica além da borda, a baixa interação socioespacial, as maiores distâncias aos centros principais e densidades inferiores, como aspectos centrais para definição conceitual da periferização.

Afastando-se dessas concepções predominantemente morfológicas e geográficas, Fischer-Tahir e Naumann (2013)Fischer-Tahir, A., & Naumann, M. (2013). Peripheralization. Wiesbaden: Springer Fachmedien Wiesbaden. http://doi.org/10.1007/978-3-531-19018-1
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reuniram em publicação diversos autores cujo entendimento da periferização inclui uma multiplicidade maior de aspectos: econômicos, sociais, políticos e culturais. D’Andrea (2013)D’Andrea, T. P. (2013). A formação dos sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo [Tese de doutorado]. Universidade de São Paulo, São Paulo. http://doi.org/10.11606/T.8.2013.tde-18062013-095304
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argumenta que o conceito de periferia se modificou para incluir não apenas violência e pobreza, mas também cultura e potência. A cultura se expressa por meio de coletivos artísticos, do rap, funk, hip hop, grafite, bailes, etc., enquanto a potência abrigaria:

  • 1. O uso ou a ameaça do uso da violência.

  • 2. A ostentação por meio do consumo.

  • 3. A disputa pelo poder por meio da organização política.

  • 4. Uma certa criatividade própria do morador da periferia. (D’Andrea, 2013 p. 177)

De fato, a partir do final do século XX, a estrutura socioespacial das periferias tornou-se mais complexa. Essas áreas, até então compostas basicamente por residências de grupos de menor renda e instalações industriais, passaram a incluir novos centros de comércios e serviços voltados a essa população, condomínios e loteamentos fechados voltados à alta renda (e, mais recentemente, também às camadas de renda média) e equipamentos de lazer (Caldeira, 2011Caldeira, T. P. R. (2011). Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo (3. ed). São Paulo: Ed. 34, Edusp.; Sposito, 2013Sposito, M. E. B. (2013). Segregação Socioespacial e Centralidade Urbana. In: A cidade contemporânea: Segregação espacial (pp. 61-93.). Vasconcelos et al.). Reis Filho (2006) reuniu pesquisas brasileiras dedicadas à urbanização dispersa, que observaram: (i) o esgarçamento dos tecidos em áreas periféricas; (ii) a constelações de núcleos isolados em meio ao campo e em diferentes dimensões; (iii) um cotidiano baseado em mobilidade regional, intermunicipal; e (iv) modos de vida e consumo associados à vida metropolitana.

Aliada a essas novas configurações ocorrem processos de fragmentação, que designam uma estrutura urbana na qual o conteúdo social corre espacialmente isolado, separado e independente dos demais fragmentos, em que lógicas globais são quebradas para dar lugar a partes urbanas fracamente conectadas (Vasconcelos, 2013Vasconcelos, P. de A. (2013). Contribuição para o debate sobre processos e formas socioespaciais nas cidades. In P. A. Vasconcelos, R. L. Corrêa, S. M. Pintaudi, & A. F. A. Carlos (Eds.), A cidade contemporânea: segregação espacial (p. 17-37). São Paulo: Editora Contexto. São Paulo: Studio Nobel.). Para Sposito e Góes (2013), aSposito, M. E. B., & Góes, E. M. (2013). Espaços fechados e cidades: Insegurança urbana e fragmentação socioespacial. São Paulo: Editora UNESP. fragmentação caracteriza a urbanização periférica nas sociedades moderna e pós-moderna, quando as relações sociais se intensificam, as condições de transportes se aceleram e comunicações se virtualizam. Sposito (2013)Sposito, M. E. B. (2013). Segregação Socioespacial e Centralidade Urbana. In: A cidade contemporânea: Segregação espacial (pp. 61-93.). Vasconcelos et al. observou que a fragmentação encontra força no processo de crescimento das cidades médias, com aumento das extensões territoriais e o consequente enfraquecimento das relações entre grupos sociais distintos e fortalecimento das interações entre indivíduos de mesma classe.

Segregação socioespacial: limites e possibilidades

Segregação socioespacial é um processo no qual os contatos presenciais entre grupos sociais distintos são minimizados, dificultados e/ou restringidos como consequência de condições espaciais intencionais, espontâneas ou imprevistas. Essas condições incluem separação, distanciamento, esquivanças, barreiras visuais, demarcações territoriais materiais ou simbólicas e restrições de acesso a diferentes modos de transporte. Além disso, usamos o termo segregação socioespacial para denotar também o resultado desse processo, ou seja, as situações espaciais e sociais concretas em um ponto específico no tempo.

O estudo da segregação – neste caso, a residencial, um subtipo da socioespacial – tem origem nas primeiras décadas do século XX, com destaque aos estudos da Escola de Chicago (Park & Burgess, 1921Park, R. E., & Burgess, E. W. (1921). Introduction to the Science of Sociology. Chicago: The University of Chicago Press.; Burgess, 1928Burgess, E. W. (1928). Residential segregation in American cities. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, 140(1), 105-115. http://doi.org/10.1177/000271622814000115.
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), que enunciam teorias sociológicas de inspiração ecológica sobre a organização concêntrica das cidades. Uma síntese teórica e analítica da segregação foi proposta por Reardon & O’Sullivan (2004)Reardon, S. F., & O’Sullivan, D. (2004). Measures of spatial segregation. Sociological Methodology, 34(1), 121-162. http://doi.org/10.1111/j.0081-1750.2004.00150.x.
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, segundo duas dimensões distintas e complementares: (i) a distribuição não igualitária e o agrupamento dos grupos sociais no espaço urbano (unevenness/clustering); e (ii) a restrição da exposição e o isolamento dos grupos sociais (exposure/isolation).

Em compreensão atualizada, a segregação é um processo dinâmico, resultado da simbiose entre o isolamento sociológico e a distribuição não igualitária no espaço geográfico. A localização residencial geralmente é ponto de partida para diversas compreensões teóricas e principais modos de aferir a segregação urbana (Timberlake & Ignatov, 2014Timberlake, J. M., & Ignatov, M. D. (2014). Residential Segregation [dataset]. Oxford University Press. http://doi.org/10.1093/obo/9780199756384-0116
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; Boterman et al., 2021Boterman, W. R., Musterd, S., & Manting, D. (2021). Multiple dimensions of residential segregation. The case of the metropolitan area of Amsterdam. Urban Geography, 42(4), 481-506. http://doi.org/10.1080/02723638.2020.1724439.
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). Não obstante, além do local de moradia, estudos observam a dimensão da segregação dinâmica, associada ao cotidiano urbano e às condições de mobilidade, que ocorre nos espaços públicos, locais de lazer, trabalho e atividades desenvolvidas no tempo de ócio, em campo de estudo associado à geografia do tempo (como abordado por Netto et al., 2015Netto, V. M., Soares, M. P., & Paschoalino, R. (2015). Segregated networks in the city. International Journal of Urban and Regional Research, 39(6), 1084-1102. http://doi.org/10.1111/1468-2427.12346.
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; Maffini & Maraschin, 2018Maffini, A. L., & Maraschin, C. (2018). Urban Segregation and socio-spatial interactions: a configurational approach. Urban Science, 2(3), 55. http://doi.org/10.3390/urbansci2030055.
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; Park & Kwan, 2018Park, Y. M., & Kwan, M.-P. (2018). Beyond residential segregation: a spatiotemporal approach to examining multi-contextual segregation. Computers, Environment and Urban Systems, 71, 98-108. http://doi.org/10.1016/j.compenvurbsys.2018.05.001.
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, dentre outros autores).

Procedimentos metodológicos

O trabalho desenvolve-se no contexto das cidades brasileiras de porte populacional médio, que correspondem a 125 Arranjos Populacionais e Concentrações Urbanas, conforme delineamento do IBGE (2016)IBGE (2016). Arranjos populacionais e concentrações urbanas do Brasil. Rio de Janeiro: Coordenação de Geografia IBGE. que considera cidades isoladas e conurbações a partir da contiguidade entre manchas urbanas e integração populacional por movimentos pendulares. Para este estudo foi estabelecido um recorte para concentrações urbanas com 100 a 500 mil habitantes. Desse universo, selecionamos duas cidades1 1 Neste trabalho adotamos a seguinte convenção terminológica: para o conjunto dos “125 Arranjos Populacionais e Concentrações Urbanas”, usamos o termo “concentrações urbanas”. Para Blumenau e Pelotas, usamos o termo cidades médias, já que ambas abrangem de fato apenas as cidades propriamente ditas, e não as cidades vizinhas conurbadas como acontece em várias das 125 concentrações urbanas. da região Sul do Brasil, Pelotas/RS e Blumenau/SC, com populações urbanas próximas a 300 mil habitantes, que se diferenciam quanto ao porte das áreas urbanizadas (7.353 ha e 13.918 ha, respectivamente, em 2020) e características geomorfológicas e hidrográficas que, como consequência, podem apresentar distintos processos de expansão urbana e estruturação socioespacial. Ou seja, embora sejam cidades geograficamente próximas e com portes populacionais semelhantes, dadas as diferenças de extensão urbana e feições físicas do sítio, podem expressar dois diferentes padrões de urbanização. Como detalhado a seguir, Pelotas representa o conjunto das cidades em que o crescimento espacial se deu em taxa superior à taxa de crescimento populacional (índice de expansão urbana 2,0), enquanto em Blumenau a taxa de expansão urbana equivale à metade da taxa de crescimento demográfico (índice de expansão 0,5).

Mapeamento da área urbana e da expansão

Para o delineamento da forma da expansão urbana adotamos base de dados da plataforma Mapbiomas, que, a partir de classificação supervisionada de imagens de satélite em resolução de 30 m, permite a reconstrução anual do processo de evolução da área urbanizada do Brasil desde 1985 (Souza et al., 2020Souza, C. M., Z. Shimbo, J., Rosa, M. R., Parente, L. L., A. Alencar, A., Rudorff, B. F.,& Azevedo, T. (2020). Reconstructing three decades of land use and land cover changes in brazilian biomes with landsat archive and earth engine. Remote Sensing, 12(17), 2735. http://doi.org/10.3390/rs12172735
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). O Mapbiomas é um projeto desenvolvido em rede, entre instituições públicas e privadas, que preenche uma lacuna nacional para disponibilidade de informações em séries históricas do uso e cobertura do solo. O mapeamento desenvolvido pelo Mapbiomas resulta em cinco classes principais e cerca de 50 subclasses de uso e cobertura do solo, nas quais as áreas urbanas correspondem às células com predomínio de superfícies não vegetadas e que incluam sistema viário e construções. No que se refere à sensibilidade para detecção das áreas urbanizadas, alcança 95% de acurácia do consumidor e 80% de acurácia do produtor, o que corresponde a uma tendência de ocorrerem em até 5% os falsos positivos e em até 20% os falsos negativos.

Vetorizamos a área urbanizada (AU) em oito estágios com intervalos de cinco anos, entre 1985 e 2020, calculando respectivas grandezas de área. Agregamos dados referentes à população urbana dos Censos de 1991, 2000 e 2010 e calculamos respectivas densidades demográficas urbanas. Calculamos taxas de variação anual da AU (tau), população urbana (tpu) e densidade demográfica urbana (tdu), a partir da seguinte equação:

t a x a = [ ( v f v i ) ( 1 n - 1 ) ] . 100 (1)

Onde: vf = valor final

vi = valor inicial

n = número de anos do intervalo de análise

Comparamos as taxas de crescimento da área urbana (tau) e as taxas de crescimento populacional (tpu), conforme equação 2, calculando um índice de expansão urbana (Corbane et al., 2017Corbane, C., Politis, P., Siragusa, A., Kemper, T., & Pesaresi, M. (2017). LUE user guide: a tool to calculate the Land Use Efficiency and the SDG 11.3 indicator with the Global Human Settlement Layer. European Commission. Joint Research Centre. Recuperado em 19 de junho de 2023, de https://doi.org/10.2760/212689
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; Nicolau et al., 2018Nicolau, R., David, J., Caetano, M., & Pereira, J. (2018). Ratio of land consumption rate to population growth rate: analysis of different formulations applied to mainland portugal. isprs international journal of geo-information, 8(1), 10. http://doi.org/10.3390/ijgi8010010.
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). Conforme adotado pela ONU-Habitat como um indicador dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ONU, 2022ONU (2022). United Nations Annual Report. Recuperado em 19 de junho de 2023, de https://www.un.org/annualreport/
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), assume valores abaixo de 1 nas cidades onde o crescimento demográfico é superior à expansão da mancha urbana, enquanto valores superiores a 1 indicam situações em que a expansão urbana ocorre em magnitudes superiores ao crescimento demográfico, no sentido da maior dispersão, extensão e crescimento periférico.

índice de expansão urbana = tau/tpu (2)

Onde: tau = taxa de variação percentual anual da área urbanizada (mancha urbana);

tpu = taxa de variação percentual anual da população urbana.

Medindo a fragmentação da expansão urbana

No que se refere à fragmentação da morfologia de expansão urbana, o LEI – Landscape Expansion Index (Liu et al., 2010Liu, X., Li, X., Chen, Y., Tan, Z., Li, S., & Ai, B. (2010). A new landscape index for quantifying urban expansion using multi-temporal remotely sensed data. Landscape Ecology, 25(5), 671-682. http://doi.org/10.1007/s10980-010-9454-5.
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) identifica o preenchimento de vazios (infilling), as expansões de borda (edge-expansion) e os núcleos urbanos dispersos (leapfrog ou outlying), conforme ilustrado na figura 1, considerando o percentual de sobreposição do perímetro dos respectivos fragmentos de expansão ao limite da mancha urbana preexistente, considerando que sobreposições superiores a 60% caracterizam expansões infilling; edge-expansion corresponde a sobreposições entre 60% e 20%; e leapfrog considera sobreposições inferiores a 20%.

Figura 1
- Três classes de expansão urbanas (Liu et al., 2010Liu, X., Li, X., Chen, Y., Tan, Z., Li, S., & Ai, B. (2010). A new landscape index for quantifying urban expansion using multi-temporal remotely sensed data. Landscape Ecology, 25(5), 671-682. http://doi.org/10.1007/s10980-010-9454-5.
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).

Além de um indicador local de fragmentação morfológica (isto é, para cada mancha de expansão urbana), Liu et al. (2010)Liu, X., Li, X., Chen, Y., Tan, Z., Li, S., & Ai, B. (2010). A new landscape index for quantifying urban expansion using multi-temporal remotely sensed data. Landscape Ecology, 25(5), 671-682. http://doi.org/10.1007/s10980-010-9454-5.
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propõem o cálculo de um indicador global da compacidade e fragmentação da expansão urbana (AWMEI), calculado pela média dos índices LEI ponderados pela área dos fragmentos de expansão, conforme a seguinte equação:

A W M E I = i = 1 I L E I i . a i A (3)

Onde: LEIi = índice LEI do fragmento de expansão urbana i;

ai = área do fragmento de expansão urbana i;

A = somatório total das áreas de expansão urbana;

I = número total de fragmentos de expansão urbana no período.

Para cada fragmento de expansão, caracterizamos também a sua fragmentação demográfica, calculando localmente um coeficiente de densificação, que compara a densidade local com a densidade demográfica média da cidade, ambas calculadas a partir de dados socioespaciais do IBGE disponibilizados em uma malha regular de células quadradas de 200 m de lado denominada grade para fins estatísticos.2 2 http://mapasinterativos.ibge.gov.br/grade/default.html Esse coeficiente local assume valores superiores e inferiores a 1, quando a expansão se caracteriza por densidade demográfica superior ou inferior à densidade da cidade como um todo, respectivamente.

Mensuração da segregação urbana

Para análise da segregação urbana adotamos um conjunto de medidas desenvolvidas por Feitosa et al. (2007)Feitosa, F. F., Câmara, G., Monteiro, A. M. V., Koschitzki, T., & Silva, M. P. S. (2007). Global and local spatial indices of urban segregation. International Journal of Geographical Information Science, 21(3), 299-323. http://doi.org/10.1080/13658810600911903.
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, que consideram a dimensão espacial e resultam em indicadores locais, computados a partir do plugin Segreg para o QGIS.3 3 https://plugins.qgis.org/plugins/Segreg/ De modo geral, os spatial indices of urban segregation de Feitosa et al. fazem uma adaptação local de índices de segregação tradicionais, originalmente globais, a partir de uma abstração da contagem absoluta dos grupos sociais agregados nos centroides dos setores censitários. O processamento construído pelos autores estima a probabilidade de interação dos respectivos grupos sociais a partir de um indicador denominado local population intensity. Esse indicador considera não apenas as quantidades de cada grupo em cada zona, mas também as quantidades presentes nas zonas cujos centroides se encontram dentro de um raio de vizinhança especificado, ponderando de tal maneira que distâncias maiores tenham menor peso.

Analisamos os indicadores de dissimilaridade espacial, adaptados pelos autores a partir da medida de dissimilaridade generalizada (Sakoda, 1981Sakoda, J. M. (1981). A generalized index of dissimilarity. Demography, 18(2), 245-250. http://doi.org/10.2307/2061096. PMid:7227588.
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) para múltiplos grupos, por sua vez adaptada da medida original dicotômica (Duncan & Duncan, 1955Duncan, O. D., & Duncan, B. (1955). A methodological analysis of segregation indexes. American Sociological Review, 20(2), 210. http://doi.org/10.2307/2088328.
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), a qual computa a distribuição não igualitária dos grupos sociais em âmbito local comparada à distribuição dos grupos na cidade como um todo. Analisamos também os índices de isolamento de grupos de alta e baixa renda, adaptada pelos autores a partir do índice de isolamento (Bell, 1954Bell, W. (1954). A probability model for the measurement of ecological segregation. Social Forces, 32(4), 357-364. http://doi.org/10.2307/2574118.
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), que identifica localidades onde a interação socioespacial tende a ocorrer restrita aos indivíduos do mesmo grupo social.

Consideramos a divisão dos grupos sociais em três classes socioeconômicas, adotando dados do Censo e baseados em critérios adotados por instituições brasileiras4 4 Embora o IBGE oficialmente adote o Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB), que envolve bens de consumo, escolaridade e renda, no Atlas Brasil 1 por 1 considera como baixa renda os domicílios com até 1/2 salário mínimo (SM) per capita, e alta renda superior a 3 SM. No índice de vulnerabilidade social o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) assume como baixa renda os domicílios até 1/2 salário mínimo per capita. O Programa Bolsa Família considera famílias em situação de pobreza e extrema pobreza com renda per capita abaixo de 1/6 de salário mínimo. e estudos de segregação (Feitosa et al., 2007Feitosa, F. F., Câmara, G., Monteiro, A. M. V., Koschitzki, T., & Silva, M. P. S. (2007). Global and local spatial indices of urban segregation. International Journal of Geographical Information Science, 21(3), 299-323. http://doi.org/10.1080/13658810600911903.
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; Lisboa & Feitosa, 2016Lisboa, F. S., & Feitosa, F. F. (2016). Para além da perspectiva residencial: a construção de índices de segregação dos espaços de atividades. Revista Brasileira de Cartografia, 68 (4), 797-813.; Zechin, 2014Zechin, P. A. V. (2014). Sobre a dimensão espacial da desigualdade urbana: um estudo sobre cinco cidades brasileiras. Brasília: Universidade de Brasília.), sendo de alta renda os domicílios com renda superior a dois salários mínimos per capita e de baixa renda aqueles com renda inferior a 1/2 salário mínimo per capita. Adotamos o raio de interpolação kernel gaussiana de 1.000 m para o cálculo das intensidades populacionais locais, buscando lógicas de interação socioespacial em escala local e tipos de deslocamentos passíveis de serem realizados a pé.

Barros e Feitosa (2018)Barros, J., & Feitosa, F. F. (2018). Uneven geographies: exploring the sensitivity of spatial indices of residential segregation. Environment and Planning. B, Urban Analytics and City Science, 45(6), 1073-1089. http://doi.org/10.1177/2399808318760572.
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testaram a sensibilidade da medida de dissimilaridade quanto a variações: (i) na diferenciação dos grupos sociais, (ii) na escala (resolução) de análise e (iii) nos critérios para delineamento da área total a ser estudada, cujos resultados são corroborados por Feitosa et al. (2021)Feitosa, F., Barros, J., Marques, E., & Giannotti, M. (2021). Measuring changes in residential segregation in São Paulo in the 2000s. In M. Van Ham, T. Tammaru, R. Ubarevičienė & H. Janssen (Eds.), Urban Socio-Economic Segregation and Income Inequality (p. 507-523). Cham: Springer International Publishing. http://doi.org/10.1007/978-3-030-64569-4_26
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, que ressaltam que índices espaciais de segregação são sensíveis a composição dos grupos sociais nas áreas de estudos. No nosso caso analisado neste trabalho, as composições populacionais em Pelotas correspondem a 22,7% de domicílios de baixa renda e 19,8% de alta renda, enquanto em Blumenau essa composição é de 6,2% e 31,0%. Portanto, os resultados para as medidas de segregação devem ser interpretados levando em consideração a composição dos grupos socioeconômicos.

Análises

Em um primeiro momento, consideramos a taxa de variação percentual anual da área efetivamente urbanizada (tau) e taxa de variação percentual anual da população urbana (tpu) para o total da amostra de 125 concentrações urbanas médias brasileiras. Esses indicadores foram representados em um gráfico de dispersão que mostrou também a densidade demográfica e o índice de expansão urbana de cada concentração urbana.

Aprofundamos as análises para duas cidades específicas – Pelotas/RS e Blumenau/SC – mapeando a evolução urbana e a proporcionalidade da expansão ao longo do tempo em intervalos de cinco anos entre 1985 e 2020. Em seguida, analisamos a fragmentação morfológica da expansão urbana a partir do Landscape Expansion Index (LEI) e um indicador de densificação local. Buscamos verificar a correlação entre o coeficiente de densificação demográfica e o índice de fragmentação LEI, mediante análises estatísticas e gráfico de dispersão. Considerando que nenhuma das variáveis nas duas cidades apresenta distribuição normal, realizamos testes de correlação de postos (rank-order) de Spearman, calculados a partir do software R, para nível de significância de 95%.

Por fim, verificamos a associação entre índices de segregação urbana para os extremos grupos de renda e os padrões espaciais de fragmentação morfológica e densificação urbana, também adotando testes de correlação de Spearman, calculados a partir do software R, para nível de significância de 95%.

Resultados

No gráfico de dispersão da figura 2 plotamos variáveis para o conjunto das 125 concentrações urbanas médias brasileiras, representando a área urbanizada no ano de 2020 no eixo horizontal, a população urbana no ano de 2010 no eixo vertical, a densidade demográfica representada no tamanho dos círculos e a paleta de cores, variando do azul ao vermelho, representando o indicador de expansão urbana entre 1985 e 2020.

Figura 2
- Diagrama de dispersão do universo das concentrações urbanas de porte médio (n = 125), considerando a área urbanizada no eixo horizontal, a população urbana no eixo vertical, a densidade demográfica no tamanho dos pontos e o índice de expansão urbana em paleta de cores do azul ao vermelho.

Verificamos que cerca de 60% dos casos analisados apresentam índice de expansão urbana superior a 1, onde a expansão urbana ocorreu em ritmo superior ao crescimento populacional. Nos outros 40% dos casos esse índice é inferior a 1, representando casos em que a expansão da área é contida em relação ao crescimento demográfico.

Na Tabela 1, apresentamos os dados iniciais e finais da área urbanizada (1985 e 2020), a população urbana (1991 e 2010), as respectivas taxas de crescimento anual (tau e tpu) e o índice de expansão urbana, para Pelotas/RS, Blumenau/SC, e os valores máximos, médios e mínimos para o universo das concentrações urbanas de porte médio.

Tabela 1
- Indicadores globais de crescimento urbano, populacional e periferização

A Figura 3 compõe dados relativos à expansão urbana de ambas as cidades, onde se pode verificar que Blumenau teve significativa parcela da expansão urbana (52%) entre os anos 1985 e 1990 (em cor vermelho intenso no gráfico da figura 3d e no mapa 3b), cuja resultante é uma linha de evolução que parte de um pico inicial e decai ao longo do tempo (observado na figura 3f). No caso de Pelotas (figuras 3a, 3c, 3e), embora observemos também uma tendência ao decaimento geral da área de expansão ao longo do período, é nítido um pico intermediário de crescimento entre os anos de 2005 e 2015, configurando uma dinâmica de oscilação do ritmo de crescimento.

Figura 3
- Mapeamento e representação gráfica da proporção de área da expansão urbana de Pelotas e Blumenau, entre 1985 e 2020.

Fragmentação da expansão urbana em Pelotas e Blumenau

Em escala global, Pelotas e Blumenau se diferenciam quanto à forma da expansão urbana e as densidades demográficas, como representado no gráfico combinado da Figura 4. Observamos que a cidade de Pelotas apresenta forma urbana mais compacta (representada pela linha azul no gráfico) e é caracterizada por uma urbanização mais densa (em barras azuis). Por outro lado, Blumenau parte de uma morfologia de característica mais fragmentada (linha laranja em patamar inferior à linha azul) e em densidades demográficas inferiores a Pelotas (barras laranjas inferiores às azuis). Necessário considerar que esta diferença é dependente das próprias trajetórias históricas de ambas as cidades, baseadas em distintos sistemas econômicos, culturais e características do sítio natural. Diante dessa diferença original, podemos observar que Pelotas apresentou expansão no sentido de maior periferização e diminuição das densidades, enquanto Blumenau desenvolveu sua expansão por meio do incremento das densidades médias e compactação morfológica. Sobre uma paisagem relativamente baixa e plana, composta por extensas áreas de banhados e suscetíveis ao encharcamento, Pelotas experimenta um padrão de crescimento mais extensivo, enquanto a cidade de Blumenau, sobre topografia mais acidentada, com áreas de encostas e vales suscetíveis a inundações, vem desenvolvendo uma urbanização que preenche os vazios, se densifica e adquire paulatinamente maior regularidade na forma da mancha urbanizada.

Figura 4
- Gráfico combinado, sobrepondo evolução histórica do índice de densidade demográfica (dados representados pelas linhas com referência ao eixo vertical à direita) e compacidade da área urbanizada (dados em barras com referência ao eixo vertical à esquerda), para Pelotas (em azul) e Blumenau (em laranja).

A classificação dos padrões de expansão (infill, edge expansion e leapfrog) está mapeada nas imagens da Figura 5, com fragmentos representados pela tonalidade roxa-escura correspondendo à maior fragmentação da expansão urbana.

Figura 5
- Mapeamento da expansão urbana entre os anos de 1985 e 2020, classificados pelo tipo de expansão.

A proporcionalidade e a soma das áreas de cada classe de expansão LEI estão representadas nos gráficos de barras acumuladas da figura 6, na qual verificamos que Pelotas apresenta 27% da área de expansão em padrão leapfrog (roxo-escuro), 50% do crescimento em expansão da borda e 23% do crescimento horizontal associado ao preenchimento de vazios (roxo-claro no gráfico). Já em Blumenau, menos de 20% da expansão é do tipo leapfrog, 55% em expansão da borda e pouco mais de 25% do crescimento ocorre em preenchimento de vazios urbanos.

Figura 6
- Gráfico de barras acumuladas representando a proporcionalidade de área das expansões do tipo leapfrog, edge e infill.

Consideramos também a evolução do indicador médio de compacidade (AWMEI) ao longo do tempo, no qual observamos, para ambos os casos, uma dinâmica de oscilação entre compactação e fragmentação morfológica. No gráfico da figura 7, verificamos que Blumenau (linha laranja) apresentou um pico de compacidade no ano de 2010, seguido de um decaimento no sentido da fragmentação urbana recente. Pelotas (linha azul) apresentou maiores índices de compactação entre 1995 e 2010, com maior fragmentação no ano de 2015 e retomada da compacidade relativa em 2020. Ambas as cidades apresentam, atualmente, LEI médio próximo a 0,4, o que significa que, na média, as expansões urbanas no período recente se justapõem em 40% à área previamente urbanizada.

Figura 7
- Linha de evolução da compacidade-fragmentação urbana definida pelo indicador médio de compacidade (AWMEI).

A figura 8 mostra os índices de densificação local para os respectivos intervalos de cinco anos do crescimento da mancha urbana, destacando a linha horizontal de valor 1, que divide quando a expansão ocorreu em densidade superior, ou inferior, à densidade da cidade no ano de 1985. Para ambas as cidades observamos, majoritariamente, a redução das densidades urbanas nas áreas de expansão. Observamos também uma oscilação na compacidade e fragmentação demográfica entre as cidades e ao longo do tempo, com destaque ao incremento de densidades entre 1990 e 2000 no caso de Blumenau e a expansão transcorrida em Pelotas no intervalo 2010 a 2015, quando o crescimento espacial se deu em densidade três vezes inferior à densidade demográfica média.

Figura 8
- Linha de evolução das médias do coeficiente de densificação demográfica.

Computamos também as médias do coeficiente de densificação associado a cada padrão morfológico de expansão LEI – infill, edge e leapfrog, representados na figura 9. Os resultados reforçam a associação entre compacidade e densificação, uma vez que os coeficientes de densificação positivos (isto é, fragmentos de expansão com densidade superior à média da cidade) ocorrem apenas (em média) associados à expansão que preenche os vazios urbanos (1,23 para Pelotas e 1,32 para Blumenau). Já as expansões edge e leapfrog acumulam coeficientes de densificação negativos, caracterizados por densidades menores do que a média da cidade.

Figura 9
- Médias dos coeficientes de densificação dos fragmentos de expansão, por tipo LEI, destacados em rótulo vermelho os coeficientes inferiores a 1,0, ou a densidade média da cidade.

Essa associação entre o coeficiente de densificação e o índice de fragmentação LEI pode ser observada também mediante correlação estatística positiva, conforme representado pela linha roxa inclinada para cima, nos gráficos de dispersão da figura 10, com maior correlação em Pelotas (r = 0,55; p < 0,05) e menor em Blumenau (r = 0,27; p < 0,05). Esses números reforçam a ideia de que a expansão urbana caracterizada por maiores densidades está também associada à maior contiguidade da forma de expansão urbana.

Figura 10
- Gráficos de dispersão representando o coeficiente de densificação no eixo X e o LEI no eixo Y. Cada ponto representa um fragmento de expansão da mancha urbana. Correlações de Spearrman de 0,55 para Pelotas e 0,27 para Blumenau, ambas significativas ao nível de confiança de 95%.

Segregação em áreas de expansão urbana

Partindo de uma leitura dos resultados globais dos indicadores espaciais de segregação urbana, apresentados na tabela 2, observamos que esses índices são sensíveis às respectivas composições percentuais dos grupos de renda. No caso da dissimilaridade, em Pelotas o índice 0,20 ocorre onde os percentuais dos grupos de renda mais se aproximam, enquanto a dissimilaridade em Blumenau de 0,26, onde os percentuais dos grupos sociais apresentam maior variabilidade. No que se refere ao índice de isolamento, essa sensibilidade é ainda mais evidente, com destaque ao menor indicador de isolamento (0,07) para baixa renda em Blumenau, influenciado pelos 6,2% da população correspondente a este grupo socioeconômico. Em outras palavras, o baixo índice de isolamento da baixa renda em Blumenau reflete o fato deste grupo ser proporcionalmente menor, diminuindo a probabilidade de que a interação espacial ocorra com indivíduos desse mesmo grupo minoritário.

Tabela 2
- Índices globais de segregação urbana

Apresentamos, nos mapas da figura 11 a seguir, a ocorrência da segregação por isolamento socioeconômico dos extremos grupos de alta e baixa renda nas áreas de expansão das cidades de Pelotas e Blumenau, classificada por quartis. Na figura, estão sobrepostos os fragmentos de expansão que computam, nas respectivas distribuições dos resultados, independentemente dos valores numéricos, as maiores situações de isolamento de baixa renda (em vermelho) e alta renda (em azul), onde observa-se a justaposição de uma segregação periférica pelos extremos grupos socioeconômicos.

Figura 11
- Mapeamento da segregação socioespacial por isolamento dos extremos grupos de renda nas áreas de expansão urbana.

Observamos também o comportamento médio dos indicadores de dissimilaridade local nas áreas de expansão urbana, ao longo do tempo, apresentado no gráfico da figura 12. No caso de Blumenau, o índice superior de dissimilaridade global destacado na tabela 2 também corresponde às médias superiores observadas no gráfico da figura 12, em que as médias locais da dissimilaridade se mantêm em patamar também superior ao longo dos anos, com certa oscilação e pico de maior dissimilaridade em 2015. Já no caso de Pelotas as variações temporais do índice de dissimilaridade local nas áreas de expansão ocorrem em médias inferiores, assim como também inferior é o índice de dissimilaridade global dessa cidade, cuja dinâmica apresenta pico no ano de 2005 e vale entre os anos 2010 e 2015.

Figura 12
- Média dos índices de dissimilaridade local nos fragmentos de expansão, ao longo do tempo.

Isolamento, fragmentação e densificação nas áreas de expansão urbana

Os resultados da associação entre as áreas de expansão urbana segregada e os padrões espaciais de fragmentação morfológica e densificação urbana estão apresentados na tabela 3, com resultados das análises da correlação de Spearman.

Tabela 3
- Testes de correlação de Spearman para segregação, compacidade e densificação

Observando a primeira linha de ambas as cidades, verificamos índices de correlação positiva entre a urbanização compacta (LEI) e a densificação (correlação 0,55 em Pelotas e 0,27 em Blumenau). Entretanto, quando observamos as correlações nas áreas de expansão com os maiores índices de isolamento da alta renda (percentil 50, coluna à direita), observamos que a correlação entre compacidade e densificação é ainda maior (correlação 0,64 em Pelotas e 0,31 em Blumenau). Essa situação é reforçada pelas análises que consideram apenas o percentil 50 das áreas com maior isolamento da baixa renda (coluna central), na qual a correlação entre compacidade e densificação diminui no caso de Pelotas e se mantém no caso de Blumenau (correlação 0,45 para Pelotas e 0,27 para Blumenau). Ou seja, quando consideramos apenas as áreas caracterizadas pelo isolamento dos grupos de renda, observamos que a correlação entre compacidade e densificação está associada ao padrão de segregação socioeconômica, sendo que grupos de alta renda tendem a se assentar em áreas que contribuem para aumentar a compacidade (vazios internos às manchas e crescimento de borda) e grupos de baixa renda em áreas que tendem a manter ou diminuir a compacidade (núcleos mais distantes e dispersos).

Observando ainda a tabela 3, a análise das áreas de isolamento de alta renda (coluna da direita) indica que, no caso de Pelotas, ocorre uma correlação negativa com a compactação da forma de expansão (índice -0,24) e a densificação (correlação -0,47). Por outro lado, no caso de Blumenau, a expansão orientada aos grupos de alta renda apresenta correlação positiva com a compacidade (correlação 0,39) e a densificação demográfica (correlação 0,33). Ou seja, no caso de Pelotas há uma tendência a, quanto maior for o isolamento do grupo de alta renda, menor ser a contiguidade morfológica da área de expansão (ocorre mais no padrão leapfrog) e menor a densidade demográfica. Já em Blumenau, quanto maior o isolamento do grupo de alta renda, maior a contiguidade morfológica (preenchimento de vazios) e maior é a densidade demográfica da área urbanizada.

Considerações finais

As evidências empíricas desenvolvidas no trabalho observam a periferização, fragmentação e segregação, enquanto forma, estrutura e processos que caracterizam a urbanização extensiva (Monte-mór, 1994Monte-Mór, R. (1994). Urbanização Extensiva e lógicas de povoamento: um olhar ambiental. In Santos, M. et. al. (Orgs.), Território, globalização e fragmentação (pp. 169-181.). São Paulo: Hucitec/Anpur.) e dispersa (Reis Filho, 2006Reis Filho, N. G. (2006). Notas sobre urbanização dispersa e novas formas de tecido urbano. São Paulo: Via das Arte.) das cidades médias brasileiras. Entre os anos 1985 e 2020, em cerca de 60% dos casos a expansão ocorreu em taxas superiores ao crescimento populacional, enquanto outros 40% das cidades desenvolveram um padrão de crescimento urbano horizontal mais contido.

A partir desse resultado global, analisamos em escala local os padrões de expansão urbana e os processos de segregação socioespacial para as cidades de Pelotas/RS e Blumenau/SC. Cidades localizadas na região Sul do país, com população de porte semelhante, mas que se caracterizam por contextos culturais e econômicos distintos, que apresentam diferentes composições percentuais entre grupos socioeconômicos e se assentam sobre sítios geográficos de características também distintas. Para ambas as cidades alcançamos um conjunto de observações que demandam continuidade nos processos analíticos para determinar, por exemplo, como a relativa compactação da mancha urbana em Blumenau e a fragmentação da cidade de Pelotas estão associadas à manutenção e estabilidade dos índices de segregação urbana, ou como a ocorrência de enclaves com características socioeconômicas contrastantes na escala local contribuem para estabilidade desses índices globais de segregação.

Analisadas desde o ano de 1985, verificamos que o padrão de expansão urbana periférica e em baixa densidade na cidade de Pelotas advém de estrutura urbana originalmente mais compacta e em maior densidade, enquanto Blumenau, partindo de uma mancha urbana mais fragmentada e em menores densidades demográficas, desenvolve expansão no sentido da densificação e compacidade. Como sustentado por trabalhos anteriores (Caldeira, 1997Caldeira, T. P. R. (1997). Enclaves fortificados: a nova segregação urbana. Novos Estudos CEBRAP, 47, 155-176.; Janoschka, 2002Janoschka, M. (2002). El nuevo modelo de la ciudad latinoamericana: fragmentación y privatización. EURE (Santiago), 28(85). http://doi.org/10.4067/S0250-71612002008500002.
http://doi.org/10.4067/S0250-71612002008...
; Marques, 2015Marques, E. (2015). Urban poverty, segregation and social networks in São Paulo and Salvador, Brazil. International Journal of Urban and Regional Research, 39(6), 1067-1083. http://doi.org/10.1111/1468-2427.12300.
http://doi.org/10.1111/1468-2427.12300...
; Peres & Saboya, 2021Peres, O. M., & Saboya, R. T. (2021). Urban form and socio-spatial segregation in Santa Catarina Brazilian Cities. In Annual Conference Proceedings of the XXVIII International Seminar on Urban Form (pp. 269–281). Glasgow: University of Strathclyde. http://doi.org/10.17868/80146), observamos também que a segregação urbana nas áreas periféricas é caracterizada pelo isolamento socioeconômico dos grupos de alta e baixa renda, que ocorrem justapostos e coexistem nas áreas de expansão urbana. Ou seja, embora partindo de situações morfológicas, socioeconômicas e em sítios geográficos distintos, as expansões ocorridas em ambas as cidades são caracterizadas pela segregação e isolamento de ambos extremos grupos de alta e baixa renda, como processos que mantêm os respectivos padrões globais de segregação urbana.

Em síntese, constatamos que, independentemente da intensidade e forma de expansão, a produção dos espaços urbanos tem sido estruturada pela segregação socioeconômica, cujos resultados sugerem que a segregação encontra em aspectos e feições internas, em menor escala, condições para garantir a separação e a restrição do contato entre grupos distintos. Apresentamos evidências iniciais de que, na urbanização extensiva, periférica, os grupos socioeconômicos estão dispostos de modo fragmentado, justapostos e organizados de modo que a restrição no contato oculte as distintas realidades urbanas. Esses resultados indicam a necessidade de aprofundamento de estudos, considerando variações na resolução das análises, variáveis mais acuradas da localização residencial dos grupos sociais, que envolvam aspectos da estrutura da rede viária e que alcancem indicadores mais adequados para estabelecer comparações intra, e intermunicipais, colaborando assim para o campo de investigação dedicado a integrar análises da morfologia e da segregação urbana.

Declaração de disponibilidade de dados

O conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste artigo está disponível no SciELO DATA e pode ser acessado em https://doi.org/10.48331/scielodata.FTNOTB.

  • 1
    Neste trabalho adotamos a seguinte convenção terminológica: para o conjunto dos “125 Arranjos Populacionais e Concentrações Urbanas”, usamos o termo “concentrações urbanas”. Para Blumenau e Pelotas, usamos o termo cidades médias, já que ambas abrangem de fato apenas as cidades propriamente ditas, e não as cidades vizinhas conurbadas como acontece em várias das 125 concentrações urbanas.
  • 2
  • 3
  • 4
    Embora o IBGE oficialmente adote o Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB), que envolve bens de consumo, escolaridade e renda, no Atlas Brasil 1 por 1 considera como baixa renda os domicílios com até 1/2 salário mínimo (SM) per capita, e alta renda superior a 3 SM. No índice de vulnerabilidade social o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) assume como baixa renda os domicílios até 1/2 salário mínimo per capita. O Programa Bolsa Família considera famílias em situação de pobreza e extrema pobreza com renda per capita abaixo de 1/6 de salário mínimo.
  • Como citar: Peres, O. M., & Saboya, R. (2024). Segregação socioespacial, morfologia da expansão e fragmentação socioeconômica em cidades brasileiras de porte médio. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, v.16, e20230192. https://doi.org/10.1590/2175-3369.016.e20230192

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Jun 2023
  • Aceito
    24 Maio 2024
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